Introdução
Segundo Michel Foucault, o século XIX inaugura um novo período de perseguição às sexualidades periféricas. Estas incorporam as “perversões” e uma nova “especificação dos indivíduos”, possibilitando a criação da categoria de “homossexual”. Ao contrário do que acontecia com a sodomia,1 observada como ato interdito e o autor o seu sujeito jurídico, o “homossexual” do século XIX torna-se uma personagem. “O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie.” (1999 [1976]: 44).
Seguindo a linha de Foucault, Cáceres Feria (2016: 82) afirma que à medida que se diminui o controlo religioso da sexualidade, a regulação científica e política da mesma aumenta, promulgando-se legislação moralista que classifica comportamentos considerados desviantes. Neste sentido, a partir do século XIX mas, sobretudo, durante o século XX, a homossexualidade é criminalizada em vários países europeus (Engelstein 1995; Greenberg 1988; Haeberle 1989), iniciando-se um período de vigilância e punição (Foucault 1999 [1975]) que, em alguns casos, como em Portugal e no Estado espanhol, duraria praticamente até ao final do século XX.
Apesar da existência de literatura relevante acerca da legislação utilizada contra homossexuais de um e outro país (Terrasa Mateu 2016; Cascais 2016), a sua comparação ainda não foi realizada. Além das relações históricas entre Portugal e o Estado espanhol, estes mantêm ditaduras fascistas com complexos ideológicos muito semelhantes (Loff 2010; Tusell 2007). Mais, no que diz respeito à instituição da família, existe um pensamento biologicista idêntico em relação aos papéis de género atribuídos a homens e a mulheres (Cova e Pinto 1997; Roca i Girona 1996). Neste sentido, acredita-se ser relevante compreender se as semelhanças continuam no que diz respeito à criminalização da homossexualidade ou se, por outro lado, existem diferenças na altura de punir os “desvios” à cis-heteronormatividade.
Este artigo, enquadrado numa investigação em curso2 acerca da opressão e resistência de homossexuais e lésbicas nas ditaduras ibéricas do século XX,3 analisa e compara os quadros legais utilizados na perseguição a homossexuais4 em Portugal e no Estado espanhol, nos séculos XIX e XX, conquanto a criminalização direta às sexualidades dissidentes só se verifique durante o segundo. Ao mesmo tempo, mostra semelhanças e diferenças na legislação e, sempre que pertinente, coloca-as em relação com aspetos sociais e ideológicos que unem ou distinguem os dois países, nomeadamente durante as ditaduras, como a ordem de género estabelecida (Connell 1987), a desconsideração da sexualidade das mulheres, as ligações à Igreja católica, a influência da guerra colonial, e o “aligeirar” das normas morais causadas pelo turismo na repressão e criminalização das sexualidades dissidentes. Estas comparações permitem pensar que, apesar da existência de uma ideologia semelhante (a fascista), a forma de fazer não é exatamente igual e contribuem, ao mesmo tempo, para reforçar a necessidade de continuar a resgatar a memória LGBTI, em particular na Península Ibérica.
A punição através de legislação indireta no século XIX
Em Portugal, o Código Penal de 1852 é considerado a primeira legislação contemporânea que se aplica à homossexualidade, conquanto não diretamente (Cascais 2016: 95). As relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo são punidas através de outros crimes, como era o caso do “atentado ao pudor”, enquadrados no Código Penal de 1852, nomeadamente a partir do artigo 390.º, capítulo IV, “Dos crimes contra a honestidade” (Almeida 2010; Cascais 2016; Correia 2016).
“O ultraje público ao pudor, commettido por acção, ou a publicidade resulte do logar, ou de outras circumstancias de que o crime for acompanhado; e posto que não haja offensa individual da honestidade de alguma pessoa, será punido com a prisão de tres dias a um anno, e multa correspondente.” (Cortes Gerais 1855: 116)
Este artigo, além de não explicar em que consiste o ultraje nem referir explicitamente atos entre pessoas do mesmo sexo,5 abre caminho a um crime em que só existem perpetradores e em que a vítima é a sociedade em geral, “lesada no seu sentimento coletivo” (Cascais 2016: 96).6
Por outro lado, o Código criminaliza o travestismo. É no artigo 235.º que fica legislado que será condenado a prisão até seis meses e multa até um mês “aquele que se vestir e andar em trajos propios de diferente sexo, publicamente e com intenção de fazer crêr que lhe pertencem” (Cortes Gerais 1855: 68).
No Estado espanhol, o primeiro Código Penal data de 1822. Inspirado pelo Código Napoleónico (1810), despenaliza a sodomia que, até então, era criminalizada no país.7 O texto, tal como o português, contorna a tipificação de homossexualidade, embora esta seja reprimida através dos delitos de “abusos desonestos” e “força real ou suspeita” (Terrasa Mateu 2016: 107). Acrescenta-se igualmente o art.º 673.º:
“El que cometa cualquier otro ultraje público contra el pudor de una persona, sorprendiéndola ó violentándola, sufrirá una reclusion de cuatro meses á un año, y dos años más de destierro del lugar en que habite la persona ultrajada y diez lenguas en contorno.” (Córtes 1822: 137)
Em 1870, são introduzidas, pela primeira vez, as categorias de delitos sexuais, que aparecerão em toda a legislação posterior até à estabilização da democracia, e tipificadas através das figuras legais de “abusos desonestos”, “corrupção de menores” e “escândalo público” (Mira 2004: 180). Não existem referências ao travestismo.
As relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo não são objeto direto de criminalização em nenhum dos países. No entanto, a aplicação da referida legislação era realizada nesse sentido, com penas mais agravadas no contexto espanhol, ou seja, a homo/lesbofobia já estava presente. Note-se que é a partir deste século, como mostra Foucault (1999 [1976]: 131 e ss.), que as disciplinas do corpo, ou a anátomo-política do corpo humano, e as regulações da população, ou a biopolítica da população, se cruzam, levando à era do biopoder. O agenciamento das duas técnicas de poder amplia as relações de dominação, cujo objetivo “não é mais matar, mas investir sobre a vida”, controlando-a. O sexo passa, a partir deste século, a ser o foco de estratégia política.
A criminalização no século XX
Com a mudança de paradigma em relação à sexualidade durante o século XIX, a forma de controlar a homossexualidade em ambos os países sofreu alterações significativas com a chegada do século XX. Como refere Jeffrey Weeks: “A homossexualidade só se torna um assunto de preocupação social quando a sexualidade como categoria geral se torna de grande importância pública.” (1989 [1981]: 107; tradução minha).
Além disso, as sociedades portuguesa e espanhola, durante todo o século XX, são sociedades com papéis de género muito marcados. Em ambos os países a ordem social funciona através da observação de que a diferença biológica entre os sexos é o que justifica, “naturalmente”, a diferença entre os géneros. Este “sistema sexo/género”8 associa, afirma Sherry Ortner, as mulheres à natureza e os homens à cultura. Mais, “visto que a cultura subjuga e transcende a natureza, se a mulher é parte da natureza, então a cultura considera ‘natural’ subordinar, para não dizer oprimir, a natureza, que é a mulher” (1972: 12; tradução minha). Está, assim, estabelecida a “dominação masculina” (Bourdieu 2002 [1998]: 14). Todas as práticas desafiadoras desta ordem de género (Connell 1987) e dos valores morais a ela associados são observadas como desviantes. Se antes foi possível observar que a legislação não enquadrava diretamente a homossexualidade, agora esta passa a ser alvo de criminalização. Esta alteração está relacionada a aparição do homossexual como espécie e do surgimento do biopoder, que visam o controlo e organização da sociedade a partir do dispositivo da sexualidade. Assim, formam um campo para o avanço das reivindicações burguesas de representar o núcleo legítimo da nação e fornecem uma nova base moral (Chitty 2020: 111).
O contexto português
Em Portugal, com a instauração da I República (1910-1926) surge a Lei de 20 de julho de 1912, sobre mendicidade. Esta lei enquadra a homossexualidade ao estender a noção de vadio a outras personagens, entre elas o homossexual (Bastos 1997: 49).9
“Artigo 3.º Será condenado em prisão correcional dum mês a um ano. I.º Aquele que se entregar à prática de vícios contra a natureza.” (Ministério da Justiça 1912: 2714)
O art.º 9.º refere que a primeira reincidência destes crimes é punível com prisão correcional de seis meses a dois anos, e a segunda é considerada crime de vadiagem. Já a terceira reincidência e seguintes são punidas “[…] com um internato por tempo não inferior ao dobro da duração do internato imediatamente anterior, mas não podendo, em nenhum caso, ser superior a seis anos.” (Ministério da Justiça 1912: 2714).
De igual importância é a referência feita ao género, verificada no art.º 24º, “Emquanto não fôr criado estabelecimento para internato de indivíduos do sexo feminino, os que incorrerem nas disposições dos artigos 1.º, 3.º e 5.º […] serão internados na cadeia de Lisboa destinado a tais indivíduos (Aljube) e ai sujeitos ao regime de trabalho […]” (Ministério da Justiça 1912: 2714; ênfase minha). Esta é a única lei que refere o género da pessoa detida em toda a análise efetuada, sendo a restante omissa. Apesar de Weeks referir que foi a homossexualidade masculina a estar sujeita a regulamentação e que o lesbianismo continuou a ser ignorado pelos códigos criminais (1989 [1981]: 105), a verdade é que, na prática, tanto em Portugal como no Estado espanhol as mulheres eram igualmente detidas apesar de em números muito reduzidos, como mostrou a pesquisa realizada no CDAPJ de Lisboa e no Archivo Histórico y Provincial de Sevilla (AHPS).
A Lei de 1912 leva ainda à criação de uma Casa Correcional de Trabalho, que poderá ser qualquer edifício do Estado, e uma Colónia Agrícola Penal,10 instalada na quinta do Fontelo, em Viseu. A criação destas instituições visa a “reeducação moral, física e profissional dos vadios”, “ ‘impondo-lhes um trabalho, metódico e vigiado que até agora não tem tido’ e ‘dá-se aos juízes de Investigação Criminal competência para julgar os crimes indicados, para que, em casos simples e de fácil averiguação, quando realizadas as prisões em flagrante delito, haja toda a brevidade na aplicação das penas’.” (Câmara dos Deputados inCascais 2016: 101).
Segundo Ana Correia, esta lei vem igualmente criar uma nova forma de processo sumário para a detenção em flagrante delito, introduzindo a prisão preventiva obrigatória dos/as arguidos/as até julgamento (Correia 2016: 34). No entanto, considerando a urgência de dar destino “aos inúmeros presos que, acusados de vadiagem e reincidências em delitos comuns de penas correcionais, se encontram detidos nas prisões civis e militares de Lisboa”; e “Considerando que o seu julgamento, cometido aos juízes de investigação criminal, agrava consideravelmente o serviço normal destes tribunais […]” (Ministério da Justiça e dos Cultos 1919: 861), o julgamento dos/as acusados/as de vadiagem e reincidência em crimes de pena correcional terá lugar perante o diretor da Polícia de Investigação e/ou adjuntos, através do Decreto n.º 5576, de 10 de maio de 1919.
Assim, quando se dá o 28 de Maio de 1926, a punição da homossexualidade está enquadrada na lei, embora o seu julgamento e condenação esteja nas mãos dos órgãos policiais ao invés dos judiciais (Almeida 2010: 70). Em 1929, aprova-se o Código de Processo Penal, que passa a prever, no ponto 2.º do art.º 254.º, que a autoridade judicial possa ordenar a prisão preventiva, sem culpa formada, de arguidos/as que tenham cometido qualquer infração a que corresponde a pena de prisão correcional por mais de seis meses (ou maior), “[…] quando o infractor seja vadio ou se prove que ameaça praticar novos crimes ou consumar os que tenha começado a executar […]” (Ministério da Justiça e dos Cultos 1929a: 485 e 486). Depois, com a remodelação da polícia de investigação criminal (PIC), pelo Decreto n.º 17.640, de 11 de dezembro de 1929, fica estabelecido no art.º 19.º, que “Compete aos directores, sub-directores e adjuntos da polícia de investigação criminal: […] 2.º O julgamento dos crimes previstos na lei de 20 de Julho de 1912, quando cometidos dentro da área dos concelhos de Lisboa, Porto e Coimbra” (Ministério da Justiça e dos Cultos 1929b: 2501).
Depois do início do Estado Novo (1933-1974), mais precisamente em 28 de maio de 1936, com o Decreto-Lei n.º 26.643, é promulgada uma organização “[d]os serviços destinados à execução da pena de prisão e das medidas de segurança, e de tudo o que constitue o seu natural complemento” (Ministério da Justiça 1936: 581). Para o legislador, a pena tem um duplo fim, o de prevenção geral e de intimidação, correção ou eliminação individual:
“O fim de prevenção geral quere dizer que a acção da pena se projecta para lá do criminoso. […] A pena actua preventivamente sôbre os indivíduos de moralidade débil, sôbre aqueles que se encontram na margem do crime. É uma verdade adquirida pelo ensinamento dos séculos, que o temor pode ser um elemento integrador da conduta dos indivíduos, que sem êle seriam levados à prática do crime.” (Ministério da Justiça 1936: 584)
O legislador considera ainda que “há estados altamente prejudiciais para a sociedade, porque nêles se gera a ameaça permanente do crime, que é necessário modificar e melhorar”, e “actos que não constituem ainda um crime, mas são um estado de pre-delinquencia, que é igualmente necessário suprimir” (Ministério da Justiça 1936: 584). Por isso, são criadas medidas de segurança.
Constituem-se ainda, pelo referido decreto, duas grandes classes: as prisões e os estabelecimentos para cumprimento de medidas de segurança. Estes últimos, adequados ao tratamento dos/as que a eles forem sujeitos. Referem-se, por exemplo, os manicómios criminais, estabelecimentos para delinquentes alcoólicos/as e outros/as intoxicados/as mas, também, estabelecimentos:
“Para mendigos, vadios e equiparados, indivíduos permanentemente ociosos, que andam muitas vezes na margem do crime e que facilmente a transpõem, estabeleceram-se colónias ou casas de trabalho. Parece que o processo normal de os reconduzir à vida honesta é dar-lhes o hábito do trabalho.” (Ministério da Justiça 1936: 587)
Segundo António Cascais, inaugura-se o auge da repressão política e social da ditadura e, ao mesmo tempo, confere-se ao poder judicial uma margem de liberdade na interpretação e aplicação de medidas repressivas que se aproxima da arbitrariedade, “[…] abrindo caminho à discricionariedade com que, designadamente, será estabelecida, interpretada e reprimida a perigosidade, quer de opositores políticos, quer de vadios e equiparados” (2016: 106).
Em 1940, o regime salazarista assina a Concordata com a Santa Sé, permitindo relações mais estreitas com a Igreja católica, apesar de se manterem separados (Santos 2012). Em Portugal não parece existir ligação entre o surgimento de leis a aplicar a homossexuais e o estreitar destas relações, ao contrário do que, como veremos, acontece no Estado espanhol, cuja simbiose entre pátria e religião gera uma ideologia unificadora, o nacionalcatolicismo (Casanova 2001: 332).
Já em 1944 há nova reforma do sistema jurídico, a partir da Lei n.º 2000, que estabelece que o julgamento e aplicação de medidas de segurança passa a estar nas mãos do poder judicial, através dos Tribunais de Execução de Penas, criados em abril de 1945.11 Além de as decisões deste tribunal não serem suscetíveis de recurso (salvo quando ordenem a prorrogação das penas ou das medidas de segurança ou a revogação da liberdade condicional), os/as condenados/as submetidos/as a medidas de segurança podem ser reabilitados/as pelo respetivo tribunal, sendo a reabilitação judicial concedida “a quem a tenha merecido pela sua boa conduta.” (Ministério da Justiça 1945a: 301).
Considerando que o julgamento passa para a jurisdição do Tribunal de Execução de Penas, é necessária uma reorganização dos serviços da PJ, que acontece mediante o Decreto-Lei n.º 35.042, de 20 de outubro de 1945.12 E se antes a repressão a homossexuais era realizada pela PSP, com este decreto essa incumbência passa para as mãos da PJ (Cascais 2016: 106). Esta alteração é realizada porque, como afirma o legislador, em certas “formas de atividade criminal” não basta uma ação estática de presença, mas antes um “trabalho de investigação e ativa vigilância por agentes especializados no conhecimento do meio e dos processos criminais” (Ministério da Justiça 1945b: 840).
Assim, a PJ passa a ter como finalidades a investigação de crimes, proceder à instrução preparativa dos respetivos processos e organizar a prevenção da criminalidade, especialmente a criminalidade habitual, como refere o art.º 21.º:
“A vigilância dos delinquentes perigosos, vadios, rufiãis, homo-sexuais, proxenetas, receptadores e usurários e de todos os suspeitos de ocultarem, com a aparência de vida honesta ou de profissão legal, uma vida criminosa.” (Ministério da Justiça 1945b: 843)
Cumpre igualmente a esta força policial propor aos Tribunais de Execução de Penas ou aos Tribunais de Comarca a aplicação de medidas de segurança “aos que se entreguem à prática de vícios contra a natureza”, como refere o ponto 4 do art.º 22.º. Aos/às homossexuais é imposta, numa primeira aplicação de medidas de segurança, a caução de boa conduta ou a liberdade vigiada e, numa segunda, a liberdade vigiada, com caução elevada ao dobro, ou o internamento (Ministério da Justiça 1945b: 843).
Em 1954, o regime faz publicar o Decreto-Lei n.º 39.688, de 5 de junho de 1954, que substitui várias disposições do Código Penal em vigor. Segundo o legislador, era urgente a remodelação do sistema das penas e sua aplicação pois este, tal como o delinquente ou provável delinquente, tinha evoluído à margem do Código Penal (Ministério da Justiça 1954: 647). Através deste decreto-lei são alterados vários artigos do Código Penal, como o 56.º, sobre penas correcionais, que passam a ser a pena de prisão de três dias a dois anos, o desterro, a suspensão temporária dos direitos políticos, multa ou repreensão. O art.º 70.º refere que são medidas de segurança: o internamento em manicómio criminal, o internamento em casa de trabalho ou colónia agrícola, a liberdade vigiada, a causação de boa conduta e a interdição do exercício de profissão. Já o art.º 71 mostra a quem são aplicáveis as medidas de segurança, nomeadamente no ponto 4, “aos que se entreguem habitualmente à prática de vícios contra a natureza” (Ministério da Justiça 1954: 650). As penas a aplicar são iguais ao que consta no Decreto-Lei n.º 35.042.
Note-se que dois anos mais tarde, com o Decreto-Lei n.º 40.550, de 12 de março de 1956, fixam-se as condições de revogação da liberdade condicional e define-se o regime da admissibilidade das medidas provisórias de segurança. No ponto 3 do preâmbulo, o legislador refere que vadios/as e equiparados/as são associais, que se caracterizam por terem aversão ao trabalho honesto ou outro defeito de caráter. Levam uma vida parasitária, e constituem um injustificado peso morto para a sociedade.
“Os vadios e equiparados são quase sempre elementos difíceis: instáveis, com aversão ao trabalho, deficientes de vontade ou até débeis mentais. A sua readaptação, ou pelo menos a sua transformação em inofensivos, exige, por vezes, muito tempo e esforços perseverantes, bem podendo assim acontecer que só uma permanência no respectivo estabelecimento para além do máximo estabelecido torne viável o fim desejado.” (Ministério da Justiça 1956: 322)
A situação dos/as detidos/as altera-se durante o marcelismo, com a revisão do Código Penal que entra em vigor em 1972, com o Decreto-Lei n.º 184/72, de 31 de maio. Volta a vigorar, em relação a todas as medidas de segurança privativas de liberdade (e não só as relativas a vadios/as e equiparados/as), o limite máximo de três anos e proíbe-se a aplicação provisória de medidas de segurança privativas de liberdade, excetuando a medida de internamento em manicómio. Mais: “A prorrogabilidade das penas deixa de ser indefinida: restringe-se a dois períodos sucessivos de três anos e é somente aplicável a tipos determinados de delinquentes - delinquentes habituais e por tendência e delinquentes anormais perigosos” (Ministério da Justiça 1972: 725). É este o quadro jurídico que persegue os/as homossexuais em Portugal até ao final da ditadura e que acaba por ser apenas alterado com a revisão do Código Penal de 1982, no qual a homossexualidade é descriminalizada.
O contexto espanhol
No Estado espanhol, pouco depois do começo do século XX inicia-se da ditadura de Primo de Rivera (1923-1930). O Código Penal, promulgado em 1928, mantém as figuras penais de “abusos desonestos” e “escândalo público”, mas aplica uma distinção significativa que não se verificava em códigos anteriores, i.e., entre delito sexual heterossexual e homossexual, impondo penas diferenciadas consoante o delito cometido. O art.º 616.º, relativo aos delitos de escândalo público, é perentório quanto aos atos cometidos entre pessoas do mesmo sexo:
“El que, habitualmente o con escándalo, cometiera actos contrarios al pudor con personas del mismo sexo, será castigado con multa de 1.000 a 10.000 pesetas e inhabilitación especial para cargos públicos de seis a doce años.” (Ministerio de Gracia y Justicia 1928: 1505)
O legislador inclui ainda “os preceitos que respondem a princípios de defesa social”, através dos artigos 70.º e 71.º, referentes à delinquência habitual e predisposição ao delito, respetivamente, e que visam corrigir os/as culpados/as e reabilitá-los/as. Ao mesmo tempo, introduzem-se as medidas de segurança, que são aplicadas como consequência dos delitos ou faltas ou em complemento da pena. Estas medidas aplicam-se a quem seja considerado perigoso/a social (Ministerio de Gracia y Justicia 1928: 1451).
A implantação da II República (1931-1939) faz revogar o Código Penal primoriverista e estabelece um novo Código, em 1932, vigente até 1944, apesar da instauração da ditadura franquista em 1939. Este não contempla a homossexualidade ou distinções das penas por delitos sexuais, fazendo ressurgir as antigas disposições sobre “abusos desonestos”, “escândalo público” e “corrupção de menores”, que estavam estabelecidas antes da ditadura (Mira 2004). Por isso, não inclui medidas de segurança contra perigosos/as sociais, que se regularão pela Ley de Vagos y Maleantes (LVM), de 4 de agosto de 1933, lei idêntica à Lei da Mendicidade portuguesa de 1912, apesar de esta não referir, explicitamente, os homossexuais (cf.Presidencia del Consejo de Ministros 1933).
Com o início da ditadura franquista, em 1939(-1975), verifica-se que a introdução de legislação direta contra homossexuais não é imediata, pois a preocupação principal nos primeiros anos do regime prende-se com a perseguição a opositores/as políticos/as tidos/as como perigosos/as (Cáceres Feria e Macarro 2016: 16). No entanto, nesse mesmo ano, é introduzida a Ley de Responsabilidades Políticas, que liga a Igreja católica à política, convertendo-se esta numa agência de investigação parapolicial (Casanova 2001: 290)13 e permitindo que padres elaborem relatórios de conduta de pessoas detidas. Esta lei abre um precedente, possibilitando posteriormente que curas sejam chamados a elaborar relatórios sobre a moralidade e antecedentes sociais de pessoas acusadas pela LVM, situação que não se verifica em Portugal. Na prática, enquanto em Portugal se julga apenas o crime, no Estado espanhol julga-se a moralidade do/a indivíduo/a e o crime.14
Em 1941, procede-se à execução da Ley Reorganizadora de la Policía. Nesta reforma, a Policía Gubernativa (PG) é integrada pelo Cuerpo General de Policía (CGP) e pelo Cuerpo General de Policía Armada y de Tráfico (CGPAT). Pelo exposto no art.º 3.º, é da responsabilidade do CGP executar e fazer cumprir as ordens que se ditem pelas autoridades governativas e as obrigações sociais impostas pelas leis e regulamentos em vigor, prevenir todas as infrações, evitar as alterações de ordem pública e político-social, bem como “[…] detener los culpables cuando proceda, incautarse del cuerpo, útiles y efectos de la infracción punible, recoger las pruebas de la misma y redactar los atestados para su curso a las Autoridades, Juzgados y Organismos competentes” (Ministerio de la Gobernación 1941: 1628). Ao contrário do que acontece durante o Estado Novo, as leis reguladoras das forças repressivas não referem a homossexualidade, embora sejam estes os corpos policiais encarregados da sua repressão. Como refere Terrasa Mateu (2016), e confirmado na pesquisa realizada no AHPS, compreende-se que a Guardia Civil (GC) reprimia os homossexuais das zonas rurais, ficando o CGP encarregue das atividades contrárias à moral pública nas cidades.
Com o objetivo de adaptar “la ley penal al Nuevo Estado”, o Código Penal sofre alterações em 1944. Este continua sem criminalizar, diretamente, os/as homossexuais e os atos homossexuais, e mantém as figuras penais do Código Republicano de 1932, ou seja, os delitos de “abusos desonestos”, “escândalo público” e “corrupção de menores”. No art.º 430.º, referente aos “abusos desonestos”, é legislado que aquele/a que abusar desonestamente de pessoa de um ou outro sexo será castigado com pena de prisão menor. Já o art.º 431.º, relativo aos delitos de escândalo público, expõe que: “Incurrirán en las penas de arresto mayor, multa de 1.000 a 5.000 pesetas e inhabilitación especial: 1.º Los que de cualquier modo ofendan al pudor a las buenas costumbres con hechos de grave escándalo o trascendencia” (Ministerio de Justicia 1944: 459). Ao não definir o que são “abusos desonestos” ou “ofensa aos bons costumes”, o legislador permite várias interpretações por parte da polícia, que utilizava estas figuras penais para deter homossexuais.
Dez anos mais tarde, a 15 de julho de 1954, os artigos 2.º e 6.º da LVM sofrem uma reforma, que é justificada pela necessidade de adotar medidas que evitem a difusão de ofensas à moral que coloquem em causa a manutenção dos bons costumes. No entanto, é curioso que esta reforma seja elaborada um ano após a assinatura da Concordata com a Santa Sé (Cáceres Feria e Macarro 2016: 16), o que pode ajudar a compreender o poder que a Igreja tinha no estabelecimento de normas morais e sexuais durante franquismo.
No preâmbulo da referida lei, é mencionado que o que se impõem são medidas de segurança, “[…] con finalidad doblemente preventiva, con propósito de garantia colectiva y con aspiración de corregir a sujetos caídos al más bajo nível moral. No trata esta Ley de castigar, sino de proteger y reformar” (Jefatura del Estado 1954: 4862). Assim, no art.º 2.º, ponto 2, “los homosexuales, rufianes y proxenetas” podem ser declarados/as em estado perigoso e submetidos a medidas de segurança. Ou seja, os/as homossexuais são condenados/as pelo facto de o serem e não apenas por manterem práticas homossexuais (Baidez Aparicio 2007: 34). A legislação da década de 50, em ambos os países, não refere apenas o crime, mas também a moralidade da pessoa que o comete. Quem comete atos homossexuais (por exemplo), é observado/a enquanto associal, caído/a, e está conectado/a com uma vivência fracassada (Ríos 2021) dos padrões morais heteronormativos vigentes.
As medidas de segurança mantêm-se iguais às da Lei de 4 de agosto de 1933, embora a sua aplicação seja alterada pelo art.º 6.º, o que permite que a homossexuais, rufiões, proxenetas, mendigos/as profissionais e quem viva da mendicidade, quem explore menores de idade, deficientes mentais ou listados, sejam aplicadas medidas de segurança, cumpridas de forma sucessiva. Estas são:
“a) Internado en un establecimiento de trabajo o Colonia Agrícola. Los homosexuales sometidos a esta medida de seguridad deberán ser internados en Instituciones especiales y, en todo caso, con absoluta separación de los demás. b) Prohibición de residir en determinado lugar o territorio y obligación de declarar su domicilio. c) Submisión a la vigilancia de los Delegados.” (Jefatura del Estado 1954: 4862)15
Tal como redigido na LVM de 1933, e mantido nas alterações de 1954, a primeira das medidas passava pelo internamento por tempo indeterminado, que não podia exceder os três anos. A duração da segunda era fixada pelos tribunais e, finalmente, a terceira tinha um tempo de duração de um a cinco anos e podia ser substituída por caução de boa conduta.
À altura da implementação da lei, em 1933, o Estado espanhol carecia de estabelecimentos adequados à reabilitação deste tipo de presos/as, nomeadamente colónias agrícolas (Urzáiz 2009: 112). Nesse sentido, e segundo Contreras (2019), uma vez aprovada a lei foram criadas colónias agrícolas, campos de concentração e habilitaram-se prisões:
“se designó la Prisión central de mujeres de Alcalá de Henares como Reformatorio de Vagos y Maleantes; también la Central de Guadalajara; el decreto de 7 de diciembre de 1934, estableció como casa de trabajo la de Alcalá de Henares, y de custodia la del Puerto de Santa María, además, un campo de concentración, con aplicación de trabajos industriales y agrícolas en los terrenos contiguos a la Prisión de Burgos […] en 1952 se crea el Servicio Psiquiátrico penitenciario de Madrid, en la Prisión de Carabanchel […].” (Contreras 2019: 69 e ss.)
Além destes, é referida igualmente a construção da Colónia Agrícola Penitenciária de Tefía, em Fuerteventura, um aeródromo convertido em campo de concentração, inaugurado em 1954 e que está em funcionamento até 1966 (Cáceres Feria e Macarro 2016: 17).
É importante referir que a LVM, ainda em 1933, traz consigo a perigosidade sem delito, nomeadamente no art.º 2.º, ponto 10: “Los que observen conducta reveladora de inclinación al delito […]” (Presidencia del Consejo de Ministros 1933: 874), o que significa que poderiam ser detidos/as mesmo sem terem chegado a consumar o crime. Foram vários os processos consultados no AHPS cuja justificação para a sentença do homossexual se prendia com este ponto. Outro ponto que merece atenção tem que ver com a omissão do género dos/as que podem ser declarados/as como perigosos/as, ao contrário do que acontece com a Lei da Mendicidade portuguesa, o que não significa que as mulheres não estejam incluídas nesta lei. Também elas são detidas a partir dos mesmos pressupostos que os homossexuais masculinos, embora em muito menor número, como revelou a pesquisa realizada no AHPS.
Se, em Portugal, a competência para declarar o estado perigoso e aplicação das respetivas medidas de segurança competia, primeiro, ao poder policial e, só mais tarde, ao poder judicial, através dos Tribunais de Execução de Penas e de Comarca, no Estado espanhol, e ainda durante a II República, essa competência estava já entregue ao poder judicial, algo que se mantém durante a ditadura franquista. No art.º 10.º da LVM é referido que são os juízes de instrução (ou os que tenham sido designados para essa função) quem declara o estado de perigosidade e sentencia as medidas de segurança a indivíduos/as que constem do art.º 2.º, que se mantém com a alteração de 1954. Ao contrário das penas aplicadas pelos Tribunais de Execução de Penas, as penas aplicadas por estes juízes podem sofrer recurso numa audiência provincial ou perante Salas Especiais (Presidencia del Consejo de Ministros 1933: 876).
Tal como refere Guillermo Contreras, um ano antes da reforma que introduz o estado perigoso dos/as homossexuais começam a ser criados os Juzgados Especiales de Vagos y Maleantes, nos quais se julga os delitos cometidos pela LVM e cujos magistrados-juízes são quem declara o estado perigoso do indivíduo e aplica as medidas de segurança (2019: 77).
A LVM está vigente até 1970, quando é substituída pela Ley de Peligrosidad y Rehabilitación Social (LPRS), justificada pelos “cambios acaecidos en las estructuras sociales, la mutación de costumbres que impone el avance tecnológico, su repercusión sobre los valores morales, las modificaciones operadas en las ideas normativas del buen comportamiento social y la aparición de algunos estados de peligrosidad característicos de los países desarrollados […]” (Jefatura del Estado 1970: 12.551).16 Note-se que esta lei endurece a repressão aos/às homossexuais no Estado espanhol já no período do tardofranquismo, não tendo paralelo em Portugal, que não endurece a legislação contra homossexuais desde 1954, podendo existir várias justificações. Coloca-se, por um lado, a hipótese da chegada do marcelismo, e de uma suposta tentativa de liberalização e, por outro, de que “en Portugal, a medida que el Estado Novo va decayendo, las autoridades y el pueblo se ven con el serio problema de las guerras coloniales y se va haciendo menos efectiva la persecución de los homosexuales. En España, por el contrario, desde mediados de los 60 se venía asistiendo a una serie de reformas penitenciarias que tuvieron su correlato en los discursos científicos.” (Molina Artaloytia 2019: 60 e 70).
Ainda no preâmbulo da ley, compreende-se a preocupação do legislador em criar estabelecimentos especializados onde se cumpram as medidas de segurança, ampliando os da anterior legislação com “nuevos de reeducación para quienes realicen actos de homosexualidad […]” (Jefatura del Estado 1970: 12.552). No capítulo primeiro da LPRS, observa-se no art.º 2.º que serão declarados/as em estado perigoso e aplicadas as medidas de segurança correspondentes a quem esteja, de forma provada, incluído/a em algum dos pontos do artigo e se aprecie neles/as uma perigosidade social. Incluídos neste art.º, ponto 3, estão “Los que realicen actos de homosexualidad.”17 (Jefatura del Estado 1970: 12.553). Já no capítulo terceiro, que corresponde à aplicação das medidas de segurança, consta no art.º 6.º, ponto terceiro:
“A los que realicen actos de homosexualidad y a las que habitualmente ejerzan la prostitución se les impondrán, para su cumplimiento sucesivo, las siguientes medidas: a) Internamiento en un establecimiento de reeducación.18 b) Prohibición de residir en el lugar o territorio que se designe o de visitar ciertos lugares o establecimientos públicos, y submisión a la vigilancia de los delegados.” (Jefatura del Estado 1970: 12.553)19
A primeira medida implica o internamento por tempo não inferior a quatro meses nem superior a três anos. Já a proibição de residir em determinado lugar tem um limite máximo de cinco anos, sendo que o/a sujeito/a tem obrigação de declarar o seu domicílio e, finalmente, a submissão à vigilância dos delegados dura entre um e cinco anos, podendo ser substituída por caução de boa conduta.20
Note-se igualmente que foram vários os procuradores que tentaram incluir as mulheres lésbicas no texto da referida lei. No entanto, como refere Nathan Baidez Aparicio: “En esta enmienda podemos observar una mala utilización del término ‘homosexual’, puesto que esta palabra procede del griego homo (‘igual’) y del latín sexus (‘sexo’), y no del latín ‘homo’ (hombre). El término, por tanto, podría incluir a las mujeres, sin embargo, este hecho pone de manifiesto la crítica que se hace del tratamiento a las lesbianas en la ley anterior, que habían sido ignoradas como si el fenómeno no existiera. La enmienda no se aprobó.” (Baidez Aparicio 2007: 48).
A Orden del Ministerio de Justicia, de 1 de junho de 1971 vem responder às preocupações do legislador da LPRS e cria os centros específicos referidos no texto da lei. No ponto 2, número 4, fica determinado que a prisão de Huelva, ou “Centro de Homosexuales de Huelva”, será onde serão cumpridas “las medidas de reeducación impuestas a homosexuales peligrosos varones.” (Ministerio de Justicia 1971b: 8904). Além do Centro de Huelva, para homossexuais “passivos”, outro dos principais centros era o de Badajoz, destinado a homossexuais “ativos” (Arnalte 2003; Cáceres Feria e Macarro 2016).21
Tal como aconteceu em Portugal, para os/as homossexuais do Estado espanhol a ditadura sexual não terminou com o final do regime. Mais, no caso espanhol nem o indulto de 1975 nem a amnistia de 1976 incluíram os “perigosos sociais” (Cáceres Feria e Macarro 2016: 20). A LPRS é reformada apenas em janeiro de 1979, e é aí que se elimina a referência a “homossexuais” como sujeitos/as perigosos/as para a sociedade. No entanto, a descriminalização de escândalo público só acontece em 1988 (Ferrarons 2010; Soriano Gil 2005).
Considerações finais
Tal como foi possível verificar, a homossexualidade foi punida na Península Ibérica durante o século XIX sem estar, no entanto, diretamente criminalizada nos textos legais em vigor. Em ambos os países a criminalização da homossexualidade é estabelecida apenas no século XX, mantendo-se até meados dos anos 80. No entanto, no caso português a perseguição legal existe independentemente do sistema político vigente, enquanto no caso espanhol o que se verifica é a criminalização durante as ditaduras e a punição através de outras disposições legais durante a II República que as separa. É percetível que, se algumas leis são equiparáveis, outras são muito diferentes ou não existe comparação possível. Tal deve-se, muitas das vezes, a aspetos sociais e ideológicos diferentes destes países, nomeadamente nas ditaduras, como a relação mais estreita entre Estado e Igreja durante o franquismo, cuja influência parece ter mais efeitos práticos, e mais visíveis, na moral social, sexual e de género.
Em Portugal e no Estado espanhol verifica-se uma continuidade no que diz respeito à perseguição da homossexualidade desde finais do século XIX, embora esta sofra uma intensificação durante os regimes fascistas. A I República portuguesa instaura a Lei da Mendicidade, em 1912, que enquadra a homossexualidade através “daqueles que praticam actos contra a natureza” e será a única, nos dois países, a fazer referência ao género da pessoa detida. Apesar de a restante legislação ser omissa em termos de género, verifica-se que a polícia aplicava a lei tanto a homens como a mulheres. A pesquisa realizada nos arquivos já referidos, nomeadamente para os períodos ditatoriais, mostra que a perseguição legal a homens era muito mais expressiva do que a que era feita a mulheres. Esta situação apresenta várias justificações. Primeiro, os homens homossexuais frequentavam muito mais o espaço público, utilizando locais específicos (hoje denominados de cruising) para “engate” e práticas sexuais. Já as mulheres mantinham as suas relações mais privadas, no espaço doméstico (Afonso 2019; Juliano e Osborne 2008). Segundo, o lesbianismo era subestimado porque a sexualidade das mulheres estava dependente da dos homens (Almeida 2010: 101), ou seja, existia uma valorização hierárquica dos atos sexuais (Rubin 1993). As mulheres seriam vigiadas através dos controlos sociais informais, como a Igreja ou a família. Este controlo parece ser maior no Estado espanhol “pelo poder da Igreja e sua influência na educação e socialização das mulheres” (cf.Juliano e Osborne 2008).
O julgamento dos crimes presentes na Lei da Mendicidade é, desde 1919, da competência do diretor da PIC e/ou seus adjuntos. Por outro lado, no Estado espanhol, a II República revoga o Código Penal primorriverista (que distinguia entre delitos hetero e homossexuais), não contemplando diretamente a homossexualidade. Instaura a LVM, em 1933, sem referir os homossexuais.
No entanto, com a vitória franquista na Guerra Civil, a LVM sofre alterações em 1954, e passa a incluir os/as homossexuais. Estes são condenados apenas por sê-lo e estão sujeitos a medidas de segurança, que são aplicadas sucessivamente (o que não acontece em Portugal). A competência de julgamento deste tipo de delitos estava nas mãos do poder judicial e não na polícia (algo que em Portugal acontece apenas em 1944, através dos Tribunais de Execução de Penas e de Comarca) e eram os juízes quem declarava o estado de perigosidade e decretava as medidas de segurança, enquanto em Portugal era a PJ que propunha aos tribunais a aplicação das medidas de segurança. Houve ainda a preocupação de criar Juzgados Especiales para julgar os crimes da LVM, o que não sucede em Portugal. Por outro lado, no mesmo ano em que a homossexualidade é adicionada à LVM, o Estado Novo faz substituir várias disposições do Código Penal, nomeadamente os artigos 70.º e 71.º, que se referem às medidas de segurança e a quem estas são aplicadas.
A repressão em Portugal não sofre alterações legais até 1972, quando existe um aligeirar dos tempos das medidas de segurança. Pelo contrário, o Estado franquista endurece a repressão em 1970, com a instauração da LPRS, para aqueles que realizem “actos de homosexualidad”. As medidas de segurança são as mesmas da LVM, e são cumpridas sucessivamente. Mais, são ainda criados centros específicos para homens homossexuais, um em Huelva, para homossexuais “passivos”, outra em Badajoz, para homossexuais “ativos”, o que nunca aconteceu no salazarismo. Como referido, coloca-se a hipótese de tal situação estar relacionada, no caso português, com a existência da guerra colonial portuguesa, que merece mais atenção do que o aumento da perseguição a homossexuais ou com a chegada do marcelismo e de este ser um período de relativa liberalização. Já no caso espanhol, o aumento da repressão acontece porque, entre outras razões, o aumento do turismo e a modernização económica levam a um aligeirar dos costumes e das normas morais que o franquismo quer repor para recuperar novamente o controlo da população.
A morte de Franco e a revolução portuguesa não permitiram uma liberdade imediata aos/às homossexuais. Se em Portugal há poucas manifestações públicas pela descriminalização da homossexualidade (Afonso 2019: 207; Santos 2002: 596) e esta acontece em 1982 sem suscitar qualquer controvérsia pública (Cascais 2016: 110), o mesmo não se pode dizer do Estado espanhol, que já tinha um embrião barcelonês (clandestino) do que seria o movimento LGBTI na Transición (Llamas e Vila 1997) que, após 1975, se organiza rapidamente para lutar pela derrogação da LPRS, o que só acontece em 1979.
As políticas de criminalização da homossexualidade são necessárias à manutenção e domínio da masculinidade hegemónica (Connell 1987; Almeida 2000 [1995]), obrigatoriamente heterossexual, e promovem uma determinada forma de sexualidade ligada à família - patriarcal, heterossexual e monogâmica -, pretendida por ambos os países analisados neste artigo. Note-se, no entanto, que a criminalização da homossexualidade não põe fim às práticas homossexuais nem às pessoas que as praticam. Durante estes períodos em que a repressão era a norma, estas pessoas encontraram formas de resistir, fossem elas mais “formais” ou quotidianas (Scott 1985). Este artigo teve apenas em conta a legislação, mas isso não é suficiente para conhecer as diferenças e semelhanças entre os dois países em geral e os regimes fascistas em particular no que toca à homossexualidade. Uma coisa são as leis, outra é como são aplicadas. Mas isso seria outro trabalho.