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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561versão On-line ISSN 2182-2891

Etnográfica vol.29 no.2 Lisboa ago. 2025  Epub 15-Set-2025

https://doi.org/10.4000/148hj 

Interdisciplinaridades

Viver numa casa do Siza: a experiência da arquitetura de autor na Malagueira, Évora

Living in a Siza house: the experience of auteur architecture in Malagueira, Évora

Juliana Pereira1  , curadoria dos dados, investigação, metodologia, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0001-9184-496X

Ana Catarina Costa2  , análise formal, investigação, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0001-8300-774X

André Carmo3  , administração do projeto, supervisão, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0003-2668-1628

Eduardo Ascensão4  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, supervisão, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-1927-359X

1 Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) e Departamento de Paisagem, Ambiente e Ordenamento, Universidade de Évora, Portugal julianannpereira@gmail.com

2 Centro de Estudos Geográficos (CEG) e Laboratório TERRA, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa; CEAU - Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, Portugal, anacatarinadcosta@gmail.com

3 Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) e Departamento de Paisagem, Ambiente e Ordenamento, Universidade de Évora, Portugal, acarmo@uevora.pt

4 Centro de Estudos Geográficos (CEG) e Laboratório TERRA, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Portugal, eduardoascensao@edu.ulisboa.pt


Resumo

Este artigo retoma os estudos sobre a casa e o habitar desenvolvidos pela Antropologia e pela Arquitetura portuguesas, acrescentando-lhes um olhar vindo das geografias da arquitetura, para de seguida explorar a forma como os habitantes de edifícios de arquitetura de autor experienciam as suas casas e os seus bairros no quotidiano. Focando-se no caso do bairro da Malagueira em Évora, projetado por Álvaro Siza Vieira no final dos anos 70 para albergar populações de baixos rendimentos, mas entretanto tendo integrado uma constelação de populações mais variada, o artigo procura responder a perguntas sobre o que significa viver numa casa e num bairro projetados por um arquiteto consagrado, como se relacionam os modos de viver dentro da casa com o desenho e a estética relativamente austeras da arquitetura de Siza, e finalmente como é experienciada a relação com determinados elementos arquitetónicos que fazem a casa funcionar. Baseado em trabalho de campo etnográfico onde se usou a etnometodologia Show Us Your Home (Mostre-nos a Sua Casa), o artigo preenche a lacuna da relativa ausência de estudos sobre a experiência da arquitetura de Siza pelos seus moradores.

Palavras-chave: a casa em Portugal; geografias da arquitetura; arquitetura de autor; Malagueira; Álvaro Siza Vieira

Abstract

This article draws on the genealogy of studies on the house in Portuguese Anthropology and Architecture as well as on recent perspectives coming from the Geographies of Architecture, to explore the way residents of auteur architecture experience their homes and neighbourhoods. Focusing on Malagueira neighbourhood in Évora, a large housing estate designed by Álvaro Siza Vieira in the late 1970’s to accommodate low-income populations, which has since integrated more affluent residents, the article seeks to answer questions about what it means to live in a house and a housing estate designed by a renowned architect; how individual modes of inhabitation relate to the relatively austere design and aesthetics of Siza’s architecture; and finally about residents’ relationship with the architectural elements that make the house work. Based on ethnographic fieldwork and the Show Us Your Home ethno-methodology, the article fills a research gap on residents’ experience of Siza’s architecture.

Keywords: the house in Portugal; inhabitation; geographies of architecture; auteur architecture; Malagueira; Álvaro Siza Vieira

Introdução: a casa em Portugal

A ideia da casa em Portugal tem uma longa tradição no pensamento da Arquitetura e da Antropologia portuguesas. Podemos situar o seu início com a emergência, no fim do séc. XIX para o início do séc. XX, de uma ideia concetual de casa “nacional”, que Raul Lino (1992[1933]) estabeleceria mais tarde como a Casa Portuguesa, e que remeteria para um espírito nacionalista do país, diferenciada de desenvolvimentos estrangeiros como o châlet ou a cottage house, embora com eles partilhando elementos. Como refere João Leal (2009) numa síntese desta história, a seguir à ideia da Casa Portuguesa como uma “modesta mas alegre casinha” surgiu o momento ligado ao Inquérito à Habitação Rural, coordenado por Henrique de Barros e outros engenheiros agrónomos do Instituto Superior de Agronomia (ISA) preocupados com as condições sanitárias dos alojamentos dos camponeses, bem como com as suas condições de vida. O inquérito mostrou uma casa rural pobre, nalguns casos insalubre, e veio estilhaçar a construção narrativa do entretanto estabelecido Estado Novo, que tinha abraçado e adaptado para si as ideias da Casa Portuguesa de Lino. No entanto, foi posto de parte e os estudos sobre a casa em Portugal passariam depois, e sobretudo, pelos estudos etnográficos sobre arquitetura tradicional e a casa portuguesa realizados a partir dos anos 1950 por Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (embora só publicados nos anos 1970), em parte inspirados pela antropologia funcionalista britânica de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard. Reemergiriam outra vez com o Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal, realizado e publicado pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos (1961), tendo entre os seus mentores arquitetos modernistas como Fernando Távora, Nuno Teotónio Pereira e Keil do Amaral. Este inquérito estava preocupado em registar a diversidade regional da arquitetura popular - o que fez seguindo uma divisão geográfica do país inspirada nas ideias de Orlando Ribeiro sobre o norte Atlântico, o interior continental e o sul mediterrânico - e num segundo momento, em apontar para algumas semelhanças entre a arquitetura moderna e a arquitetura popular, desse modo

“facilitando a abertura para novas formas de diálogo entre arquitetura moderna e arquitetura vernácula, particularmente na chamada Escola do Porto e, em particular, na produção arquitetónica de Fernando Távora.” (Leal 2009: 9)

Este é o primeiro dos traços genealógicos entre a casa em Portugal e as casas da Malagueira que abordamos neste artigo. Siza Vieira, discípulo confesso de Távora e figura maior do que Kenneth Frampton (1983) veio a denominar regionalismo crítico - a variante da arquitetura neomodernista que preconiza o diálogo entre a arquitetura moderna e o contexto local - quando desenhou a Malagueira, retomou e adaptou tradições do sul mediterrânico como as coberturas planas, o uso do branco, o pátio, as entradas de luz modestas e uma racionalidade austera que se adapta ao clima. Mas fê-lo com uma pequena transposição, a que voltaremos adiante.

Casas de emigrantes e outras arquiteturas híbridas

Entretanto, Portugal tinha-se modernizado e a casa portuguesa tinha sofrido mutações, com destaque para as casas dos emigrantes aquando do seu retorno ao país. Casas de enorme riqueza plástica, com alusões a arquiteturas alpinas ou da campagne francesa (Villanova, Leite e Raposo 1995) comportavam particularidades, como as duplas cozinhas (uma tradicional e outra moderna) que Silvano e Coelho (1993), numa análise estruturalista da casa,1 mostram que espelhava a dupla pertença identitária dos emigrantes ao país de emigração e à aldeia de origem.

Em paralelo, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto disseminaram-se grandes conjuntos habitacionais em áreas suburbanas, desde as mais próximas às unités d’habitation de Le Corbusier e outros modelos habitacionais modernos até aos então chamados “dormitórios” de inspiração moderna mais genérica, as “florestas de cimento armado” (Nunes 2011). Nestes últimos, a apropriação por instalação da marquise para maximizar o espaço interior (mas afetando o contacto com o exterior e a circulação de ar) viria a transformar-se em marco de distinção negativa por aqueles que as olhavam de modo pejorativo.

Esta arquitetura híbrida - com traços de arquitetura erudita, mas essencialmente massificada - teria o seu zénite na arquitetura clandestina dos loteamentos ilegais existentes nos interstícios da malha urbana, onde migrantes rurais tinham construído as suas vivendas unifamiliares em terrenos por eles detidos mas sem licença de construção. Essas vivendas transportavam alguns elementos arquitetónicos da casa rural, sobretudo os ornamentais, mas eram quase sempre edificadas por empreiteiros de pequena dimensão com técnicas de construção modernas, como as adaptações do sistema construtivo Maison Dom-ino de Le Corbusier. Tal como as marquises dos grandes conjuntos, também a arquitetura dos “clandestinos” foi socialmente reprovada e a revalorização das casas vernaculares/clandestinas nas áreas metropolitanas só veio a acontecer mais tarde, com as análises de Manuel Graça Dias (1986), José Manuel Fernandes (1989) e Álvaro Domingues (2010).

Massificação e multidimensionalidade

A partir dos anos 1980, com o acesso massificado ao crédito para habitação própria, haveria uma explosão de expressões arquitetónicas, sobretudo de edifícios de habitação coletiva, onde a área, qualidade de construção, comodidades e acabamentos passaram a ser os elementos-chave da casa urbana portuguesa, como revela a publicidade aspiracional para a casa própria que é o “andar-modelo” (Pereira 2014). Este aproxima-nos do processo de domesticidade, o habitar na casa que Rosales (2015) investiga no contexto dos percursos transnacionais dos ditos “retornados”, onde a ligação afetiva entre continentes é realizada através da presença de objetos e mobília referentes a esses locais de origem na casa de chegada.

Ao longo do período entre os anos 1970 e 2010, uma realidade habitacional paralela polvilhou as áreas metropolitanas e os arrabaldes de algumas cidades médias: os núcleos de barracas ou casas degradadas, que no início dos anos 1990 se estimava albergarem cerca de 200 mil pessoas. A Malagueira surgiu em boa parte para resolver esse problema em Évora. Ascensão (2013) mostra como a casa do bairro de barracas era simultaneamente um local de arquitetura evolutiva ad hoc e de significação arquitetónica mínima (porque sujeita a enormes constrangimentos materiais), um local onde a diáspora se ativava e onde se produziram novas culturas híbridas (embora sempre em paralelo com o estigma e uma condição de subalternidade) e, finalmente, um objeto de demolição iminente.

Esta multidimensionalidade da barraca, que se pode estender à casa - entendida como o abrigo onde se habita mas igualmente como o local na cidade onde ele se situa (“o bairro também é casa”) - serve-nos de inspiração para o restante deste artigo, no sentido de vermos as casas da Malagueira na sua multidimensionalidade.

Geografias da arquitetura: a casa num feixe de relações

No entanto, fazemos aqui uma inflexão das disciplinas científicas da Antropologia e da Arquitetura para outro campo disciplinar onde queremos igualmente situar a nossa análise das casas da Malagueira: o quadro teórico que se tem vindo a apelidar de geografias da arquitetura (Lees 2001; Kraftl 2010). Este campo disciplinar da geografia humana afasta-se em primeiro lugar da conceção vinda da Berkeley School do início do séc. XX (que em Portugal teve eco na geografia de Orlando Ribeiro), em que a casa surge “plantada” na paisagem e como que decorre, mais ou menos automaticamente, dos constrangimentos geomorfológicos da mesma (Lees 2001). Em segundo afasta-se igualmente da geografia estritamente marxista, em que a casa e a arquitetura em geral são tidas como materialização praticamente direta dos fluxos de capital. Para as geografias da arquitetura, a casa e a arquitetura já não são apenas essas coisas; entretanto passaram por muitas iterações em que entraram o pensamento racional moderno, os desenvolvimentos tecnológicos no campo da habitação, as noções de poder e segregação no espaço urbano ou o estilhaçar pós-moderno da cidade, entre outras. Assim, embora não recusem as perspetivas neomarxistas ou foucaultianas, as geografias da arquitetura não as consideram suficientes para a sua análise.

Em resposta a este quadro, do que as geografias da arquitetura se ocupam é de uma arquitetura vivida ou praticada (practiced), no sentido da relação que essa vivência tem com os intuitos iniciais dos especialistas que produziram essa mesma arquitetura (os urbanistas, planeadores, promotores, engenheiros e arquitetos, entre outros). Esta arquitetura vivida, que tem pontos de contacto com o que Lefebvre (1991[1974]) denomina “espaço vivido” e é um típico objeto de estudo da Antropologia, pode ser contraditória ou até subverter os intuitos iniciais dos especialistas. Um exemplo disto é-nos dado pelo trabalho de Llewellyn (2004) sobre a disjunção existente entre o “desenho” da casa moderna e a sua “vivência” pelos moradores. O autor mostra como os primeiros moradores da Kensal House em Londres, um dos primeiros conjuntos habitacionais desenhados segundo os princípios da Carta de Atenas (concluído em 1936), utilizavam logo desde o início mobília ornamentada para quebrar as linhas racionais e minimalistas da casa, fazendo-o para “se sentirem em casa”; e mostra igualmente como, ao contrário das ideias do habitar moderno transpostas para o desenho da casa em que a cozinha seria um espaço-máquina e jantar-se-ia no espaço da sala, os moradores, mesmo com desconforto, jantavam na cozinha, deixando a sala intacta para visitas. Llewellyn mostra que as ideias do habitar moderno, primeiramente gizadas por arquitetos “visionários” em abstrato, passaram de seguida por uma relação de apropriação muito complexa por parte dos moradores destinatários. Num estudo conexo, Blunt (2008) expõe o modo como a forma construída da Christodora House em Nova Iorque, uma settlement house (prédio de receção/abrigo para trabalhadores), também ela refletia novas conceções do habitar na cidade, centradas mais no indivíduo do que na família. Finalmente, e este é um elemento que distingue as geografias da arquitetura da literatura antropológica centrada na apropriação da arquitetura, Jacobs, Cairns e Strebel (2008) complementam uma visão alargada com uma perspetiva mais focada vinda dos estudos de Ciência e Tecnologia, descrevendo o caminho, ou a rede, que vai da “utopia ocular” de Le Corbusier no seu grandioso plano para a reconfiguração de Paris (nunca implementado) até à prosaica utilização da tecnologia das janelas em torres altas de habitação - que, entre outras coisas, previne o suicídio - em Glasgow. Os três são estudos que não advogam qualquer tipo de determinismo espacial, mas que ao mesmo tempo mostram como:

“O espaço arquitetónico pode ser repensado à luz do conceito de afeto [o affectus de Espinoza] […] e de como um dado edifício e o seu arquiteto pré-configura, limita e concebe determinados afetos para atingir objetivos muito particulares.” (Kraftl e Adey 2008: 213, tradução nossa)

É sob este prisma da relação entre a vida desenhada do edifício e as múltiplas vidas que os moradores ou utilizadores lhe dão que olharemos para as casas do bairro da Malagueira. Acrescentamos-lhe um elemento que se debruça sobre o que significa viver num edifício famoso ou numa casa famosa, sobre o que é “viver numa obra de arte” (Kraftl 2009).

Em resumo, as casas da Malagueira de Siza são simultaneamente um exemplo de regionalismo crítico na arquitetura contemporânea e uma materialização do contexto político em que surgiram em termos de provisão de habitação para as classes mais pobres; são também, no campo disciplinar da arquitetura, uma derivação e extensão do desenho e metodologia participativa que Siza tinha iniciado nos projetos do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) no Porto (que foram uma das razões para a Câmara Municipal de Évora lhe ter feito a encomenda para a Malagueira) e inspiradas de forma indireta, via modernismo, pela linguagem tradicional ou vernacular do Sul; e são as habitações de um bairro ainda ligeiramente estigmatizado no contexto de Évora, mas muitíssimo valorizado por apreciadores de arquitetura. São todas estas coisas e são ainda as práticas domésticas que acontecem em cada uma delas e que fazem delas um espaço vivido.

Ao escolhermos esta lente analítica não queremos menorizar os estudos já existentes sobre a apropriação da arquitetura de Siza pelos moradores (Grande e Cremascoli 2017; Gomes 2016; Rodrigues 2015; Machado 2012), nem contradizê-los, mas antes “complicar” a descrição do que são a habitação e a arquitetura:

“complicar a ideia do que é um edifício, não apenas conversando ou observando os seus utilizadores, mas pensando nos diversos campos de relações que mantêm esse edifício intacto ao longo do tempo, incluindo nessas relações os tubos e os cabos, os administradores e os utilizadores, os proprietários e os investidores.” (Jacobs 2006: 11, tradução nossa)

Daí a nossa atenção, no final deste artigo, ao que apelidamos microtecnologias na arquitetura de Siza: as ferragens das janelas, puxadores de portas e outros elementos de tecnologia habitacional desenhados por si, muitas vezes imediatamente reconhecíveis por entendidos e que ajudam a criar a “assinatura” do arquiteto nos espaços interiores. Neste ponto, acompanhamos a inspiração Latouriana de Jacobs, Cairns e Strebel (2008, 2012) e “seguimos a rede” que nos leva do simples toalheiro desenhado por Siza às suas ideias quando desenhou a Malagueira, passando pelos constrangimentos e possibilidades entre uma coisa e outra e, finalmente, chegando à interação dos moradores com estes elementos.

Metodologia: “mostre-nos a sua casa”

Para navegar a rede que constitui a Malagueira, socorremo-nos de trabalho de campo etnográfico, realizado pela primeira autora e que teve lugar entre abril de 2022 e maio de 2023, sendo que na fase mais intensiva, entre fevereiro e maio de 2023, a mesma residiu na Malagueira. Como método central da recolha, utilizámos a etnometodologia SUYH-Show Us Your Home de Jacobs, Cairns e Strebel (2006), segundo a qual se solicita aos moradores que façam uma visita guiada por cada um dos espaços da casa enquanto descrevem o que fazem neles, desse modo observando os moradores “em ação” com a sua casa e, por sua vez, como esta influi na sua vida quotidiana.

As “visitas a casa” incluíram quer entrevistas aprofundadas, quer foto- ou vídeo-elicitação (Harper 2002) durante as mesmas. Procurou-se que a entrada em casa das pessoas não fosse excessivamente invasiva, mas ainda assim permitisse aceder à experiência vivida da arquitetura, àquilo que Jacobs, Cairns e Strebel (2012, 2008) apelidam práticas sociotécnicas do habitar. Em complemento, adotou-se ainda o método walking with video (Pink 2007) para acompanhar alguns moradores em caminhadas pelo bairro. Foram realizadas 38 entrevistas com moradores, das quais 15 foram “visitas a casa”, com ambos os totais respeitando equilíbrio numérico entre os diferentes tipos de posse, a saber inquilinos da HabÉvora, proprietários através de cooperativa e proprietários através do mercado privado. Em complemento, entrevistaram-se oito outros atores mais institucionais, como um arquiteto, um técnico camarário, um construtor civil, um político autarca, um promotor imobiliário, um visitante, um académico e um sócio de uma associação de moradores. Finalmente, foram realizadas seis entrevistas com pessoas de etnia cigana que vivem em acampamentos na periferia do bairro da Malagueira e quatro com residentes dos bairros da Cruz da Picada e do Escurinho.

Fonte: fotografia de Eduardo Ascensão

Figura 1 O bairro da Malagueira, 2021 

O bairro económico da Malagueira: ideias, constrangimentos e participação no desenho

O bairro da Malagueira é um pedaço de cidade de 27 hectares, com quase 1200 fogos para cerca de 4000 pessoas, que foi pensado e concretizado por Siza a partir de 1977. A encomenda feita pela Câmara Municipal de Évora surgiu em momento de extrema necessidade habitacional, quando uma grande percentagem da população da cidade - cerca de 10.000 pessoas - vivia em 32 bairros clandestinos fora das muralhas, muitas vezes sem saneamento, infraestruturas viárias e outras condições básicas de habitabilidade (Gomes 2016: 29; Gaspar 1972: 328).

Embora o problema estivesse há muito sinalizado, e desde o final da década de 1930 houvesse a intenção de elaborar um plano de extensão da cidade (Mota 2014a: 440), este apenas foi realmente iniciado para a área ocidental em 1969, seguindo uma orientação que passava pela construção de edifícios em altura. Após o 25 de Abril de 1974, avançou-se com a expropriação de terrenos e edificou-se o bairro de promoção pública da Cruz da Picada, um conjunto de edifícios de habitação coletiva com quatro a oito pisos que totalizam 479 fogos.

Imediatamente a seguir, e enquanto secretário de Estado da Habitação e Urbanismo durante o período revolucionário, Nuno Portas decidiu que o Plano de Expansão Oeste de Évora deveria ser revisto à luz de uma escala e densidade consentâneas com o perfil da cidade, isto é, sem torres de habitação altas. Procurava-se a “integração e articulação” dos bairros clandestinos e a “conservação e criação de espaços verdes urbanos” (Siza Vieira 1979), ideias partilhadas por Siza quando em 1977 assumiu o seu desenvolvimento. Com a intenção de nada excluir, o arquiteto fez um reconhecimento das marcas vitais, topográficas e históricas ou arqueológicas do lugar, procurando estabelecer um diálogo com ocupações anteriores e com os bairros clandestinos vizinhos, sem que isso significasse tomá-los enquanto referência ou modelo absolutos (Siza Vieira, Rousselot e Beaudouin 1978).

Em resultado, o plano do bairro da Malagueira é formado por vários núcleos de casas em banda que encontram e rematam os aglomerados preexistentes. Os núcleos são estruturados a partir de dois eixos principais, reservando espaços verdes na área central e nalguns interstícios, e localizando equipamentos e edifícios comerciais ou de serviços em pontos estratégicos, como no cruzamento dos dois eixos. Duas ruas, apelidadas Broadway I e II, acomodariam outros espaços comerciais. O plano foi sendo construído por fases, embora grande parte dos equipamentos - cuja existência Siza defendia que evitaria que a Malagueira se assemelhasse a um dormitório (Siza Vieira 2000 [1998]: 117-121) - esteja ainda por edificar nos dias de hoje, devido às dificuldades de financiamento provenientes, em parte, de conflitos entre o governo central e a autarquia liderada pelo Partido Comunista de forma ininterrupta entre 1978 e 2000.

As muitas limitações económicas tiveram implicações no processo de urbanização, a começar na infraestruturação. Para esta, em vez de uma infraestruturação subterrânea, Siza criou uma conduta elevada que se sobrepõe às casas e atua como espinha dorsal unificadora dos diferentes núcleos ou ruas. Lembrando o aqueduto de Évora, incluindo na forma como se funde com a massa de casas (Costa 2021; Mota 2014a; Fleck e Pfeifer 2013; Molteni 1997), acomoda as diversas infraestruturas domésticas (água, eletricidade e telecomunicações) e tornou-se também, a certa altura, espaço privilegiado de brincadeira pelas crianças (Gomes 2016).

Fonte: Arquivo Fundação Calouste Gulbenkian e Drawing Matter.

Figura 2 Esquissos da assemblagem das casas (esquerda) e pátios, assemblagem e interiores (direita). Álvaro Siza Vieira, 1977 

A parte habitacional do projeto tem por unidade a casa unifamiliar de dois pisos, com pátio, onde se consegue entrever o cruzamento entre princípios da arquitetura moderna e uma interpretação crítica da tradição vernácula.2 A equipa de Siza usou um desenho modular muito sofisticado, que significa que existem 33 subtipos de habitações provindos de uma única matriz. Além disso, as casas são evolutivas, de modo a adaptarem-se às necessidades e à evolução de cada agregado familiar, e apresentam pequenas variações entre as diversas fases (Mota 2014a; Duarte 2007).

A primeira fase teve início em 1980, com a construção das primeiras 100 casas pela Cooperativa Giraldo Sem Pavor (criada pela Associação de Moradores São Sebastião). Seguiu-se a segunda fase, em 1985, com 103 fogos, da Cooperativa Boa Vontade. Só depois é que o Fundo de Fomento da Habitação (FFH) construiu os primeiros 300 fogos, de um total de 418. O zonamento levado a cabo nas diferentes fases de construção (habitação social, cooperativas e privados) terá contribuído para a segregação do setor da habitação social. Nas palavras de uma responsável da HabÉvora:

“Não há ruas mistas em que haja cooperativa e habitação social. O que há é, nas nossas ruas, casas de habitação social e casas compradas. O projeto das cooperativas não tem habitação da HabÉvora. Deviam ser mistas, porque a intenção do bairro e a questão de ser habitação social e a custos controlados, e privada, era essa mesmo, fazer um mix. Mas isso acabou por não ser viável, penso eu, em termos de construção. E consegue-se distinguir muito bem no bairro a diferença, em termos de arquitetura, em termos das casas. A própria fachada é um pouco diferente, tem muros mais baixos… As casas da HabÉvora têm muros mais altos. [Outra] das características do Bairro da Malagueira é a diferenciação por tipologias. Os T2 estão num local, os T3 estão noutro local e os T4 estão noutro local, isso fez com que não houvesse esse mix das famílias também, famílias muito numerosas viviam todas no mesmo local.” (Quadro HabÉvora, maio 2023)

O processo participativo no desenho do bairro, pelo qual é conhecido internacionalmente, foi desenvolvido sobretudo na fase inicial, com as cooperativas. Um dos resultados desse diálogo é a existência de dois tipos de casa, um com pátio à frente e outro com pátio atrás, em que o segundo resultou da preferência por parte de alguns moradores em ter a casa diretamente voltada para a rua (Siza Vieira 2000 [1998]). Outra negociação teve que ver com variações na altura do muro, dado alguns moradores preferirem que este fosse baixo (Gomes 2016: 110; Léger 2013: 234, ver secção seguinte). Se nas primeiras fases houve diálogo com os moradores, nas fases seguintes ele diminuiu. Considerando as casas projetadas para o FFH (depois IGAPHE e agora geridas em parte pela empresa municipal de gestão habitacional HabÉvora), Costa (2021: 278-279) entende que o projeto não foi capaz de captar as formas de vida específicas do grupo de habitantes ciganos, enquanto Léger (2013: 229-230) observa que a edificação dessas casas junto aos locais onde esta população tinha as suas tendas tentou compatibilizar a nova vivência com possibilidades de ocupação do espaço exterior para práticas domésticas e de convívio, ainda que com isso tenha gerado um enclave. Por outro lado, Gomes (2016: 521) observa que a “maioria da população que veio para as casas do ex-IGAPHE não tinha hipótese de escolha, nem capital cultural que permitisse aceitar as linhas e formas urbanas do bairro.”

Embora o projeto da Malagueira tenha sido determinado pela necessidade de alojar populações com graves carências habitacionais, acabou por integrar um leque mais alargado de destinatários, que se pode dividir, grosso modo, em três grupos: (1) os arrendatários dos fogos do FFH/IGAPHE/HabÉvora, de estrato socioeconómico mais baixo; (2) os moradores das casas adquiridas em cooperativa - que, contrariamente às associações de moradores do SAAL, incluíam pessoas de diversos estratos sociais ; e (3) os moradores de casas adquiridas no mercado privado, de estrato socioeconómico mais elevado (Costa 2021; Gomes 2016; Mota 2014a; Siza Vieira 2000 [1998]).

O desenho-base, que se pode observar ainda na casa que Siza conserva no bairro - uma casa sem alterações significativas ao plano original e mobilada com peças desenhadas pelo próprio Siza, por isso parecendo uma espécie de “andar-modelo” involuntário das características originais (figura 3) - seria o ponto de partida para acolher a vida dos habitantes, que passariam a “complicar” a casa, fosse para a mudar a seu gosto fosse para preservar e sublinhar o desenho original.

Fonte: Fotografias de Eduardo Ascensão

Figura 3 O apartamento de Siza na Malagueira, março de 2023 

Abordamos de seguida alguns dos principais temas que se entrecruzam na experiência dos moradores da arquitetura de Siza, indo da escala maior do bairro à escala menor da casa e depois para dentro dela. O primeiro tema debruça-se sobre o que pode significar viver numa casa e num bairro desenhados por um autor consagrado, aquilo a que apelidamos arquitetura de autor.

Viver numa casa desenhada por um arquiteto consagrado

Por arquitetura de autor entendemos, de modo breve, a aparência geral e os elementos arquitetónicos que tornam um edifício ou conjunto de edifícios identificáveis relativamente a quem os projetou (ver Costa et al. 2025). A “arquitetura de autor” de Siza surge habitualmente associada à utilização de linhas geométricas e formas austeras em implantações difíceis. Para os moradores da Malagueira, morar num bairro ou numa casa desenhada por um arquiteto consagrado é motivo de orgulho:

“Ainda no outro dia estava aí um grupo de turistas, asiáticos e outros, a tirar fotografias… perguntam desde quando é que isto é… e andam aí pelas ruas a tirar fotografias às condutas e a tudo. Eu acho ótimo! E ao fim e ao cabo talvez seja uma das arquiteturas que não há [igual] a nível de… eu arriscaria dizer, de país. Valoriza o bairro e valoriza a cidade de Évora.” [Celeste,3 nascida na década de 1960, arrendatária da HabÉvora, moradora desde 1994, agosto de 2022]

Figura 4 Estudantes de arquitetura de Milão visitam o bairro, março 2023. 

Os elogios à “atmosfera do bairro” são recorrentes, bem como à sua relação com as preexistências e o desenho dos jardins:

“Na altura em que estudei aqui na universidade, tinha uma colega que era de Évora e que vivia aqui. E eu lembro-me que quando vínhamos a casa dela havia assim uma espécie de emoção pelo lugar, pela envolvência, pelo verde, por as casas serem diferentes…” [Leonor, nascida na década de 1980, proprietária, iniciativa privada, moradora desde 2008, novembro de 2022]

Neste excerto vemos como a preocupação de Siza em preservar o genius loci de proximidade com a natureza resultou, para esta moradora, na perfeição. Depois, a valorização da alta densidade a baixa altura preconizada por Nuno Portas prolonga-se para a escala da casa:

“As circunstâncias de não termos ninguém por cima nem por baixo é outra qualidade, em relação a estarmos a ocupar um espaço onde os outros incomodam. Já morei na Cruz da Picada, morava numa torre onde moravam 27 famílias.” [José, nascido na década de 1960, proprietário, iniciativa privada, morador desde 2016, março de 2023]

E para a sua configuração:

“A nível de arquitetura, eu acho que a forma como a arrumação que é feita neste polígono, a nível dos compartimentos da casa, […] está brilhante. Porque conseguimos ter aqui, em pouco espaço, vários compartimentos e uma arrumação que está muito bem conseguida.” [Leonor]

No entanto, existem elementos que são criticados pelos moradores:

“Isto tem muita fama porque foi o Siza Vieira e não sei quê, mas as ruas… é o que se vê. São estreitinhas. Com tanto espaço que há aqui para trás, podiam recuar mais e fazer umas ruas como deve ser. […] Houve assim umas coisinhas que falharam.” [Adelaide, nascida na década de 1940, proprietária, cooperativa, moradora desde 1991, maio de 2023]

Como é referido por Léger e Matos (2004), para que nos 27 hectares da Malagueira se conseguisse reservar metade do terreno para um parque público, Siza “teve de reduzir a dimensão das parcelas [8 por 12 m] e a largura das ruas, medindo as mais estreitas entre 4 a 6 metros apenas” (idem: 45). Esta questão traduziu-se num problema, porque as ruas pedonais, inicialmente concebidas para as convivialidades vicinais, foram sendo apropriadas pelos moradores para trânsito e estacionamento automóvel, em parte por alterações sociais gerais (as famílias terem mais carros) e em parte porque a construção das garagens foi feita longe das casas. Mas as reduzidas dimensões das parcelas, e consequentemente das casas, deveram-se também, como referido, aos constrangimentos económicos, e algumas opções do projeto por eles determinadas não são apreciadas por alguns moradores:

“Se formos olhar para o módulo, há coisas que, se calhar, eu não gosto tanto. […] Há um lado da casa que é cego, que está de costas, que não tem janelas, ou seja, não há ventilação cruzada, por assim dizer. E depois, a nível de orientação, no caso da minha casa, resulta em não conseguir ter luz direta do sol, o que faz com que a casa seja escura e seja necessário ter sempre as luzes ligadas. De verão não, mas de inverno sim. As divisões também são um bocadinho desproporcionadas… eu, por exemplo, lá em cima, tenho um quarto gigante e tenho outro quarto que podia ser um bocadinho maior.” [Leonor]

Para outros, a extrema racionalidade do desenho de Siza funciona como obstáculo para o seu conforto estético doméstico, motivando o desenvolvimento de formas de apropriação variadas, analisadas por diferentes autores (Mota 2018, 2014b; Gomes 2016; Duarte 2007) e que igualmente exploramos mais adiante:

“O que eu achava nas casas é que estavam muito funcionais, a compartimentação era agradável, mas em termos de beleza… pronto, era as paredes nuas e mais nada. E era tudo em alvenaria, tudo em tijolo e cimento. E eu acabei por fazer ali algumas coisinhas…” [Pedro, nascido na década de 1950, proprietário, iniciativa privada, morador desde 1980, dezembro de 2022]

A simplificação da construção e resultante fraca qualidade deveram-se sobretudo à suborçamentação e a dificuldades, à época, na obtenção de mão-de-obra qualificada e materiais no interior do país. Além disso, o desenho de Siza implicou soluções técnicas menos familiares para as empresas de construção, verificando-se maiores fragilidades, nomeadamente na impermeabilização das condutas, que tem gerado muitas infiltrações nos fogos. Mas isso deve-se igualmente à falta de manutenção do bairro, à inação dos poderes públicos quanto à escassez de equipamentos coletivos ou à degradação dos existentes, contribuindo para a desqualificação e o declínio material e simbólico do bairro. Apesar de ser uma obra de referência em arquitetura, a Malagueira é ainda um bairro estigmatizado no contexto eborense. E aqui entra o “paradoxo Siza” na Malagueira, entre a celebração do bairro e a sua escassa manutenção:

“Deviam olhar mais para o bairro. E eles não olham para o bairro. Eles só olham quando lhes cheira, falando bem e depressa, a algum prémio ou alguma coisa, como agora [com a candidatura a património UNESCO]. Porque o bairro da Malagueira foi feito por este, ou porque tem uma estética e características não sei do quê, mas depois em si, não investem no bairro. Todas as coisas que se têm feito, que se têm melhorado, são as próprias pessoas que cá vivem que fazem.” [Maria do Carmo, nascida na década de 1960, proprietária, iniciativa privada, moradora desde 1991, agosto de 2022]

A existência de opiniões fortes em relação ao espaço que habitam tem na Malagueira uma história que recua ao tempo em que o bairro foi desenhado com a participação dos moradores. Na próxima secção descrevemos um dos principais pontos desse processo, uma “controvérsia construtiva” entre arquiteto e utilizadores, para usar a linguagem dos Estudos de Ciência e Tecnologia. Trata-se da controvérsia sobre a altura dos muros dos pátios das casas, e aperta a escala de análise para a zona exterior da casa.

Pátios, muros e telheiros: uma controvérsia construtiva

Na literatura sobre teoria e genealogia da arquitetura, existe uma interessante indecisão sobre se a obra de Siza na Malagueira vem retomar tradições arquitetónicas locais e vernaculares ou se é antes uma variação de tipologias habitacionais desenvolvidas durante o modernismo. O próprio Siza refere que os pátios das casas da Malagueira que desenhou não decorrem de uma tradição arquitetónica local ou regional pois o pátio não existe com aquela disposição no Alentejo (Siza Vieira e Beaudouin 1991), e que são outra coisa. Embora não concretize o que então seriam, recusa igualmente a relação com a arquitetura dos Siedlungen da Europa central na década de 1930 (idem), tantas vezes associada aos bairros por si projetados no Porto ao abrigo do SAAL (S. Vítor e Bouça). Deste modo, Siza anula tanto o entendimento avançado por Frampton (1983) que o aponta enquanto expoente máximo do Regionalismo Crítico, como o seu enquadramento num contexto mais amplo do que o nacional, o de “internacionalista astuto”, tal como defendido por Geers (2013) numa crítica às limitações do regionalismo. Estaríamos aqui no campo de uma singularidade irrepetível, numa aproximação à figura do génio.

No entanto, podem identificar-se de facto semelhanças entre as casas e os pátios da Malagueira e os de outras arquiteturas, sendo apenas necessário descer mais a sul do que o Alentejo, até ao Algarve, e em particular até aos pátios escondidos por muros altos em Olhão e à sua relação com a cobertura plana, a açoteia. Mais do que uma transposição da tipologia - as casas da Malagueira são tipologicamente diferentes das de Olhão -, pode ler-se uma transposição da linguagem “cubista” de Olhão (que por sua vez remete para uma tradição mediterrânica e árabe) para o contexto alentejano. Acontece que uma leitura modernista das açoteias de Olhão - hipótese que em relação à Malagueira também Fleck sugere (Fleck e Pfeifer 2013: 38) - não seria novidade, pois esta já tinha sido realizada por outros arquitetos modernos que projetaram e construíram no Algarve em décadas anteriores a Siza. Entre eles incluem-se Carlos Ramos - o seu projeto de 1930 para um bairro municipal, nunca construído, tem semelhanças com a Malagueira na instalação de um pátio fechado dentro do lote (ver Agarez 2016: 151) - ou Eugénio Correia e os seus bairros económicos da Horta da Cavalinha, em Olhão, e do Bom João, em Faro, ambos construídos no período 1945-50 (idem: 157-158). Nesse sentido, estas obras seriam exemplos da genealogia arquitetónica da Malagueira, independentemente das afirmações do próprio Siza. Um último dado relevante para esta discussão essencialmente teórica prende-se com a viagem que o arquiteto fez - juntamente com Fernando Távora, Alcino Soutinho, Sérgio Fernandez e outros - à Grécia em 1976, um ano antes de iniciar o desenho da Malagueira (Andrade 2023). Não é improvável que o impacto visual de alguns elementos de casas vernaculares de Santorini e Mykonos, nomeadamente o acesso por escadas às coberturas planas, lhe tivessem igualmente servido de inspiração, como aliás o fizeram a muitos arquitetos modernistas ao longo do séc. XX.

Estas questões abstratas relativas às tradições e genealogias da arquitetura não são totalmente estranhas aos moradores da Malagueira, e de certa forma os mesmos já interiorizaram alguns dos debates específicos da história da arquitetura em conhecimento “comum” e têm a sua própria visão das tradições arquitetónicas do Alentejo. Veja-se uma apreciação genérica que incorpora a genealogia árabe das casas:

“Em termos de arquitetura, deve ser uma das casas mais bonitas que há… as casas da Malagueira… isto é estilo árabe.” [Ricardo, nascido na década de 1970, arrendatário, HabÉvora, morador desde 2016, maio 2023]

E veja-se então o início da controvérsia sobre a opção de Siza fechar o pátio com muros altos:

“Todas as casas eram de muro alto. Nós, cooperativa, é que conseguimos, em discussão com o Siza Vieira, dizer que as pessoas estavam descontentes, por isso é que ele concedeu algumas coisas […] O muro alto, ali, o que impedia era que… estávamos ali fechados. E a gente estávamos habituados a estar libertos, está a ver a questão? O Alentejo é portas abertas!” [Diamantino, nascido na década de 1950, proprietário, cooperativa, morador desde 1982, dezembro de 2022]

Segundo o autarca responsável pelo convite a Siza, este foi mesmo um dos pontos mais contestados pelos moradores:

“[Nas reuniões com os moradores] a grande guerra que surgiu […] foi a dos muros [do pátio]. Essa foi uma guerra muito forte em que havia futuros moradores, os interessados, que defendiam que queriam o muro baixo, porque com o muro baixo eles dentro de casa ainda viam a rua e, portanto, queriam esse panorama. E o Siza defendia que o muro alto dava uma privacidade, mais o espaço que a família ganhava dentro da casa. Para além de poderem ter um terraço, a parte de baixo era muito útil porque as pessoas tinham motas, tinham bicicletas; podiam pôr e deixar logo ali… até podiam ter árvores e um pequeno pátio… Portanto, ele revelava que aquele pátio era de uma grande importância para a vida familiar das pessoas. E os que teimavam que só queriam a vista, teimaram, teimaram, teimaram… até que o Siza já estava um bocadinho farto daquela discussão, depois de todos os argumentos que ele deu como válidos, acabou por tomar a decisão de dizer ‘bom, vamos acabar com isto, quem quer muros altos fica com muros altos, quem quer muros baixos fica com muros baixos. Mas, já agora, vou dizer uma coisa. Todos aqueles que vão construir muros baixos, cá estou para ver como é que daqui a muitos anos vão ter interesse em que o muro suba’. Hoje, há moradores que plantam trepadeiras, possivelmente para fechar [e terem maior privacidade ou criar sombra no pátio].” [Autarca, dezembro de 2022]

E, de facto, alguns moradores concedem hoje que a opção por enclausurar os pátios com muros altos tinha uma lógica:

“A minha casa é de muro baixo, mas se eu soubesse o que sei hoje… tinha ficado com o muro alto, porque no verão há muito calor e o objetivo do muro alto era, precisamente, fazer essa proteção. Se for a ver, há aí uma boa dezena de casas que hoje têm um telheiro à frente do quintal. A minha, por exemplo, tem um telheiro, que ainda não foi bem autorizado… mas pronto, fecham os olhos.” [Diamantino, dezembro de 2022]

Existe portanto uma diversidade de experiências da arquitetura, que vai desde o pensamento arquitetónico inicial que gera a opção do pátio (um pensamento ciente das tradições locais, das tradições vernaculares de outros pontos do mundo mas também das leituras modernistas dessas tradições), passa pelo diálogo e as negociações que tiveram lugar aquando do desenho de pormenor, com vista à sua alteração; pela situação de compromisso que se atinge e que é efetivamente construída; e culmina na apropriação e transformação da arquitetura, neste caso a junção de um telheiro que não está licenciado (figura 5).

Fonte: fotografias de Juliana Pereira e Eduardo Ascensão.

Figura 5 Os volumes “cubistas” das casas e as diferenças entre muro alto (em cima, à esquerda) e muros baixos (em cima, à direita); acrescento de marquise no pátio (em baixo; à esquerda, casa da direita) e telheiro acrescido de toldo no pátio (em baixo, à direita) 

Reconfigurações, materialidade e microtecnologias

A transformação, reconfiguração e personalização das casas pelos moradores, natural e até decorrente da natureza evolutiva do desenho de Siza, assume diversas modalidades: aumento ou diminuição de divisões; instalação de marquises como local de arrumos ou de trabalho; colocação de diferentes revestimentos na cobertura para melhor proteção climática; substituição do chão original em corticite por tijoleira; entre outras. O aspeto evolutivo presente nas ideias iniciais de Siza é recorrentemente elogiado:

“Outra coisa que também foi interessante da parte do Siza é que este projeto é um projeto evolutivo. É um projeto que permitiu, depois, construir mais. No meu caso, era um T3 e a gente transformámos só num T4, mas podia ser T5, não é? Nós optámos por fazer um quarto maior em cima, com um varandim mais pequeno aí também para garantir a luz nesse quarto e também na sala.” [José, março de 2023]

Por vezes, este processo de transformação implica alguns constrangimentos. Nas palavras de um morador:

“A escada era uma escada em madeira com o corrimão em alvenaria, e eu acabei por fazer uma escada em alvenaria com um corrimão em ferro para lhe dar também mais alguma beleza, não é? […] Não é que eu não gostasse da casa do projeto do Siza, eu até gostava do projeto do Siza. Eu achava era que o projeto não se adaptava bem àquilo que eu necessitava e então tentei fazer dentro daquilo que eu necessitava e aproximar o mais possível, porque também havia coisas que a gente, na iniciativa privada, queria fazer e eles da Câmara não deixavam.” [Pedro, dezembro de 2022]

Como a última frase indica, o processo de “fazer casa” (Kraftl 2010) na Malagueira é complexo e por vezes conflituoso. Geralmente, são os moradores mais escolarizados e que são proprietários de “casas de compra” (de cooperativas ou do mercado privado) que tendem a sentir um elevado grau de identificação com a casa. Isso varia entre o zelo pela integridade da arquitetura de Siza, ou uma transformação mais profunda. No caso dos moradores que não são proprietários, como os arrendatários da HabÉvora, não efetuam transformações muito profundas devido ao regime de propriedade (interiorizando a ideia de que “a casa não é minha para personalizar a gosto”), às limitações impostas pelos regulamentos da empresa municipal ou finalmente aos constrangimentos financeiros habitualmente associados a um perfil socioeconómico mais baixo, que, como nos disseram, condiciona a personalização da casa.

Apesar disso, alguns moradores contornam ou transgridem o regulamento da HabÉvora, mesmo estando sujeitos a “fiscalizações-surpresa” que podem resultar, no limite, em despejo.

“Alguns inquilinos nossos fazem alterações nos quintais, fazem coberturas… como a parede do quintal é muito alta, e não se vê, eles tapam. Muitas pessoas utilizam as coberturas para estender a roupa como se fosse um terraço! Algumas delas até já levantaram as coberturas sem autorização da Câmara. Houve uma vez que alguém se lembrou de pintar a casa de cor-de-rosa.” 4 [Quadro, HabÉvora, maio de 2023]

A surpresa e censura pela utilização da cobertura para estender a roupa ilustra a relação conflituosa que se gera a partir de entendimentos diferentes sobre o que é a arquitetura, como esta é utilizada, e em particular quando esta é “de autor”: a missão de preservar e respeitar as casas de Siza na Malagueira gera na entidade oficial responsável por essa missão uma incompreensão quanto à apropriação quotidiana pelas pessoas, que possivelmente nem sequer Siza partilhará.

A estética e a prática da arquitetura de Siza

Entrando na casa, onde se dá uma parte central do processo do habitar, uma das formas mais prosaicas, mas especialmente visível, de modelar o espaço de habitação segundo determinada estética e ética prende-se com o uso de mobiliário - mais trabalhado e tradicional ou mais moderno.

Fonte: filmagens de Juliana Pereira.

Figura 6 Stills de vídeos de visitas a casas, 2023 

Na Malagueira, esta escolha reflete de modo claro os diferentes modos de relacionamento com a arquitetura de Siza. De um lado, a adesão às linhas modernistas e mobiliário moderno, mais frequentes nas casas de moradores mais escolarizados (figura 6, em cima); do outro, a tentativa de quebra das linhas geométricas através de mobiliário e decoração ornamentados, comuns nas casas de moradores menos escolarizados (figura 6). Parecerá porventura uma apreciação excessivamente dualística, mas tal como noutro conjunto habitacional desenhado por Siza, o bairro da Bouça no Porto (Costa et al. 2025), este elemento, que Llewellyn (2004) descreve na Kensal House, foi recorrente nos nossos entrevistados e não o podemos ignorar.

O processo de “fazer casa” através da integração de determinada mobília, mesmo para os moradores com dificuldades financeiras em fazê-lo, vê-se no caso de uma moradora que decora a casa com mobílias usadas - algumas compradas em lojas de segunda mão, outras aproveitadas de peças “descartadas” encontradas na rua ou que lhe são oferecidas:

“Isto [referindo-se aos móveis da sala], olhe, comprei em segunda mão quando para aqui vim, era da minha sogra. Esta coisinha é que me deram. Deram à minha filha, esta cristaleira. Outras são coisas que me dão, coisas que… pronto. […] Este da parte de baixo [referindo-se a um armário na cozinha] achei-o ali ao pé de um contentor. De vez em quando, quando tenho tempo, ponho um bocadinho de óleo de cedro, e este também foi a minha filha que o achou.” [Felisberta, nascida na década de 1940, arrendatária, HabÉvora, moradora desde 1991, novembro de 2023]

Para lá dos elementos decorativos ou estéticos, existem as práticas associadas a cada parte da casa e as diferentes formas de caracterizar o espaço arquitetónico desenhado em relação ao impacto que tem no espaço vivido. Um dos elementos que foi mais salientado no desenho da casa foi a divisão tradicional entre cozinha e sala, por oposição a um open plan ou cozinha americana:

“Haver divisões da cozinha para a sala é horrível! Não se fazem casas assim, isso é horrível! Paredes da cozinha para a sala… com crianças pequeninas, é horrível. Só quem tem filhos é que sabe. Pode ser perigoso, não se consegue estar a ver a criança. É um par de coisas que o espaço aberto permite. A máquina de lavar a roupa não deve ser na cozinha. A gente não deve levar a roupa suja para a cozinha, não é estético nem higiénico, as casas não deviam ser feitas assim. […] Isto sou eu, uma leiga que não percebe nada, mas é a minha opinião.” [Luísa, nascida na década de 1960, proprietária, cooperativa, moradora desde 1995, novembro de 2022]

De todas as divisões, Luísa declarou passar mais tempo na cozinha, lamentando não usufruir tanto da sala de estar por falta de tempo disponível devido às tarefas domésticas. O seu desabafo convoca a ideia que as feministas de segunda geração salientavam a propósito da cozinha modernista, tal como primeiramente projetada por Margarete Schütte-Lihotzky - uma cozinha racional, com os eletrodomésticos embutidos nos armários e outras tecnologias de ajuda às tarefas domésticas à distância de um braço, como que uma machine à cuisiner -, mas que enclausurava a mulher numa divisão pequena e longe do resto da vida familiar.

Fonte: stills de Juliana Pereira.

Figura 7 Duas moradoras nas suas cozinhas, 2023 

O pensamento progressista do modernismo arquitetónico foi muitas vezes pouco progressivo quanto aos papéis de género em casa e, ao contrário do que por vezes transparece na literatura da arquitetura, alguns moradores estão mais “preparados” para inovações de layout que espelhem mudanças sociais profundas do que os arquitetos e promotores. Em defesa de Siza no caso da ausência de open plan na Malagueira, é necessário ponderar que os destinatários originais nos anos 1970 não tinham as mesmas preocupações que moradores como Luísa têm em 2023. Disto isto, mesmo moradoras idosas o referem:

“Olhe, sabe o que é que eu gostava? De partir esta parede [aponta para a parede que divide a cozinha do corredor de acesso à sala] mas também, sou eu sozinha, o meu filho… O meu marido, levo-lhe o comer à cama.” [Felisberta, novembro de 2023]

Outro tipo de reconfiguração dá-se quando a casa é usada para o trabalho. Trata-se de um tema recorrentemente abordado pela literatura geográfica e antropológica sobre a casa (ex.: Kellett e Tipple 2000), e que na Malagueira se pode ver na casa de João:

“Normalmente, as casas [da Malagueira] têm varanda. A minha já não tem varanda, tem escritório, que é onde eu faço o meu trabalho de couro, porque eu faço as facas, mas também faço trabalho de couro. As bainhas onde coloco as facas, é tudo cozido à mão ali […], a entrada para o escritório é só pelo quarto. É a única parte que não gosto na casa.” [João, nascido na década de 1980, proprietário, morador desde 2018, março de 2023]

João não gosta desta parte da casa não pelo desenho original de Siza, mas devido a uma alteração que ele próprio teve de fazer para adequar a casa à necessidade de ter um espaço para trabalhar. Encontrámos vários outros moradores que também fizeram marquises para ganharem espaço para trabalharem em casa, como Sílvia, que aí faz recuperação de tântalo.

Microtecnologias

O processo de habitar faz-se finalmente com as microtecnologias da casa, os instrumentos invisíveis do habitar. Siza sempre dedicou tempo ao desenho destes objetos, que são uma faceta importante na sua obra e carreira. Alguns, de ferragens a toalheiros, encontram-se à venda em lojas especializadas e são peças relativamente dispendiosas devido à “assinatura” de Siza.5 Na Malagueira, um bairro de rendimentos maioritariamente médio-baixos, a maior parte das peças que ainda são as originais são as peças maiores, como o portão de entrada. As ferragens originais, embora de qualidade, têm sido paulatinamente substituídas por peças novas standard à medida que se estragam (figura 8). Mas se algumas destas microtecnologias de autor são encaradas pelos moradores como objetos importantes mas mundanos e substituíveis, outras parecem incorporar um valor estético e ético especial:

“Nós decidimos, há dois anos, mudar as janelas, tirar as janelas de madeira, por razões energéticas, de manutenção, de conservação. Algumas estavam a ficar muito degradadas, já não há quem faça, quem restaure, então optámos por umas janelas de alumínio, o mais parecidas possível, a abrir para fora, porque isso é um pormenor delicioso, as janelas, portas, abrirem para fora… acho que é um pormenor de grande relevância e de funcionalidade muito adequada. As janelas originais do arquiteto Siza guardei-as todas. E mais do que isso: tenho um par de janelas a servir de porta ali no móvel interior [figura 8]. Portanto, faz uma ligação com a verdadeira alma destas janelas, portas, com a intimidade desta casa. A vantagem é muita, para além do emocional, porque vêem-se as peças de roupa… esteticamente, é belo.” [Pedro, dezembro de 2022]

Figura 8 Microtecnologias de Siza: puxador de entrada original e caixa de correio substituída (em cima, à esquerda, still de vídeo); e o inverso (ao meio, à esquerda); um toalheiro original Siza (em baixo, à esquerda); e aproveitamento de janela original para armário (à direita) 

Aqui chegámos à escala mais pequena da experiência da arquitetura de Siza. Existe uma valorização “pragmática” de soluções técnicas das microtecnologias como a abertura de janelas e portas para fora, mas igualmente uma valorização mais emocional na ideia de aludir ao passado da casa, reutilizando uma janela para preservar simbolicamente essa ligação, embora sem descurar que estes instrumentos fazem a casa funcionar e que, portanto, precisam igualmente de cuidado, manutenção e eventual substituição. Existe um feixe de ideias e pensamentos relacionados com, e ativados pelo manuseamento mundano e quotidiano de objetos pequenos que poderiam muito bem ter passado desapercebidos pelos moradores, mas não passaram.

Conclusão

A multidimensionalidade das casas de Siza na Malagueira não se esgota nos temas que aqui desenvolvemos, estende-se a outros elementos que não cabem neste artigo. Aqui quisemos sobretudo sublinhar a relação dos moradores com a sua casa enquanto atração turística e ilustração de arquitetura de autor racional relativamente austera; referir alguns pormenores controversos do desenho inicial que ainda hoje são objeto de análise e vivência variada pelos moradores; dar breve lampejos de como os moradores se apropriam do espaço das casas, as mobilam e usam as microtecnologias nelas presentes; e avaliar como o processo do habitar se faz cumulativamente por estas e outras experiências. Nalguns casos, como o das crianças brincarem na conduta ou a cobertura servir de estendal, existe um processo de contingência, comum à arquitetura e a desenvolvimentos tecnológicos, no qual muitas vezes alguns usos ultrapassam as intenções originais. São exemplos prosaicos de que a arquitetura não para no momento do desenho ou da construção, antes continua através da sua vivência, manutenção e reparação.

A experiência da arquitetura de Siza pelos moradores da Malagueira é heterogénea e variada, quer de grupo de moradores para grupo de moradores quer pela mesma pessoa. O mesmo indivíduo pode dar respostas negativas em relação a diversos elementos da arquitetura doméstica de Siza para logo de seguida lhe conferir significados éticos, estéticos e até poéticos. Parece existir como que uma apreciação dupla da arquitetura de Siza, que passa por expressar a valorização em linguagem erudita e fazer as queixas em registo pragmático. Não se trata somente de uma distinção entre classes sociais - embora os indivíduos de perfil socioeconómico mais elevado confiram um valor simbólico ao facto de a sua casa ser de Siza enquanto os de menor têm uma relação muito menos fetichizada com o nome do arquiteto - mas acima de tudo de modos de expressar a experiência da arquitetura, em que se convocam elementos eruditos para explicar algo positivo ou mesmo belo, mas é-se prático e mundano ao apontar falhas ou necessidade de modificação. Isto dentro de um quadro em que existe ora uma consonância entre as ideias do arquiteto-autor sobre determinados elementos (que pode até ter sido o mais conflituoso ao início, como a altura dos muros dos pátios), ora uma dissonância entre as ideias originais de Siza para os moradores aquando do desenho e do processo participativo e as práticas destes nas décadas posteriores (como a ausência de open plan entre a cozinha e a sala). Entre uma e outra, oscilando, se situa a experiência da arquitetura de Siza.

Agradecimentos

Queremos agradecer a Ana Estevens, Filipa Serpa, Ricardo Agarez, Paulo Catrica e Marta Machado pelas reflexões que fizemos juntos no projeto “Habitar Siza” e que também informaram o que aqui escrevemos. A ajuda do presidente da Associação de Moradores da Malagueira Viva e Vivida, Armando Silva, para um primeiro acesso ao trabalho de campo etnográfico foi inestimável, mas devemos sublinhar que este estudo não teria sido possível sem a amabilidade e gentileza com que todos os restantes moradores da Malagueira nos receberam.

Financiamento

Este artigo baseia-se em investigação desenvolvida no âmbito do projeto “Habitar Siza: a experiência e interação dos residentes com a arquitetura e as microtecnologias de Álvaro Siza”, financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SIZA/UES/0020/2019). Disponível em https://doi.org/10.54499/SIZA/UES/0020/2019. Website: https://habitarsiza.igot.ulisboa.pt/. A escrita final foi realizada com o apoio do projeto 2022.00366.CEECIND.

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1Um campo alargado que vai da pesquisa sobre as oposições diádicas das aldeias e casas Bororo de Claude Lévi-Strauss (1955) à análise material e simbólica da casa Cabília de Pierre Bourdieu (1990[1970]).

2Siza nega a influência de modelos formais da arquitetura tradicional, defendendo antes uma visão crítica da cultura regional local que contempla sempre “o momento que se segue” (Siza Vieira et al. 1978), ou seja, a sua transformação.

3Nomes fictícios.

4A casa foi pintada por uma residente de etnia cigana, em contramão a uma estética residencial mais uniforme. Esta nota é importante porque na Malagueira os processos de marginalização quotidiana dos portugueses de etnia cigana incidem também sobre a casa, nomeadamente sobre as diferentes conceções estéticas e de “cuidado/desleixo” com a mesma, culminando na ideia de que “a casa da HabÉvora habitada por ciganos” está geralmente mais degradada do que as outras. Esta ideia preconcebida, no entanto, não tem verdadeira expressão material.

5Ver, por exemplo, toalheiro da figura 8: https://www.carvalhobatista.pt/p3-p-1284-toalheiro-taipas-pt.

Recebido: 17 de Maio de 2024; Aceito: 31 de Março de 2025

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