José Cutileiro (1934-2020) nasceu em Évora, numa família burguesa alentejana que se mudou, na sua infância, para Lisboa. Seu pai era um médico ligado a círculos oposicionistas republicanos que, impedido de exercer a sua profissão em Portugal, trabalhou para a Organização Mundial de Saúde.1
Faz parte de uma geração de portugueses - nascidos entre o final dos anos 1920 e o início dos anos 1940 - que teve um importante papel de renovação da vida política e intelectual em Portugal. Dessa geração fazem parte, entre os mais velhos, Alexandre O’Neill, Gérard Castelo Lopes, António Alçada Batista, Luís de Sttau Monteiro ou José Cardoso Pires. Entre os nascidos nos anos 1930, contam-se, por exemplo, Álvaro Lapa, Fiama Hasse Pais Brandão, Pedro Ramos de Almeida, Bartolomeu Cid dos Santos, Orlando Neves ou MS Lourenço. E entre os nascidos no início dos anos 1940 estão Jorge Sampaio, Almeida Faria ou Vasco Pulido Valente.
Cutileiro não só fez parte dessa geração, como conheceu e era amigo de muitos deles. Tinha, por isso, um bom capital social. Alguns desses amigos tê-los-á conhecido na universidade. Antes de se virar para a antropologia, Cutileiro cursou Belas Artes e Medicina. Outros foram seus colegas nas revistas Almanaque - publicada entre 1959 e 1961 pelo editor Joaquim Figueiredo Magalhães (Araújo 2022) - e Quadrante - editada pela Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Cabrera 2003) - que reuniam jovens intelectuais descontentes com a situação política portuguesa e interessados na renovação da vida cultural do país. Outros desses amigos poderá tê-los encontrado em tertúlias artísticas e literárias. Além de ter frequentado Belas Artes, José Cutileiro era irmão do escultor João Cutileiro. E, nos anos 1960, publicou livros de poesia e traduziu literatura. Em poesia publicou O Amor Burguês (1959) e Versos de Mão Esquerda (1961), tendo também traduzido Lady L (1961a) e O Amigo do Diabo (1961b), de Romain Gary. Outros dos seus amigos podia tê-los conhecido por intermédio da política. Cutileiro teve uma passagem breve pelo Partido Comunista Português em 1958 - onde tinha o pseudónimo de “Rodin” - e entre os colaboradores da Quadrante estavam vários ativistas estudantis, os mais famosos dos quais - como Jorge Sampaio - tiveram um papel destacado na crise académica de 1962.
Foram vários os percursos posteriores da geração de que Cutileiro fazia parte: política, artes plásticas, literatura, ensaísmo. Quase todos eles terão carreiras de sucesso e tornar-se-ão os rostos principais de uma elite intelectual crítica do regime e apostada na renovação política e cultural do país.
Quanto a Cutileiro optou, em 1963, pela antropologia e por Oxford, onde concluiu a licenciatura em antropologia e realizou, em 1968, o seu doutoramento, resultante de uma pesquisa conduzida em Vila Velha (Reguengos de Monsaraz). Três anos mais tarde a tese seria editada em livro, intitulado A Portuguese Rural Society (1971a) - com fotografias de Gérard Castelo-Lopes e do seu irmão João Cutileiro - que só seria traduzido em Portugal em 1977, sob o título Ricos e Pobres no Alentejo.
Ricos e Pobres no Alentejo
Sendo o autor da primeira monografia antropológica sobre Portugal publicada em inglês, Cutileiro faz parte de um grupo de antropólogos que, nos anos 1960, introduziu, na antropologia feita sobre Portugal, os critérios metodológicos e teóricos da antropologia moderna (1920-1980).
Dessa geração fazem parte Joyce Riegelhaupt (1964, 1967, 1973), que estudou e publicou sobre São João das Lampas (Estremadura), e Colette Callier-Boisvert (1966, 1968, 1969), que estudou e publicou sobre Castro Laboreiro. Cutileiro era o único português - embora “estrangeirado” (no bom sentido da palavra) - deste grupo de antropólogos. Riegelhaput era norte-americana, Callier-Boisvert era francesa (Leal 2007a [2003]; Ferreira 2019).
Dados os diferentes backgrounds nacionais destes antropólogos, cada um deles olhou para Portugal a partir de uma perspetiva antropológica diferente. Joyce Riegelhaupt trouxe consigo o quadro conceptual construído pela antropologia norte-americana dos anos 1950 e 1960, centrado no estudo do campesinato. Inicialmente, essa tradição desenvolveu-se na América Central. Mas, a partir dos anos 1960, estendeu-se à Europa e Joyce Riegelhaupt foi uma das protagonistas dessa viragem. Quanto a Colette Callier-Boisvert, é devedora do interesse pelo estudo das sociedades camponesas que, embora com precedentes, se desenvolveu em França a partir dos anos 1960 - nomeadamente no Laboratoire de Anthropologie Sociale, dirigido por Claude Lévi-Strauss - e que iria culminar nas pesquisas das dames de Minot (Françoise Zonabend, Yvonne Verdier, Tina Jolas).2 Mas enquanto muitos do(a)s seus (suas) colegas pesquisaram em França, Callier-Boisvert optou por Portugal.
Quanto a Cutileiro, trazia consigo não apenas uma formação marcada pela antropologia inglesa de Oxford, onde pontificava a figura de Evans-Pritchard, com quem ele privou, mas também, mais especificamente, uma formação marcada pela antropologia mediterranista inglesa que se iniciara nos anos 1950 com a monografia de Julian Pitt-Rivers, The People of The Sierra (1954). O seu orientador John Campbell, com trabalho de campo realizado na Grécia (1964), era justamente uma das figuras centrais dessa antropologia mediterranista.
Desta tradição antropológica, Cutileiro deu, de resto, um bom retrato - com alguma ironia pelo meio - no prefácio que escreveu para a edição portuguesa de A Honra e a Vergonha nas Sociedades Mediterrânicas: “O Mediterrâneo conserva alguns dos encantos do antigo Império: é quente, a gente é escura, a organização da família e do parentesco ainda poderosa, o rendimento per capita baixo, tem um largo sector rural e as comunidades são pequenas” (1971b: ix-x).
Apesar da sua importância e da promessa de “modernização” da antropologia sobre Portugal que continham, as obras destes três antropólogos não tiveram, a curto prazo, um impacto relevante na cena académica portuguesa. E só com a renovação da antropologia portuguesa que ocorreu no pós-1974 elas começam a circular de forma mais efetiva e a influenciar de modo relevante os novos rumos que a antropologia portuguesa começou então a tomar. Aquela que impactou de forma mais decisiva foi justamente - apesar da sua edição tardia em Portugal (Cutileiro 1977) - Ricos e Pobres no Alentejo, que rapidamente se tornou leitura obrigatória para os estudantes de antropologia e que ainda hoje é lida em cadeiras de 1º ciclo mais ligadas ao ensino da antropologia portuguesa.
São conhecidas as principais ideias organizadoras da monografia. O seu foco é na estrutura social e nos sistemas de valores. Propondo uma visão holista de Vila Velha, Cutileiro organizou a sua monografia em cinco partes principais, respetivamente intituladas: “Posse da terra estratificação social”, “Família, parentesco e vizinhança”, “A estrutura política”, “O patrocinato”, “A religião”. O peso que na monografia têm categorias concetuais da antropologia mediterranista inglesa tem sido sublinhado: “O patrocinato era um dos tópicos fundamentais do seu livro e no capítulo sobre família, parentesco e vizinhança, os conceitos de ‘honra e vergonha’ eram amplamente utilizados” (Leal 2007b [1999]: 154).
Mas aquilo que é talvez mais relevante em Ricos e Pobres no Alentejo - como decorre diretamente do seu título - é o relevo dado à estratificação social, marcada pela extrema desigualdade entre latifundiários e trabalhadores agrícolas. Por um lado, Cutileiro relatou de forma crítica o estilo de vida dos grandes proprietários e a forma como estes usavam ligações formais e informais com o poder político para fortalecer as suas posições. Por outro, colocou em evidência as condições de exploração a que que os trabalhadores estavam sujeitos.
Duas citações são, a este respeito, particularmente expressivas:
“[os trabalhadores] deslocavam-se em grandes ranchos, muitas vezes compostos por homens, mulheres e crianças. Se bem que por vezes apelassem para o amor de Deus da pessoa a quem pediam esmola, era mais frequente invocarem a sua própria fome. Estes ranchos constituídos por grande número de pessoas fisicamente capazes, que andavam a mendigar de herdade em herdade e pelas ruas das povoações, alertavam de uma maneira objetiva, clamorosa e violenta as consciências para as injustiças da sociedade em que viviam.” (Cutileiro 1977: 94)
“Até aos primeiros anos da década de 60, o trabalho era de sol a sol (do nascer ao pôr do sol) e, uma vez que o local de trabalho ficava muitas vezes a quilómetros de distância de casa, isso significava que tinham de sair de noite e regressavam depois do sol-posto. Estas condições representavam, no entanto, já uma melhoria: até aos princípios da década de 40, o trabalho fora de ar a ar (desde o romper da manhã até noite fechada), com frequentes períodos de trabalho noturno durante as épocas de labor mais intenso. Nas épocas da sementeira e da ceifa, os trabalhadores chegavam a dormir apenas quatro horas por noite. Era uma vida extremamente difícil: os salários eram muito baixos, os benefícios sociais, inexistentes, e a instrução, um objetivo impensável para o filho de um trabalhador rural.” (Cutileiro 1977: 84)
Dadas estas condições económicas e sociais, uma das perguntas centrais da monografia era a de saber porque é que essas condições não tinham ainda conduzido a uma revolta política. A parte sócio-antropológica do argumento respondia que tal se devia às relações patrono/cliente. Mas, simultaneamente, Cutileiro forneceu uma explicação política para este paradoxo, baseada na crítica à natureza ditatorial do regime de Salazar.
“Ao longo dos últimos quarenta anos estes fatores as características do sistema administrativo e corporativo e as características da vida política num sentido mais lato - constituem, a meu ver, as principais razões para a inexistência de tentativas organizadas e duradouras por parte dos trabalhadores com vista a transformarem radicalmente a atual estratificação social ou, no caso de não se atingir tal resultado, a mitigarem de uma forma substancial os seus aspetos mais clamorosamente injustos. A aceitação exterior da ordem social tem assim uma explicação na natureza do sistema político. Nada se poderá organizar a nível local para pôr em causa a ordem vigente e muito pouco se poderá fazer do exterior.” (Cutileiro 1977: 389-390)
Isto é: ao mesmo tempo que Ricos e Pobres no Alentejo foi a contribuição portuguesa para o estudo antropológico das sociedades do sul da Europa no decurso dos anos 1960 e 1970, era igualmente uma denúncia da situação social e política prevalecente no Alentejo. Terá sido essa a razão por que só depois de 1974 a sua versão portuguesa foi finalmente publicada.
Cutileiro e a antropologia
Tendo sido inicialmente publicada em inglês em 1971, a monografia de Cutileiro sobre Vila Velha culminou, como referi antes, num percurso antropológico que remonta aos anos 1960, quando Cutileiro completou sucessivamente a sua licenciatura e o seu doutoramento em antropologia social em Oxford.
Cutileiro parecia então totalmente investido na antropologia. Em 1968, parece que a sua opção é ser antropólogo em Portugal. Para tanto terá entrado em contacto com Jorge Dias, antropólogo que citará várias vezes nos seus escritos e sobre o qual escreverá elogiosamente em algumas ocasiões. Em Inventário (2020), juntamente com Orlando Ribeiro e Xavier Pintado, Jorge Dias é apresentado como um dos autores que o ajudou a compreender o país. A. B. Kotter - pseudónimo de Cutileiro - é ainda mais enfático, uma vez que “teria (também) aprendido muito sobre Portugal em conversas com Jorge Dias (falavam sempre em alemão um com o outro)” (2020: 198).
Jorge Dias parece ter sido sensível à possível contribuição de Cutileiro para os trabalhos da sua equipa - a chamada “equipa de Jorge Dias” - e, em 21 de dezembro de 1968, escreve ao presidente do Instituto de Alta Cultura solicitando novos bolseiros para o Centro de Estudos de Etnologia Peninsular (depois Centro de Estudos de Etnologia). Entre eles, contava-se José Cutileiro “que acaba de fazer a licenciatura em Oxford”. Carlos Ramos de Oliveira, um antropólogo que então estava ligado ao CEEP, lembra-se também que Cutileiro era frequente visita do centro:
“Aparecia lá muita gente, para estar com o Jorge Dias e o Ernesto [Veiga de Oliveira], iam lá almoçar o Cutileiro (o antropólogo); o Cinatti; um tipo da École Pratique des Hautes Études, Georges Condominas. Aquele poeta do Norte, o Eugénio de Andrade, também aparecia lá. Vinha um músico, um etnomusicólogo, Gerhard Kubick, austríaco. O próprio Twig Johnson [um antropólogo norte-americano que realizava então pesquisa sobre comunidades piscatórias portuguesas] apareceu lá também.” (Oliveira 2022)
Embora houvesse vontade mútua de colaboração, ou a bolsa pretendida não chegou, ou Cutileiro mudou de planos, mas continuou ligado à antropologia, voltando para Inglaterra, onde foi sucessivamente Gulbenkian research fellow no St. Anthony’s College (Oxford, 1968-1971) e professor na London School of Economics (1971-1974).
Durante esse período, para além de A Portuguese Rural Society, Cutileiro teve ocasião de publicar outras contribuições sobre antropologia. Logo em 1972, publicou um artigo na Análise Social - criada e dirigida por Adérito Sedas Nunes - intitulado “Ricos e pobres no Alentejo: uma análise de estrutura social” (Cutileiro 1972), que retoma um dos capítulos de A Portuguese Rural Society. Ficamos a saber, numa nota de rodapé a esse artigo, que a tradução portuguesa do livro - envolvendo não apenas a editora Sá da Costa, mas também o Gabinete de Investigações Sociais (atual ICS) - se encontrava já então muito adiantada. Mas, por razões que foram já referidas - o receio da censura - só em 1977 será publicada.
Nesses anos, Cutileiro escreveu também o prefácio à edição portuguesa de Honra e Vergonha (Cutileiro 1971b), livro que ele próprio traduziu para português. Uma das teses principais desse prefácio - que retoma ideias já presentes em Os Ricos e os Pobres no Alentejo - tem que ver com o modo como ricos e pobres tinham diferentes possibilidades de adequação aos imperativos morais que regiam a vida sexual e a dignidade pessoal, baseados nos princípios da honra e da vergonha.
Finalmente, foi também nesses anos que Cutileiro escreveu “The anthropologist in his own society”, uma comunicação apresentada à conferência anual da Association of Social Anthropologists of Great Britain and the Commonwealth (Cutileiro 1973), que não chegou, entretanto, a ser publicada. Nessa comunicação, Cutileiro contraria a ideia, defendida por muitos antropólogos britânicos da época, sobre a impossibilidade epistemológica de fazer trabalho de campo na sua própria sociedade. Como ele escreve, “se for aceite que o trabalho de campo é uma técnica apropriada da investigação sociológica, então não consigo ver nenhuma objeção fundamental em fazê-lo na sua própria sociedade” (1973: 6; em inglês no original; minha tradução).3
O 25 de Abril
Cutileiro parecia então plenamente investido na antropologia. E caso esse seu investimento tivesse continuado, teria tido certamente um papel de destaque na renovação da antropologia portuguesa a seguir ao 25 de Abril de 1974, marcada justamente pelo regresso a Portugal de alguns antropólogos com formação obtida no estrangeiro (entre os quais os mais conhecidos são José Carlos Gomes da Silva, Joaquim Pais de Brito e José Fialho).
Mas a sua vida seguiu outros caminhos. Ligado desde os anos 1960 a círculos oposicionistas ao salazarismo e ao marcelismo, seduzido como muitos outros da sua geração pela possibilidade de dar uma contribuição para a construção da democracia em Portugal, Cutileiro - que, lembremo-lo, residia então em Londres - foi convidado por Mário Soares (então Ministro dos Negócios Estrangeiros) para Conselheiro Cultural da Embaixada Portuguesa em Londres, cargo que desempenhou até 1977, ano que assinala também, como antes foi referido, a publicação de Ricos e Pobres do Alentejo, obra para a qual escreveu um posfácio, centrado numa análise crítica e pouco esperançosa do processo da Reforma Agrária em Monsaraz.
Ao ser nomeado Conselheiro Cultural da Embaixada Portuguesa em Londres, Cutileiro, então com 40 anos, dava assim num novo rumo à sua vida. Para trás ficava a antropologia, que já antes parecia não o contentar, uma vez que - como escreve em Abril e Outras Transições - “meses antes do 25 de Abril, pedira licença sabática para entrar em negócio de galerias com um amigo” (2017: 45). Para a frente iriam estar três décadas de consagração à carreira diplomática.
Entre 1977 e 1980, Cutileiro foi embaixador português no Conselho da Europa. A seguir, até 1984, foi embaixador português em Maputo. Entre 1984 e 1987, representou Portugal na Conferência de Desarmamento da Europa. Entre 1987 e 1989, foi diretor-geral dos negócios político-económicos no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Foi depois embaixador em Pretória, até 1992. Entre 1992 e 1994, foi um dos diplomatas centrais na Conferência de Paz para a Jugoslávia e terminou a sua carreira diplomática como secretário-geral da União da Europa Ocidental.
Tal como a sua - embora mais curta - carreira em antropologia tinha sido uma carreira de sucesso, a sua muito mais longa carreira como diplomata foi também um percurso coroado de êxitos, que lhe permitiu acompanhar “ao vivo” alguns dos grandes acontecimentos nacionais e internacionais do último quarto do século XX.
Em Londres, acompanhou a construção do Portugal democrático pós 1974. Em Maputo, assistiu à consolidação política de um dos novos países africanos de língua oficial portuguesa. Em Pretória, seguiu o fim do apartheid. Na Conferência de Paz para a Jugoslávia acompanhou a desagregação da ex-Jugoslávia, a guerra que se lhe seguiu e a emergência de um conjunto de novas nações - Croácia, Sérvia, Bósnia, Montenegro - que fazem hoje parte do mapa político da Europa. Conheceu e privou com “grandes” do mundo: Samora Machel, Nelson Mandela, etc.
Outros Cutileiros
Com algumas exceções - os seus anos de juventude, o seu namoro com a “equipa” de Jorge Dias -, tudo o que tenho vindo a referir sobre Cutileiro é mais ou menos conhecido. O seu percurso antropológico foi objeto de alguns artigos (e.g., Leal 2007a [2003], 2007b [1999]). O seu percurso diplomático está disponível na Wikipédia.4 É também do conhecimento público o modo como, no final da sua vida, Cutileiro recuperou a veia de escritor dos seus anos de juventude. Mas, em vez da poesia, consagrou-se à crónica. Sob o pseudónimo de A. B. Kotter, escreveu os Bilhetes de Colares (ver Cutileiro 2009). Colaborou também no blogue Retrovisor, de Vera Futscher Pereira. E, no Expresso, são conhecidos os seus obituários.
Entretanto, a publicação recente do livro Podia Ter Sido Pior: Escritos 1953-2020 (Cutileiro 2022) - um espesso livro de 800 páginas que reúne uma parte muito significativa da produção escrita de José Cutileiro - permite completar o retrato que tenho vindo a apresentar, em particular do ponto de vista do seu percurso antropológico.
Segundo a “Nota editorial” que abre Podia Ter Sido Pior, o livro “começou a ser preparado por José Cutileiro nos últimos anos da sua vida” (Cutileiro 2022: 7) e foi depois fechado - após a sua morte - pela sua viúva Myriam Sochacki-Cutileiro e pelo embaixador Fernando Andresen Guimarães. Várias outras pessoas empenharam-se na sua organização e edição, entre as quais avulta Vasco Rosa, descrito na “Nota editorial” como “o grande impulsionador deste livro” (Cutileiro 2022: 8). Ficou assim reunida num único volume uma parte significativa da sua vasta produção escrita, centrada “no campo da antropologia, nos afamados Bilhetes de Colares, nos obituários e no comentário de política internacional” (2022: 8).5
Um dos mais precoces textos de Cutileiro republicados em Podia Ter Sido Pior - escrito originalmente para o Diário Popular em 1953 - intitula-se “Um português no Afeganistão”. Resulta de uma estada de seis meses no Afeganistão, onde Cutileiro - então com 19 anos - acompanhou seu pai, ligado, como referi, à Organização Mundial de Saúde. Um dos aspetos marcantes do texto tem que ver com a caracterização crítica que aí faz da comunidade estrangeira em Cabul, composta por diplomatas e cooperantes. Mas é simultaneamente um texto atento a alguns aspetos da cultura - ou das culturas - do Afeganistão. Terá sido essa experiência importante para a ulterior conversão de Cutileiro à antropologia?
De um ponto de vista antropológico, entretanto, a secção mais importante do livro é aquela que tem como título “A antropologia é uma arte”, que reúne um conjunto de textos de Cutileiro sobre antropologia (ou de pendor antropológico). Alguns são conhecidos e já lhes fiz referência: o prefácio a Honra e Vergonha, ou o posfácio a Ricos e Pobres no Alentejo. Mas outros são (ou eram) menos conhecidos.6
Um dos mais importantes intitula-se “Os super-portugueses” e tem como subtítulo “Algumas notas sobre o SLB”. Foi publicado originalmente em 1965, na revista O Tempo e o Modo, então dirigida pelo seu amigo António Alçada Batista. Outro grupo importante de textos é constituído por um conjunto de crónicas escritas em 1973 por José Cutileiro e originalmente publicadas no suplemento “A Mosca” do Diário de Lisboa, dirigido pelo também seu amigo José Cardoso Pires. Finalmente, um outro grupo mais reduzido de textos reúne duas recensões que, apesar da sua conversão pós-1974 à diplomacia, Cutileiro escreverá posteriormente sobre livros de antropologia. Uma delas data de 1984 e outra de 2002. A elas podem somar-se alguns obituários sobre antropólogos escritos por Cutileiro nos anos 2000 e 2010.
No seu conjunto, estes escritos formam um grupo heterogéneo de textos - artigos, crónicas, recensões, obituários - que, permitindo-nos aceder a uma faceta menos conhecida da obra de Cutileiro, fornecem desta uma visão mais rica e mais completa.
O texto “Os super-portugueses: algumas notas sobre o SLB” nasce de uma pesquisa etnográfica “de recurso” conduzida por Cutileiro sobre o Benfica. Essa pesquisa teve lugar em 1965. Com dificuldades materiais para regressar a Vila Velha, Cutileiro tem de arranjar um emprego e, para não se afastar da antropologia, envereda por esta pesquisa de curta duração (duas a três semanas). Conforme recentemente descobriram Nuno Domingos e Vítor Pereira (2019), escreve sobre essa sua pesquisa uma carta ao seu orientador John Campbell - que é na realidade um esboço de um ensaio etnográfico sobre o tema -, mas a carta nunca chegou ao destino, uma vez que foi apreendida pela PIDE. Foi no Arquivo da PIDE que, em 2019, Nuno Domingos e Vítor Pereira a descobriram, tendo-a publicado, antecedida por um longo e esclarecedor comentário, na revista Lusotopie (2019).
Foi a partir dessa pesquisa que foi escrito o artigo para O Tempo e o Modo. Embora o tema do futebol já tivesse suscitado o interesse de outros antropólogos - nomeadamente, como referem Domingos e Pereira (2019), de Max Gluckman, da chamada Escola de Manchester e grande fã do Manchester United -, este ensaio tem um certo pioneirismo e contém um conjunto de linhas analíticas muito interessantes, designadamente sobre o estatuto profissional e social dos jogadores ou sobre “a mística do Benfica”.
Embora despido de referências bibliográficas - O Tempo e o Modo não era uma revista científica -, o ensaio é uma tentativa de análise antropológica do Benfica marcada por algumas das preocupações teóricas da antropologia inglesa ensinada em Oxford. A sua abordagem ao clube em círculos concêntricos - jogadores, dirigentes, sócios, adeptos, adeptos de outros clubes - faz lembrar os Nuer de Evans-Pritchard: segmento tribal secundário, segmento tribal primário, tribo, Nuer vs. Dinka. Para explicar a importância de ganhar e perder para os adeptos recorre à “honra e vergonha” dos mediterranistas ingleses: perder, “numa sociedade de tipo mediterrânico, acarreta uma perda de face, há aqui o problema de uma honra que é preciso defender” (Cutileiro 2022: 109). E no final, por sugestão de Ruy Cinatti - que, como ele, estou antropologia em Oxford - Cutileiro compara os torneios internacionais de futebol ao kula melanésio.
Quanto ao segundo grupo de textos - as crónicas para “A Mosca” (Diário de Lisboa) escritas em 1973 - abordam temas muito diferenciados: a centralidade das crianças na vida familiar portuguesa, o desenvolvimento do turismo no Algarve, a chegada da “sociedade de consumo” a Portugal, o estatuto social das mulheres, a morte, os judeus em Portugal, ou o valor do dinheiro (este último escrito na sequência da abertura da bolsa de Lisboa). O ponto de partida são geralmente temas que eram então atuais, muitos deles ligados ao processo de mudança social em Portugal, e o ponto de chegada é um conjunto de comentários onde é possível identificar uma preocupação comum com os sistemas de valores prevalecentes na sociedade portuguesa.
Esta atenção aos sistemas de valores, era, como se sabe, uma das preocupações centrais da cartilha mediterranista da antropologia inglesa. Por aí as crónicas de Cutileiro ganham um perfil não apenas antropológico, mas mais exatamente culturalista (a antropologia inglesa era e continua a ser muito pouco recetiva ao conceito de cultura, mas quando os mediterranistas ingleses escreviam sobre sistemas de valores era de cultura que falavam).
Na realidade, falando em termos de sistemas de valores, Cutileiro está a escrever sobre algo muito próximo daquilo a que Jorge Dias - por quem, relembro, Cutileiro nutria consideração e admiração - chamara antes, num seu muito famoso ensaio, de “elementos fundamentais da cultura portuguesa” (Dias 1990 [1950]). Mas em vez de escrever um ensaio exclusivamente sobre o tema, como tinha feito Dias, aquilo que Cutileiro faz é abordar de forma fragmentária alguns desses “elementos”.
“As crianças” é, a esse respeito, a crónica mais emblemática:
“Como em todas as sociedades mediterrânicas as crianças são, entre nós, seres privilegiados, centros de atenções, motivo de orgulho e de sacrifícios. As mães e os pais vivem, como se diz, para elas. […] A profusão de beijos, festas e pancadas que, em Portugal, mães e pais concentram nos filhos pequenos são sinais de uma preocupação prevalecente e de uma responsabilidade quase total.” (2022: 117)
Em “Confeções lunares”, a propósito da multiplicação de aldeias turísticas e de boîtes no Algarve, Cutileiro avança outro elemento para a sua caracterização antropológica dos portugueses, quando escreve que “o português não gosta de estar sozinho” (2022: 119/120). Em “Judeus e portugueses”, sublinha as parecenças entre portugueses e judeus sefarditas: “o mesmo tom de pele e de cabelo, uma tristeza no olhar, animado por súbitas vivacidades, a mesma ironia pessimista em relação a si próprio” (2022: 129). Em “O segredo do universo”, escreve também sobre os intelectuais portugueses: “o respeito salutar pelos senhores doutores é muito bom”. Em “Heróis populares”, debruça-se sobre o entusiasmo pitoresco dos portugueses pelo dinheiro, nada calvinista e que acredita na sorte.
Embora, enquanto antropólogo, Cutileiro nunca se tenha mostrado adepto dos estudos de “carácter nacional” praticados pelos antropólogos norte-americanos - e, em Portugal, por Jorge Dias -, enquanto cronista é de alguma maneira isso que ele faz. Por aí, é uma outra faceta menos conhecida da relação que tem com a antropologia que podemos descortinar. Este aspeto merece tanto mais ser sublinhado quanto esta sua faceta de observador da cultura portuguesa, embora em formato menos antropológico, será posteriormente retomada em muitos dos Bilhetes de Colares de A. B. Kotter.
Um terceiro grupo de textos é composto, como referi, pelas recensões e obituários que, já depois de convertido à diplomacia, Cutileiro escreveu sobre livros de antropólogos. Os obituários são sobre John Campbell - o seu orientador de doutoramento -, Mary Douglas, Lévi-Strauss e Napoleon Chagnon, este último um antropólogo algo polémico que escreveu sobre os Yanomami. Uma das recensões (de 1984) - muito elogiosa - é consagrada ao livro Death in Portugal, organizado por Rui Feijó, Hermínio Martins e João Pina Cabral (1983). A outra, de 2002) é sobre o livro Elites: Choice, Leadership and Succession, organizado por João Pina Cabral e Antónia Pedroso de Lima (2000).
Poder-se-ia, portanto, dizer que no final da sua vida, Cutileiro efetuou uma espécie de regresso à antropologia. É possível. Mas esse regresso deve ser posto em contexto. Estamos a falar de quatro obituários entre dezenas de outros que escreveu. E estamos a falar de duas recensões num total de mais de uma dezena que escreveu. Nesse período da sua vida, as prioridades da escrita de Cutileiro eram de facto outras, muito mais relacionadas, para além dos obituários que escrevia regularmente para o Expresso, com a crónica - Os Bilhetes de Colares de A. B. Kotter e as suas colaborações para o blogue Retrovisor - ou com a escrita de vários artigos sobre política internacional, decorrentes do conhecimento do mundo que teve como diplomata.
Acresce que numa das suas recensões - a consagrada a Elites: Choice, Leadership and Succession - Cutileiro procede a uma caracterização inicial desencantada e algo injusta da antropologia, que na altura provocou alguma celeuma entre vários colegas:
“Deixei a antropologia há um quarto de século, depois de ter vivido com ela durante doze anos, e tinha-me esquecido da ‘seca’ que pode ser. De mais para bisbilhotice e de menos para ciência, abre frestas nas portadas das casas dos outros e convida-nos a espreitar - mas entre as vidas lá dentro e o nosso olhar curioso desce às vezes um véu espesso de jargão profissional que ofende bom senso e bom gosto.” (2022: 181)
E prossegue:
“a corporação, porém, é […] tolerante […]: os antropólogos sociais dirigem-se primeiro que tudo uns aos outros e por isso habituaram-se a sofrer entre si maneiras de escrever pretensiosas. É duplamente pena - por ser assim e por ser escusado que assim fosse.” (2022: 181)
Em abono de Cutileiro pode ser dito que, depois deste início “fulgurante”, a recensão navega em seguida por águas mais calmas, propondo uma caracterização mais certeira da antropologia, elogiando o livro e, em particular, algumas das suas contribuições.
Conclusão
Aquilo que também se pode acrescentar em abono de Cutileiro é que essa sua caracterização inicial da antropologia não faz certamente justiça à sua obra antropológica.
Sem ser bisbilhoteira, ela entrou nas casas dos outros e, para interpretar o que lá se passava, recorreu não apenas ao jargão profissional da antropologia mediterranista inglesa, mas também a um conjunto de preocupações políticas sobre o Portugal da ditadura. O seu livro circulou e circula entre colegas de ofício - portugueses e estrangeiros - mas teve e tem uma audiência mais vasta. Foi (e continua a ser) ensinado aos estudantes de antropologia e a outros estudantes de ciências sociais, e circulou em meios intelectuais interessados em conhecer e debater o país. Permanece, cinquenta anos depois, como um dos mais completos retratos do Alentejo e por aí como uma importantíssima contribuição para o conhecimento do país.
Esse Alentejo é hoje outro, mas, se calhar, muito do que lá se passa - em Odemira ou no Alqueva - pode ser pensado a partir das preocupações de Cutileiro com a condição económica e social dos trabalhadores, antes alentejanos, hoje migrantes. Estes últimos - citando de novo Cutileiro - podem já não se deslocar em ranchos nem pedir esmolas, mas “os salários são muito baixos, os benefícios sociais, inexistentes” (Cutileiro 1977: 84), os ritmos de trabalho violentos. E tudo isso “alerta de uma maneira objetiva, clamorosa e violenta as consciências para as injustiças da sociedade em que vivem” (1977: 94).
O que talvez falte é um novo Cutileiro que fale destes novos ricos e pobres no Alentejo.