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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.28 no.2 Lisboa ago. 2024  Epub 01-Set-2024

https://doi.org/10.4000/11xjk 

Recensão

Fazer antropologia na boca do urso: Nastassja Martin, Acreditar nas Feras. Lisboa, Alfaguara, 2023, 130 pp., ISBN: 9789726084433

Diogo Henrique Novo Rocha1 
http://orcid.org/0009-0002-8743-4129

1 Universidade de Coimbra, Departamento de Ciências da Vida, Portugal, diogohnovorocha@gmail.com


Fazer antropologia na boca do urso, sem descrições densas ou contextos teóricos, apenas numa dialética simples entre tensões do mundo ocidental “capitalista” e as cosmologias animistas do Norte. Uma pretensão que leva a antropóloga Nastassja Martin a publicar o seu mais recente livro, Acreditar nas Feras. De estilo autobiográfico, e afastando-se do tradicional ensaio antropológico, o livro transporta o leitor para as florestas da Sibéria na Rússia, onde Nastassja desenvolve trabalho etnográfico com os Evenos. Um livro em estilo claramente literário, sobre os diversos mundos do modo de viver eveno, onde através da reflexão antropológica somos levados a viajar desde o momento em que é atacada por um urso, até ao processo de separação dos cadernos de campo e início da escrita.

A narrativa centra-se na pesquisa dos limites, nas relações entre animais e humanos e na forma como atravessam mundos, onde a realidade e o sonho não apresentam uma barreira formal. Um estudo da tensão entre a natureza e a cultura, através do qual Nastassja se distancia do papel de antropóloga que estuda com os Evenos, passando a ser ela o seu objeto de estudo. A partir do ataque do urso, que a transforma em miedka (“uma criatura entre mundos, habitada pelo espírito animal”), acompanhamos uma luta pessoal de restabelecimento físico, onde o olhar antropológico nunca é esquecido. Refletindo sobre o papel e os limites da antropologia e sobre os processos da biomedicina, sempre com o amparo subtil mas indispensável da etnografia, como se um olhar eveno e animista acompanhasse o leitor ao longo de toda a obra.

O livro pode ser visto como uma compilação pessoal, uma espécie de diário antropológico do seu trabalho de doutoramento, orientado por Philippe Descola, que se encontra omnipresente ao longo do discorrer reflexivo da etnografia. A forma como o conhecimento nativo é colocado em plena igualdade com o conhecimento científico ocidental, e a forma como o animismo é interpretado remetem de forma clara para Descola, nomeadamente para o seu livro La Nature Domestique (1986). Ainda assim, a autora não se deixa ficar pelas epistemologias do mestre, desloca-se para uma nova forma de ver o conhecimento, deixando a ontologia estrutural de Descola (Jorge 2017) para entrar num mundo ecológico, do qual traz para debate os diferentes discursos e ideologias sobre a biodiversidade (“naturezas em conflito”), com tensões entre os indivíduos humanos e não humanos (Martins 2018). Em breves parágrafos, logo no início da obra, as descrições de destruição das florestas evenas dão o corpo substancial de toda a discussão, que se espalha de forma ténue pelo texto.

Quando é atacada por um urso numa destas florestas, sente que se perdeu do seu eu humano, entrando num hibridismo entre o mundo humano e animal (Haraway 2021), começando a partilhar tudo com o seu atacante. Tendo sofrido graves sequelas, Nastassja entra no mundo da biomedicina, numa guerra-fria, que ocorre no seu antigo corpo, onde narrativas médicas e processos cirúrgicos se debatem e materializam em formas de estar.

Aludo acima ao “no seu antigo corpo”, pois no momento em que entrou no hospital russo, o corpo ficou entregue a outros, a decisão da ação passa a ser técnica e a antropóloga tem pouco a dizer. Um osso zigomático, feito e refeito por russos e franceses, conotado de políticas que se elevam e transformam em processos de cura, e o seu corpo passa a objeto entre mundos, onde ela, fora dessa objetificação, fica completamente esquecida. Com um olhar frio e reflexivo, a autora demonstra as semelhanças e diferenças, entre estar nua numa cama de hospital de província russa, e um quarto tecnológico do hospital central francês.

Nastassja prova, em primeira mão, a utilidade do olhar holístico da antropologia com as suas metodologias qualitativas, favorecendo novas formas concetuais de pensar a relação entre doença e saúde, permitindo uma análise das questões sociais, das visões individuais, locais e globais. Novas formas de conhecer outras narrativas de pensamento, metodologias modernas utlizadas pela antropologia médica na saúde global (Varanda e Théophile 2019), que abandonam o olhar puramente etiológico para ir mais além, no caso transformam-se em visões próprias, aplicadas no mundo desenvolvido e centradas na sua perda de corpo (Kleinman, Das e Lock 1977).

O livro combina a reflexividade com descrições de angústias pessoais de uma forma quase poética, para levar o leitor a compreender este modo de fazer antropologia e o seu papel no panorama social contemporâneo, levantando uma série de questões onde a tensão da objetividade científica se depara com o olhar frio e humano de uma mulher. As respostas apresentadas são poucas, mas sabemos que Nastassja se qualifica como “tradutora”, fazendo uma antropologia da tradução, uma forma de deslindar os mundos, de conhecer o distante, através do claro método comparativo presente em todos os parágrafos. A antropologia apresenta-se aqui como uma dialética hermenêutica entre o conhecimento produzido junto dos Evenos, a forma como esse conhecimento será absorvido pelos atores sociais, e a perceção de que os objetos na sua mais íntima natureza nunca estão desligados do antropólogo e das suas convicções (Almeida 2004). Desta forma, para Nastassja fazer antropologia é muito mais do que produzir ciência, é viver entre tensões, entender cosmologias, é um ser ou não ser que se aproxima da filosofia e da literatura, que faz questão de convocar ao longo da obra.

Um livro tanto para antropólogos como para o leitor em geral, onde as tensões entre mundos, entre a cientista e a mulher, entre a objetividade e o sonho, são a base de uma permanente discussão. Um livro que demonstra ao leitor o que é viver a antropologia, como funciona o processo de traduzir cosmologias. Trazendo para o debate questões políticas e éticas, que não se desligam do papel da antropologia na modernidade, e na sua relação histórica com o “outro”.

Um novo manual até agora inexistente, dos sentimentos e da inquietude, na produção de conhecimento.

Referências

ALMEIDA, Miguel Vale de, 2004, Outros Destinos: Ensaios de Antropologia e Cidadania. Porto: Campo das Letras. [ Links ]

DESCOLA, Philippe, 1986, La nature domestique: symbolisme et praxis dans l’ecologie des Achuar. Paris: Maison des Sciences de l’Homme. [ Links ]

HARAWAY, Donna, 2021, O Manifesto das Espécies Companheiras: Cachorros, Pessoas e Alteridade Significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. [ Links ]

JORGE, Vitor Oliveira, 2017, “Philippe Descola (Colégio de França) e Tim Ingold (Universidade de Aberdeen): dois vultos maiores da antropologia contemporânea”, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 57. Disponível em: Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/tae/article/view/10048 (última consulta em junho de 2024). [ Links ]

KLEINMAN, Arthur, Venna DAS, e Margaret LOCK, 1977, Social Suffering. Berkeley, CA: University of California Press, 67-91. [ Links ]

MARTINS, Humberto, 2018, “Humanos e não-humanos em ambientes partilhados: notas introdutórias a uma antropologia das áreas protegidas”, Análise Social, 53 (226): 28-56. Disponível em: Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/analisesocial/article/view/22347 (última consulta em junho de 2024). [ Links ]

VARANDA, Jorge, e Josenando THÉOPHILE, 2019, “Putting anthropology into global health: a century of anti-human African trypanosomiasis campaigns in Angola”, Anthropology in Action: Journal for Applied Anthropology in Policy and Practice, 26 (1): 31-41. Disponível em: Disponível em: https://www.berghahnjournals.com/view/journals/aia/26/1/aia260104.xml (última consulta em junho de 2024). [ Links ]

Recebido: 17 de Dezembro de 2023; Revisado: 24 de Maio de 2024; Aceito: 29 de Maio de 2024

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