Palavras iniciais
Em agosto de 2019, a Primeira Marcha das Mulheres Indígenas tomou conta das ruas de Brasília, Distrito Federal, Brasil. Eram mais de duas mil mulheres, representando mais de 100 povos indígenas do território brasileiro1. As demandas que traziam nos cantos e nas falas tratavam de um tema central e convergente às experiências indígenas: “Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito”. Ao final da marcha, um documento foi escrito. Em um trecho, as mulheres indígenas explicam:
“Enquanto mulheres, lideranças e guerreiras, geradoras e protetoras da vida, iremos nos posicionar e lutar contra as questões e as violações que afrontam nossos corpos, nossos espíritos, nossos territórios. Difundindo nossas sementes, nossos rituais, nossa língua, nós iremos garantir a nossa existência.” (AA.VV. 2019)
Nessas palavras, as mulheres indígenas nos ensinam mais uma vez sobre elementos fundamentais de quem são: geradoras e protetoras da vida, corpos, espíritos e territórios. Com essas profundidades dos conhecimentos em marcha, teceremos considerações que atravessam a vida de três mulheres indígenas de recente contato:2 Pugapia, Aiga e Babawro que, juntas, compõem a totalidade do grupo akuntsú (tupi, tuparí). Elas vivem na Terra Indígena (TI) Rio Omerê, sudeste do atual estado de Rondônia, Amazônia brasileira, onde guardam as memórias e a identidade de seu grupo. As trajetórias dessas mulheres e, consequentemente, do coletivo akuntsú foram atravessadas e invadidas pelas práticas de colonialidade do poder (Mignolo 2003) ao longo do século XX. Neste contexto, o título deste artigo, “Três mulheres, um povo: histórias akuntsú”, sugestiona reflexões sobre os resultados e os impactos das invasões dos territórios ancestralmente habitados pelos akuntsú.
Em meados da década de 1970 e início da década de 1980, os akuntsú viviam na região dos rios Caubá e Trincheira, sudeste do estado de Rondônia, formando um grupo de aproximadamente 19 pessoas (Aragon e Algayer 2020). Com a intensificação das frentes de expansão nacional, o desmatamento dessa região passou a ser constante e a destruição tomou conta dos territórios indígenas, transformados em propriedades privadas. Os poucos membros do grupo que sobreviveram fugiram para as margens do rio Omerê, sendo eles: Konibú, Aiga, Pupák, Ururu e Pugapia. Lá nasceram mais duas crianças: Babakop e Babakyp (hoje, Babawro). Foi nessa região que, em 1995, ocorreu o contato oficial com a equipe indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A proposta metodológica deste artigo compreende o diálogo entre a Linguística Antropológica (Duranti 2000) e o campo da História Indígena (Cavalcante 2011; Oliveira 2012; Mezacasa 2021). É na linguagem, nas narrativas analisadas e nas práticas culturais que a história dos saberes se revela (Balée 2000, 2022). É por meio da linguagem que os sujeitos se vinculam socialmente, estabelecem modos de relações entre si e com o território habitado, explora-se a linguagem para “descobrir compreensões culturais” (Foley 1997: 3). A história dos povos indígenas se descortina por meio do território, na construção das materialidades, tal como já estudado por alguns especialistas, entre eles Fernando Santos-Granero (2005) e Carlos Fausto e Michael Heckenberger (2007). Portanto, buscamos aproximações entre as áreas que as autoras trabalham, estimulando abordagens interdisciplinares, dialogando para a construção de conhecimentos sobre os povos indígenas de recente contato da Amazônia, em especial sobre povos do baixo e do médio rio Guaporé. Com relação às informações linguísticas e etnográficas aqui descritas, essas foram coletadas na vivência cotidiana junto ao povo akuntsú, obtidas de conversas com os falantes em diferentes situações de uso da língua - fruto de estudos de uma das autoras que há anos trabalha com o grupo. Mediante também a análise de documentos históricos e de revisões bibliográficas, aprofundamos as discussões presentes neste artigo.
De “isolados” a povo de recente contato
Os akuntsú foram contatados oficialmente pela Funai em 1995 às margens do rio Omerê (Santos e Algayer 1995; Valadão 1996b; Aragon 2014; Tavares 2020). Na época, os akuntsú eram um grupo de sete pessoas: dois homens, Konibú (tojtõna “chefe” e kʷamoa “pajé” do grupo) e Pupák; três mulheres, Ururu, Pugapia e Aiga; e duas crianças, Babawro e Babakop. O contexto do encontro da equipe da Funai com os akuntsú ocorreu em um período em que as terras de Rondônia eram propagandeadas em periódicos nacionais enquanto o “Eldorado” - responsável por promover a migração de famílias de colonos de diferentes regiões do Brasil, incentivados pelas políticas do governo federal de distribuição gratuita de lotes de terra. Neste feito, as terras habitadas por povos indígenas foram sistematicamente esquadradas e destinadas à “colonização” por não indígenas.
Na década de 1980, os rumores sobre a presença indígena nas proximidades do rio Omerê se intensificaram quando um homem que trabalhava na região (local da fazenda Yvypitã) avisou a Funai sobre flechas jogadas na direção do trator da fazenda (Santos 1985). Em 1985, o indigenista Marcelo dos Santos começou uma jornada para a localização dos indígenas, entretanto, quando da chegada da equipe, a área estava totalmente limpa, com supressão da floresta. As materialidades indígenas - vestígios - foram soterradas pela ação de tratores que, intencionalmente, procuravam silenciar a presença indígena, escondendo os restos de roça e de palhas das malocas destruídas. Naquele momento, os indigenistas buscavam assegurar a sobrevivência dos “isolados do Vale do Corumbiara”, pois nada sabiam sobre os grupos akuntsú e kanoé do Omerê 3 que mais tarde iriam contatar oficialmente. Em dezembro de 1986, a área da fazenda Yvypitã foi desinterditada pelo governo (Valadão 1986). Pelas narrativas dos akuntsú, eram eles quem ocupavam essa região até fugirem para os terrenos altos às margens do rio Omerê.
Em setembro de 1995, seguidos de inúmeros obstáculos que interromperam as buscas, Marcelo, Altair Algayer 4 e equipe localizaram um grupo dos então “isolados” que habitava a região do rio Omerê: quatro pessoas do povo kanoé 5 (Valadão 1996b). Do contato com os kanoé, os indigenistas encontraram vestígios da presença de mais pessoas que também se refugiavam na região: os akuntsú.6 Em outubro de 1995, Aimoró Kanoé decidiu levar a equipe para o encontro de dois integrantes akuntsú: Pupák e Ururu, que foram surpreendidos com a chegada da equipe. No início, os kanoé não queriam levar os indigenistas até o grupo distinto, diziam que “era bravos, não falavam a mesma língua e andavam constantemente pelo mato” (Valadão 1995b: 1). Mais uma vez na história, eram os vizinhos indígenas que sabiam e testemunhavam sobre o outro (Gow 2018), sobre aqueles que até então estavam “em situação de isolamento”. Foi Aimoró que no dia seguinte, sozinha, também decidiu ir atrás das mulheres akuntsú, levando-as até o acampamento onde estavam Ururu, Pupák, Txiramanty Kanoé e a equipe da Funai (Santos e Algayer 1996) - quanto ao Konibú, a equipe só o conheceu quando, no dia consecutivo, foram à sua aldeia, onde Konibú já os aguardava. No entanto, o encontro contínuo entre os kanoé do Omerê e os akuntsú iniciou antes de 1995, numa época que passaram a se relacionar após a drástica redução demográfica e a desestruturação social de ambos os grupos.
A história dos kanoé do Omerê está atrelada ao período em que os indígenas de distintos povos foram transferidos pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) do Posto Indígena (PI) Pedro de Toledo para o PI Ricardo Franco.7 Nesse percurso, alguns kanoé decidiram não se juntar ao grupo que estava sendo transferido, estabelecendo-se na região esquerda do rio Omerê, separando-se dos demais. Acredita-se que o encontro dos kanoé do Omerê com os akuntsú tenha ocorrido entre os anos 1990 e 1991, quando os akuntsú, no processo de fuga, passaram a se esconder às margens do rio Omerê (Aragon e Algayer 2020). Lá os akuntsú iniciaram pequenas roças, vivendo em tapiris distantes dos plantios. Os kanoé, observando os movimentos desse grupo desconhecido, começaram a pegar escondidos os alimentos das roças deles. Tempos depois, procurando estabelecer relações diretas com os akuntsú, passaram a morar mais próximos, iniciando um relacionamento embasado nas trocas “como panela de alumínio, que os akuntsú não tinham, a arte de tocar flautas (que Konibú ensinou para Purá) e o processo de pajelança (que Konibú transmitiu para Txiramanty)” (Aragon e Algayer 2020: 232). Sobre a relação entre os kanoé do Omerê e os akuntsú, Luciana Tavares (2020: 108) conclui que esses dois grupos vêm buscando, por meio das trocas e das relações, “formas de sobreviver aos ‘vazios’ ”.
Uma história antiga permeia significativos impactos nas territorialidades dos akuntsú, bem como de todos os povos do Vale do Guaporé:8 a ocupação dos territórios indígenas pela indústria extrativa da goma elástica. Um documento com data de 7 de setembro de 1930, localizado no Centro de Documentação Histórica, vinculado ao Museu Palácio da Memória Rondoniense (Porto Velho, RO), apresenta descrições sobre a região. Ao que consta, foi escrito por Aluísio Ferreira 9 e refere-se a uma expedição que saiu do rio Guaporé, subiu pelo rio Corumbiara, depois, por terra firme e por água, baixou até o rio Tanaru, chegando ao rio Pimenta Bueno, findando na Estação Telegráfica de Pimenta Bueno, norte de Mato Grosso. Suas páginas trazem evidências da ocupação seringalista nesta região em 1930. Em uma passagem entre os rios Corumbiara e Tanaru, Ferreira escreveu: “[…] utilizamos, para a travessia, uma picada aberta pela firma Casara, ligando ‘Barranco Alto’ à margem do Tanarú. Essa picada segue o rumo geral de NE, em terreno quasi todo plano e firme” (Ferreira 1930: 2). O que o autor chama de firma Casara era um empreendimento gomífero. No percurso da picada em terra firme, Ferreira descreveu a presença de dois povos que chamou de “Mapimo” e “Capichanan”. No documento, ele cita o nome dos capitães desses povos, sendo eles “Timão” (Mapimo), “Ariúma” (Mapimo) e “Canuê” (Capichanan). Em outro trecho escreveu “[…] toda a região atravessada é rica de seringaes e cauchaes. Aí vivem índios das tribus Mapimô e Capichanan, em varias aldeias de reduzida população. Mapimôs e Capichanans teem dialetos diferentes, mas são aliados e amigos” (Ferreira 1930: 4-5). O capitão “Canuê” foi descrito como o chefe de uma aldeia do povo “Capichanan” - atuais kanoé.
O documento descortina a presença de povos indígenas na região, além de evidenciar a ocupação dos territórios entre os rios Corumbiara e Tanaru10 pelas firmas seringalistas, ainda na década de 1930. A presença seringalista e seus impactos nas populações indígenas recaem sobre diferentes regiões do atual estado de Rondônia. No livro de Jandira Keppi e Nienke Pruiksma (2018), construído a partir de histórias de vida de mulheres indígenas Karo Arara, é possível identificar as marcas de experiências nos seringais, na região do rio Riachuelo - afluente da margem direita do rio Machado/Ji-Paraná. Entre as mulheres makurap, bem como entre todos os povos do Vale do Guaporé, também são recorrentes os relatos de impactos dos seringais em suas vidas (Mezacasa 2021).
Ao retomarmos o relatório citado acima, aproximando-o de dados etnográficos, elementos interessantes descortinam-se para uma compreensão da história de violência dos seringais com relação ao povo akuntsú, como, por exemplo, relatos dos akuntsú sobre parentes que nunca mais ouviram falar e sumiram. É muito provável que esses “desaparecimentos” estejam ligados à chegada de seringueiros na região, como se observa neste trecho: “Ururu era casada com Ipuanã, porém, depois que esse sumiu, o marido de sua irmã kʷakʷá, pegou-a para esposa - não explicam exatamente o motivo desse desaparecimento - acreditamos que isso possa ter ocorrido na época que os seringueiros começaram a dominar a região” (Aragon e Algayer 2020: 229).
Com os projetos de colonização orientados pelo governo federal, consolidaram-se os impactos às territorialidades akuntsú. As frentes de ocupação das décadas de 1970 e 1980, diferentemente dos seringais, pautavam-se na sistemática derrubada da floresta (extração de madeira e expansão da agropecuária), o que encurralava ambientalmente os akuntsú. O contingente populacional de não indígenas na região, que em 1981 iria se tornar o estado de Rondônia, teve um crescimento exponencial significativo no início da década de 1970, consolidando-se entre as décadas de 1980 e 1990.11 Nessa política de “integrar para não entregar”, bem como na criação discursiva dos vazios demográficos (Mota 1994), o Estado brasileiro consolidou a invasão do território tradicional dos akuntsú: a área do rio Corumbiara, chamado de bedɨa pelos akuntsú, até as cabeceiras do rio Tanaru (Aragon e Algayer 2020). Vincent Carelli,12 em um trecho do documentário por ele produzido,13 explica que a firma que demarcou Corumbiara já havia encontrado índios na década de 1970 e que, desde então, vinha ocorrendo uma série de omissões e de atos brutais contra os povos indígenas (ver também Valadão 1995a). Algayer, em depoimento sobre esse período, também enfatiza o genocídio na região e a falta de uma investigação que apontasse um culpado (Algayer 2015: 374). Ressaltamos que a região do Corumbiara também está associada a histórias de massacres, seja de povos indígenas, dos quais muitos foram silenciados, seja de não indígenas, como o emblemático caso conhecido por “Massacre de Corumbiara” ocorrido na fazenda Santa Elina em 1995 contra colonos que reivindicavam a implantação de reforma agrária na região (Peres 2015).
Em 1996, logo após o contato oficial da equipe do órgão indigenista com os kanoé e akuntsú, a área de habitação dos dois povos foi interditada; a partir daí, foram anos de esforços para a demarcação da TI. Em 1997 e 1999, quando a área ainda estava em situação de interdição, ocorreram invasões ilegais de madeireiros.14 Em 2006, Decreto s/n de 19/04/2006 (Brasil 2006), a TI (Terra Indígena) foi demarcada com área de 26 mil hectares. Conforme estudos de Alex Santos e Maria Lúcia Gomide (2015), ao analisar o entorno de 21 TI no estado de Rondônia, apontam que a do rio Omerê é a mais antropizada, destacando que, além da monocultura, há outros sérios impactos socioambientais no entorno da TI, como pastagens para a criação de gado, rodovia municipal e barragens para a produção de energia elétrica.
Em suma, as invasões dos territórios habitados pelos akuntsú e pelos kanoé do Omerê são marcas na história indígena dos povos amazônicos. Compelidos a viver em territórios transformados e planejados pelo “branco”, foram forçados a fazer distintas “escolhas” ao longo de suas histórias. Os akuntsú e os kanoé do Omerê, tentando se afastar das rotas de expansão dos não indígenas, se isolaram. Com o tempo, passaram a conviver uns com os outros e, para sobreviver, na década de 1990, aceitaram o contato da Funai. Hoje esses povos de recente contato são os resultados do contínuo processo de genocídio dos povos indígenas na Amazônia brasileira, que marca o passado, mas também as histórias do presente.
Pugapia, Aiga e Babawro
A relação entre as três mulheres é de parentesco: mãe, Pugapia, e suas filhas, Aiga e Babawro. Pugapia, com a redução do grupo, casou-se com Konibú (tio materno) quando ainda moravam no seu território tradicional. Nessa época, teve dois filhos: um menino, Kyptxiri, e uma menina, Aiga. Antes do refúgio no Omerê, seu filho, ainda pequeno, foi morto durante a invasão do território nas proximidades do rio Trincheira. Já às margens da cabeceira do Omerê, nasceu sua filha mais nova, Babawro. Aiga, por sua vez, explica que teve duas filhas, Babakop e outra que morreu logo após o nascimento - um tempo depois do contato com a Funai. Babakop faleceu ainda menina, em 1999, quando uma árvore caiu sobre a maloca onde dormiam, matando-a e fraturando uma das pernas de Konibú. Já Babawro não teve filhos. Durante o parto, realizado de cócoras, uma mulher fica encarregada de ajudar a “puxar” a criança e a outra corta o cordão umbilical. A que “puxa” o bebê torna-se a segunda mãe, caso da Aiga em relação à Babawro.
Os akuntsú possuem a experiência da troca de nomes ao longo da vida, ligada a fatores marcantes para o grupo ou para a trajetória individual. Em uma de suas narrativas, Konibú explicou que antes se chamava Kʷatin “cobra”, ou Kʷatinatʃo, “cascavel”. Deixa claro que se anteriormente ele chorou, hoje já não chora, pois não é mais o mesmo:
“(1) aramĩra nom aramĩra aparapia dow […] Kʷatin ihĩihĩ onẽ nom. ‘Mulher não, mulher, branco matou […] Kʷatin chorou, eu nãoʼ ” (Aragon 2014: 317)
Sobre a sua experiência em ser pajé, Konibú explica que foi picado por cobra e sobreviveu, ressaltando: on kʷatinatʃo on kʷamoa “eu [sou] Kʷatinatʃo [e sou] pajé”. As explicações de Konibú 15 ajudam na compreensão das dinâmicas internas do grupo e das mudanças pelas quais as pessoas vão se constituindo ao longo da existência.
Com as mulheres akuntsú, a troca de nomes próprios também acontece ao longo da vida. A integrante mais velha, Ururu, falecida em 2009, quando mais nova chamava-se Batʃe (significando “jatobá”). Após o nascimento da sua filha, a qual nomeou de Batʃe, passou a se chamar Enotejpia e depois Ururu (algodão) - interessante ressaltar que ela era quem fiava e preparava o algodão usado pelos membros do grupo (embora as outras também compartilhem o saber-fazer). Pugapia, após o contato, passou a ser conhecida por Aramira (mulher). Meses depois do contato, com a ajuda de intérpretes Sakurabiat, a equipe da Funai compreendeu que se chamava Nõtopia (Valadão 1996a). Quando uma das autoras a conheceu, já se chamava Pugapia ([como] tracajá), e, assim, se apresenta até hoje. Aiga (casulo), no contato se apresentava como Ikyã (Valadão 1996a),16 depois como Nanoj e Tʃaruj - nome também da irmã de Konibú que foi morta por pistoleiros quando moravam na região da fazenda Yvypitã. Por fim, Babawro por Babakyp, quando criança, e depois por Enotej (nome próprio) ou Kani (criança), na língua kanoé.
As histórias de Pugapia remetem a um tempo em que ainda havia um número muito maior de parentes. Relembram a época em que era moça, falam de seus avós e de outros membros do grupo. Ao questionar as outras duas mulheres, Aiga e Babawro, sobre tempos remotos, logo dizem que quem sabe é Pugapia. Elas sabem do que viram - o que ouviram é secundário. Aiga lembra apenas dos parentes que viveram entre os rios Caubá e Trincheira:
“(2) itʃoa, Batʃe, Pupak ajtʃi, itaɨp, itaɨp, nako, ẽ, ẽ Pajnimã, Batʃe, itaɨp ãka piro ino, ino ikemkɨ. ‘[eu] a vi, Batʃe, esposa de Pupak, [tinha] dois filhos, [era] homem, aquele, aquele [era] Pajnimã, filho dela, da Batʃe, assim, tinha outro [mostrando o tamanho da barriga - estava grávida], o outro era de peito [ainda mamava].ʼ ” (Aragon 2019, notas de campo)
Há um sistema de diálogo entre os akuntsú. Ao narrar uma história envolvendo mais de um participante, há sempre uma voz central, descrevendo o evento, e vozes secundárias, adicionando conteúdo para o falante central de forma esporádica. E é desta forma que as mulheres relatam o passado distante: a voz principal é a de Pugapia e, por vezes, Aiga acrescenta certos fatos. Na época em que os homens, Konibú e Pupák, eram vivos, no final do dia, Pupák, que morava em outra maloca, ia até o pátio da maloca de Konibú para conversar sobre o dia seguinte. Nessa esfera, dialogavam sobre o que caçar, quais frutos já estavam caindo para preparar a tocaia, o que era preciso pegar nas roças mais afastadas, entre outros assuntos que envolviam a cotidianidade do grupo. As mulheres também participavam.
Em 2004, quando moravam mais afastados da Base de Proteção Etnoambiental da TI Rio Omerê, as malocas tendiam a circundar o pátio da aldeia. Na maloca de Konibú, situada na entrada da aldeia, residiam Konibú, Pugapia, Aiga e Babawro. Na frente, um pouco mais afastado do pátio, moravam Pupák e sua mãe Ururu 17 - em uma mesma maloca. Todos mantinham relações de reciprocidade e de afinidade: os homens caçavam, as partes eram divididas, e as comidas preparadas pelas mulheres eram compartilhadas.
Os alimentos consumidos pelas akuntsú são oriundos da coleta de frutos, do preparo da palmeira para a produção do gongo,18 da caça, da pesca e também da plantação de roçados. As coletas são feitas pelas mulheres, entretanto, quando os homens do grupo percorriam seus caminhos de caçada e encontravam frutos, também coletavam e levavam para a aldeia. Atualmente, após a morte de Konibú e de Pupák, as mulheres têm se reorganizado; a estrutura social se ajustou com as perdas dos homens. Quem caça, tendo em vista que essa era uma atividade experienciada pelos homens do grupo? 19 As mulheres akuntsú passaram a receber caça de homens kanoé e de indígenas tuparí, makurap, djeoromitxí (jabuti) e outros que prestam serviço para a Funai dentro da TI. Já os peixes, elas mesmas pescam ou recebem dos servidores 20 que também auxiliam na preparação do terreno para a roça anual.
Com relação ao roçado, todos os akuntsú participavam de alguma etapa. As mulheres têm o papel de limpar o terreno 21 e realizar o plantio - com exceção do milho, que é, preferencialmente, plantado pelos homens.22 Para a pescaria, os akuntsú utilizavam o timbó e, na época da seca, as mulheres faziam pequenas represas em igarapés, jogando com uma cabaça o peixe de dentro da água para a margem, enquanto outra pessoa do grupo tinha a função de recolhê-los (Aragon 2008). A pesca com o timbó não é mais uma prática regular. Com o contato, passaram a pescar com linha e anzol - tendo como isca gongos ou pedaços de peixes menores.
Durante anos intensos de fuga, os akuntsú perderam alguns cultivos importantes. Ao longo do contato oficial, algumas plantas passaram a ser reintroduzidas pela equipe da Funai, como akʷatʃe (cará roxo - variedade); akʷamã (cará grande - variedade); atiti kop (milho vermelho - variedade); atiti perek (milho amarelo - variedade); arakʷi (amendoim); algumas espécies de banana, como apara pɨk (banana-figo - variedade); ɨrɨraj (patauá); ororo (algodão); pitoa (fumo); e kɨkap (urucum). Nos primeiros meses de contato, foram levados amendoim e sementes de urucum, os quais “foram muito bem recebidos e provocaram um desabafo de Ba’ba sobre a perda do algodão, amendoim vermelho, urucum e um tipo de pimenta” (Valadão 1995b: 4).
Outras alterações na dieta pós-contato referem-se aos cultivares que foram reintroduzidos ou que já tinham, mas, com o tempo, deixaram de consumir como, por exemplo, kobo (fava) - os pés que tinham nas aldeias mais antigas foram abandonados; atiti pɨk (milho preto); komata (feijão); e outros, como kaga (taioba), diminuíram bastante o consumo. Quanto às plantas de uso não alimentício, atualmente as mulheres ainda plantam algodão e fumo.23
Essas informações alimentares são relevantes para evidenciar as minúcias dos impactos da ocupação territorial por não indígenas sobre as vidas indígenas e, principalmente, sobre suas experiências de habitar os lugares. No caso das akuntsú, citamos, por exemplo, o patauá que deixaram de consumir, justamente pela pressão territorial - o patuazal estava no interior de uma área já ocupada pelos não indígenas. Desta forma, como destacaram Cangussu, Shiratori e Furquim (2021), a paisagem e as espécies encontradas ao longo do território revelam os traços humanos assinalados na vegetação, marcando a relação dos indígenas com a diversidade florestal. Entretanto, a colonialidade do poder (Mignolo 2003), impetuosa em silenciar as experiências indígenas e seus complexos conhecimentos da floresta, logo tratou de encobrir essas relações que constituem os indígenas na relação com o ambiente, com o território em que vivem, e de onde nutrem seus corpos a partir das plantas presentes nesses lugares. Muitos povos, como os akuntsú, deixaram de praticar hábitos alimentares, bem como confecções de materialidades por não conseguirem acessar as áreas de produção de matérias-primas após a presença não indígena.
As relações entre as mulheres akuntsú e os animais são permeadas por tabus alimentares. Seguem alguns exemplos dos animais e a dinâmica de ingestão interna do grupo: (a) animais que ninguém come: pera (arara-vermelha), tʃadi (tatu-galinha), ekʷajakʷin (capivara), e poga kop (jabuti vermelho do campo); (b) animais que apenas as mulheres não comem: bawrape (tabatinga - o peixe é selecionado de acordo com o formato da cabeça) -, boj (boi - os homens evitam), e ɨpek (pato). Essas dinâmicas estão relacionadas com a integridade física do indivíduo, estabelecidas nas construções socioculturais. Jaqueline Ferreira (1994: 104) destaca que “as representações que os indivíduos possuem a respeito de doença estão diretamente relacionadas com os usos sociais do corpo em seu estado normal […] que a percepção do estado de doença quase sempre se traduz em sintomas”. Por exemplo, para as mulheres akuntsú, se sentirem dor de garganta dias depois do consumo de um desses animais listados, a dor é direcionada à ingestão do alimento.
Ao cheirar rapé, Konibú explica que é durante a inalação que ele se comunica com os não humanos - como é o caso da grande serpente Kojõpo, visível nos dias de arco-íris. Para os akuntsú, os propósitos da pajelança envolvem, dentre outros aspectos, a cura 24 de corpos. Após a pajelança, o lugar da dor que antes era quente - ruim, segundo explicam - passa a ficar frio.25 A pajelança afasta os não humanos que possam agenciar relações conflituosas com os humanos, protegendo, por exemplo, a pessoa de um encontro com uma onça ou com uma cobra venenosa. Fazem a pajelança na caça e em alimentos que podem trazer impactos negativos para o corpo.
Enfatizamos ainda que a não ingestão de determinados animais integra-se em histórias que envolvem relações entre humanos e não humanos nas cosmologias indígenas. Para os akuntsú, a arara-vermelha - que ninguém come - está marcada na história de Pera, um pajé que se tornou arara-vermelha. Essa história está simbolizada nas vestimentas dos akuntsú: os niam (braceletes e tornozeleiras vermelhas) que representam as asas e o rabo dessa arara. Os makurap 26 possuem, historicamente, um tabu alimentar em relação à ave inhambu-preto. Esse tabu relaciona-se com a história da castanheira e de uma trama que se desenrola a partir de um conflito no qual, no fim, ocorre a transformação de um homem em um inhambu-preto. Segundo explicou a anciã Juraci Menkaika Makurap, a ingestão do pássaro pode acarretar dores pelo corpo. Assim, “[…] O inhambu preto não é uma classificação estática de animal, ele está se constituindo a partir das relações com os humanos” (Mezacasa 2021: 56). Portanto, entre os makurap, pode ocorrer, assim como entre os akuntsú, a contração de impactos nos corpos por uma provocação externa.
Saber-fazer e relações sociais
A chicha, bebida fermentada, é uma prática manipulada apenas pelas mulheres akuntsú. Além de alimento, a chicha também é uma bebida e o seu saber-fazer se relaciona à saúde genital do homem: aquela que não sabe fazer a chicha, deixará o pênis do marido doente. Observe as explicações das mulheres sobre o preparo:
“(3) on ijõmaj tumtum ka, ko, ko. itʃãw ma otʃe itʃãw, itʃãw kɨa ma. ɨkɨ a, ɨkɨ kɨj, ɨkɨ-ɨkɨ jõ ka. kɨ, ɨkɨ jõmaj kap jõmaj ka ma tʃipap. jõ en ijõmaj ka ma. tʃipap jõmaj imaɾa. tɨeɾo momokwa. en omepiɾet nom tɨeɾo mokwaɾom. on itʃãwtʃãw ãka ãka. itʃãwtʃãw ãka. nom okwiɾo ɛ̃ɛ̃h nom, ka, ma. ‘Eu amasso isso, eu pilo, eu como isso muitas vezes. Eu mastigo, eu guardo (a fruta mastigada dentro da panela), eu mastigo, nós mastigamos e guardamos. Tem água, (então) eu pego água, bastante água vai bem aqui. O líquido, amassa o líquido e derrama, a avó. Você amassa e derrama isso aqui. A avó amassa e derrama, assim como de costume. Ela faz a chicha repetidas vezes. Você, minha filha, não faz chicha. Eu mastigo isso muitas vezes, assim, assim. Eu mastigo muitas vezes, assim. E eu não vomito, não vomito, como e guardo.’ ” (Aragon 2014: 314-315)
Antes de começarem o preparo da mastigação, as mulheres limpam os dentes e a língua com uma folha conhecida por tʃogo tep. A chicha é de extrema importância cultural, podendo ser produzida com tubérculos, como a mandioca, o milho e o cará, ou com determinados frutos, como a pupunha. Pode ser servida como uma forma de agradecimento/pagamento ao caçador ou para aqueles que auxiliaram no roçado, como também pode ser usada na integração/construção social27. Desde o contato, os akuntsú não possuem o hábito de beber a chicha muito azeda. A chichada é parte fundamental das festas 28 de muitos povos tupi, descritas nos estudos realizados ao longo do século XX, tal como no trabalho de Franz Caspar (1958). Atualmente, a anciã Pugapia não ajuda tanto a preparar a chicha como antigamente. Essa função cabe às suas duas filhas. Aquela que tem a responsabilidade maior no preparo 29 é quem irá servir primeiramente os homens e depois as mulheres que quiserem tomar.
As mulheres akuntsú ainda se destacam nas habilidades de construção de materialidades, como maricos - bolsas feitas tradicionalmente da fibra do tucum (Astrocaryum sp.) -, adornos corporais e panelas de barro, cuja confecção é um saber-fazer feminino dentro do grupo. Quanto à cultura material, no interior do grupo akuntsú, Aragon e Tavares (2019) apontam que os objetos akuntsú refletem as experiências de toda uma tradição, desde a coleta da matéria-prima até a sua produção final, como é o caso dos maricos - contemporaneamente também são feitos de barbante de algodão industrializado, levados para as mulheres akuntsú. Os maricos são usados tanto pelos homens como pelas mulheres para carregar o que for necessário. A alça é colocada na testa e os homens podem usá-la tanto na testa quanto nos ombros, deixando o peso cair nas costas. Quando ficam velhos, não são descartados. Utilizam esses cestos para guardar restos de carne/peixe, podendo ir ao moquém, se for preciso, para aquecer o que está dentro da bolsa. Além disso, já foi observado maricos velhos sendo usados como peneiras ou para enrolar objetos cortantes antes de guardá-los. O marico é um objeto bastante difundido na região e utilizado por diferentes povos localizados nas proximidades do Vale do Guaporé, o que levou Maldi (1991) a intitular essa área de Complexo Cultural do Marico. A confecção do marico entre as mulheres makurap, por exemplo, indica uma relação profunda com as plantas, neste caso o tucum, que envolve humanos e não humanos, bem como um delicado conhecimento territorial (Mezacasa 2018).30
Os adornos corporais, por sua vez, também são tecidos apenas pelas mulheres akuntsú. Entre as materialidades estão braceletes e tornozeleiras confeccionadas com algodão ou barbante de algodão industrializado. Os adornos são usados por todos, inclusive crianças. Em imagens captadas pela Funai na época do contato, as duas crianças do grupo eram vistas com esses adornos corporais. Além dos adornos e maricos, outra experiência de saber-fazer que envolve as práticas das mulheres akuntsú é a produção da cerâmica. A desterritorialização violenta pela qual passaram desencadeou movimentos abruptos na experiência do grupo e fez com que os lugares antigos de coleta do barro bom para a confecção das panelas fossem abandonados, restando poucos dentro do território demarcado. Ururu era quem mais tinha panelas de barro e quem ensinava a prática às jovens do grupo. Quando morreu, seguiram o ritual de queima e de destruição dos pertences da falecida, entre eles as suas panelas de barro. Silva (2000), ao estudar a produção de cerâmica entre as mulheres Asuriní (tupi, tupi-guarani), também observou o descarte das panelas após a morte da dona. Segundo ela, por haver uma relação entre a ceramista e suas vasilhas, quebrar e jogar fora as panelas de barro após a morte da dona é uma forma de “ninguém ficar lembrando, ter saudade” (Silva 2000: 93).
As mulheres assumem o cuidar dos animais de estimação que vivem na maloca e usam o termo de parentesco mepit (filho(a).de.mulher) para se referirem aos seus animais (Aragon 2008, 2014). Essa relação parental entre humanos e animais é observada entre muitos povos da Amazônia, como, por exemplo, entre os karitiana (tupi, arikém) que habitam a região próxima do alto rio Madeira, no estado de Rondônia. Para eles, como identificou Felipe Vander Velden (2010), a criação de animais é “um processo continuado de produção de parentesco e socialidade a partir da convivência, da proximidade física e da partilha de alimentos, cuidados e companheirismo” (Vander Velden 2010: 262).
Para compreender o sistema linguístico dos nomes em akuntsú e, logo, o uso do termo de parentesco para designar os animais de criação, algumas explicações são necessárias. Há em akuntsú uma divisão com relação aos nomes: (a) comumente possuídos e, portanto, determinados por pronomes genitivos (possessivos), como, por exemplo, as partes do corpo humano: opi (meu pé); epi (teu pé); e (b) aqueles que não são comumente possuídos, como nomes referentes à flora, à fauna e aos fenômenos da natureza: kɨp (árvore), e não okɨp (minha árvore). Ressaltamos que essas relações podem apresentar exceções a depender de situações pragmáticas específicas. Por exemplo, quando o algodão plantado é coletado para fazer um artefato, ele passa a ter “dono/possuidor”, logo pode-se dizer: otʃe ororo (nosso algodão).
Nessa relação também se encaixam os animais de estimação que, ao serem possuídos, requerem um termo intermediário na construção de posse, como “meu animal de criação maracanã-guaçu” e não “meu maracanã-guaçu”. Isto é, na língua akuntsú opero “meu maracanã-guaçu” não é a estrutura aceitável, já que deveria vir acompanhado de um termo intermediário entre o pronome genitivo de primeira pessoa do singular o = “meu/minha” e o nome pero “maracanã-guaçu”. Além do termo de parentesco mepit para intermediar essa construção, a palavra potʃek (pertence/objeto pessoal) também é usada na intermediação de posse de alguns animais de criação.
O número de animais varia dependendo da espécie e da época do ano. Os periquitos sempre foram mais numerosos. Os que não são chamados de filhos, são referidos como potʃek: piwi opotʃek (meu pertence/objeto bico-de-brasa). Há, assim, duas formas para se referirem aos animais de criação e essa distinção entre os que são mepit e os que são potʃek ocorre devido ao tipo de relação construída com eles. Os considerados potʃek, dentre os animais que criam atualmente na maloca, são piwi (bico-de-brasa), mãkɨta kop (quatipuru), kopiba (maritaca), tʃodi (periquito (esp.)). Os mepit são kʷako (jacu), pero (maracanã-guaçu), pãnima (araçari (esp.)), arotabo (jacamin (esp.)).
As mulheres akuntsú estabelecem uma relação de afeto com seus animais de criação (os pássaros são a preferência delas) dentro de um contexto em que não se tem mais crianças e nem perspectivas de tê-las. Tavares (2020: 104), tecendo um diálogo com Fausto (2008) nas interações entre humanos e não humanos, aponta que “as relações de ‘dono’ ou ‘mestre’ que as mulheres akuntsú estabelecem com seus maracanãs estão dentro daquilo que Fausto (2008) caracteriza como ‘maestria’ ”.
Os animais de criação também estão presentes nas atividades de coleta na mata que pode durar o dia inteiro.31 As mulheres carregam grande parte dos seus animais dentro de maricos, parando durante a caminhada para alimentá-los.32 Quando estão dentro de suas malocas, deixam os animais soltos ou dentro de pequenos cestos ou tocos confeccionados/cortados por elas - não é comum ficarem soltos no pátio. Certa vez, Ururu criava um mutum que foi pego ainda filhote, ele, sim, ficava solto. Estava sempre ao lado dela, quando ia à roça, pegar água no igarapé ou quando ia à mata. À noite dormia no alto da árvore ao lado da maloca. Um dia, quando uma das autoras chegou à aldeia, não encontrou mais o mutum. Ao perguntar por ele, Ururu disse, sem se lamentar: ameko ika (a onça o comeu).33 Observamos que não é costume matar e comer seus animais, embora exceções ocorram. Nesses casos, a justificativa deste tipo de morte é direcionada à onça 34 - entre os karitiana “[…] matar e comer esses seres parece pouco comum, e mesmo quando acontece sujeita-se a um certo desconforto” (Vander Velden 2010: 268).
Quando um dos seus mepit/potʃek morre, elas relatam o episódio para todos os visitantes como uma forma de exteriorizar o pesar pela perda. Enterram seus xerimbabos fora da maloca e, sobre o túmulo, colocam uma pedra ou mais pedras grandes. Podem também enterrá-los embaixo do moquém localizado na área externa da maloca, sob as cinzas (aliás, para elas, esse é o local ideal) como foi o caso, por exemplo, do mãkɨta kop (quatipuru), um dos seus potʃek. Quando Ururu faleceu, Pupák matou o único xerimbabo que sobreviveu.35 Ele contou que o enterrou junto com sua mãe dentro da maloca.
Palavras finais
Ao longo do artigo, a partir de olhares interdisciplinares, buscou-se compreender processos históricos, mas também contemporâneos que envolveram e envolvem o grupo akuntsú. Atualmente, as mulheres Pugapia, Aiga e Babawro são a materialização, por meio de suas trajetórias de vida, da violência do Estado e dos impactos das frentes expansionistas, como também são singulares nos ensinamentos e conhecimentos de todo um grupo que segue ressignificando sua existência. O Estado, desde o início do século XX, concedia as terras tradicionais delas à exploração gomífera, sem políticas efetivas para a proteção dos povos que já estavam presentes na região. Foi esse mesmo Estado que, nas décadas de 1970 e 1980, distribuía e transformava as terras habitadas pelos akuntsú e kanoé do Omerê em propriedades privadas, período em que se consolidou a pressão ambiental contra esses povos na “década da destruição” em 1980.
A imposição da ideia de vazio demográfico buscava, ainda nas décadas de 1970 e 1980, instituir o não viver, a não existência, a imposição de um silenciamento no interior da floresta amazônica. É uma história contemporânea, entretanto, não menos impactante do que as histórias que permeiam o início da colonização da América com um percurso temporal de mais de 500 anos. As mulheres akuntsú marcam esforços de resistência (Achinte 2007), de fugas dos ataques não indígenas e dos contatos. Existir já constitui um ato em si de estratégias de resistência.
As mulheres akuntsú constituem-se enquanto fios de uma história antiga, muito anterior à presença não indígena. Trazem nos seus conhecimentos as marcas de uma relação profunda com o território habitado, como vimos ao longo deste trabalho. Não foi sem sentido que, logo no início, procuramos aproximar os conhecimentos que marcaram a primeira marcha das mulheres indígenas “Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito” às experiências de Pugapia, Aiga e Babawro no interior da TI Rio Omerê. Esperamos que as reflexões que construímos neste artigo possibilitem também materializar, a partir de uma experiência específica de um povo de recente contato, a centralidade do território e da territorialidade enquanto elemento fundador dos povos indígenas. Desta forma, não poderíamos deixar de destacar aqui o que a antropóloga e a indigenista Clarisse Jabur (2021) concluiu ao tecer reflexões sobre os desafios de populações indígenas de recente contato:
“En el contexto social, político, económico y epidemiológico actual, el mayor desafío para el PIRC es literalmente sobrevivir. Sus tierras son invadidas, degradadas, deforestadas o quemadas […] Otro gran desafío estructural para garantizar los derechos de los pueblos indígenas en general, pero especialmente de los pueblos de reciente contacto, es superar el desconocimiento que la sociedad brasileña y el propio Estado tienen sobre el tema (Jabur, 2016) […] La política para PIRC está ‘a mitad de camino’ y tiene un largo trecho por recorrer para consolidarse” (Jabur 2021: 435-436).
Logo, enquanto pesquisadoras, procuramos fortalecer as políticas públicas indigenistas para a proteção de povos indígenas de recente contato com um conjunto de práticas para que os territórios demarcados continuem protegidos, buscando mitigar os desafios, tal como Jabur (2021) destacou. Pois, como nos ensinam as mulheres akuntsú, nas suas narrativas entrelaçadas às práticas culturais e sociais, o território é algo central para as suas existências, onde os corpos e espíritos são construídos e fortalecidos, assim como também nos ensinam as mulheres indígenas em marcha em Brasília.
Sobre o futuro das mulheres akuntsú não podemos traçar elucidações. O que sabemos é que as histórias indígenas, ao longo das últimas décadas, têm demonstrado dinamismos e estratégias que seguem suas próprias trajetórias. O continuum desses fios de histórias será tra(n)çado por elas.