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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.27 no.1 Lisboa abr. 2023  Epub 28-Abr-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.13434 

Carta

Cartas de Oxford: a correspondência entre José Cutileiro e Jorge Dias

João Leal1  , concetualização, curadoria dos dados, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, supervisão, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-0513-103X

1 CRIA/ Universidade NOVA FCSH, Portugal, joao.leal@fcsh.unl.pt


Ao longo de 2023 a Etnográfica publicará um conjunto de peças assinadas por João Leal relativas a José Cutileiro e Jorge Dias, dois nomes maiores da Antropologia portuguesa; ambos com contributos significativos para a afirmação e consolidação da disciplina em Portugal e dos estudos antropológicos sobre este país. 2023 marca o cinquentenário do falecimento de Jorge Dias, igualmente 52 anos da publicação de uma obra seminal sobre a sociedade portuguesa, A Portuguese Rural Society (com posterior publicação numa versão portuguesa em 1977, reeditada em 2004), assinada por José Cutileiro, que em 2024 completaria 90 anos de idade.

Apresentamos no primeiro número deste volume 27 um ensaio que revisita a antropologia e a vida de Cutileiro, a partir desta obra de referência, e a troca de correspondência mantida pelo autor com Jorge Dias desde Oxford. Nos números 2 e 3, a Revista publicará correspondência vária de e para Jorge Dias. Com este conjunto de peças, que incluem textos e reflexões originais bem como documentos de arquivo inéditos, João Leal e a Etnográfica acrescentam um importante contributo para a história (social) da Antropologia portuguesa, ao mesmo tempo que evocam em memória justificada o legado de dois autores e dois homens que ajudaram a fazer e a moldar um campo de estudo. Como poderemos ver, pelo que João Leal nos oferece, cada um a seu tempo e a seu jeito, foram autores cujos lifeworlds ajudam a inscrever as suas antropologias em diálogos, problematizações, quadros, campos, terrenos e inscrições que extravasam o contexto português. E, neste sentido, não será ousado afirmar que estes são igualmente contributos para uma história plural da Antropologia.

Em 1959, o conhecido antropólogo inglês Julian Pitt-Rivers manteve uma breve correspondência com Jorge Dias,1 convidando-o para participar na célebre conferência de Burg Wartenstein (Áustria), organizada pela Wenner Gren Foundation.2 Esta conferência, que teve lugar também no ano de 1959 e que viria a dar origem ao livro Mediterranean Countrymen: Essays in the Social Anthropology of the Mediterraneam (Pitt-Rivers 1963), ocupa um lugar de grande importância na história da antropologia europeia. Foi ela que consagrou a existência do novo campo da antropologia mediterranista, de que Julian Pitt-Rivers tinha sido com The People of the Sierra (1954) um dos mais importantes precursores. O objetivo era reunir antropólogos de vários países com pesquisa realizada nas duas margens do Mediterrâneo. Para além de antropólogos pertencentes a tradições antropológicas “centrais” - como Pierre Bourdieu, Ernest Gellner, John Campbell, Marcel Maget ou Isaac Chiva -, foram feitos também convites a antropólogos de tradições mais “periféricas”, como mostra a presença, entre os conferencistas, do espanhol Julio Caro-Baroja.

É justamente no quadro dessa abertura para antropologias “não centrais” que pode ser entendido o convite que Pitt-Rivers fez a Jorge Dias. Autor de Vilarinho da Furna (1948) e de Rio de Onor (1953), Dias não só tinha tido um papel precursor no desenvolvimento dos estudos de comunidade no sul da Europa, como circulava então com facilidade em circuitos internacionais, designadamente anglo-saxónicos, onde a sua pesquisa era muito apreciada. Apesar da insistência de Pitt-Rivers - são três as cartas que lhe escreve - Jorge Dias acabou por não aceitar o convite. De facto, em 1959, Dias encontrava-se a dar aulas como professor visitante na universidade de Witwatersrand (Joanesburgo, África do Sul) e alegou que, não tendo à mão os livros e outra documentação necessária para enviar uma comunicação, não estava em condições de responder positivamente ao convite. Gorava-se assim a possibilidade do encontro de Jorge Dias com a emergente antropologia mediterranista, que haveria de se tornar, no decurso dos anos 1960 e 1970, um dos mais prósperos ramos de conhecimento da antropologia anglo-americana.

Falhado este primeiro encontro com este campo de estudos, será mais tarde que Jorge Dias terá um segundo encontro - este sim, mais efetivo - com a antropologia mediterranista. Para esse encontro foi decisiva a figura de José Cutileiro, que era, nos anos 1960, o único praticante português desse campo de estudos. Como é sabido, depois de ter concluído a sua licenciatura em Antropologia Social em Oxford (1964), Cutileiro doutorou-se na mesma universidade e na mesma área científica (1968) com uma tese sobre Vila Velha (pseudónimo de Reguengos de Monsaraz). Editada em 1971 e intitulada A Portuguese Rural Society (1971), só em 1977 a tese seria publicada em Portugal, sob o título Ricos e Pobres no Alentejo (1977).

Não sabemos em que circunstâncias precisas Jorge Dias e José Cutileiro se conheceram. Segundo o próprio Cutileiro, o primeiro encontro terá tido lugar entre 1961 e 1962 (carta de 21 de julho de 1969) antes de ingressar na licenciatura em antropologia em Oxford. Provavelmente, mas trata-se de uma dedução minha, Cutileiro procurou aconselhar-se com Jorge Dias acerca da sua opção antropológica. Seja como for, entre os dois antropólogos parece ter-se desenvolvido, a partir daí, um relacionamento marcado pela mútua estima e admiração. De acordo com Carlos Oliveira Ramos - que no final dos anos 1960 trabalhava com Jorge Dias e a sua equipa - quando estava em Portugal, Cutileiro era visita frequente no Palácio Vale Flor, onde se localizava então o Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, dirigido por Dias (Carlos Ramos Oliveira, entrevista com o autor). Karin Dias, uma das filhas de Jorge Dias, também guarda memória dessa convivência entre os dois antropólogos. E o próprio Cutileiro, sob o pseudónimo A. B. Kotter, escreveu que “teria (também) aprendido muito sobre Portugal em conversas com Jorge Dias [falavam sempre em alemão um com o outro]” (Cutileiro 2020: 198). São de resto frequentes noutros escritos de Cutileiro as referências elogiosas a Jorge Dias e à sua pesquisa.

Quanto a Jorge Dias, eram também claras a sua estima e admiração por José Cutileiro. Por isso, solicitou em dezembro de 1968 ao presidente do Instituto de Alta Cultura a contratação de Cutileiro como bolseiro do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular.3 Esse pedido não foi atendido e seria em Inglaterra - primeiro em Oxford (1968-1971) e depois na London School of Economics (1971-1974) - que Cutileiro haveria de desenvolver a sua atividade como antropólogo, até, em 1974, ter trocado a antropologia por uma longa carreira de diplomata.

As cartas agora publicadas, além de documentarem esse segundo encontro que, por intermédio de Cutileiro, Jorge Dias teve com a antropologia mediterranista, permitem igualmente iluminar algumas facetas do relacionamento entre os dois antropólogos. As cartas estendem-se de 1966 a 1969. A maioria delas são de José Cutileiro para Jorge Dias e apenas uma - sob a forma de rascunho não assinado e não datado (mas presumivelmente de 1969) - é de Jorge Dias. Eventualmente Jorge Dias terá anteriormente escrito uma outra carta a Cutileiro, mas a sua viúva, Myriam Sochacki-Cutileiro, não conseguiu localizá-la no espólio.

Os temas abordados na correspondência são vários. Cutileiro vai informando Jorge Dias sobre o andamento da sua tese de doutoramento (carta de 20 de abril de 1966), da sua posterior transformação em livro (cartas de 1968, 4 julho de 1969 e 12 de setembro de 1969), e da tradução portuguesa a seu cargo de Honour and Shame: The Values of Mediterranean Society (Peristiany 1966, 1971), bem como do prefácio que escreverá para a versão portuguesa deste livro (cartas de 1968 e 21 de maio de 1969). Algumas cartas discutem temas de relevo para a antropologia, como a sua relação com a história (carta de 20 de abril de 1966) ou as dificuldades de fazer trabalho de campo na sua própria cultura (carta de 12 de setembro de 1969). Há também comentários - um deles bastante sarcástico - sobre o ambiente académico de Oxford (cartas de 21 de maio de 1969 e 12 de setembro de 1969).

Mas é sobretudo a natureza estreita do relacionamento entre José Cutileiro e Jorge Dias que as cartas testemunham. Cutileiro pede conselhos e sugestões a Jorge Dias em relação, por exemplo, ao capítulo sobre patrocinato do livro A Portuguese Rural Society (carta de 4 de julho de 1969) ou sobre as dificuldades de analisar a sua própria cultura (carta de 12 de setembro de 1969). Este último tema será também comentado por Jorge Dias na carta em que respondeu a Cutileiro. É igualmente evidente que passam por Jorge Dias as tentativas que Cutileiro faz de prosseguir projetos antropológicos em Portugal. Em 1966 oferece-se para substituir Dias - que no ano seguinte estaria como investigador convidado no prestigiado Center of Advanced Studies of Behavioral Sciences da Universidade de Stanford (EUA) - como professor de antropologia (carta de 20 de abril de 1966), o que não se veio a concretizar. Foi Jorge Dias que sugeriu à Fundação Calouste Gulbenkian o seu nome para a tradução de Honour and Shame (carta de 21 de maio de 1969), um livro cuja edição portuguesa parece também resultar de uma proposta do próprio Dias. E é também através de Dias que Cutileiro tenta saber notícias de um subsídio que havia solicitado ao Instituto para a Alta Cultura (carta de 4 de julho de 1969).

Dado que a maioria das cartas são de Cutileiro para Dias, são mais informativas sobre o primeiro e sobre o seu relacionamento com este último. Mas também nos dizem algo sobre Jorge Dias. Desde o seu regresso dos EUA e da sua bolsa em Stanford, teve vários problemas de saúde. Foi operado a um rim e sofreu de uma depressão. Ambos aparecem referenciados na correspondência de Cutileiro para Dias (cartas de José Cutileiro de 21 de julho de 1969 e 12 de setembro de 1969 e carta de Jorge Dias s/d).

No ISCSPU - Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, antigo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU), desde 1974 Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) - onde Jorge Dias ensinava desde 1956, a situação era contraditória. Por um lado, a criação de uma licenciatura em antropologia - a primeira licenciatura em antropologia oferecida por uma universidade portuguesa 4 - era um avanço significativo para Jorge Dias e para as suas insistentes tentativas de institucionalização universitária da disciplina. Cutileiro parece atraído pela ideia e pergunta-lhe a esse respeito: “penso que por esta altura já terá passado os olhos pelo Honour & Shame. Que lhe pareceu? Integra-se na sua visão geral da nova licenciatura em Antropologia?” (carta de Cutileiro de 1968).

Apesar disso, em 1969, Jorge Dias responde a Cutileiro temer o futuro “negro” da disciplina em Portugal (carta de Jorge Dias s/d). Na mesma carta, é também muito enfático nas suas críticas a Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar, diretor do ISCSPU e que o havia convidado para ensinar no ISEU: “apesar de [ele] ter sido o principal elemento impulsionador das ciências sociais no nosso país, também foi o agente destruidor, que lhes minou os alicerces, com a sua política pessoal, arbitrária e contraditória” (carta de Jorge Dias s/d). É raro, nos escritos até agora conhecidos de Dias, este tom amargurado em relação a Adriano Moreira, que merece por isso ser relevado. Afirma também, numa das poucas referências conhecidas à sua saída do ISCSPU, no final dos anos 1960, que a cátedra “ultimamente era um pesadelo”.

Em contraste com a vitalidade e a energia que todos os que com ele privaram lhe reconhecem - incluindo Cutileiro, que elogia a sua “vitalidade invejável em qualquer contexto cultural e sumamente rara nas terras de entre Minho e Guadiana” (carta de 21 de julho de 1969) -, Jorge Dias parecia então atravessar um período de crise pessoal e profissional. Não foi isso que o impediu, entretanto, de manter um relacionamento de mútua estima e admiração com José Cutileiro e, através dele, com a antropologia mediterramista inglesa - uma década depois do seu primeiro contacto gorado com ela, quando Julian Pitt-Rivers o convidou para a conferência de Burg Wartenstein. É desse relacionamento que testemunham as cartas que a seguir se publicam.

Cartas5

Carta de José Cutileiro para Jorge Dias (20 de abril de 1966)

(escrita à mão em papel timbrado do St. Anthony’s College, Oxford)

149A Woodstock Rd.

Oxford

20 de Abril de 1966

Meu caro Professor Jorge Dias:

Escrevo-lhe do fundo desta neura oxoniana que leva o anglo-saxão ao suicídio, ao crime sexual ou à cerveja e o latino a saudades irracionais de latinidade - mais ainda da latinidade peninsular com touradas, vinho tinto, vivas ao Benfica, procissões, bordéis e todo o aparato católico para expiação gratuita e rápida, na ressaca. Espero encontrá-lo em Lisboa e de boa saúde e espero também que as matérias antropológicas e etnológicas vão encontrando melhor caminho nas malhas da burocracia oficial.

Do ponto de vista profissional as coisas têm corrido bem aqui - estou trabalhando na tese o melhor que posso tentando organizar o material de uma maneira coerente e clara com os alternativos períodos de entusiasmo e de fartura que são inerentes a este tipo de trabalho e que, certamente muito melhor do que eu, conhece. Não vou certamente ter a tese pronta em Junho e foi inconsiderado da minha parte supor que isso seria possível. Mesmo em português levaria sempre mais tempo e tendo que a pôr em inglês então era tarefa impossível. Mas conto entregá-la em Dezembro, passando os meses de verão em Portugal e voltando para aqui em Outubro.

As perspectivas futuras começam a materializar-se um pouco mais. Há uma possibilidade de vir a obter um Research Fellowship de St. Anthony’s. Depende isto de a) a qualidade profissional da minha tese b) a situação financeira do colégio que, neste momento, não é famosa. Se tudo correr bem o lugar estará disponível a partir de Outubro de 1967, será por três anos, incluirá períodos em Portugal para trabalho de campo e aqui para elaboração. Não sei ainda que tema ou temas vai tratar mas isso é, certamente, o que não falta. O que neste momento me preocupa é exatamente o período entre Dezembro de 1966 e Outubro de 1967 e é principalmente por isso que agora lhe escrevo.

No nosso almoço no Jerónimo pouco antes da minha partida tinha o senhor Professor sugerido a possibilidade de eu o substituir, durante a sua sabática em Stanford, num dos lugares de ensino que detém. Eu recusei em princípio, nessa altura, por não conhecer exatamente as possibilidades aqui e não querer anulá-las por uma aceitação. O que lhe venho perguntar agora é o seguinte: seria possível ocupar-me de uma cadeira semestral isto é de Janeiro ao fim do ano letivo, ou mesmo anual se me fosse permitido condensar as aulas nos 2 últimos períodos? O meu curriculum antropológico será, nessa altura diploma com distinção (1964) e doutoramento (1966) em Oxford.

Compreendo que há aqui dois problemas a) ser talvez já tarde demais e encontrar-se a sua organização de uma équipe para o substituir pronta; b) eu não poder estar disponível senão a partir do segundo período. Se nenhum destes me puser desde já de parte pedia-lhe que me mandasse dizer exactamente o que se lhe oferecer sobre o assunto e peço-lhe desculpa de tão tarde ter tomado esta decisão.

Li por fim um pequeno livro (um Pelican) muito interessante: “What is history?” por E. H. Carr, extremamente estimulante. Sobretudo talvez porque uma das vias possíveis me parece ser na linha da história social. Muito Maitland - Evans-Pritchard esta minha via mas (a menos que se tratem tópicos particulares) não parece viável dispensar essa informação histórica nos estudos tradicionais de comunidades na Europa - a menos que se lide com grupos muito “self-contained” como os saraktasani ou os Rio-de-Onorenses.

Por outro lado julgo que só estudos antropológicos poderão ensinar-nos qual a “realidade” que os documentos fragmentários dos historiadores sociais procuram construir.

Para o que tenho cada vez menos paciência é para os chamados sociólogos - mas isto é talvez a defesa própria da nossa disciplina.

Desculpe-me esta longa carta no meio dos seus múltiplos afazeres. Peço-lhe que apresente os meus cumprimentos a sua Mulher.

Um grande abraço do

José Cutileiro

Carta de José Cutileiro para Jorge Dias (1968?)

(escrita à mão em papel timbrado do St. Anthony’s College, Oxford; a data foi acrescentada à mão, presumivelmente por Jorge Dias, mas, pelo seu conteúdo, a carta parece ser posterior à carta de Cutileiro de 21 de maio de 1969)

Meu querido Mestre e Amigo:

Desculpe não lhe escrever para casa mas não tenho aqui a sua morada. De modo que isto vai ao cuidado das Ciências Sociais e da Política Ultramarina portuguesa, dois ramos de pensamento e acção que fazem tremer o mundo. Espero que esta carta o encontre em Lisboa, gozando um Outono melhor que o que me coube aqui. Eu cá vou, com outra gestação da mesma criança, pondo a tese em livro, com as dores todas, os enjoos e as impaciências próprias da gestação.

Penso que por esta altura já terá passado os olhos pelo Honour & Shame. Que lhe pareceu? Integra-se na sua visão geral da nova licenciatura em Antropologia? Se assim for e o Plano de Edições estiver de acordo eu penso poder começar a traduzir para o fim de Janeiro.

Mas sobre tudo isto e outras matérias espero poder falar pessoalmente consigo dentro de poucas semanas. Vou no Natal a Lisboa e logo que chegue procurarei pôr-me em contacto consigo.

Cumprimentos para sua família e um abraço do amigo grato

José Cutileiro

Carta de José Cutileiro para Jorge Dias (21 de maio de 1969)

(escrita à mão em papel timbrado do St. Anthony’s College, Oxford)

21 de Maio 1969

Meu querido Mestre e Amigo:

Recebi aqui uma carta da Fundação referente a “Honour and Shame” que, por sugestão sua, me propõem que traduza. Vou mandar dizer que sim e que, além da tradução, gostaria de fazer um prefácio longo “bringing in Portuguese materials” que não existem no livro. Obrigado mais uma vez pela sua intervenção.

Como vão as coisas por aí? A sua saúde e a sua família? O seu centro? Espero que Osaka 70 não tenha causado, por fim, grande perturbação.

Eu aqui estou de novo mergulhado nesta espécie de calda erudita-pedante-snobish que é um Common Room de colégio de Oxford ou Cambridge. Estes sítios, como os cortiços donde sai no meio de milhares de obreiras, uma mestra de vez em quando, dão às vezes um Russell, um (ilegível) ou um Collingwood. Mas “nas camadas subalternas do Parnaso” como diria Eça o que se encontra mais é uma espécie de “self-awareness without self criticism” pesada de suportar. Tenho muito pouca paciência para tolos e para pedantes; quando as duas qualidades se encarnam num único ser - e isso não falta aqui - é pior ainda. Mas o tempo tem estado bom, o meu quarto de trabalho é sossegado e se em vez de compor este livro em inglês o fizesse em português estaria provavelmente feliz. Assim passo torturas lexicais e semânticas.

Não sei ainda quando irei a Portugal, mas não será brevemente. Não virá o senhor por estas terras antes disso? Há pelo menos três pessoas nesta ilha (eu e o casal Macedo) que gostariam que isso acontecesse.

Um grande abraço do amigo grato

José Cutileiro

Carta de José Cutileiro para Jorge Dias (4 de julho de 1969)

(escrita à mão em papel timbrado do St. Anthony’s College, Oxford; na parte superior da carta surge a menção “respondido”, com letra que parece ser de Jorge Dias)

4 Julho 1969

Meu querido mestre e amigo:

Peço-lhe desculpa de o vir importunar à distância. Gostava um dia de lhe poder escrever sem ser para lhe pedir qualquer coisa mas até agora a oportunidade não surgiu.

O que me leva a si hoje são duas coisas, uma profissional e outra financeira. Começo pela financeira. Quando se saberá da questão do subsídio da Alta Cultura? No caso de ser concedido como poderei receber aí etc? Desculpe vir com este assunto mas estou num aperto financeiro maior que o habitual.

Agora a questão profissional. Seria abuso da minha parte pedir-lhe para dar uma leitura e fazer comentários a um capítulo do meu livro? O capítulo em questão é um capítulo em que relaciono o exercício de “patronage” com o sistema de valores e morais e as manhas como o prestígio, a vergonha e a honra estão envolvidas neste sistema. O tema geral está de certa maneira contido numa frase dita por uma velha de Monsaraz - “Isso que eu peço não é favor; minha vergonha me custa”. Mas o desenvolvimento scholarly deste excelente aforismo está-me a dar trabalho e há problemas não só substantivos como de tradução de termos do português para inglês. Devo ter isto pronto dentro de um mês e se receber autorização sua e indicação de para onde envio-lho. Não queria acrescentar aos seus múltiplos afazeres mas só o senhor me poderá mostrar os rights and wrongs das minhas interpretações.

Onde quer pois que esta carta o encontre, de Bessarábia a Joanesburgo, agradecia-lhe que me diga qualquer coisa. Saudações minhas para a sua Júlia e os seus colaboradores.

Um grande abraço do amigo grato,

José Cutileiro

Ps: Tem visto o glú-glú?

Carta de José Cutileiro para Jorge Dias (21 de julho de 1969)

(escrita à mão)

Oxford, 21 Julho 1969

Meu querido Mestre e Amigo:

Nada sabia do seu estado de saúde até esta sua carta que chegou como um grande choque. A sua convalescença vai obviamente em bom caminho, como a própria carta demonstra mas, pelo que sei de si, estes tempos de forçoso repouso e cuidado devem-lhe ser penosos. Ao seu comentário de, com a velhice, tudo lhe cair em cima tenho todavia alguma coisa a acrescentar. Essa “velhice” não é aparente de nenhuma maneira para quem como eu tem convivido consigo ao longo de já quase oito anos. Além disso o senhor é um homem saudável e de uma vitalidade invejável em qualquer contexto cultural e sumamente rara nas terras de entre Minho e Guadiana.

Não sei quem o operou mas penso que terá estado em boas mãos; vive-se tão bem com um rim como com dois e passados estes tempos de primeira convalescença penso que a sua vida retomará, sem custo, o ritmo anterior aliviada além disso dos padecimentos renais dos últimos anos.

Não me é possível ir este verão a Portugal mas no Outono ou no Inverno dou aí seguramente um salto, provavelmente um salto longo. Tenho pena de não o poder ver mais cedo. As suas conversas têm sido nos últimos anos dos momentos mais gratos que tenho tido. Como o senhor sabe melhor que eu quando se vive muito tempo numa terra estrangeira acaba por se ficar expatriado “both ways”, nem cá nem lá, e vão sendo cada vez mais raras as pessoas com quem se sente que se fala a mesma língua. O meu convívio consigo tem para mim essa vantagem a juntar a muitas outras e tenho muita pena de não poder ir agora visitá-lo - se tivesse paciência para me receber.

Se os meus vaticínios se confirmarem - e não me parece que o contrário possa acontecer - tê-lo-emos dentro em breve “sound & fit” e livre de dietas e repousos forçados. O fundamental é encarar a convalescença com paciência e deixar “os automatismos psíquicos criados ao longo dos anos” a que se refere na sua carta fazerem o seu trabalho sem serem perturbados por receios mal fundados embora compreensíveis.

Gostava de ir tendo notícias suas mas não quero importuná-lo. Se não tiver paciência para me escrever talvez o seu genro possa mandar-me de vez em quando uma linha.

Muito obrigado pelos seus esforços junto do IAC. Vou tentar a Fundação e se for necessário escrever-lhe-ei a esse respeito. Tenho pena de não beneficiar do seu conselho no Patronage * shame mas pena sobretudo, como é óbvio, das razões que a isso levam. Se não tivesse que acabar o livro até Outubro esperava pela sua cura e voltava à carga no Inverno.

Mais uma vez muita pena não poder estar pessoalmente consigo. Os meus cumprimentos a sua Mulher.

Um muito grande abraço com todos os desejos de um rápido regresso a saúde do seu muito grato amigo,

José Cutileiro

Carta de José Cutileiro para Jorge Dias (12 de setembro de 1969)

(datilografa em papel timbrado do St. Anthony’s College, Oxford)

12 Setembro 1969

Meu querido Mestre e Amigo,

Julgo que a sua convalescença vai progredindo excelentemente e penso que os próximos anos serão de perfeita saúde. Espero ir visitá-lo dentro de meses - entretanto daqui mando estas notícias. A cátedra de antropologia de Oxford está a concurso com Needham, Beattie, Lienhardt, Middleton e Pitt-Rivers, pelo menos, candidatando-se. Toda a intriga, patronage e contrapatronage do lugar estão em actividade. Com o processo de escolha inglês, o novo professor será eleito por um colégio eleitoral constituído por dois pederastas, o Warden de All Souls e o professor de Religiões Orientais de Oxford; dois judeus sulafricanos, Max Gluckman professor de antropologia em Manchester e Meyer-Fortes professor de antropologia em Cambridge; um barão austríaco, Von Führer-Haymendorf professor de antropologia na London School of Oriental and African Studies; e uma Dame of the British Empire; directora jubilada do colégio feminino Sommerville. Preside a esta coleção heterogénea um historiador do Nazismo, Alan Bullock actual Vice-Chancellor da Universidade. Só Deus poderá prever a escolha que farão.

Num número solto do Diário de Lisboa que aqui me apareceu li uma nota oficiosa do ministro da Educação sobre o Instituto. Fechou? Acabou a antropologia? Trata-se de um episódio da vendeta Marcello-Adriano ou de uma atitude contra as ciências sociais as such? Qual a sua posição no meio disso tudo? Suponho que quanto mais tempo livre lhe deixarem mais vão ao encontro dos seus desejos, mas não sei se isso se aplica no caso presente.

Eu cá sigo debatendo-me entre a honra e a vergonha dos montesarenses e a minha tudo isto leading to nowhere. Enquanto descrevi produção agrícola, relações de trabalho, estratificação social, certos aspectos empiricamente verificáveis da vida de família e da prática religiosa, as coisas foram correndo. Mas a discussão, de valores morais corre dois riscos opostos: ou se dizem platitudes que parecem dispensar o trabalho de campo que se fez, ou se usa a imaginação que se tem para tentar encontrar um sentido profundo e uma coerência lógica e terminológica e, nessa altura, as possibilidades de escolha e hierarquização da evidência recolhida são múltiplas e, sem abandonar honestidade intelectual, passíveis de confirmação ou infirmação segundo o critério de prioridades de quem as testar. É uma espécie de terra de ninguém entre um processo de indução científica e o tipo de inferências feito ou sugerido pelos romancistas. Acresce a isto que os valores montesarenses não são all that different dos meus, são os meus em estado bruto, por assim dizer. Intelectualmente isto implica que eu não induzo de factos para chegar a generalidades; as generalidades estão em mim a priori e uso factos para as ilustrar. Não direi, com o pensador Fernando Sylvan, que “sou o meu próprio material” mas às vezes ando perto disso. Emocionalmente, analisar a própria cultura que se tem é um esforço sempre tão frustrado, como tentar um homem sodomizar-se a si próprio. De forma que aqui estou em Woodstock Road como novelo por dobrar e que, por fim, tem que ser dobado em Inglês. Para desabafar faço às vezes versos em português.

Não tiro hoje mais tempo ao seu descanso e aos seus Macondes. Não devo arrancar de Oxford nestes meses mais próximos por razões de trabalho. Até agora não surgiu nada que me faça pensar que não irei depois a Portugal. I keep my fingers crossed. Com a sua convalescença a chegar ao fim, quando recomeça a viajar? Se colóquio ou congresso o trouxerem para estas bandas mande-me dizer. O T. E. Cinatti-Lawrence? Deve estar ofendido comigo porque nunca mais tive novas nem mandados.

Os meus cumprimentos a sua Mulher e também aos seus colaboradores do palácio Val-Flor.

Um grande abraço e desejo de ainda mais melhoras do amigo grato

José Cutileiro

Carta de Jorge Dias para José Cutileiro

(rascunho escrito à mão, sem data e sem assinatura, presumivelmente de 1969)

Mr. José Cutileiro

St. Anthony’s College

Oxford

Meu prezado Amigo,

Só hoje respondo às suas cartas, não tanto porque a saúde me impedisse de o fazer, mas sobretudo pela depressão em que vivi até há pouco tempo. Entre viver e vegetar há um abismo que nem sempre se consegue transpor! Agora parece que vou a seguir num melhor trilho - talvez porque a campanha eleitoral ameaça a chamar-me a atenção para qualquer coisa fora de mim.

Você tem razão ao dizer que acabou a Antropologia. De facto as ciências sociais são um foco de inquietação mental. Os factos incontestáveis, a que a tradição deu um selo de eternidade e indiscutibilidade, passaram a ser um objecto de análise e desmitificam-se. Ora isto não convém.

É certo que o Adriano, apesar de ter sido o principal elemento impulsionador das ciências sociais no nosso País, também foi o agente destruidor, que lhes minou os alicerces com a sua política pessoal, arbitrária e contraditória. Hoje estamos na borda do abismo e, apesar de haver quem ainda acredite, eu vejo o futuro muito negro. Mas desde que possa investigar estou satisfeito, pois a cátedra ultimamente era um pesadelo. Mas pode ser que se venham as coisas a restabelecer em melhores bases. Eu compreendo o seu estado de espírito perante a discussão dos valores morais dos montesarenses. É difícil encontrar a medida exata entre a platitude e a imaginação literária, mas é possível. É tudo uma questão de atitude interior. Diz um ditado (creio que Japonês) que o peixe não podia ter descoberto a água. De facto é difícil encontrar o sistema de valores de um grupo que em certa medida faz parte do nosso. Temos a impressão de que são platitudes, porque são coisas que estão dentro de nós e já estavam antes de iniciar os trabalhos de campo. Por outro lado, receamos que o uso da imaginação nos desvie da verdade e nos leve a fazer romance. Porém, existe uma verdade oculta, de que o povo, objecto de estudo, não tem consciência clara, às vezes nem obscura, que nos compete a nós apreender e relatar como um modelo componencial. Um analfabeto fala gramaticalmente, sem saber as regras da gramática de que ele se serve. O facto de também falarmos a mesma língua que o alfabeto não nos impede de descobrir o sistema gramatical segundo um novo critério. Eu tenho a certeza de que o Cutileiro vai fazer um excelente trabalho. Não se deixe atemorizar com os resultados, pense só nos montesarenses. Pense neles, escreva reflita e volte a escrever. Só depois de uma longa convivência com eles chegará ao âmago da questão. Aquela frase da velhota deve ser o fulcro do sistema. Está ali qualquer coisa de fundamental, embora não esteja em condições de dizer nada, porque nada sei para além daquilo que lhe tenho ouvido dizer a si.

Gostei muito da sua descrição do concurso à cátedra de antropologia em Oxford. Eu, por acaso, conheço muito bem alguns dos membros do júri, com excepção dos pederastas - grave lacuna na minha formação. Alguns dos candidatos são bastante bons, mas o critério de escolha deve ser complexo. Recordo-me dos livros do Snow que ilustram estupendamente a vida secreta da Universidade inglesa.

Você deixe-se ficar por aí mais dois ou três anos a ver como isto aqui corre. Pode ser que com o tempo se volte a reconquistar o perdido.

Referências bibliográficas

CUTILEIRO, José, 1971, A Portuguese Rural Society. Oxford: Clarendon Press. [ Links ]

CUTILEIRO, José, 1977, Ricos e Pobres no Alentejo: Uma Sociedade Rural Portuguesa. Lisboa: Sá da Costa. [ Links ]

CUTILEIRO, José, 2020, Inventário: Desabafos e Divagações de Um Céptico. Alfragide: Dom Quixote. [ Links ]

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1 A correspondência entre José Cutileiro e Jorge Dias de seguida publicada encontra-se depositada no Arquivo Jorge e Margot Dias (Museu Nacional de Etnologia), pasta JD / pasta 4. Nas cartas de José Cutileiro surgem algumas expressões e frases curtas em inglês que no original não aparecem entre aspas ou sublinhadas, e que foram assim transcritas. Procedi, em todas as cartas, a uma atualização ortográfica, mas mantive a pontuação original. Agradeço ao Dr. Paulo Costa, diretor do Museu Nacional de Etnologia, e à Dra. Alexandra Oliveira, bibliotecária e arquivista do MNE, todo o apoio que me têm prestado na pesquisa que tenho a vindo a conduzir no Arquivo Jorge e Margot Dias. Agradeço à Joana Salgado - estudante da licenciatura em Antropologia da FCSH (UNL) - a transcrição competente da correspondência, realizada no âmbito do seu estágio curricular na FCSH (UNL). Finalmente, agradeço a Myriam Sochacki-Cutileiro, viúva de José Cutileiro, e a Karin Dias, filha de Jorge Dias, a autorização para publicar a correspondência entre os dois antropólogos. Para mais detalhes sobre a obra de José Cutileiro, veja-se o ensaio bibliográfico “50 anos depois de A Portuguese Rural Society: José Cutileiro e a Antropologia”, publicado neste número da Etnográfica).

2Arquivo Jorge e Margot Dias (Museu Nacional de Etnologia), pasta JDA/3(3).

3Relatório de Atividades de 1968 do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular (Arquivo do Centro de Estudos de Etnologia, Museu Nacional de Etnologia).

4A referida licenciatura é, com toda a probabilidade, o Curso Complementar de Ciências Antropológicas e Etnológicas. Com a duração de dois anos, esse curso podia ser frequentado tanto por estudantes detentores do diploma do Curso de Administração Ultramarina (com a duração de três anos e também oferecido pelo ISCSPU), como por estudantes detentores do grau de licenciado por outras universidades portuguesas. Entre os colegas formados por essa licenciatura, já depois de 1974, encontram-se - para além do autor desta Introdução - Rosa Maria Perez, Jorge Freitas Branco, José Gabriel Pereira Bastos ou Cândida Porto. Também depois de 1974 ensinaram nessa licenciatura José Carlos Gomes da Silva, José Fialho e Rui Rodrigues, que depois transitaram para as novas licenciaturas em antropologia criadas na FCSH (UNL) e no ISCTE.

5N.E.: As cartas que seguem abaixo foram mantidas com o texto original sem qualquer alteração nem adaptação ao novo acordo ortográfico.

Recebido: 26 de Janeiro de 2023; Aceito: 31 de Janeiro de 2023

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