SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número2Por trás das crianças, dos objetos e dos cuises: agência e pesquisa em um bairro periurbano de Córdoba (Argentina)Viver numa casa do Siza: a experiência da arquitetura de autor na Malagueira, Évora índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561versão On-line ISSN 2182-2891

Etnográfica vol.29 no.2 Lisboa ago. 2025  Epub 15-Set-2025

https://doi.org/10.4000/13w7g 

Artigo Original

A propósito da construção de conhecimentos sobre o ecossistema amazônico a partir de uma instituição científica brasileira

The construction of knowledge about the Amazon ecosystem by a Brazilian scientific institution

Aline Moreira Magalhães1  , conceptualização, investigação, metodologia, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-4893-0608

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, aline.moreira1871@gmail.com


Resumo

A produção de um saber moderno acerca da flora e fauna amazônicas incorpora, desde as expedições naturalistas do século XVIII, conhecedores e conhecedoras por vivência daquele ecossistema. No Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), localizado em Manaus (Amazonas, Brasil) e criado em 1952, a produção desses conhecimentos ocorre predominantemente por meio da relação entre - os assim denominados - mateiros, pescadores e demais “técnicos”; pesquisadores brasileiros e pesquisadores estrangeiros. O artigo propõe que as análises sobre a construção desses conhecimentos devem incorporar uma sociologia dessa tríade científica, à luz do debate teórico e político acerca dos conhecimentos tradicionais.

Palavras-chave: INPA; ciência; Amazônia; conhecimentos tradicionais

Abstract

Since expeditions by naturalists in the 18th century, the production of modern knowledge about the flora and fauna of the Amazon has included people who know the ecosystem from experience. At the National Institute for Amazon Research (INPA), located in Manaus (Amazonia, Brazil) and created in 1952, the production of this knowledge predominantly takes place through relationships between so-called mateiros[people of the forest], fishermen, and other “technicians”; as well as Brazilian and foreign researchers. This article proposes that analyses of the construction of this knowledge should incorporate a sociology of this scientific triad, in the light of the theoretical and political debate on traditional knowledge.

Keywords: INPA; science; Amazonia; traditional knowledge

Introdução

“Nós somos os mateiros deles” - com essa frase, uma pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (doravante INPA) sumarizava uma reflexão crítica sobre as diversas camadas que compõem a atual divisão do trabalho científico, especialmente nas ciências e engenharias biológicas, no Brasil e no mundo. Ela referia-se às relações hierárquicas que acabam caracterizando as colaborações entre grupos de pesquisa internacionais em estudos realizados no INPA sobre o bioma amazônico.

Os mateiros são especialistas em fazer campo, o que implica que, a partir de seus conhecimentos sobre a floresta tropical, criem formas de identificar, localizar e capturar elementos e seres vivos da flora e fauna presentes nesse ambiente. Os mateiros e pescadores mais reconhecidos e prestigiados possuem perfis marcados por ampla experiência de vida na floresta amazônica, “no mato”, adquirida ao longo de suas trajetórias sociais. Por isso, são exímios e imprescindíveis colaboradores nas pesquisas sobre a biodiversidade única desse bioma. São conhecedores das matas por suas trajetórias pessoais e/ou por estilo de vida, muitas vezes como residentes de cidades amazônicas. Há, então, os mateiros e pescadores, pesquisadores do INPA e pesquisadores de outros países interessados na temática “Amazônia”, dotados de distintos capitais sociais/acadêmicos que tornam as colaborações desiguais nesse campo.

Mediante essa crítica, a pesquisadora apontava que a mesma hierarquia e divisão do trabalho desiguais e injustas, que caracterizam as relações entre pesquisadores titulares do INPA (os que a ciência chama de cientistas) e os especialistas das matas (denominados parataxônomos) destituídos da titulação da educação formal, permeiam também as relações entre cientistas do INPA e cientistas estrangeiros interessados no mesmo objeto de estudo - a Amazônia -, em sua maioria europeus e norte-americanos. Diversos outros pesquisadores também ponderavam os problemas e limites, além das vantagens, da colaboração internacional nas pesquisas sobre a floresta amazônica.

No que tange ao primeiro ponto, a hierarquia se estabelece por meio do abismo de prestígio social conferido a cientistas e mateiros, em termos de remuneração, assinatura do conhecimento produzido - são majoritariamente cientistas que podem assinar como autores de artigos científicos -, no direcionamento das agendas de pesquisa e na coordenação de metodologias (ainda que haja alguma abertura às criações e sugestões dos mateiros), dentre outras camadas cotidianas de distinção no fazer científico.

Em relação às hierarquias entre cientistas do sul global e cientistas do norte global - conforme as terminologias mais utilizadas atualmente -, as assimetrias se colocam também na divisão do trabalho. A expressão “nós somos os mateiros deles” refere-se a um tipo de atividade que, dentro de um amplo conjunto de outras tarefas, acaba em grande medida sob a responsabilidade de pesquisadores do INPA, muitas das quais relacionadas ao levantamento de biodiversidade, o que se classifica como ciência básica (Weigel 2001). Assim, não apenas são as agências de financiamento, universidades e pesquisadores estrangeiros que pautam as agendas de pesquisa ao se colocarem como “colaboradores”, mas também o compartilhamento dos frutos do conhecimento produzido por vários pesquisadores distribuídos em diferentes países também ocorre de forma desigual.

Embora faltem levantamentos estatísticos mais consolidados sobre o tema, tanto as narrativas locais quanto as abordagens textuais de pesquisadores apontam uma desigualdade em termos de publicações - seja em quantidade, seja em prestígio acadêmico - apesar de as atividades serem desenvolvidas conjuntamente para elaboração de resultados ou produtos científicos. Isso implica que, embora pesquisadores do INPA também publiquem em revistas internacionais e sejam prestigiados, tanto nacional quanto internacionalmente, os termos dessas “colaborações” permanecem significativamente desiguais (Almeida-Val e Higuchi 1994; Gama 2004).

O objetivo deste texto é colocar alguns endereçamentos possíveis a esses dilemas ressaltados em entrevistas realizadas com pesquisadores do INPA.1 O que se segue consiste na análise e descrição das dinâmicas e relações sociopolíticas desse contexto. Ainda assim, vislumbra-se como horizontes: de que os saberes e conhecimentos tradicionais possam vir a ser valorizados e tratados nos seus próprios termos, superada a necessidade conjuntural (ou estrutural) em traduzi-los para formatos padronizados pelo letramento científico como forma de legitimar suas importâncias; em segundo lugar, que a reflexão sobre o devido lugar dos conhecimentos tradicionais na ciência produzida na e sobre a Amazônia requer uma reformulação estrutural dos critérios e métricas importados/impostos de alhures, processo em curso, ainda que timidamente, dentre pesquisadores do INPA.

Mas como a realidade geralmente não é o que desejam antropólogas e antropólogos, comecemos pelos eventos históricos e relações sociais de um campo científico na Amazônia.

Universalismo científico versus soberania nacional?

A criação do INPA foi precedida por um embate cujos motes centrais permeiam, até os dias atuais, o cotidiano da instituição, em torno do que seria uma instituição voltada à pesquisa na Amazônia a ser instalada em Manaus. Prévio ao decreto de fundação do INPA, nos anos do pós-guerra (a partir de 1946), a UNESCO capitaneava uma proposta de criação de um Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (IIHA) (Maio e Sá 2000; Maio 2001, 2005; Petitjean e Domingues 2000). Outrora, como em ares contemporâneos similares, à destruição da guerra em solo europeu - e, sobretudo, da manifestação de seus horrores humanos -, elegeu-se posteriormente a Amazônia como possível palco de uma espécie de redenção ou concertação nas relações entre os países, e de uma nova arena de relações geopolíticas.

Conforme a literatura sobre o tema, o IIHA, embora com sede nacional em Manaus, arregimentaria todos os países com territórios localizados na floresta tropical amazônica, seria baseado em princípios internacionalistas, voltado a uma ciência da “ecologia humana”, dedicado a pesquisas em áreas como botânica, zoologia, química, geologia, meteorologia, antropologia e medicina. O projeto também mencionava o estudo sobre os conhecimentos etnobotânicos dos povos indígenas, além de fixar princípios museológicos de permanência de objetos e amostras coletadas nos países de origem. Nesse sentido, a menção a estudos antropológicos e à antropologia, ainda que a disciplina estivesse localizada na seção de Ciências Naturais da Unesco, conformava alguns dos eixos centrais da proposta, assim como os principais diálogos acadêmicos dos atores sociais que estavam à frente das articulações em torno do projeto. Para o organismo, “tratava-se de empreender um estudo sobre a maneira de estabelecer um modo de vida aceitável em regiões de florestas tropicais”, com base na “preocupação com a preservação da natureza e dos índios da Amazônia” (Petitjean e Domingues 2000: 6-7).

As negociações em torno da criação do IIHA foram permeadas pelas tensões e contradições que seu projeto engendrava. Embora contasse com prestigiados defensores, a proposta enfrentava uma oscilação de interesses nacionais em seu investimento, as disputas entre os países amazônicos, além de um difuso, porém perene antagonismo proveniente do lado periférico - o próprio projeto teorizava sobre a relação centro/periferia - que apontava para um fundo imperialista coberto por um véu de interesse científico. Apesar da confiança no poder da ciência por parte dos porta-vozes da proposta - ou da crença de que a ciência paira acima das relações intersocietárias -, como seria possível amalgamar interesses e perspectivas científicas de diferentes países, continentes e forças políticas na ordem hierárquica mundial, em um instituto com uma sede nacionalizada, e cujas linhas gerais e agendas científicas se desenhavam a partir de um organismo centralizado por um país integrado à OTAN - a França?2 Assim, apesar de seus contornos delimitados em torno de uma ciência internacionalista, e, nas intenções, baseada em princípios cosmopolitas, os esforços de negociação não resistiram ao esvaziamento gradual dos Estados Unidos e da Inglaterra à proposta nem ao veto brasileiro para a instalação do IIHA. Após dois anos do encerramento das tentativas, em 1952, foi criado o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

O termo “Nacional” se coadunava ao desconforto quanto à cobiça internacional atribuída à proposta do IIHA,3 e “Pesquisas” operava como um fundo de distinção dos propósitos do Instituto Agronômico Norte (Maio 2001), voltado mais à ciência aplicada. Em contrapartida, vislumbrava-se para o nascente instituto o fomento de linhas científicas heterogêneas e diversas, ressaltando também a importância da ciência pura, que nesses campos do conhecimento se confunde ao que se chama de ciência básica. O decreto de sua fundação, assinado durante o governo de Getúlio Vargas em 1952, define, de maneira bastante geral, suas finalidades como: “o estudo científico do meio físico e das condições de vida da região amazônica, tendo em vista o bem-estar humano e os reclamos da cultura, da economia e da segurança nacional”.

Nem o “Nacional” do nome nem o fato de constituir uma instituição exclusivamente brasileira sublimaram a existência dos mesmos dilemas presentes quando da discussão sobre o IIHA, do cotidiano do INPA e de suas atividades científicas. Assim que, tanto seus pesquisadores, enquanto cientistas, seguem visões universalistas do que é ciência e dos diálogos científicos nas suas respectivas áreas, como a Amazônia não deixou de ser, em virtude do chamariz de recursos naturais que representa no cenário mundial, objeto de disputas econômicas e políticas, de múltiplas ordens e matizes. Então, se por um lado o INPA não reteve a proposta mais densamente alinhavada do IIHA, voltada à interlocução entre diferentes áreas do conhecimento, alguns dos elementos centrais do que esperavam cientistas empenhados na implementação do IIHA sempre estiveram presentes nos estudos empreendidos pela instituição. Dois aspectos principais que atravessaram o trâmite e conteúdo da proposta do IIHA manifestam-se ao longo da história do INPA, ainda que sob linguagens distintas: a cooperação internacional e a relação sistemática estabelecida com setores sociais rurais amazônicos.

Uma ciência amazônica

Mas o que se faz efetivamente no INPA? Pode-se dividir as pesquisas realizadas em três grandes blocos, ainda que possuam subdivisões e não sejam excludentes entre si, ou seja, um mesmo grupo de pesquisa e de pesquisadores por vezes desenvolve, concomitantemente, atividades referentes aos três blocos.

O primeiro consiste no levantamento de biodiversidade, que inclui expedições para inventariar e registrar novas espécies, analisar processos e interações entre espécies e o meio (considerando sistemas distintos, como rios, várzeas, igarapés e mata, por exemplo), estudar doenças tropicais, e desenvolver biotecnologias extraídas principalmente da flora amazônica. Os chamados inventários florestais ou taxonômicos são descritos como um campo infindo na Amazônia, em virtude da magnitude ainda desconhecida de sua biodiversidade.

Um segundo bloco se dedica à promoção da sustentabilidade das comunidades amazônicas, cujas existências são consideradas fundamentais para a preservação dos recursos naturais. Essas comunidades são vistas como garantidoras não apenas da preservação da floresta, como também da sua diversidade genética (Clement 1999). Nesse campo, são desenvolvidas técnicas de cultivo junto às comunidades rurais (indígenas, ribeirinhas, ou mesmo rururbanas). Essas práticas incluem estudos para adaptação de espécies na floresta tropical, e sobre alternância de camadas de frutos e vegetais em uma mesma área (policultivo), como estratégia para garantir colheitas mais fartas a despeito do ambiente relativamente pouco fértil da Amazônia - em virtude do alto índice pluviométrico que impede o acúmulo de nutrientes fertilizantes no solo.

O terceiro bloco compreende pesquisas sobre o clima, investigando tanto os efeitos da floresta amazônica nas condições meteorológicas locais, regionais e globais quanto o impacto das mudanças climáticas mundiais na floresta. Este campo vem ganhando crescente relevância política, científica e financeira nas últimas décadas.

Apesar do pouco espaço conferido às Ciências Humanas na história do instituto, pesquisadoras vinculadas a esse campo têm contribuído em áreas como educação ambiental, estudos sobre línguas indígenas, e nos debates políticos aqui abordados.

Nesse sentido, pode-se afirmar que, em linhas gerais, a Amazônia (ou a floresta amazônica) nunca foi e não é pensada, tanto no desenvolvimento de atividades quanto nos marcos institucionais do instituto, em um sentido positivista. Apesar do ambiente político de gradual valorização da floresta amazônica para a manutenção climática do planeta - ou para a contenção do aquecimento global -, por muito tempo moldado por um viés conservacionista que fez parte da formação do quadro de pesquisadores atuais desde a década de 1970, a visão predominante entre biólogos, ecólogos, engenheiros agrônomos e florestais é de que a Amazônia também é a população que dela e nela vive, assim como depende e se faz permanentemente dela.

Assim como no decreto fundacional, uma ciência voltada à sociedade, especialmente à que ocupa o território amazônico, sempre esteve no horizonte das gestões e de pesquisadores da instituição. Tanto é assim que, em seus 70 anos de existência, pesquisadores do INPA participaram de estudos sobre os impactos de grandes obras arregimentadas em esferas estatais, localizadas na Amazônia, sobretudo as de jurisdição estadual do Amazonas, como é o caso de algumas hidrelétricas e de estradas cujas obras e instalações se intensificaram a partir da década de 1970, atuando como mediadores entre instâncias governamentais do Estado brasileiro e as diversas populações impactadas; exerceram também papel fundamental em projetos pioneiros de reservas florestais, como o Mamirauá, um dos primeiros com presença humana que questionava a perspectiva conservacionista predominante até então, assim como no processo de consulta para a criação de diversas unidades de conservação do estado do Amazonas; e diversos pesquisadores, para não dizer a maioria, tanto desenvolvem projetos de extensão paralelos às suas respectivas investigações mais circunscritas a análises bioquímicas e laboratoriais, voltados às comunidades colaboradoras, como têm projetos voltados à otimização da produção agrícola de comunidades rurais como atividade principal.4

Então, lidar, incorporar e contar com a colaboração e a expertise de comunidades rurais e de agentes comunitários é parte intrínseca do cotidiano de todos os pesquisadores do INPA, sejam eles permanentes ou temporários - como alunos de pós-graduação brasileiros e estrangeiros, ou bolsistas de outras categorias. Não apenas os moradores de comunidades ribeirinhas e indígenas são atores cruciais de interlocução, mas determinados perfis sociais com experiências e trajetórias semelhantes são selecionados para auxiliar nos trabalhos de campo, de coleta de amostras de espécies da flora e fauna. Trata-se de pessoas que, embora não necessariamente vivam nos territórios em que são realizadas as pesquisas - muitas são residentes de Manaus, porém pertencentes a uma segunda ou terceira geração de migrantes de contextos rurais -, possuem habilidades cruciais para a pesquisa. Sem elas, nem as incursões pela mata nem as coletas de amostras de espécies seriam realizadas.

Atividades como localizar e identificar espécies de árvores pela textura, cor dos cascos, seiva, cheiro e localização de frutos e folhas no chão; determinar quais são as mais propícias para serem escaladas, o que é feito utilizando uma faixa colocada entre os pés para o corpo; armar redes de pesca com diferentes tecnologias e propósitos; identificar com precisão onde determinados peixes se encontram, com base no tipo de vegetação aquática, pequenos crustáceos e insetos ao redor, além de reconhecê-los por características visuais como tamanho, cor, formato do corpo, da cabeça, nadadeira, cauda ou mesmo pelos sons emitidos; elaborar estratégias de captura de animais para identificação da incidência de espécies em uma determinada área; identificar espécies de animais pelo formato de suas pegadas - após colocar aparatos com areia em locais onde transitam; localizar uma malhadeira (um tipo de rede de pesca) no breu da noite, observando a relação entre o contorno da água do rio e o perfil da mata ou da encosta de terra firme; manejar barcos; guiar pesquisadores experientes e novatos embrenhados em uma mata tão fechada como é a tropical amazônica, além de administrar medos de estudantes inexperientes, pequenos e grandes acidentes ocorridos durante o percurso, conhecendo, inclusive, remédios imediatos extraídos da mata para serem aplicados (Nakazono 2010; Dantas 2012; INPA 2022; Costa 2022).5

Sem essas atividades fundamentais, realizadas por exímios conhecedores da floresta e/ou de como nela se locomover, o trabalho de campo de pesquisadores dedicados ao estudo da biodiversidade amazônica seria inviável. Nem mesmo os pesquisadores mais experientes são capazes de exercer as funções desempenhadas por mateiros e pescadores. A importância de seus trabalhos evidenciou, em períodos históricos anteriores, as assimetrias coloniais do campo científico: pairava a percepção de que o interesse e a valorização da colaboração com o INPA por parte de pesquisadores e instituições estrangeiras estavam mais vinculados às funções dos mateiros do que à colaboração científica com os pesquisadores locais.6 Isso quer dizer que grande parte, senão a totalidade do conhecimento produzido pela ciência moderna sobre a Amazônia dependeu - e ainda depende - desses atores sociais e de suas habilidades.

Dois exemplos ilustram a dimensão dessas contribuições, materializada em números registrados no banco de dados do Herbário do INPA:

“De acordo com o banco de dados do Herbário INPA, Paulo Assunção tem 1248 coletas registradas como coletor principal, sendo a mais antiga no mesmo ano em que foi admitido no PDBFF [Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais], em 1986. Como coletor adicional, são 3793 registros. Também ajudou a identificar 1042 coletas registradas no herbário. Destas, 212 são espécies de Lecythidaceae, família na qual se especializou. Das 5041 coletas que participou, 80 são espécies de tipos nomenclaturais. A grande maioria das coletas são do estado do Amazonas, mas também coletou no Acre, Amapá, Pará e Rondônia.” [Mariana Mesquita, INPA 2022]

Outro mateiro, José Ramos,

“possui 2017 coletas como ‘coletor principal’, 32.727 como ‘coletor adicional’ e 11.446 registros como determinador (identificador de nome científico). Sua coleta mais antiga como coletor principal é de 26 de dezembro de 1973 […].” [Nory Daniel Erazo, INPA 2022]

Suas importâncias e centralidades no fazer científico são reconhecidas por pesquisadores do INPA, traduzidas em frases como “eu daria a minha vida na mão dessas pessoas” ou “eu devo minha vida a eles”, percebidos por alguns pesquisadores como seus professores,7 a ponto de suscitarem um discurso de desconforto a respeito da incongruência entre as reais contribuições de mateiros, pescadores e demais “técnicos”, e, por outro lado, a falta de uma política de reconhecimento de seus trabalhos na publicação do conhecimento produzido em sua forma final, ou seja, em artigos científicos e livros. Aí, seus nomes entram geralmente na seção de agradecimentos, em alguns casos como coautores; já foram também homenageados no registro científico dos nomes de algumas espécies que coletaram (INPA 2022). Por exigências normativas e critérios de publicação - tanto por parte das revistas científicas quanto do sistema de pós-graduação nacional -, os/as pesquisadores/as consideram ser muito difícil incluí-los como autores de todas as publicações, ou atribuir-lhes uma autoria correspondente às suas reais contribuições.

Em outros tipos de trabalhos, nos quais participam não apenas funcionários formalmente contratados pelo INPA ou pelos projetos de pesquisa, mas também, coletivamente, comunidades e agentes comunitários, o processo de colaboração científica ocorre por meio de projetos de extensão. Esses projetos são voltados a melhorias nas condições de vida, assessorias relacionadas à produção agrícola e comercialização de produtos e gêneros alimentícios locais, por exemplo. Alguns pesquisadores, focados nesse campo de trabalho, adotam uma abordagem de pesquisa participativa, concebida como aquela realizada junto com o produtor rural.8

A valorização e reconhecimento informais de mateiros encontram-se matizados por dinâmicas próprias ao campo científico nacional e internacional. Assim, os graus de valorização e reconhecimento pelos trabalhos desempenhados variam de acordo com as predisposições pessoais de cada coordenador da pesquisa,9 bem como as hierarquias de titulação transportadas para as dinâmicas de uma determinada equipe. Tanto a valorização informal quanto o desconforto gerado pela falta de reconhecimento são, em alguma medida, frutos de um longo acúmulo histórico de relações estabelecidas nas colaborações científicas e de financiamento com instituições internacionais. Nesse contexto, trava-se um amplo debate sobre o funcionamento das cooperações internacionais, suas vantagens, desvantagens, limites de ingerência e os efeitos relevantes na produtividade e na formação de recursos humanos - principalmente sobre as decisões de quem pauta a pesquisa e como se dividem as tarefas (Almeida-Val e Higuchi 1994; Weigel 2001; Gama 2004).

Em teoria, uma soberania financeira nacional, institucional e individual resolveria, em grande medida, a definição das agendas de pesquisa. Essa é a percepção de muitos que vivenciaram contextos históricos diferentes e demarcam os avanços nos investimentos em ciência no Brasil a partir dos anos 2000. Mas, em rigor, os processos de colaboração internacional envolvem um miríade de questões e variáveis nas relações cotidianas entre pesquisadores vinculados a instituições nacionais (muitos dos quais estrangeiros, o que relativiza a ideia das nacionalidades pessoais como fator equalizador) e pesquisadores de instituições internacionais (Gama 2004; Gama e Velho 2005,10 sobretudo Estados Unidos e Europa - embora a origem dos financiamentos internacionais venha se modificando mais recentemente. Além de executarem as tarefas relacionadas a todas as etapas de produção de um determinado conhecimento científico, os pesquisadores do INPA assumem a maior parte da coleta de dados - incluindo, frequentemente, até a orientação de alunos de pós-graduação estrangeiros. Essas atividades constituem as etapas mais trabalhosas e árduas da cadeia de produção científica. Dessa forma, o pesquisador e a pesquisadora do INPA conhecem tanto a experiência da autonomia de pesquisa - que inclui a autoria do conhecimento que produzem - quanto as demandas e exigências de uma divisão do trabalho que os coloca em uma posição desprivilegiada em um jogo de negociação desigual e assimétrico.

O reconhecimento insuficiente dos trabalhos e funções desempenhadas por mateiros tem gerado tentativas de construir uma outra prática científica nesse campo, ainda que essas iniciativas sejam consideradas incipientes pelos próprios pesquisadores. Buscam-se formas de contratação e remuneração mais justas, e muitos pesquisadores, ao destacarem, durante as entrevistas, a centralidade da sabedoria e habilidade desses trabalhadores, demonstraram interesse em que suas atuações fossem ressaltadas em uma publicação sobre os 70 anos do INPA - tema do projeto no âmbito do qual as entrevistas estavam sendo realizadas. Além disso, em 2021, algumas pesquisadoras organizaram um encontro que reuniu diversos desses funcionários, classificados sob o rótulo geral de “técnicos”, além de outros pesquisadores efetivos do INPA, com o objetivo de discutir e registrar suas contribuições para a história da instituição. Os Anais do Encontro (INPA 2022), publicados em formato impresso e distribuídos, recuperam as trajetórias de mateiros e pescadores, e descrevem suas tarefas em campo. O encontro e a divulgação dos seus anais constituíram um ponto de inflexão desse debate ao sistematizar textualmente um desconforto historicamente acumulado em relação à geopolítica da produção de conhecimento na e sobre a Amazônia, na medida em que se desdobrou em outras iniciativas políticas e científicas, ainda que realizadas de maneira individual.

Tais dilemas parecem comuns a qualquer lugar e época, portanto vivenciados de maneira semelhante em qualquer universidade e instituição científica do Brasil e do mundo, mas nada autorizaria essa dedução. Segundo afirmam de maneira uníssona os próprios pesquisadores, muitos deles oriundos de outros países ou regiões do Brasil, atraídos para o INPA em virtude de seus interesses de pesquisa - quando não amplamente experientes em pesquisa internacional em outros biomas -, “não existe lugar no mundo como a Amazônia”. Essa especificidade decorre, além do lugar da Amazônia no debate mundial sobre a questão do clima, da associação entre a existência de uma biodiversidade única, ainda amplamente desconhecida pela ciência moderna, em sistemas ambientais de vastas proporções, e a valorização conferida pelas ciências biológicas em “se descobrir novas espécies”,11 que termina por construir uma moldagem e uma forma de fazer singular - uma forma amazônica de operar a produção do conhecimento científico nos campos da Biologia, Ecologia e áreas afins, por assim dizer - incomparáveis às pesquisas realizadas em qualquer outro tipo de ecossistema.12

Dessa forma, essa especificidade influencia sobremaneira o nível dos interesses científicos, políticos e econômicos direcionados à região - algo que remonta ao século XVIII (Domingues 2016) - e, consequentemente, a quantidade de recursos nacionais e estrangeiros destinados à região, além de editais temáticos das agências de pesquisa nacionais e de organismos multilaterais. Por conseguinte, incide também nas múltiplas camadas de poder que permeiam a produção científica, desde o controlo das agendas de pesquisa até a procura por uma espécie de árvore específica em uma situação de trabalho de campo.

Os direitos tradicionais sobre conhecimentos

O conhecimento e as atividades desempenhadas por mateiros e pescadores, ou o problema de sua marginalização na produção do conhecimento científico, ao mesmo tempo que possui um estatuto específico - e por isso fora deixado de lado em discussões correlatas - localiza-se no mesmo arco temático “conhecimentos tradicionais”, e dos debates jurídicos e acadêmicos a esses associados. É específico, pois abrange tarefas realizadas com base em um conhecimento também tradicional, porém direcionadas a auxiliar atividades de campo de cientistas, portanto, elaborando um conhecimento de outro tipo, seja por meio do cruzamento e análise de dados coletados, seja pela localização de amostras de espécies, que se tornam, então, disponíveis para registro, análise e publicações posteriores pelo aparato científico. Em contrapartida, as habilidades necessárias para o processo de coleta de espécies também são exercidas com base em conhecimentos tradicionais, uma vez que os critérios de recrutamento desses atores sociais se fundamentam principalmente na “vivência” ou “experiência” nos contextos onde irão atuar, ou seja, o bioma amazônico. Quem possui essas experiências, senão pessoas que residem na região e possuem laços sociais e transgeracionais vinculados àquele lugar? Uma dessas pessoas atualmente em atividade no INPA, inclusive, é uma mateira indígena Baniwa (Costa 2022).

A partir dos anos 80, o debate sobre o direito à propriedade intelectual de comunidades e povos indígenas, em relação aos seus conhecimentos tradicionais, ganhou força na esteira da criação da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (em 1967), sobretudo a partir das suas reverberações em processos reivindicatórios de organizações indígenas e organismos voltados à defesa de povos indígenas na América do Norte (Estados Unidos e Canadá) (Posey e Dutfield 1996). A rubrica “propriedade” rapidamente foi problematizada e o debate se transformou em uma questão de direitos sobre os recursos territoriais (Posey e Dutfield 1996; Garcés e Robert 2012), buscando atribuir um caráter de produção coletiva do conhecimento mais conforme às perspectivas indígenas. A divergência residia nos pressupostos ideológicos emulados pela ideia de “propriedade” aplicada a conhecimentos tradicionais. Resumidamente, os regimes de conhecimento de populações indígenas e tradicionais não se enquadram no arcabouço conceitual próprio ao aparato jurídico ocidental. Assim, o que se pretendia ser uma estratégia em defesa dos direitos indígenas terminaria por endossar a mesma lógica que os violenta cotidianamente.

Apesar da retirada do termo, em linhas gerais pode-se dizer que a abordagem do problema se mantém a mesma: trata-se de atribuir, identificar e demarcar autorias de conhecimentos, algo que, segundo as regras jurídico-morais sociais atuais, se enquadra no escopo dos direitos sobre conhecimentos. Dessa forma, vigora para os defensores da nova rubrica (DRT em português, TRR em inglês), a necessidade da defesa e da proeminência desses conhecimentos diante do avanço contínuo de processos de expropriação que afetam os povos autóctones em todo o mundo.

Derivado dessa discussão sobre o caráter coletivo do conhecimento conforme concebem povos autóctones, um terceiro movimento reflexivo passou a problematizar os efeitos teóricos e práticos da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). A proposta de atribuir autorias a qualquer tipo de conhecimento é questionada em virtude da divisão entre sociedade e tecnologia que engendra, resultando na objetificação do saber em patrimônio e, nesse sentido, endossando a alienação mercantil entre coisas e pessoas. Assim, constituiria igualmente a armadilha embutida no conceito primeiro de propriedade (Strathern 2022 [1996/1999]), indissociável de seus desdobramentos práticos.

O argumento aproxima - para não dizer iguala - propriedade intelectual e suas derivações (como a proposta do DRT) à propriedade, recuperando o problema da impossibilidade do rastreamento da origem de conhecimentos, quaisquer que sejam, na medida em que são caracterizados pela sua coletividade difusa e pelo seu movimento histórico. A ideia de origem recairia em uma noção de pureza ou autenticidade que, por sua vez, seria justamente o embuste que a Antropologia deveria, a priori, estar disposta a rechaçar. Contudo, só é possível chegar a esse tipo de equivalência e à sua conclusão subsequente subtraindo qualquer tipo de contexto real, ou minimizando seus efeitos sobre a base da pirâmide desse sistema de valoração de conhecimentos.

No limite, o exercício teórico da contaminação em cascata potencialmente encerra o debate em torno dos direitos de populações cotidianamente expropriadas em diversas frentes, inclusive no que se refere aos seus conhecimentos sobre seus territórios, que passam a ser transmutados em capital científico. Pois, na medida em que se cristaliza em texto um conhecimento elaborado mediante a exclusão de um corpo de habilidades e de saberes centrais para sua elaboração - um saber-fazer -, o resultado não é outro senão a decretação de sua irrelevância para o mundo social, independentemente das problematizações conceituais sobre autoria e sobre a ideia de propriedade envolvidas. Não há qualquer dúvida quanto a isso entre os próprios pesquisadores do INPA, sobretudo para aqueles que atualmente se dedicam a refletir sobre os efeitos da desigualdade social na ciência e na instituição. A dificuldade, no entanto, residiria no fato de que os cientistas também estão sujeitos a lógicas que lhes escapam.

No âmbito dos efeitos mais visíveis desse debate, a América Latina, e mais particularmente os países amazônicos, conformam um contexto evidente da associação entre a subvalorização ou desvalorização de conhecimentos tradicionais e a franca expropriação territorial, na medida em que indústrias farmacêuticas e de biotecnologia passam a disputar direitos sobre territórios e recursos com essas populações - além das atividades de garimpo, extração de madeira e agropecuária, no caso brasileiro. Para fazer frente a esse processo, um vasto conjunto de atividades acadêmicas e políticas ensejaram a discussão sobre as contribuições dos conhecimentos tradicionais.

No Brasil, destacam-se iniciativas como: a construção da etnobiologia como campo, cujos marcos - a Carta de Belém de 1988, seguida da Convenção da Diversidade Biológica (CDB)13 e da criação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN)14 - constituem referências para o debate político desse tema, seguido de diversos estudos e publicações (Posey e Dutfield 1996; Garcés e Robert 2012);15 os encontros de pajés e de saúde indígena, que tiveram início na década de 80, com o auxílio logístico do CIMI, reunindo lideranças e registrando o conteúdo dos debates - inclusive, subsidiando a construção das políticas públicas nessa área (Pontes, Machado e Santos 2021) -, e em um segundo momento, em articulação com o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) e a OMPI, a partir dos anos 2000 (Almeida 2010); na esteira das mobilizações para a Eco-1992, destaca-se também a criação do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), composto por 513 organizações de povos indígenas, seringueiros, coletores de castanha e de açaí, além de balateiros, piaçabeiros, quebradeiras de coco babaçu, extratores de resinas, extratos e ervas medicinais, pescadores, trabalhadores rurais, quilombolas e ribeirinhos. Esse grupo promove mobilizações permanentes “contra a devastação das florestas, a expropriação dos meios de produção e a usurpação dos ‘saberes nativos’ ”, além de fortalecer e afirmar as especificidades sociais e demandas políticas desses grupos (Almeida 2010: 24). Mas houve também outras iniciativas de grande porte pela América Latina em torno do mesmo tema, como é o caso de um projeto na Venezuela que já contava com um banco de dados robusto com 9000 conhecimentos tradicionais gerados por indígenas (Maria Helena Tachinardi, apudAlmeida 2010).

Nesse esforço, que envolve milhares de comunidades e associações ribeirinhas, indígenas, organizações não governamentais e respectivos meios acadêmicos nacionais, busca-se fomentar o debate acerca da relação entre hierarquizações de conhecimentos impostas e formas diversas de expropriações de trabalho e recursos, em franca expansão em um território concebido como fronteira (Velho 1976). Ao invés de direcionar o debate para questões de uma comensurabilidade entre tipos de conhecimentos distintos, ou mesmo traduzi-los para os padrões científicos, trata-se de, dentro desse movimento de registros e demarcações em torno dos direitos coletivos e étnicos sobre conhecimentos, apontar a imbricação entre a deslegitimação sistemática de saberes específicos e a expropriação - por meio do avanço da propriedade privada sobre territórios de uso comum - das comunidades que os possuem.

Além da demarcação de autorias como estratégia para dirimir os efeitos das múltiplas hierarquias que atravessam trajetórias de vida semelhantes, uma outra proposta advém da própria origem do termo “parataxônomo”. Na Costa Rica, a partir de meados da década de 80, o biólogo norte-americano Daniel Janzen procurou delinear bases institucionais para a inserção desses profissionais na vida acadêmica e de pesquisa no país. A partir de atividades similares das desenvolvidas no INPA, como a realização de inventários florestais para instalação de parques nacionais, o biólogo passou a incorporar em sua equipe atores sociais provenientes de zonas rurais, e construir as bases para a institucionalização da profissão que cunhou como “parataxônomo”, defendendo regimes laborais estáveis (socialmente reconhecidos e valorizados) e promovendo processos de formação que permitiram a esses profissionais desempenharem atividades para além das coletas em si:

“[…] a pessoa que migra da responsabilidade por um facão ou pano de prato para ser capaz de gerenciar um computador e bancos de dados, entender o processo científico, ter uma rede de contatos globalmente distribuídos e gerenciar seus próprios recursos, representa o movimento do poder político e econômico dos centros nacionais às bases rurais. A descentralização é um processo nem sempre acolhido por aqueles cujo poder está sendo descentralizado, o que pode significar virtualmente toda a porção ‘educada’ de um país […]”. (Janzen 2004: 183 apudCosta 2022: 172)

Experiências similares foram realizadas no Brasil, embora de forma errática e sem a sistematicidade do exemplo costa-riquenho. Por meio de iniciativas locais, majoritariamente no norte do país, foram realizados alguns cursos de formação destinados a mateiros e demais “técnicos”. Além disso, em 1987 teve início o trâmite para a regulamentação da profissão “mateiro”, “pescador”, entre outras, sob o rótulo geral “técnicos”. Em suma, suas atuações, qualificações e atribuições foram inicialmente regulamentadas no âmbito das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES).

Apesar dessa regulamentação restrita às IFES, as contratações dos chamados “auxiliares de campo” - como são denominados - continuam sendo, em sua maioria, realizadas mediante contratos terceirizados e condicionados a projetos individuais de pesquisadores, além das contratações informais de pessoas residentes em locais/comunidades durante o desenvolvimento de projetos. Desde 2017, tramita um projeto de lei para regulamentar, em âmbito nacional, a profissão de “mateiros” ou “parataxonomistas”. Contudo, desde 2019 o trâmite dessa proposta encontra-se inviabilizada em virtude de um decreto presidencial que extingue o cargo de “mateiro” do Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação (PCCTAE) (Costa 2022).

Mantém-se, assim, uma instabilidade laboral e um reconhecimento precário e informal que termina por perpetuar o lugar de invisibilidade que mateiros, seus conhecimentos, habilidades e contribuições para a produção científica ocupam no imaginário social. Deixados à margem do escopo dos direitos sobre conhecimentos tradicionais, mateiros, pescadores e demais “técnicos” que trabalham com cientistas permanecem vulneráveis a variações político-conjunturais nacionais, a oscilações de oferta de trabalho, e ao contínuo esvaziamento de suas contribuições sociais e científicas. Tampouco a marginalização de suas colaborações no campo científico é tratada sob a mesma lente teórica aplicada à demarcação de autorias de conhecimentos. É de se perguntar as causas disso.

Ainda que as associações eventuais com o arcabouço ideológico da propriedade possam não ser o tesouro no final do arco-íris para os parâmetros antropológicos, as demandas em torno dos valores atribuídos a distintas formas de conhecimento ancoram-se em processos reais de expropriação de territórios e recursos indígenas. Portanto, cabe perguntar se as equivalências abstratas estabelecidas entre “propriedade” e “autoria” - baseadas em descrições (ironicamente demarcatórias) entre noções societárias fundadas no vínculo entre coisas e pessoas por oposição a outras que as cindem - devem se sobrepor à criatividade à mão desses povos, comunidades, populações, ou seja, à linguagem possível, dentro do universo social existente, de enfrentamento contra essas violências cotidianas.

Mateiros, pescadores, e demais técnicos do INPA constituem, a um só tempo, uma força de trabalho excluída da recente valorização política e acadêmica das habilidades e conhecimentos que possuem, e, em contrapartida, são aqueles que mais diretamente vivenciam o aparato científico e moral que sustenta a hierarquia de conhecimentos que, no limite, foi a mesma que os empurrou para buscar um emprego urbano. Hierarquia a respeito da qual a plena consciência se reflete nas anotações meticulosas, registradas institucionalmente pelos próprios mateiros parataxônomos, dos números de espécies coletadas. O desconforto entre pesquisadores do INPA e o debate gerado em torno desse tema são exemplos de como a busca por equalizar dinâmicas sabidamente iníquas - ou o caminho até essa adjetivação - pode ter por efeito a reflexão sobre os próprios termos dessas dinâmicas, como é o caso da ponderação, por parte de cientistas, acerca das bases coloniais, em uma escala abrangente, do campo científico, intensificadas quando o assunto é Amazônia. Assim como os esboços para superá-las.

O debate sobre ciência: que nova aliança seria essa?

A despeito de o surgimento da ciência moderna engendrar, em si mesmo, a potencialidade de sua reflexividade - na medida em que ensejou a substituição do método dedutivo-lógico aristotélico pelo método indutivo -, data-se a análise sistemática sobre seus modos de fazer mais tardiamente. Durante séculos, tanto o próprio campo científico quanto as histórias escritas a seu respeito, como biografias e necrológicos científicos, emulavam o triunfalismo dos vencedores, subtraindo daí o caráter conflitivo da construção e consolidação de qualquer teoria (Martins 2001), além de imbuídas da ideologia evolucionista.

A partir do século XX, o estatuto da ciência passa a ser problematizado interdisciplinarmente, gerando relevantes questionamentos acerca das diferenças entre tipos de conhecimentos. Dentre as inflexões desse debate que incidem diretamente nas temáticas aqui abordadas, destaca-se a hipótese do condicionamento entre formulações teórico-científicas e modos de produção e reprodução social (em Boris Hessen e em Joseph Needham, na década de 1930). Ainda na abordagem externalista, tem-se tanto a transposição do método weberiano sobre os determinantes entre religião e capitalismo para o campo científico (Merton 2013), quanto uma microanálise sobre o processo de delineamento de temas, questões e hipóteses (Latour e Woolgar 1997 [1979]), que deixa em aberto a pergunta sobre se a ciência é fruto das dinâmicas e demandas do campo/mercado científico (e também empresarial) ou se também se configura como alienação (no sentido marxiano), através da objetificação de suas atividades rotineiras que terminam por criar uma dimensão social própria. Essa literatura é comumente conhecida pelo modo narrativamente eficaz como questionou a assimetria de autoridade conferida a diferentes tipos de conhecimentos. Ao detalhar o fato científico como um fato social, produziu um forte embasamento contra a profunda hierarquia de legitimidades e importâncias atribuídas a diferentes formas de conhecimentos - consequentemente também aos seus representantes. Entretanto, a dimensão do poder intrínseca à ciência moderna já havia sido o mote da proposição de uma agenda de pesquisas anteriormente (Basalla 1967), guiada por um modelo preliminar por meio do qual se analisaria, de maneira sistemática e comparativa, a implementação do arcabouço científico europeu em países e regiões, como parte constitutiva do processo colonial.

Em registro distinto, indaga-se a natureza mesma do conhecimento. Em oposição à ideia dos gênios inerente à narrativa das biografias anteriormente mencionadas (uma história dos vencedores), Fleck (2010 [1935]) - cuja ideia geral foi posteriormente reelaborada e difundida por Kuhn (1997 [1962]) - argumentou pela natureza coletivista do conhecimento e pela coexistência concomitante de diversos estilos de pensamento, opondo-se à ideia em voga de um progresso unilinear da ciência. Em um movimento mais recente, procura-se fomentar uma outra noção de objetividade, fundada na localização e responsabilidade do sujeito do conhecimento, deslocando-a de domínios lógico-racionais (Haraway 1995 [1988]). Por fim - e influenciado pelo contexto histórico atual de exploração predatória/destruição de recursos e biomas - propõe-se reelaborar o universalismo científico sob outros prismas, desta feita ancorado em um outro tipo de aliança com a natureza (não mais vista como objeto inerte apropriável), e com outras formas sociais existentes de concebê-la (Prigogine e Stengers 1991 [1984]; Stengers 2002 [1993]).

Quanto a essa última, seria difícil conceber uma nova aliança eficazmente viabilizada por meio de uma operação abstrata realizada por associações entre descrições etnográficas e conceitos físicos e microbiológicos.16 Por isso, seria necessário considerar onde ocorrem concretamente as inter-relações entre essas formas de pensar e viver. Nas margens brasileiras do capitalismo, estamos nos referindo, por exemplo, à contratação de mão de obra indígena no cultivo intensivo de erva-mate - domesticada antes da ocupação colonial na América do Sul - em fazendas que adotam tecnologias como melhoramento genético e uso de drones para o aumento exponencial da produção; ao envolvimento de diversas categorias de populações tradicionais extrativistas de castanha-do-pará em redes de comercialização e estudos sobre seus múltiplos usos e comensalidades; à atuação e empregabilidade de mateiros, pescadores e técnicos agrícolas em instituições científicas e universidades brasileiras.

Considerações finais

O teto das questões imputadas à realidade pela ciência, na qual a Antropologia está inclusa, é a própria realidade, em cujas aspirações históricas por uma igualdade relativa - que ganham forma em reivindicações sociais - fundam-se as problemáticas que movem a disciplina. Caso pretendamos sair das oscilações entre a compreensão e a explicação (Duarte 2004), uma das alternativas possíveis - mais do que as corriqueiras problematizações em espiral que até podem gerar vírgulas a serem consideradas desde que não apontem, via argumentação teleológica, para a inércia do ponto final - é dar forma e força a essas pautas, contribuir para a sua depuração, para que se transformem, gradualmente, em algo cada vez mais socialmente relevante - ou seja, ao invés de contribuir para sepultar suas legitimidades sociais.

Concomitantemente, mais do que dizer o que uma determinada realidade social é, ou meramente apontar contradições para concluir o quão “teoricamente equivocadas” são as demandas dela decorrentes, importa indicar efeitos entre uma e outra, que mudam historicamente e que podem ser interpretações suscetíveis às temporalidades e situacionismos da autoria, mas nem por isso mesmo deixam de ser, em si mesmas, dados de uma realidade em permanente movimento. Isso passa também por reconhecer explicitamente a tradição humanista e transformadora originária da disciplina, para além de ratificar seu selo científico.

É o que já faz há décadas uma antropologia inspirada, de maneira direta ou indireta, desde o diagnóstico de Balandier (2014 [1951]) sobre o estado da disciplina à sua época, o que faz Almeida (2010) acerca das comunidades mais diretamente identificadas como dotadas de conhecimentos tradicionais na Amazônia, e a abordagem deste texto sobre um setor social marginalizado em um sistema imposto de valoração dos conhecimentos, colocado à parte de toda a discussão sobre direitos e expropriações de povos tradicionais, mesmo sendo mundialmente reconhecidos - em corredores institucionais - como imprescindíveis à ciência feita na e sobre a Amazônia.

Agradecimentos

Agradeço à agência de fomento, ao INPA e, especialmente, a Larissa Campos de Medeiros (MCTI/MAST) e Francisco Rômulo Monte Ferreira (IBqM/UFRJ).

Financiamento

Este texto foi elaborado com o apoio de uma bolsa do Programa de Capacitação Institucional (PCI/CNPq) do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), além de recursos fornecidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

Bibligrafia

ALMEIDA, Alfredo Wagner B., 2010, “Amazônia: a dimensão política dos ‘conhecimentos tradicionais’ ”, in Alfredo Wagner Berno de Almeida (org.), Conhecimento Tradicional e Biodiversidade: Normas Vigentes e Propostas (2.ª edição). Manaus: UEA Edições, 11-40. [ Links ]

ALMEIDA-VAL, Vera. M., e Maria Inês HIGUCHI (orgs.), 1994, O INPA no Contexto da Cooperação Internacional. Manaus: Documento da Associação de Pesquisadores do INPA (ASPI). [ Links ]

BALANDIER, Georges, 2014 [1951], “A situação colonial: abordagem teórica”, Cadernos CERU, 25 (1): 33-58. [ Links ]

BASALLA, George, 1967, “The spread of western science”, Science, 156: 611-622. [ Links ]

CLEMENT, Charles R., 1999, “1492 and the loss of Amazonian crop genetic resources: the relation between domestication and human population decline”, Economic Botany, 53: 188-202. [ Links ]

COSTA, Luis Felipe, 2022, Colaboração nas Entrelinhas: Os Mateiros de Ontem e de Hoje e o Papel dos Conhecimentos Tradicionais para o Desenvolvimento da Pesquisa Científica na Amazônia. São Paulo: Editora Dialética. [ Links ]

DANTAS, Carolina A., 2012, O Saber Local e a Prática Científica: Análise das Relações entre Mateiros e Pesquisadores em Pernambuco. Recife: UFRPE, dissertação de mestrado em Ciências Florestais. [ Links ]

DIAS, Caio G., 2023, “O planejamento da cultura: políticas culturais, UNESCO e Brasil (1966-1988)”, Dados, 66 (1), 1-36. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/ZFJYZ4ZVW4p8MBHQXnvRXts/ (última consulta em junho de 2025). [ Links ]

DOMINGUES, Heloísa M., 2016, “As ciências naturais e a ‘cobiça’ sobre a Amazônia”, in Christina Helena da Motta Barboza (org.), Histórias de Ciência e Tecnologia no Brasil. Rio de Janeiro: MAST. [ Links ]

DUARTE, Luiz Fernando D., 2004, “A pulsão romântica e as Ciências Humanas no Ocidente”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 19 (55): 5-29. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/GP39m4swhrzTxZtKXkvk5BJ/?lang=pt&format=pdf (última consulta em junho de 2025). [ Links ]

FLECK, Ludwik, 2010 [1935], Gênese e Desenvolvimento de Um Fato Científico. Belo Horizonte: Fabrefactum Editora. [ Links ]

GAMA, William N., 2004, O Papel do Estado na Regulação do Acesso de Pesquisadores Estrangeiros na Amazônia Brasileira na Década de 1990: O Caso do INPA. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, tese de doutorado. [ Links ]

GAMA, William N., e Léa M. VELHO, 2005, “A cooperação científica internacional na Amazônia”, Revista Estudos Avançados, 19 (54), 205-224. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142005000200012. [ Links ]

GARCÉS, Claudia L., e Pascale de ROBERT, 2012, “El legado de Darrell Posey: de las investigaciones etnobiológicas entre los Kayapó a la protección de los conocimientos indígenas”, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, 7 (2): 565-580. [ Links ]

HARAWAY, Donna, 1995 [1988], “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, Cadernos Pagu, 5: 7-41. [ Links ]

INPA - INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS DA AMAZÔNIA, 2022, Anais do I Encontro sobre Popularização da Ciência em Ecologia na Amazônia: Papéis dos Assistentes de Campo à Ciência. Manaus: Editora INPA. [ Links ]

KUHN, Thomas, 1997 [1962], A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva. [ Links ]

LATOUR, Bruno, e Steve WOOLGAR, 1997 [1979], A Vida de Laboratório: A Produção dos Fatos Científicos. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará. [ Links ]

MAIO, Marcos C., 2001. “A tradução local de um projeto internacional: a UNESCO, o CNPq, e a criação do INPA”, in Priscila Faulhaber e Peter Mann Toledo (orgs.), Conhecimento e Fronteira: História da Ciência na Amazônia. Belém/Brasília: Museu Goeldi / Paralelo15, 51-81. [ Links ]

MAIO, Marcos C., 2005, “A UNESCO e o projeto de criação de um laboratório científico internacional na Amazônia”, Estudos Avançados, 19 (53): 115-130. [ Links ]

MAIO, Marcos C., e Magali R. SÁ, 2000, “Ciência na periferia: a UNESCO, a proposta de criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica e as origens do INPA”, História, Ciências, Saúde-Manguinhos, VI (suplemento): 975-1019. [ Links ]

MARTINS, Roberto de Andrade, 2001, “História e História da Ciência: encontros e desencontros”, Actas do 1º. Congresso Luso-Brasileiro de História da Ciência e da Técnica, 11-46. Évora: Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Évora. [ Links ]

MERTON, Robert K., 2013, Ensaios de Sociologia da Ciência. São Paulo: Editora 34. [ Links ]

MOREIRA, Ildeu de Castro, 2020, “O escravo naturalista”, Ciência Hoje, 31 (184): 40-48. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/339470549_O_escravo_do_naturalista (última consulta em junho de 2025). [ Links ]

NAKAZONO, Erika M., 2010, “O mateiro e a pesquisa científica”, in Alfredo Wagner Berno de Almeida (org.), Cadernos de Debates Nova Cartografia Social: Conhecimentos Tradicionais na Pan-Amazônia, vol. 1: 64-71. Manaus: UEA Edições . [ Links ]

PETITJEAN, Patrick, e Heloísa M. DOMINGUES, 2000, “A redescoberta da Amazônia num projeto da UNESCO: o Instituto Internacional da Hiléia Amazônica”, Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 14 (26): 265-292. [ Links ]

PONTES, Ana Lucia, Felipe R. MACHADO, e Ricardo V. SANTOS (orgs.), 2021, Políticas antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. [ Links ]

POSEY, Darrell, e Graham DUTFIELD, 1996, Beyond Intellectual Property: Toward Traditional Resource Rights for Indigenous Peoples and Local Communities. Otava: International Development Research Centre. [ Links ]

PRIGOGINE, Ilya, e Isabelle STENGERS, 1991 [1984], A Nova Aliança. Brasília: Editora UnB. [ Links ]

STENGERS, Isabelle, 2002 [1993], A Invenção das Ciências Modernas. São Paulo: Editora 34 . [ Links ]

STRATHERN, Marilyn, 2022 [1996/1999], “Potential property: intellectual rights and property in persons”, in Marilyn Strathern, Property, Substance and Effect: Anthropological Essays on Persons and Things. Chicago, IL: Hau Books. [ Links ]

STRATHERN, Marilyn, 2022 [1999], “What is intellectual property after?”, in Marilyn Strathern, Property, Substance and Effect: Anthropological Essays on Persons and Things . Chicago, IL: Hau Books , 173-196. [ Links ]

VELHO, Otávio G., 1976, Capitalismo Autoritário e Campesinato: Um Estudo Comparativo a Partir da Fronteira em Movimento. São Paulo: Difel Editora. [ Links ]

WEIGEL, Peter, 2001, “O papel da ciência do INPA no desenvolvimento da Amazônia”, in Priscila Faulhaber e Peter Mann Toledo (orgs.), Conhecimento e Fronteira: História da Ciência na Amazônia . Belém/Brasília: Museu Goeldi/Paralelo15, 269-288. [ Links ]

1Foram realizadas mais de 20 entrevistas no âmbito de um convênio para cujo desenvolvimento fui contratada, o qual viria a ser firmado entre duas unidades do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil (MCTI) - o INPA e o MAST. Para este texto, especificamente, foi utilizado o conteúdo de 12 entrevistas, realizadas em outubro e novembro de 2022, em Manaus, Amazonas. Os entrevistados são pesquisadoras e pesquisadores com 20 a 50 anos de experiência laboral na Amazônia e vínculo institucional com o INPA. As entrevistas semi-estruturadas, norteadas por roteiro e projeto previamente elaborados pela entrevistadora, foram marcadas com hora e local definidos, sendo gravadas mediante consentimento dos entrevistados - com o objetivo de edição e depósito em acervo. Quem entrevistava tampouco era uma personagem totalmente estranha à instituição: embora minha pesquisa tivesse sido realizada na região, vinculada a uma instituição do sudeste do país, meus pais e uma tia materna foram pesquisadores do INPA. Assim, tanto o contexto - não apenas as sedes físicas, algumas pessoas, mas também, em linhas gerais, o que se fazia e discutia - me era familiar, quanto eu mesma, e sobretudo meus vínculos familiares se faziam presentes na memória dos entrevistados e entrevistadas.

2Como argumenta Dias (2023), o exame sobre a atuação da UNESCO indica que esta merece ser repolitizada em todos os seus âmbitos, a começar pelo arcabouço conceitual que produziu e reverberou em torno do conceito de cultura e seus desdobramentos, como as políticas culturais.

3Arthur Reis, antagonista da proposta do IIHA e posteriormente diretor do INPA, publicou o livro A Amazônia e a Cobiça Internacional, em 1960, obra que continua sendo reeditada até os dias atuais.

4Entrevistas INPA, realizadas nos dias 31 de outubro, 4, 7 e 10 de novembro de 2022 - três pesquisadores, duas pesquisadoras, todos entre 60 e 70 anos de idade.

5Entrevista INPA realizada no dia 26 de outubro de 2022, pesquisadora entre 60 e 65 anos de idade.

6Entrevista realizada no dia 15 de outubro de 2022, pesquisadora ex-funcionária do INPA, 70 anos de idade.

7Em homenagem a Paulo Assunção, mateiro do INPA falecido em 2019 vítima da Covid-19, Fabiano Maisonnave publicou um artigo no qual cita um pesquisador: “Dizem que ninguém é insubstituível, mas cientistas como Paulo são raros, e a ciência especializada, monetizada em suas publicações Qualis, não permite que Paulos sejam formados em nossas escolas. E Paulo não foi formado nelas, foi mais sim um professor nelas, diz Alberto Vicentini”. (Folha de São Paulo 2021, disponível em: www1.folha.uol.com.br).

8Entrevistas INPA, realizadas nos dias 4 e 7 de novembro de 2022, uma pesquisadora e um pesquisador, entre 60 e 70 anos de idade.

9Conforme um mateiro relatou a Costa (2022: 170): “Ele ressalta também que a atribuição de créditos e participação registrada no trabalho de pesquisa aos mateiros varia muito conforme a conduta de cada pesquisador em particular, pois não há nenhum regulamento oficial que determine estes aspectos. Segundo Cunha, certos pesquisadores fazem questão de mencionar o nome de todos que participaram do processo de produção da pesquisa e compartilhar posteriormente os resultados obtidos, enquanto outros se colocam em uma posição excessivamente individualista, ‘como se tivessem feito tudo sozinhos’, e creditam a participação apenas dos colegas com algum tipo de formação acadêmica reconhecida”.

10Entrevista INPA realizada no dia 4 de novembro de 2022, pesquisadora entre 50 e 55 anos de idade.

11Disponível em https://issuu.com/museu-goeldi/docs/destaque_amaz_nia_-_novas_esp_cies(última consulta em junho de 2025).

12Entrevistas INPA, realizadas nos dias 31 de outubro, 3, 4 7 e 10 de novembro de 2022 - três pesquisadores e três pesquisadoras, todos entre 50 e 70 anos de idade.

13Tratado multilateral internacional elaborado sob os auspícios da ONU, em 1992.

15Dois anos depois, em 1990, a China sediou o Congresso Mundial da Sociedade Internacional de Etnobiologia, em Kunming, com delegados de 52 países. Durante esse congresso foi estabelecido um plano de ação global - o plano de ação Kunming - convocando para ações definidas como urgentes e específicas para frear a destruição da diversidade biológica e cultural conforme as diretrizes da Carta de Belém (Posey e Dutfield 1996).

16Atualmente, as pesquisas dedicadas às comparações entre sistemas de conhecimento distintos, no Brasil, são realizadas pelo campo da História da Ciência, majoritariamente a partir da descrição histórica das contribuições dos mateiros conforme relatos escritos de naturalistas e outros tipos de fontes historiográficas (ver Moreira 2020); e pelos campos da antropologia da ciência e por parte da antropologia da saúde: o primeiro amplamente influenciado pelo chamado programa forte, dedicado também a uma aproximação e exercícios comparativos com etnografias de grupos indígenas, e/ou com a colaboração de pesquisadores indígenas; o segundo ocupa-se de descrever e ressaltar a relevância social de saberes e rituais locais (populares e indígenas) para tratamentos de saúde. Na vertente histórica, trata-se de recuperar e documentar o lugar histórico (pretérito) da contribuição de “ajudantes nativos” a expedições científicas de naturalistas europeus; no caso da Antropologia, busca-se cotejar sistemas de conhecimento, entremeado a exercícios de denúncia, cujo resultado é, por um lado, um reducionismo caricatural das práticas e conhecimentos da ciência moderna, e, por outro, uma paradoxal reedição da dicotomia entre saber moderno e tradicional.

Recebido: 05 de Janeiro de 2023; Aceito: 01 de Agosto de 2024

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons