Introdução
Em finais do século XX existia quem profetizasse o fim da “classe trabalhadora” (Gorz e Sonenscher 1982) ou até o “fim do trabalho” (Rifkin 1995), sendo estas visões contrariadas, sobretudo depois da viragem do século, por perspetivas mais abrangentes sobre o trabalho e as classes trabalhadoras, tanto geográfica como tipologicamente. São exemplos disso a perspetiva da “história global do trabalho” (van der Linden 2002), que contribuiu para alargar o estudo das classes trabalhadoras para além dos assalariados livres (ex.: o trabalho escravo, o trabalho independente, etc.), tal como os trabalhos de Standing (2014), que nos fala da emergência do “precariado”.
De facto, com a entrada no século XXI, organizações internacionais, nacionais, públicas e privadas preocuparam-se em projetar a sua visão sobre o “futuro do trabalho”, posicionando-se num debate social que tem ganho fôlego (vide International Labour Organization 2017). As ciências sociais têm informado este debate cientificamente, focando-se no mercado de trabalho - um foco que reflete a centralidade que o mercado ocupa na organização das sociedades contemporâneas. No entanto, esse foco tende a ignorar formas alternativas de encarar a participação produtiva na sociedade, naturalizando a sua forma mercantilizada, quando sabemos, pelo menos desde a obra seminal de Polanyi, que esta forma é particular e situada historicamente - uma “mercadoria fictícia”, no sentido em que não existe com o fim de ser vendida e comprada nem pode ser desligada do resto da vida (Polanyi 2012 [1944]). Inversamente, este artigo debruça-se sobre modalidades de trabalho que procuram escapar da forma mercadoria. Falaremos então do trabalho em “comuns urbanos”, em que o trabalho é definido como toda a atividade que produz um bem ou serviço, material ou imaterial, que pode beneficiar um ou mais indivíduos para além de quem a executa (Lopes 2020), e os comuns urbanos como recursos em contexto urbano que, em princípio, são acessíveis por toda a gente e existem fora do controlo direto da lógica estatal e dos direitos de propriedade que esta suporta, bem como da lógica mercantil e da necessidade lucrativa que esta pressupõe (Lopes 2020; Dardot e Laval 2017; Harvey 2014).
A base deste artigo1 é uma investigação feita no âmbito de uma dissertação de mestrado em sociologia (Lopes 2020), perspetivando o trabalho no presente sob a ótica dos comuns urbanos e incidindo sobre quatro espaços alternativos situados na cidade de Lisboa, onde esses comuns urbanos se desenvolvem, como é o foco deste dossiê. Com um caráter assumidamente exploratório, dada a escassez de estudos neste âmbito em Portugal, a nossa abordagem ao terreno pretendeu caracterizar qualitativamente os casos, de acordo com duas dimensões consideradas prioritárias para uma abordagem desta natureza: (1) as condições em que os atores desenvolvem estes espaços de comuns urbanos e (2) as suas motivações, tendo em conta que se pretende analisar as atividades destes espaços enquadrando-as enquanto formas de trabalho não mercantilizado.
O conceito de trabalho na cultura, na história e na economia
Culturalmente poucas coisas serão, ao mesmo tempo, tão conceptualmente abrangentes quanto historicamente específicas como é o trabalho. De facto, como refere Méda (2010: 38), o trabalho não pode ser considerado uma invariante da natureza humana ou uma representação igual em todas as civilizações, mas sim uma categoria cuja invenção apenas foi necessária num dado momento numa dada cultura. Malinowski (1989 [1922]) mostrou que nas ilhas Trobriand não existia uma categoria “económica” per se, nem sequer uma palavra distintiva para definir atividades produtivas. As atividades que garantiam a sobrevivência eram atravessadas por lógicas diferentes da satisfação de necessidades e nenhuma delas era individual na responsabilidade, propriedade ou execução. No seu encalço, Mauss (2002 [1950]) explicou que a reciprocidade era central nas relações de troca entre grupos de sociedades ditas “arcaicas”, ocorrendo dentro daquilo que denominou de “fenómenos sociais totais” - uma outra forma de dizer que as atividades que cumpriam a função de satisfazer necessidades cumpriam, simultânea e maioritariamente, outras funções - sobretudo sociais -, de criação e manutenção de laços de solidariedade.
Historicamente, mesmo nas civilizações que deram origem à cultura ocidental - nomeadamente na Grécia e Roma antigas -, e também na Europa medieval, o trabalho nem sempre existiu como hoje o consideramos e sofreu profundas alterações ao longo do tempo. Na Grécia, existia um conceito para trabalho, mas estava associado a tarefas degradantes (Gorz 1985: 49) da esfera privada, que era reservada a pessoas escravizadas e a mulheres (Méda 2010: 41-43). O mesmo acontecia no mundo romano, que valorizava o otium (ócio) e desvalorizava o negotium (negócio, a negação do ócio) (Méda 2010: 50-51). Foi por influência cristã que, na Idade Média, a atividade produtiva passou a ser valorizada como uma penitência necessária à expiação e mortificação da carne (Méda 2010: 57) e o ócio passou a ser sinónimo de preguiça. Assim, a diferença entre labor (labuta) e opus (obra) foi-se esbatendo e deu lugar ao conceito unívoco de trabalho (do latim tripalium, um instrumento de tortura):2 “uma categoria de atividades árduas ou que se destinam a satisfazer necessidades” (Méda 2007: 20-21).
Economicamente, foi depois da Revolução Industrial que a busca pelos ganhos começou a tornar-se dominante na organização do mundo do trabalho, dado que, numa sociedade comercial dominada por mercadores, a mesma só era possível ao tornar este elemento numa mercadoria plena. Assim, toda a sociedade humana passou a ser apenas um prolongamento do sistema económico, ao contrário do paradigma anterior (Polanyi 2012 [1944]: 190). Esta mercantilização foi uma rutura transversal ao modo de vida, valores, relações sociais e relação com a natureza de tal modo violenta que os primeiros patrões só conseguiram quebrar “a falta de vontade dos trabalhadores em trabalhar todo o dia” pagando-lhes salários suficientemente baixos, que os forçassem a trabalhar pelo menos “dez horas por dia para ganhar o suficiente para sobreviver” (Gorz 1989: 21).
Marx, um dos autores mais influentes nos estudos do trabalho, teorizou abundantemente este fenómeno nas sociedades capitalistas. Para ele, o trabalho é essencialmente a automediação necessária do ser humano com o mundo que lhe é exterior, de forma a suprir as suas diversas necessidades (e não apenas de sobrevivência). Mas, nas sociedades capitalistas, o trabalho é dividido, segundo ele, em trabalho concreto - que cria um valor de uso, ou seja, que tem uma utilidade direta - e em trabalho abstrato - que gera, em cima do valor de uso, um valor de troca, que por sua vez resulta num excedente que é apropriado pelo capitalista (a chamada mais-valia) (Marx 2011 [1867]).
Mais recentemente, Robert Castel (1998) argumentou que emergiu uma “sociedade salarial” para colmatar a “questão social” engendrada pelo modo de produção capitalista, sendo essa questão resultante das profundas desigualdades sociais e exclusão sistemática de uma parte da população produzidas pelo mesmo - “uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura” (Castel 1998: 30). Assim, surgiu um “compromisso entre os interesses do mercado e as reivindicações do trabalho” (1998: 278), em que à condição de assalariamento passa a estar associado um conjunto de proteções sociais, garantidas pelo Estado, que permitem uma certa desmercantilização do trabalho. Contudo, desde a década de 1970, a fragilização da sociedade salarial e um processo exacerbado de mercantilização do trabalho fazem emergir uma “nova questão social”, marcada pela subemprego e desemprego, que passa a atingir inclusivamente segmentos tradicionalmente estáveis, produzindo, no seu extremo, a “desfiliação social”.
Nas sociedades contemporâneas subsistem, contudo, formas de trabalho não orientadas para o mercado e socialmente relevantes que importa compreender. Entre estas, destacam-se na literatura os estudos sobre trabalho voluntário 3 e os estudos sobre trabalho reprodutivo, doméstico e de cuidados.4 Estes estudos chamam a atenção para o facto de que as fronteiras entre formas mercantis e não mercantis, entre trabalho remunerado e não remunerado, entre atividade e inatividade constituem construções sociais,5 assumindo diferentes “regimes de valor” ao longo do espaço e do tempo (Appadurai 1986). No âmbito dos estudos da precariedade, Pulignano (2019) analisa o contínuo entre o trabalho pago e gratuito mostrando que o trabalho mercantilizado é valorizado, enquanto o trabalho separado da dimensão de mercadoria “não é considerado trabalho e como tal não é valorizado” (2019: 7). Por sua vez, a análise crítica feminista argumenta que o trabalho reprodutivo tem sido chave para a exploração das mulheres no capitalismo, mas também como parte da (re)produção da força de trabalho, regenerando diariamente a capacidade de trabalho dos trabalhadores (Federici 2009).
Este artigo pretende contribuir para esta discussão crítica do trabalho na contemporaneidade a partir de um domínio ainda pouco explorado que é o do trabalho nos comuns.
Os comuns: recursos, trabalho coletivo e prefiguração política
A noção de recursos comuns, tal como o trabalho, tem uma origem milenar, com uma expressão explícita desde pelo menos a Grécia Antiga - assumindo, no entanto, diferentes manifestações em diferentes geografias (Lohmann 1992). No contexto ocidental, os village commons ingleses (“comuns rurais” em tradução literal, “baldios” em tradução adaptada) - um sistema de produção agrícola comunal que proliferou na Idade Média - são um exemplo amplamente referenciado. Foi deles que falou Polanyi ao referir-se aos cercamentos (enclosures) aos comuns: “os ricos transformaram de alto a baixo a ordem social, rompendo com as antigas leis e costumes, recorrendo por vezes a meios violentos, e ao uso frequente das pressões e da intimidação” (Polanyi 2012 [1944]: 140).
Este processo de cercamento aos comuns descrito por Polanyi é transversal a todos os pontos do globo onde o modo de produção capitalista se implantou, sendo exposto por Marx como um processo de acumulação primitiva - “uma expropriação [que] está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e de fogo” (Marx 2011 [1867]: 782). Como esclarecem vários autores, este processo de expropriação é necessário não apenas num estágio inicial da produção de capital, mas enquanto processo contínuo, sistemático e hoje globalizado de reprodução do capital (Luxemburgo 1988 [1913]; Midnight Notes Collective 1990; Harvey 2011).
Na viragem do milénio, Dyer-Witheford afirmava que os comuns estavam a emergir como “um conceito crucial para ativistas e pensadores envolvidos numa miríade de mobilizações por todo o planeta” (Dyer-Witheford 2001: 965). A partir dessas várias experiências práticas, inscritas nos comuns, que Negri e Hardt (2009) concetualizaram pela primeira vez o comum no singular, não apenas enquanto recurso, mas enquanto conceção política que reunia todas essas experiências. Mais recentemente, existe uma abundância de literatura que relaciona comuns com movimentos sociais - sendo alguns exemplos os trabalhos de Asara (2020), Yoon (2018) ou Villamayor-Tomas e García-López (2018). Assim, no final da segunda década do século XXI, Dardot e Laval já consideravam que o comum se tinha tornado no “termo central da alternativa ao neoliberalismo” e “[n]um princípio efetivo dos combates e movimentos que há duas décadas resistem à dinâmica do capital e conduzem a formas originais de ação e discurso” (Dardot e Laval 2017: 17).
Muitas vezes, a noção de recursos comuns é interpretada com um viés naturalista, que os limita apenas àqueles que supostamente são inesgotáveis ou não cercáveis (Dardot e Laval 2017). No entanto, “comum” nunca é uma característica de um recurso per se, mas das regras sociais que regulam o acesso a esse recurso (quer essas regras se legitimem através de características naturais ou não). Segundo Dardot e Laval, a conceção simplista de comuns enquanto mero recurso deve ser superada em favor de uma conceção que não apenas a inclua, mas que comece pela sua dimensão política (2017: 64). Este princípio postula que um recurso apenas se torna comum pela atividade prática dos humanos (um agir comum, ou commoning) instituindo-se, portanto, de forma emergente e não imposta (2017: 271).
É também enquanto prática social que Harvey (2014) conceptualiza os comuns urbanos, que emergem em contraposição aos processos de privatização, financeirização e mercantilização do espaço e modos de vida, particularmente associados às lutas pelo direito à cidade. A reapropriação de bens, serviços e espaços públicos mercantilizados ou inutilizados enquanto recursos comuns constitui uma “relação social instável e maleável” por parte de um grupo social particular, podendo os mesmos ser exclusivos desse grupo ou abertos de forma parcial ou total. O seu cerne é o princípio de que “a relação entre o grupo social e aquele aspeto do ambiente tratado como comum deve ser coletiva e não mercantilizada” (Harvey 2014: 73). Deste modo, diferentes grupos sociais podem apropriar-se, por diversas razões, de comuns urbanos, desde a utilização de um terreno abandonado para fazer uma horta comunitária, à apropriação de uma praça para assembleias populares (como a Primavera Árabe, os Indignados, o movimento Occupy), à ocupação de edifícios para habitação, iniciativas contra a privatização da energia elétrica (Dellenbaugh et al. 2015), entre outros, como iremos analisar.
Assim, estas atividades práticas podem ser consideradas como uma forma de trabalho coletivo e não mercantilizado, e ainda como uma prática enquadrada naquilo que, crescentemente, se tem designado por “política prefigurativa”: “uma prática política experimental na qual os fins das ações de alguém estão espelhados nos meios aplicados para a sua realização, sendo estes fins concebidos como inerentes à prática em si e sendo a sua realização imediata um objetivo” (van de Sande 2017: 25).
Metodologia
A investigação que deu origem a este artigo decorreu durante cerca de um ano, entre outubro de 2019 e novembro de 2020. O seu objetivo foi estudar atividades de trabalho não mercantilizado existentes na atualidade, privilegiando uma abordagem qualitativa, dada a escassez de estudos sobre o fenómeno no contexto português. Neste artigo apresentam-se e analisam-se quatro dos 13 casos estudados nesse âmbito, incidindo sobre aqueles que se situam na cidade de Lisboa, uma vez que assim se garante uma unidade própria da problemática ao nível geográfico, assegurando-se a diversidade dos casos no que respeita às atividades que neles são desenvolvidas, de modo a poder compará-las. O trabalho de campo implicou a visita a dois destes espaços, nomeadamente a Cicloficina dos Anjos e o espaço GAIA (onde se situa a Sementeca), enquanto os outros dois, a Seara e a PENHA SCO, foram contactados à distância através de chamadas com os interlocutores da pesquisa, no contexto da primeira vaga da pandemia de Covid-19.
Assim, foram feitas entrevistas semiestruturadas como técnica privilegiada e observação participante como técnica complementar. Optou-se por este tipo de entrevistas porque a estruturação não seria compatível com o cunho exploratório da pesquisa e porque entrevistas completamente não estruturadas podiam impedir a comparabilidade entre os casos e a identificação de regularidades.
Foi realizada uma entrevista por espaço alternativo. Para a sua concretização, utilizou-se um guião com um conjunto de tópicos orientadores. Depois de as entrevistas serem gravadas e transcritas, foi efetuada a análise de conteúdo com recurso ao software MAXQDA 10, tendo por base quer categorias prévias, teoricamente orientadas, quer categorias geradas de forma indutiva, a partir dos dados primários recolhidos. Desta forma, promoveu-se a flexibilidade de resposta por parte dos entrevistados: as questões não foram feitas de forma totalmente igual ao guião e puderam ser incluídos tópicos não previstos, suscitados pelas respostas, que não estavam no guião (cf.Bryman 2012).
Indivíduos e organizações em quatro iniciativas de comuns urbanos: incursões no terreno
O pequeno espaço rústico e acolhedor da associação GAIA (Grupo de Ação e Intervenção Ambiental), no coração de Alfama, estava movimentado da primeira vez que lá fui. Ao lado das prateleiras cheias de frascos de sementes, que materializavam a ideia da Sementeca, Carminda estava a falar com pessoas interessadas no tema das sementes livres e dos seus usos. Percebi que não conseguiria entrevistá-la naquele dia. Falámos um pouco sobre o projeto e posteriormente combinámos, por e-mail, uma entrevista no domingo, depois da sessão da Sementeca. Carminda tem 39 anos, tem um mestrado e trabalha por conta de outrem. É responsável pela criação e manutenção deste espaço informal que pretende ser uma biblioteca de sementes, ou seja, uma plataforma de armazenamento da qual as pessoas levam uma semente, aprendem sobre a sua origem e forma de cultivo e, no fim do seu ciclo natural, é esperado que “devolvam” algumas sementes novas. Outro objetivo do espaço é dinamizar eventos e oficinas, consciencializando para a importância das sementes livres de patentes e de químicos (GAIA s.d.). Para além da Sementeca, Carminda também participa na dinamização do “espaço GAIA” e na Campanha pelas Sementes Livres.
Tinha ido ao espaço também para conhecer o projeto da recicleta, a cicloficina 6 do espaço GAIA, cujas sessões eram à quinta-feira. Fiquei durante algum tempo a ajudar a reparar bicicletas e a ir buscar material a uma cave adjacente, relativamente grande, mas cheia de bicicletas, material e ferramentas. O dinamizador era simpático mas tímido, e percebi que preferia falar apenas das tarefas que tínhamos em mãos. Aconselhou-me a falar com alguém da Cicloficina dos Anjos (CdA) e assim fiz, noutro dia. A CdA ficava mais a norte, na freguesia de Arroios, perto do campo dos Mártires da Pátria. Era uma espécie de loja/oficina. O espaço era pequeno, bem aproveitado e funcional. Tinha uma pequena cozinha-bar, onde também estavam expostas as bicicletas para venda em segunda mão. O frigorífico tinha vários autocolantes relacionados com o movimento pelo uso da bicicleta e também estavam à venda crachás da “Massa Crítica”.7 Da primeira vez que lá fui falei com um voluntário que não tinha disponibilidade para uma entrevista, mas deu-me o e-mail para combinar com outra pessoa. Da segunda vez, fiquei a ajudar Gennaro até o movimento acalmar e nos sentarmos numa pequena mesa de trabalho onde decorreu a entrevista. Disse-me que tinha 27 anos, que o seu nível de escolaridade era de um mestrado, trabalhava por conta de outrem e, quando vivia em Milão, também tinha participado numa cicloficina.
Em relação às restantes duas entrevistas, apenas consegui falar por videochamada, dado que a pandemia de Covid-19 já estava em Portugal na altura em que falei com eles. Marino tinha 34 anos, um mestrado e trabalhava por conta de outrem. Participava na cooperativa artística PENHA SCO (Penha de França), que surgiu com o objetivo de ser um espaço autossustentável de produção e difusão artística comunitária, capaz de dar algum retorno financeiro para manter os membros vinculados, mas sem que esse dinheiro fosse o principal rendimento dos participantes, conseguindo assim preservar a liberdade de criação.
Noémia tinha 23 anos, era licenciada e trabalhava por conta de outrem. Participava na Seara, um centro social instalado num edifício ocupado ao largo de Santa Bárbara, num edifício anteriormente devoluto e entregue à especulação. O espaço tinha o objetivo de dar apoio e abrigo às pessoas que não o tinham, durante a emergência social que se vivia no período mais intenso do confinamento da primeira vaga da pandemia. A Seara acabou por ser despejada por seguranças privados, auxiliados pela polícia, que teria sido chamada para denunciar a ilegalidade da intimidação armada feita pelos seguranças (Ascensão e Rodrigues 2020). Tudo acabou numa operação musculada, em frente a protestos, que fechou o centro e pôs as pessoas em situação de sem-abrigo novamente na rua (TSF 2020; Silva 2020; Lusa 2020).
O que une todos estes espaços tão diversos é o facto de se organizarem em torno de um comum urbano na cidade de Lisboa. Como se esquematiza no quadro 1, diferem entre si no tipo de organização, missão, recurso comum e tipo de relação com este.8 Os interlocutores destes espaços, dois homens e duas mulheres, têm em comum o facto de terem ensino superior. A nossa incursão por estas iniciativas faz-nos levantar a hipótese de que poderá existir um certo grau de privilégio dos participantes deste tipo de iniciativas, sendo essa aliás uma tendência já evidenciada por Schor et al. (2016).
Entrevistada/o (habilitações) | Identificação do caso (tipo de organização, local, missão) | Comum urbano (relação com o mesmo) |
Marino (mestre) | PENHA SCO (cooperativa, Penha de França) - produção e difusão artística comunitária | Arte comunitária (produz e distribui) |
Carminda (mestre) | Sementeca do GAIA (sob alçada de associação, Alfama) - biblioteca de sementes livres | Sementes livres (plataforma de troca) |
Gennaro (mestre) | Cicloficina dos Anjos (associação, Anjos) - oficina comunitária DIY de bicicletas | Conhecimento (ensino prático) |
Noémia (licenciada) | Seara (informal, Arroios) - centro social autogerido direcionado a pessoas em situação de sem-abrigo | Espaço solidário (criou e mantém) |
As diferentes organizações e participantes em perspetiva
“As pessoas ficam muito contentes, então eu também fico muito contente, toda a gente fica contente!” Carminda (Sementeca)
No que toca à organização interna, as iniciativas em estudo assumem uma estrutura horizontal, em que existe igual obrigação e responsabilidade, assembleias regulares (que eram abertas ao público, no caso da Seara) e, como destacou Gennaro ao falar da Cicloficina, onde “cada pessoa tem o mesmo poder de decisão que uma pessoa que está aqui há imensos anos”. Segundo ele, os participantes do espaço são os seus próprios patrões, e saber que pode fazer propostas é importante, pois quer dizer que “não és uma mão, não és um mero executor, és uma parte do cérebro deste mecanismo grande que temos”.
Para sustentarem os seus espaços, a Sementeca e a Cicloficina beneficiavam de apoios dados pela autarquia local, sendo que a Cicloficina também tinha ganho alguns financiamentos do Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ). A Seara, por ser uma ocupação, não pagava renda e cobria as restantes necessidades através de donativos. A PENHA SCO, sendo uma cooperativa, era autossustentável através de um modelo em que alugavam os espaços a preço de custo e faziam alguns eventos nos quais cobravam a entrada, no caso de os artistas receberem cachet - “basicamente, a gente criou uma plataforma que gera rendimento automático para os seus custos”. Como será abordado mais à frente, esta cooperativa também conseguia gerar rendimento para alguns cooperantes através de projetos financiados.
A sustentabilidade económica destes espaços assentava, de um modo ou de outro, em práticas e atitudes que desafiavam a lógica mercantil, sendo a Seara o exemplo mais acabado, tendo em conta que era uma ocupação. Quer fosse com o objetivo de manter a biodiversidade contra as empresas que querem controlar as sementes (Sementeca), criar uma verdadeira economia de partilha e não “uma trotinete por cada pessoa que precisa de uma trotinete” (Cicloficina), ou contrariar a gentrificação (Seara e PENHA SCO), todos os espaços funcionavam com base em ideais não mercantis: “Existe um mecanismo através da cultura e da arte no processo de gentrificação […]. A gente tem o sonho de descobrir como, usando a mesma ferramenta, inverter. Em vez de fortalecer o valor do imóvel no bairro, fortalecer a comunidade” [Marino, PENHA SCO].
Não obstante, as pessoas entrevistadas dependem da sua participação no mercado de trabalho, onde “ganham a vida” para se poderem dedicar ao trabalho nos comuns, pois era o emprego individual dos entrevistados que os sustentava. Essa participação no mercado de trabalho é vista como um constrangimento moderado. Carminda (Sementeca) afirmava que “se tivesse um rendimento mínimo [incondicional], não tinha de ir trabalhar; podia fazer mais coisas, se calhar ia fazer sementes, plantar coisas […], isso era já!”, mas nenhum deles quereria dedicar-se exclusivamente ao espaço se não tivesse de integrar o mercado de trabalho. Todos negaram a utilização do espaço para o enriquecimento do currículo profissional (exceto Noémia, a quem isso nem sequer foi perguntado por a Seara funcionar num espaço ocupado), mas a maioria encontrou continuidades entre os dois tipos de trabalho (no mercado e em comuns urbanos), no que toca às competências e habilidades utilizadas e trocadas, mas sobretudo no facto de ambas as atividades exigirem compromisso e energia. Apesar de existir uma motivação intrínseca, não deixa de ser trabalho: “a gente tem de tomar cuidado com isso de ‘voluntário não é trabalho…’ Não, é trabalho! […] Cansa, dá prazer, a gente não precisa de separar as coisas” [Marino].
Mesmo assim, duas das entrevistadas realçam o facto de o termo “trabalho voluntário” não ser o mais adequado, pois associam-no a atividades mais heterodeterminadas e verticais na sua organização interna. No geral, verifica-se, de facto, que o trabalho que é desenvolvido no interior destes espaços não tem uma motivação instrumental de autobeneficiação dos seus participantes no contexto do mercado de trabalho, contrastando com estudos recentes sobre trabalho voluntário (Rego, Zózimo e Correia 2017), e que a própria ideia de “trabalho voluntário”, sendo efetivamente aquilo que essas entrevistadas fazem, seja um termo com o qual não se sentem confortáveis, exatamente por já ter uma outra conotação específica de atividades dirigidas por outrem e não autodeterminadas.
As diferenças apontadas em relação ao mercado de trabalho são ao nível de motivação, que no caso do emprego é o rendimento obtido e no caso dos comuns é o gosto pela atividade - algo que, segundo Noémia (Seara), contraria as expectativas sociais de as pessoas estarem motivadas para terem perspetivas de carreira: “[o espaço] é uma coisa mais principal para quem eu sou do que o trabalho”. Outras diferenças apontadas são a descontração - “se não acabarmos uma bicicleta não há stress” [Gennaro, Cicloficina] - e a “liberdade económica para poder experimentar outros lugares, outras relações financeiras, outras dependências” [Marino]. No caso de Noémia e Gennaro, o vínculo financeiro é perspetivado como sendo limitador da sua liberdade no trabalho. No entanto, a PENHA SCO, ao contrário dos outros espaços, torna possível que os cooperadores tenham algum rendimento através dos projetos financiados que desenvolvem sob a sua alçada, encontrando, ainda assim, uma forma de manter esse vínculo financeiro menos condicionador do que outros “ganha-pães”:
“Participei de vários projetos que exatamente falhavam porque […] não tinham nenhum vínculo financeiro; acabava que os participantes na hora que precisam de dinheiro, na hora em que a coisa aperta, o sacrifício vem daí […]. Ao mesmo tempo, quando é [o único] ganha-pão […], tem outras dependências de arcar com os custos, de fazer os custos valerem e tal, que perde muita liberdade ideológica […]. Então, como a gente [na PENHA SCO] não vive só disso […], esse lugar é muito interessante, onde existe um comprometimento em função de um [vínculo financeiro] mas, ao mesmo tempo, não é um comprometimento de mercado que nos faz virar capitalista cego.” [Marino]
Neste caso, o vínculo financeiro é visto como tendo efeitos positivos por potenciar a dedicação a uma “comunidade” urbana onde os laços e compromissos são difíceis de manter se não houver outro tipo de compensações. Trata-se de uma contradição inerente a estes esforços prefigurativos desenvolvidos dentro de um sistema que permanece marcado pelo “imperativo de ganhar a vida”, em que a separação dos trabalhadores face aos seus meios de produção os mantém dependentes do trabalho assalariado para a sua subsistência (Denning 2010). Assim, a PENHA SCO encontrou um lugar em que consegue potenciar esses laços através de um vínculo financeiro, conseguindo ao mesmo tempo sustentar economicamente a sua continuidade a médio/longo-prazo e manter a sua liberdade criativa. Para além disso, consegue também criar laços de solidariedade entre as/os cooperadoras/es, pois os rendimentos advindos dos projetos financiados destinam-se apenas aos membros que os desenvolvem como freelancers, ao passo que os cooperadores que têm um emprego externo estável trabalham pro bono. Adicionalmente, como já foi referido, a cooperativa também aluga espaços e cobra entrada em alguns eventos, de modo a pagar aos artistas e pagar a renda do espaço.
O que sobressaiu, em todas estas respostas, foi a ideia de que o mercado de trabalho não correspondia a uma participação na sociedade suficiente ou que, nalguns casos, nem sequer correspondia a uma participação desejável, ou autodeterminada, servindo o trabalho nos comuns exatamente para colmatar essa falha.
As motivações para o trabalho nos comuns urbanos revelaram-se complexas e muito diversas, indo desde aquilo que classificámos como motivações individuais (de dentro para fora) até às motivações com origem na comunidade (de fora para dentro). Ao nível individual, são referidos o estímulo intelectual (“resolver problemas diferentes todas as vezes”, Gennaro), a realização individual de conseguir criar algo e a grande aprendizagem que se faz todos os dias. Existem também muitas motivações baseadas em valores, quer tenham que ver com ideais abstratos, quer tenham que ver com o ativismo concreto que os entrevistados conseguem praticar.
No que toca aos ideais, são referidos o gosto por serviços públicos e gratuitos, a utopia de “querer acreditar em coisas diferentes, em mundos possíveis, e ir atrás desses mundos possíveis” [Marino], e está implícito um certo comunitarismo, ou seja, a necessidade de existir em coletivo, especialmente “numa sociedade que estruturalmente prega o individualismo” [Marino]. Este comunitarismo pressupõe processos bidirecionais entre iguais e não processos unidirecionais de “dar” alguma coisa a uma comunidade. Existe, aliás, o receio de praticar apenas caridade, como manifestou Noémia: “sempre tive um pouco de receio […] de não ter um intuito político, mas ser só por fazer uma boa ação”.
No que respeita ao ativismo que os entrevistados conseguem ter, estava presente o que classificámos como confrontação - expressa em protestos e reivindicações - e prefiguração, ou seja, a tentativa de atingir determinados fins políticos através de práticas concretas em que os meios utilizados refletem diretamente os fins desejados (van de Sande 2017). Esta prefiguração traduzia ideais em práticas concretas: o anticonsumismo traduzia-se em ensinar os utilizadores de bicicleta a aprender sobre o seu funcionamento, de modo a poderem arranjá-la sempre que necessário e não comprarem outra (CdA); a luta pelo direito à cidade, contra a gentrificação, traduzia-se na ocupação de um edifício devoluto no centro da cidade, entregue à especulação, de modo a criar um espaço de apoio à população em situação de sem-abrigo (Seara); a luta pelas sementes livres traduzia-se na criação de uma biblioteca de sementes para que as pessoas as pudessem trocar livremente (Sementeca); e a crença na possibilidade de a arte ser transformadora, e “em vez de fortalecer o valor do imóvel no bairro, fortalecer a comunidade” [Marino], traduzia-se na criação de uma cooperativa autossustentável que produzia e difundia arte cooperativa (PENHA SCO). Basicamente, os espaços criavam um “sistema alternativo […], uma outra coisa ao lado que também esteja a funcionar […], o lado prático dessa parte ideológica” [Carminda]. Este lado prefigurativo dos espaços, por ser concreto e ter resultados visíveis e mais imediatos, é um tipo de ativismo classificado como “mais tranquilo” [Noémia] e mais entusiasmante - “pessoas que chegaram aqui a dizer ‘ouvi dizer que aqui havia sementes’. Isso para mim… é isso mesmo, é isso que é preciso!” [Carminda].
No que se refere ao espectro mais relacionado com a comunidade, ou seja, as motivações que vêm de fora para dentro do indivíduo, identificaram-se duas grandes dimensões que se prendiam, de um lado, com a sociabilidade e, de outro, com a necessidade de fazer a diferença. A motivação pela sociabilidade manifestava-se, por exemplo, quando Noémia estava desmotivada e “ia lá [à Seara], estava com as pessoas, limpava, via como ia avançando tudo, e aí de novo voltava a ficar supermotivada para a próxima semana”. Gennaro, de forma similar, disse que somos “animais sociais” e “é fixe, de vez em quando, conhecer uma pessoa nova”, sendo que a própria atividade fomentava o conhecimento mútuo - “a transmissão deste know-how […] é uma maneira de perceber como é que uma pessoa é […], o envolvimento das pessoas nas atividades é indicativo disso”. Explicou-me ainda como “andar de bicicleta ajuda mais a criar comunidade do que andar todos fechados nos carros. As pessoas acabam por se conhecer mais, e isso é muito interessante”. Tal como Carminda, destacou a importância do próprio espaço para essa sociabilidade: “a Cicloficina é um condensador social,9 é inspiradora de […] um bem comum […]. Não é só espaço […], é a maneira de aquilo se configurar à volta daquelas atividades que pode ser inspirador de uma sociedade melhor” [Gennaro]. Da mesma forma, Carminda dizia que uma motivação para estar no espaço GAIA era “o facto de isto ser um espaço de convivência bastante aberto […], e eu acho que isso é muito importante de existir num espaço de buen vivir10 - aquela lógica dos equatorianos […] -, acho que isso muda a vida das pessoas para melhor, conviver umas com as outras” [Carminda].
Em relação à necessidade de fazer a diferença, os atores partilhavam a perceção de que faziam falta aos espaços. Existia também o sentido de “missão cumprida”, quer fosse por ser um “lugar concorrido” ao qual as pessoas “batiam à porta e perguntavam o que é que podiam trazer”, no caso da Seara, quer fosse por ver cada vez mais bicicletas a andar em Lisboa - “cada vez que há mais uma bicicleta a andar, é cumprir o objetivo da Cicloficina. [Cada bicicleta a andar] é […] mais um ponto” [Gennaro]. Assim, era importante para os entrevistados sentir que os outros estavam a usufruir do seu trabalho, quer fosse enquanto “avaliação pragmática”, para perceber “se o projeto tem algum sentido de existir” [Marino], quer fosse para sentir que se estava a ajudar ou a trocar algo com a comunidade: “É reabilitante, é fixe, porque tu chegas a casa depois de uma sessão […] e dizes ‘hoje ajudei umas pessoas’ ” [Gennaro]; “há uma coisa muito simples de trocar coisas com pessoas e de dar, que é muito satisfatória; as pessoas ficam muito contentes, então eu também fico muito contente, toda a gente fica contente, é ótimo!” [Carminda].
Com base nos dados recolhidos no terreno, é possível compreender que os espaços estudados permitem que as/os entrevistadas/os se realizem individual e socialmente, pois ao mesmo tempo que têm controlo sobre aquilo que fazem, também conseguem sentir que fazem a diferença, algo que os comuns urbanos potenciam, por serem acessíveis a toda uma comunidade. De facto, psicólogos, designadamente Ryan e Deci (2017), já tinham mostrado que a autonomia, a competência e os relacionamentos são necessidades básicas que, quando satisfeitas, contribuem para o bem-estar e um bom funcionamento psicológico, uma conclusão que este trabalho também veio reforçar.
Notas finais
Neste artigo debruçámo-nos sobre o trabalho nos comuns urbanos enquanto forma de trabalho coletivo e não mercantilizado, analisando as condições e as motivações de quem o faz, num contexto dominado pelo mercado e por motivações extrínsecas.
Uma primeira característica transversal aos casos estudados diz respeito à horizontalidade da organização, algo que é afirmado como distintivo face às formas de trabalho e de produção dominantes no contexto urbano. Uma segunda característica transversal diz respeito à escolaridade, uma vez que todos os entrevistados possuem formação de nível superior, podendo sugerir um certo privilégio das pessoas que se dedicam a estes espaços, mas também uma capacidade reflexiva e de ação consciente no sentido de minimizar desigualdades estruturais. Assim, trabalhos futuros poderão aprofundar esta dimensão, nomeadamente com base num enquadramento bourdieusiano que permita uma análise relacional ao nível micro, de modo a entender as dinâmicas de poder que se estabelecem no interior das organizações e na sua relação com o exterior, como aliás sugerem Schor et al. (2016: 80). Para além disso, em estudos etnográficos que se dediquem a estudar apenas uma organização (ou que consigam falar com vários participantes da mesma organização), seria interessante abordar as interações que existem entre o trabalho reprodutivo (Duffy 2013) e o trabalho nos comuns, procurando perceber as tensões entre as diferentes formas de trabalho não mercantil, que podem designadamente levar a uma participação diferenciada das mulheres nestas iniciativas, perpetuando as mesmas desigualdades que existem na sociedade.
Relativamente à sustentabilidade económica, vimos também, apesar de dois dos casos receberem apoios públicos locais, que todos eles assentam de um modo ou de outro em práticas e atitudes que desafiam a lógica mercantil, nomeadamente através de recursos não mercantis e não monetários, como a reciprocidade, a troca, a partilha e o voluntariado. Do mesmo modo, também estava implícito nas entrevistas que os entrevistados não consideravam o mercado de trabalho uma participação produtiva na sociedade suficiente ou, nalguns casos, sequer como uma participação desejável ou autodeterminada. O trabalho nos comuns possibilita outras formas de participação na economia e na sociedade que procuram contestar a hegemonia do mercado.
Perante os limites colocados a estes esforços prefigurativos desenvolvidos dentro de um sistema que permanece marcado pelo “imperativo de ganhar a vida”, investigações futuras poderão procurar explorar a articulação deste tipo de iniciativas com a ideia emergente de atribuir um “rendimento básico incondicional” aos cidadãos (Merril et al. 2019) ou ainda, em sentido contrário, com o fenómeno teorizado por Graeber (2018) dos “bullshit jobs”, ou seja, os empregos remunerados considerados inúteis por quem os tem.
No que diz respeito às motivações dos participantes destes espaços, a segunda grande dimensão de investigação, percebeu-se desde logo que eram complexas e diversas, desde as mais individuais - como o estímulo intelectual, a criatividade e a aprendizagem - às mais comunitárias, entremeadas por motivações baseadas em valores - como o gosto por serviços públicos, o comunitarismo não caritativo e o ativismo prefigurativo. As motivações mais comunitárias manifestavam-se sobretudo nas dimensões da sociabilidade, para a qual os programas dos espaços contribuíam decisivamente, e da necessidade de fazer a diferença, em que não existia o sentido de dever moral mas, antes, a perceção de que faziam falta aos espaços, contribuindo assim para que estes cumprissem a sua missão. A utilidade dos espaços para as outras pessoas funcionava, assim, como uma avaliação pragmática do seu sentido de existir, adicionando o prazer de saber que tinham ajudado alguém e que essas pessoas tinham ficado contentes.
Uma outra conclusão transversal a esta investigação foi a centralidade que a ideia de comunidade assumiu, estando presente quer nas condições, quer nas motivações deste tipo de trabalho. Perante tendências de individualização e precarização do trabalho, poder-se-ia pensar que este, enquanto atividade social, deixou de ter relevância. Estas experiências, no entanto, mostram que o coletivo e o agir comum persistem no trabalho e, existindo uma tendência dominante, isso não impede que outras surjam e a contrariem. Se a atual conjuntura desafia o estatuto do trabalho e as teses da sua centralidade no desenvolvimento de solidariedades e da cidadania social (Dejours 1993; Castel 2009), estes espaços constituem “ilhas de resistência” a essa conjuntura.
Verificou-se também que há diferenças entre os trabalhos estudados e o trabalho voluntário mais corrente, pois os primeiros não revelaram uma motivação instrumental de autobeneficiação como sugerem estudos recentes sobre trabalho voluntário (Rego, Zózimo e Correia 2017). Para além disso, alguns entrevistados não se identificaram com o termo “voluntário”, dado que o associavam a atividades menos autodeterminadas. Assim, contrariamente ao indicado pelo estudo referido anteriormente (Rego, Zózimo e Correia 2017), destacaram-se mais os contrastes estabelecidos pelas/os entrevistadas/os entre o trabalho nos comuns e o mercado de trabalho do que as continuidades, o que evidencia uma menor porosidade do trabalho nos comuns em relação ao mercado do que se verifica noutros tipos de trabalhos voluntários e torna necessária uma categorização mais fina das várias tipologias do trabalho voluntário em estudos futuros, quiçá numa abordagem comparativa.
Uma última nota, a partir da análise realizada, aponta para o facto de que, mesmo sendo uma realidade marginal na cidade de Lisboa, a verdade é que estes espaços, ainda que em pequena escala, contribuem para afirmar a possibilidade de formas de trabalho não orientadas para o mercado e socialmente relevantes. Aponta também, no entanto, para a escassez de propostas de como articular estas iniciativas de comuns urbanos de modo a ampliá-las numa sociedade dominada pelo padrão de mercado, para não permanecerem fechadas sobre si mesmas e se tornarem cada vez mais um sistema estrutural alternativo ao dominante.