Nota da redação
A Etnográfica inicia com este número uma nova proposta editorial. “Found in Translation” é uma secção concebida para dar espaço a mais antropologias, apontando a essa diversidade epistemológica reclamada na construção de um campo ele próprio mais plural e múltiplo e para a qual a diversidade linguística é fator contribuinte imprescindível. A Revista convida anualmente um/a editor/a e publicará uma vez por ano um artigo traduzido, por ele/ela escolhido, de uma “língua [não] dominante ou já acomodada no circuito global das revistas de Ciências Sociais”. A secção dá o seu “pontapé de saída” com o editor convidado Francisco Freire, que nos propõe um texto de Abdellah Hammoudi. No site da revista, no Agora, poderão igualmente encontrar a versão original e integral do texto.
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O texto do antropólogo marroquino Abdellah Hammoudi, que hoje encontramos aqui vertido em português, foi originalmente publicado em árabe, em 2018, como introdução ao livro A distância e a Análise: Para a Formulação de Uma Antropologia Árabe (Al-masāfa wa al-taḥlīl: fī ṣyāghat anthrūbūlūjya ʿarabiyya, Casablanca: Éditions Toubkal). Se a geografia e a história aproximam Portugal e Marrocos, este contexto permanece distante das preocupações e interesses dos seus públicos, sejam eles académicos ou considerados de maneira geral, salvo distintas exceções (na área da antropologia penso sobretudo do trabalho de Maria Cardeira da Silva, bem conhecido dos leitores da Etnográfica). Essa “distância na proximidade” (que Abdellah Hammoudi explora no texto aqui traduzido, ligando-a, no seu caso, à experiência de trabalho de campo) será uma das justificações para a inexistência de qualquer tradução portuguesa do significativo corpus de trabalho deste autor - que vem publicando em árabe, francês e inglês há mais de 40 anos.
Para além deste aspeto eminentemente contextual, associado às relações entre dois países vizinhos, pode pensar-se esta publicação de forma mais ampla. A tradução portuguesa deste texto destaca-se em diversos níveis: suportando o foco em contextos árabes e islâmicos reconhecido no acervo da Etnográfica; face à atualidade premente do tema, uma vez que o autor, para além dos significativos contributos teóricos associados às metodologias antropológicas, procura definir caminhos futuros para uma antropologia que deve posicionar, à escala global, vozes em língua árabe; e, finalmente, avançando formas de fazer (e de escrever) antropologia que afrontam ordenamentos (linguísticos, académicos ou culturais) hegemónicos. O texto aqui traduzido, que o autor fez questão de intitular “Antropologia em língua árabe: para lá do monopólio discursivo”, vai assim ao encontro do que antecipo para a secção Found in translation inaugurada neste número da revista.
A proposta de uma antropologia contra-hegemónica, em língua árabe, é-nos aqui apresentada por um autor que fez praticamente toda a sua carreira académica em Princeton, nos EUA. O que poderia ser entendido por alguns como um gritante paradoxo, é solidamente clarificado pelo autor ao longo do texto. Hammoudi explora as complexidades intrínsecas ao papel do antropólogo no terreno de forma quase exegética, mergulhando na sua biografia até ao final dos anos 1960, momento em que iniciou a sua carreira de investigação nas regiões de Ouarzazate e do Vale do Draa, no sul de Marrocos. É aqui debatida, em profundidade, a possibilidade de distanciamento crítico e a validade metodológica do trabalho de um autor que observa “a sua casa” e que afronta a sua “filiação”, nas palavras do próprio. Refere-nos, também, desde essa primeira experiência de terreno, como a herança colonial em Marrocos (e, assumimos, em múltiplos outros contextos), ao contrário do que muitas vozes então clamavam, deveria ser abertamente considerada por qualquer investigador em ciências sociais e humanidades que trabalhasse aquela região/país. Hammoudi recusa o apagamento do passado colonial e, mais do que isso, afirma que os tipos de conhecimento gerados aquando do (longo) momento colonial, nas mais diversas geografias políticas, devem ser eles próprios alvo de análise e criticamente incorporados nas visões agora desenvolvidas.
Para além de questionar, precocemente, o legado colonial, Hammoudi interroga também o orientalismo saidiano que o deveria superar. Aqui, o autor distancia-se de posicionamentos que, para além de um apagamento da ordem política colonial, sugeriam também a eliminação das formas de produção de conhecimento que lhe estavam associadas, tais como a antropologia. É através desse olhar, que me surge mais analítico do que crítico (porventura associado à sua inicial formação em filosofia), que Hammoudi avança os fundamentos de uma antropologia em língua árabe. Fá-lo, sem negar a importância de todos os aspetos acima descritos e, mais do que isso, integrando-os no seu programa fundacional. Veja-se como Hammoudi, questionando o colonialismo, o reflete (tendo sido ele próprio escolarizado em língua francesa) e, afastando-se de uma visão radical do orientalismo de Said, não deixa de o considerar. E assim, o que poderia tomar-se num conjunto de paradoxos, possivelmente disfuncional, é plenamente acolhido na antropologia ensaiada por Abdellah Hammoudi.
A tradução portuguesa de um texto originalmente pensado para a vastíssima audiência de leitores de árabe não pode descrever-se como a publicação de um texto originário de um universo periférico, mas, isso sim, de o disponibilizar a um outro grupo de leitores possivelmente mais próximo da área cultural e científica que Hammoudi reputa de hegemónica. Ainda assim, creio que a incorporação de um texto originalmente escrito em árabe no fluxo científico global vai ao encontro do argumentário proposto pelo autor, que defende a antropologia como “um terreno de discussão e polémica”.
A ideia de trabalhar este texto em português surgiu em 2018, aquando da sua publicação em Marrocos. Encetei, desde então, contactos com o autor e, mais tarde, com as tradutoras. Foram realizadas múltiplas sessões de trabalho com Abdellah Hammoudi, aprofundadas durante o mês de janeiro de 2024, entre Princeton e o Lumiar. A generosidade das trocas realizadas entre autor e editor afastam-nas do mero trabalho editorial, ou de uma parceria estritamente académica. O texto aqui apresentado é assim de alguma forma distinto da sua versão original em árabe, tal o detalhe e interesse colocado pelo autor nas revisões meticulosamente realizadas.
Ver tradução aqui: https://journals.openedition.org/etnografica/15325