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Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283
Rev. Enf. Ref. vol.serIII no.8 Coimbra dez. 2012
https://doi.org/10.12707/RIII1238
Reformas da gestão na saúde – desafios que se colocam aos enfermeiros
Manuela Frederico-Ferreira*; Cristiana Filipa Ribeiro da Silva**
* Doutoramento em Ciências Empresariais. Professora Coordenadora, Escola Superior de Enfermagem de Coimbra [mfrederico@esenfc.pt].
** Licenciada em Enfermagem. Colaboradora em Projecto de Investigação. Escola Superior de Enfermagem de Coimbra [cfribeiro@esenfc.pt].
Resumo
Com o intuito de tornar a Administração Pública mais eficiente emergiu um novo modelo de gestão que se refletiu nos serviços de saúde e, consequentemente, nos enfermeiros. Assim, pretendeu-se conhecer quais os desafios, considerados pelos enfermeiros, que se colocam à profissão de Enfermagem perante estas mudanças.
Este estudo é do tipo descritivo, com o recurso a técnicas de análise qualitativa, realizado a partir de um questionário auto preenchido. As respostas à questão em estudo foram analisadas através do programa NVivo.
Da análise emergiram três categorias centrais designadas de: valorização da profissão; carreira de enfermagem; e formação e investigação.
Os Enfermeiros consideram que a profissão não é valorizada ou reconhecida, além disso, referem que as alterações na carreira de enfermagem, advindas da Nova Gestão Pública, não se adequam à prática e impossibilitam a progressão e a remuneração justa. Os participantes realçam que é caminhando para a autonomia e construção do seu próprio corpo de conhecimentos que a Enfermagem poderá enfrentar estes desafios. Considera-se relevante a continuação da realização de estudos que abordem o impacto das reformas nos enfermeiros, incluindo diferentes variáveis. É igualmente relevante que estes resultados sejam tidos em conta pelos gestores e responsáveis.
Palavras-chave: nova administração pública; enfermagem.
Health management reforms – challenges faced by nurses
Abstract
A new management model has been introduced with the purpose of making public management more efficient. This has had consequences for the health services and therefore for nurses. Therefore, it was necessary to identify the challenges perceived by nurses that Nursing has to confront in the face of these changes.
The present study was descriptive, using qualitative analysis techniques, based on a self-administered questionnaire. Responses were analysed using the NVivo programme.
Three main categories arose from the analysis: Value of the Profession; Nursing Career, and Training and Research.
Nurses consider that the profession is not valued or recognized; furthermore, they consider that changes in the nursing career resulting from the New Public Management are not appropriate to nursing practice and do not allow career progression or fair remuneration. Participants added that the only way forward is to work towards autonomy for the profession and to build a body of nursing knowledge.
It is important to continue to study the impact of the reforms on nurses, including different variables. It is equally important that the results are taken into account by managers and leaders.
Keywords: new public management; nursing.
Reformas en la gestión de la salud – retos para los enfermeros
Resumen
Con el fin de hacer que la administración pública sea más eficiente ha surgido un nuevo modelo de gestión que se refleja en los servicios de salud y por tanto lo en los enfermeros. En este marco, nos proponemos saber cuáles son los desafíos a los que los enfermeros consideran que se va a enfrentar la enfermería, delante de estos cambios.
Se trata de un estudio descriptivo, que cuenta con el uso de técnicas de análisis cualitativo, realizado a partir de un cuestionario rellenado por los encuestados. Las respuestas a la cuestión objeto de estudio fueron analizadas con el programa de NVivo.
El análisis reveló tres categorías principales: Valoración de la profesión, Carreras de Enfermería y Formación Profesional e Investigaciones.
Los enfermeros creen que la profesión ni se valora ni se reconoce. Además, indican que los cambios en la carrera de enfermería derivados de la Nueva Gestión Pública no son adecuados para la práctica e imposibilitan la progresión y la remuneración justa. Los participantes destacan que la enfermería solo podrá hacer frente a estos desafíos si tiene como objetivos la autonomía y la construcción de su propio cuerpo de conocimientos. Consideramos pues relevante que se sigan realizando estudios que aborden el impacto de estos cambios en los enfermeros, y que incluyan diferentes variables. También es importante que los gestores y responsables tengan en cuenta estos resultados.
Palabras clave: nueva administración pública; enfermería.
Introdução
A reforma da Administração Pública começa a desenhar-se nos finais dos anos 70, do século XX. Começa então a aparecer um movimento de Reforma e Modernização Administrativa que tem como objetivo tornar a Administração Pública mais eficiente e eficaz, centrada na proximidade dos cidadãos e na melhoria dos serviços prestados. No nosso país, têm sido tomadas algumas medidas, nomeadamente no campo dos serviços de saúde.
De acordo com Nunes e Rêgo, apud Caetano (2010, p.75), “[…] a reforma do Estado assente na introdução da Nova Gestão Pública tem-se refletido no sector da saúde. Concretamente na adoção de modelos de gestão inovadores para os hospitais públicos. Estas e outras dimensões da gestão hospitalar parecem ser particularmente relevantes. Contudo, porque a insustentabilidade económica e financeira do Estado é ainda uma realidade, […] é manifesta a sua incapacidade de satisfazer muitas das expectativas dos cidadãos, da comunidade, e dos profissionais de saúde”.
É portanto evidente que estas mudanças têm acarretado consequências para os profissionais de enfermagem, nomeadamente ao nível da carreira, do vínculo com a instituição, entre outros, criando-se novos desafios para a profissão.
De acordo com o Ministério da Saúde, apud Caetano (2010, p.154), “a motivação dos profissionais é um fator fundamental que assegurará o sucesso da empresarialização”, podendo ser assegurada através da promoção da autonomia e responsabilidade dos profissionais, bem como, das condições de trabalho (idem).
O novo modelo de gestão é identificado com preocupações, centrados em critérios de tomada de decisão orçamentais, racionais e quantitativos, que por vezes podem ser contrastantes com os valores dos profissionais de enfermagem, nomeadamente no que respeita a indicadores de trabalho qualitativos e relacionais assumidos no processo de cuidar.
Deste modo, considerou-se relevante ir ao encontro dos enfermeiros para perceber qual o impacto das reformas da gestão que estes consideram haver no exercício da sua profissão. No presente artigo foram focados os desafios, apontados pelos enfermeiros, que se colocam à profissão neste momento de mudança.
Enquadramento teórico
Em Portugal, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi criado em 1979 para que o Estado pudesse assegurar o direito à proteção, à saúde e à acessibilidade dos cuidados. Contudo, o modelo de gestão em que este estava integrado originou obstáculos que se entendeu poderem comprometer a qualidade dos cuidados prestados, tais como: recursos humanos insuficientes; desmotivação e falta de incentivos; dificuldade no acesso aos cuidados de saúde devido à burocratização do processo das listas de espera; falta de qualidade no atendimento do cliente do SNS; aumento das despesas em saúde; reduzida eficiência dos recursos; falta de controlo no tempo do serviço prestado e pago; e, ainda, gestão inadequada dos hospitais (Araújo, 2005).
Partilhando a perspetiva de Sousa (2009), o desenvolvimento científico, tecnológico, social e económico verificado nas últimas décadas conduziu ao aparecimento de novos problemas e novos desafios aos sistemas de saúde. Entre esses desafios constam as reformas no sistema de saúde, as quais nas últimas décadas, e nos vários países europeus, têm sido profundas mas assentado basicamente em três pilares fundamentais: a equidade, a eficiência e o aumento da responsabilidade perante o consumidor.
Particularmente em Portugal têm-se observado alterações significativas ao nível da saúde, emergindo em duas áreas de intervenção fundamentais que revelam a tendência para a privatização, que são: a introdução de métodos de gestão privada nos hospitais e a criação de um quase-mercado através de contratos, que ao aproximar os preços do público aos do privado aumenta a pressão competitiva entre as instituições (Araújo, 2005). Nesta perspetiva, esta reforma proporciona a “adoção de estilos de gestão mais flexíveis e empreendedores” (Araújo, 2005, p. 16). Contudo, implica profundas alterações a nível das instituições.
Essas alterações enquadram-se num novo modelo de gestão pública designado por Nova Gestão Pública (NGP), que na opinião de Carvalho (2006) traduz mudanças expressivas na representação social do conceito de saúde, deixando progressivamente de ser identificada como um bem coletivo para se institucionalizar e assimilando, em simultâneo, os valores e normas da gestão privada, em que o consumidor é o centro das novas políticas de saúde.
A NGP baseia-se na introdução de mecanismos de mercado, na adoção de ferramentas de gestão privada, na promoção de competição entre fornecedores de bens e serviços públicos, na expectativa da melhoria do serviço para o cidadão, no aumento da eficiência e na flexibilização da gestão.
Esta denominação emergiu no final do século XX com o intuito de colmatar as falhas demonstradas pelo modelo de gestão em vigor, tradicionalmente burocrático, adotado pelo Welfare State (Hood, 1991).
Com a NGP são valorizadas as competências de gestão de cada instituição; implementadas medidas de avaliação de desempenho, clarificando assim a missão e objetivos; é promovida a transparência custo/benefício, a responsabilidade e competitividade; são introduzidos instrumentos de gestão privada; é enfatizada a qualidade dos serviços em prol da quantidade; e, além disso, é promovida a “fragmentação, a autonomização e a separação de tarefas” (Rodrigues e Araújo, 2005, p. 3). Assim sendo, a NGP traduz uma tendência de reformas experimentadas no setor público com base na hegemonia dos três E’s: Economia, Eficiência e Eficácia. Sustentada numa ideologia managerialista, de carácter hard e tecnocrático, que se traduz numa maior representação de áreas específicas de gestão na estrutura organizacional (Carvalho, 2006).
Também ao nível das instituições de saúde e dos seus profissionais são apontadas repercussões assentes nas reformas. Altera-se o seu ambiente de trabalho, o seu estatuto, os seus quadros de referência políticos e institucionais e, até mesmo, as suas práticas.
Atualmente, com a nova reforma organizacional do SNS, mais especificamente nos modelos de gestão hospitalar e, particularmente, ao nível dos recursos humanos, os profissionais de saúde são cada vez mais avaliados não só em termos de conhecimentos individuais ao nível da prestação de cuidados específicos, mas também em termos de capacidade para intervir ativamente na melhoria da qualidade dos cuidados prestados, com menos recursos. Pretende-se que através de um modelo de gestão empresarial, os utentes/clientes possam vir a beneficiar de melhorias efetivas ao nível da qualidade, da facilidade de acesso a profissionais especializados, assim como da melhoria ao nível da assistência e atendimento.
Os enfermeiros, enquanto membros do corpo de recursos humanos do SNS, vivenciam na sua prática clínica as alterações definidas por esta reforma, não podendo contentar-se apenas com a prestação de cuidados segundo normas pré-estabelecidas, mas procedendo a uma avaliação constante dos cuidados prestados e à procura de meios para a sua melhoria contínua (Caetano, 2010).
No caso específico dos profissionais de enfermagem, a NGP tem impacto sobretudo ao nível da sua cultura, dos seus papéis profissionais (Davies, 1995; Walby et al., 1994 apud Carvalho, 2006), assim como no processo de profissionalização (Blomgren, 2003; Hewison, 1994; Traynor, 1999; Witz, 1994 apud Carvalho, 2006). Lawler e Newman (2009) afirmam mesmo que os cuidados de enfermagem foram afetados, pois acresce aumento da burocratização e politização dos cuidados de saúde com progressivo enfraquecimento da autonomia de gestão profissional.
A nova cultura de gestão que está a ser implementada parece ir no sentido contrário da cultura enraizada na profissão de enfermagem, que se caracteriza por valores feministas e difíceis de alcançar, ao contrário daqueles defendidos pela NGP que se centram “em valores masculinos, centrados em critérios de tomada de decisão orçamentais, racionais e quantitativos” (Carvalho, 2006, p. 163). Outro aspeto importante é o facto dos cuidados prestados pelos enfermeiros serem constantemente inseridos no modelo do fordismo pelo seu caráter burocrático e hierarquizado; pelas regras inerentes e pela punição caso estas não sejam cumpridas; pela rigidez das horas de trabalho; e pela prestação de cuidados através de prescrição médica. Com a implementação de medidas pós-fordismo, iniciadas com a NGP, este grupo profissional poderia ser continuamente desvalorizado. Contudo, alguns autores defendem que este é o grupo profissional que mais rapidamente se tem aproximado do pós-fordismo (Carvalho, 2006).
Particularmente em Portugal emergiram reformas ao nível da gestão hospitalar, nomeadamente a transformação das unidades de saúde existentes em entidades públicas empresariais. Estabeleceram-se assim novos regimes de vinculação de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas “prevendo em particular a revisão do regime dos corpos ou carreiras especiais” (Decreto-Lei nº 247/2009). Deste modo, surgiu a necessidade de modificar a carreira de enfermagem, de forma a enquadrar-se nos novos padrões de gestão pública, garantindo aos enfermeiros, no âmbito do SNS, a possibilidade de terem acesso a um percurso comum de progressão profissional e diferenciação técnica e científica (Decreto-Lei nº 247/2009).
Esta reestruturação na carreira de enfermagem conduziu a implicações profundas no exercício da profissão, relativamente às últimas alterações pontuais à carreira. A atual carreira de enfermagem pressupõe que o enfermeiro possa integrar qualquer posto de trabalho no início da sua atividade profissional, tendo em conta o seu nível de competências. Contudo, o novo modelo privilegia a contratualização temporária ao invés da contratualização por tempo indeterminado dos respetivos profissionais, estando a sua evolução profissional condicionada pelos recursos económicos existentes, assim como pela avaliação constante do seu desempenho. Nesta perspetiva, a remuneração deixa de estar definida de acordo com o seu estatuto e constituindo-se como variável e personalizada (Decreto-Lei nº 247/2009).
Nos dias de hoje, os profissionais de enfermagem são cada vez mais representados, como um custo, cujo impacto no desempenho organizacional necessita de ser minimizado. Lawler e Newman (2009) referem que são submetidos ao imperativo do aumento da produtividade perspetivado através da simples manipulação de variáveis de gestão ligadas ao controlo do trabalho.
A NGP pressupõe a extensão e redistribuição de papéis na Enfermagem, “no sentido de conduzir os profissionais a assumirem um maior número de tarefas no âmbito da sua responsabilização profissional” (Carvalho, 2006, p. 482), sendo acompanhados de um controlo mais apertado do trabalho profissional através da avaliação do desempenho e de uma maior pressão para a eficiência e produtividade das organizações de saúde (Kirkpatrick et al.; Walby et al. apud Carvalho, 2006).
Tem-se observado uma redução drástica dos contratos coletivos de trabalho, dando-se preferência a uma contratação individual baseada no desempenho, o que se traduz num clima de medo e insegurança no trabalho. Contudo, outros enfermeiros referem aspetos positivos advindos deste facto, tais como, a agilização dos processos de contratação, recrutamento dos melhores profissionais, legitimação das promoções e o aumento da produtividade (Carvalho, 2006).
Sendo inquestionável que as alterações verificadas ao nível da saúde, associadas ao controlo de custos, têm influência não só nos resultados do exercício profissional, mas também nos profissionais, pode-se então considerar que essas alterações abrem caminho à colocação de desafios aos enfermeiros e à profissão de enfermagem.
Metodologia
Tipo de estudo/desenho
Este estudo é do tipo descritivo, com o recurso a técnicas de análise qualitativa, realizado a partir de um questionário auto preenchido. Os dados utilizados neste artigo fazem parte de um estudo mais amplo, incorporado no projeto designado por Novos caminhos para a enfermagem como projeto profissional: trajetórias profissionais e percursos privados, inscrito na Unidade de Investigação em Ciências da Saúde - Enfermagem, e realizado em parceria com a Ordem dos Enfermeiros e a Direção Geral da Saúde. O projeto tem como objetivo geral conhecer e caracterizar os enfermeiros que trabalham em Portugal, do ponto de vista do seu projeto profissional: trajetórias profissionais e percursos privados.
As respostas às questões abertas, nomeadamente à questão em estudo (Quais considera serem os principais desafios que se colocam à profissão de enfermagem?), foram transcritas em verbatim para o processador de texto Word. Nenhuma expressão dos respondentes foi alterada, nem mesmo corrigida para o português do investigador. O modelo de análise de dados esteve em consonância com o programa informático utilizado, o NVivo 9, e são a base ao estudo que se apresenta.
População/ amostra/ participantes
A população em estudo respeita a todos os enfermeiros inscritos na Ordem dos Enfermeiros em novembro de 2010 e com endereço de email atualizado.
A amostra é constituída pelos enfermeiros que preencheram e submeteram o questionário, num total de 926, apresentando um predomínio (68,9%) do sexo feminino. A média de idade situa-se em 33,71±8,76 anos e a média de anos de serviço em 10,89±8,62 anos. A média de horas de trabalho semanal, no emprego principal, é de 37,18±5,23. A categoria profissional mais expressiva é a de enfermeiro, com 71,6%. Os enfermeiros especialistas representam 12,5%. Os restantes respondentes são chefes/gestores, militares e docentes.
Instrumentos de recolha de dados
O questionário foi, numa primeira fase, construído a partir de questionários utilizados num estudo semelhante mas numa área profissional diferente. Numa segunda fase, a fim de adequar o questionário ao contexto de enfermagem, recorremos a quatro peritos com formação em enfermagem a nível de pós-licenciatura ou superior, com informação sobre a temática em estudo, com motivação para trabalhar no projeto e que aceitaram fundamentar a sua opinião com conhecimento científico.
Procedimentos
A versão final do questionário foi enviado via online, pela Ordem dos Enfermeiros em novembro de 2010 e aplicado com recurso à tecnologia Google Docs. A fim de evitar o preenchimento do questionário por não-enfermeiros, a entrada requeria o número de membro da Ordem dos Enfermeiros e, para evitar a duplicação de preenchimento pelo mesmo respondente, havia apenas a possibilidade de concluir o questionário uma vez.
Considerações ético-legais
Foi salvaguardado o anonimato da pessoa, pois os dados do questionário preenchido online caiam em ‘base-cega’ de Excel. Consideram-se garantidos os direitos à recusa de participação e de consentimento informado, uma vez que ao receberem o questionário os participantes podiam preencher ou não. Além disso, entendia-se que quem preencheu e devolveu estava informado e que consentia participar voluntariamente. Tratando-se de profissionais de saúde não há necessidade de proteção por situação de particular vulnerabilidade.
Resultados e discussão
A estrutura temática emergente da análise efetuada à questão-aberta “Quais considera serem os principais desafios que se colocam à profissão de enfermagem?” assenta em três temas/categorias centrais, designadas de: Valorização da Profissão; Carreira de Enfermagem; e Formação e Investigação. Dentro destas categorias enquadram-se diferentes subcategorias, conforme se pode observar na Figura 1 relativa à estrutura temática emergente.
Figura 1 – Esquema representativo da estrutura temática (categorias e subcategorias).
Valorização da profissão
Ao serem analisadas as respostas dos participantes ficou evidente a inquietação dos enfermeiros perante o seu papel na sociedade e o destaque que lhes é conferido. 381 dos respondentes consideraram que se devia investir na valorização da profissão, aumentando o seu reconhecimento social e afirmando-a como uma profissão autónoma, com um conjunto próprio de saberes.
Serra (2002) afirma que os enfermeiros têm de apostar na visibilidade da profissão através do marketing social, cujo objetivo é aumentar os conhecimentos da população promovendo a adoção de comportamentos específicos. Além disso, devem apostar ainda no marketing político para que deste modo possam ter um papel mais ativo neste campo, o que poderá permitir futuras alterações a nível do sistema de saúde. As respostas dos participantes vão de encontro a esta perspetiva tal como pode ser observado pelos seguintes excertos: (…) Reconhecimento social da enfermagem e divulgação do papel do enfermeiro na comunicação social e na sociedade (…).
A afirmação e reconhecimento pela própria sociedade, enquanto profissão com domínio e autonomia. Muitos ainda não sabem que somos licenciados, é necessário marketing.
O principal desafio é mostrar à população portuguesa o real papel dos enfermeiros e da enfermagem na sociedade atual.
Reconhecimento pelos órgãos do governo, sociedade e outras classes profissionais da saúde profissionais.
Um estudo efetuado por Mrayyan (2004) demonstrou que as ações do enfermeiro gestor têm uma forte relação com o nível de autonomia dos enfermeiros. As variáveis mais importantes para o aumento do sentimento de autonomia entre os enfermeiros foram: apoio dos gestores; educação; e experiência. A gestão autoritária, os médicos e o excesso de trabalho foram apontados como fatores que inibem a sua autonomia. No presente estudo, os enfermeiros também consideraram a relação entre os membros da equipa como um fator preponderante para a sua autonomia: conquistar a sua autonomia como membro que é de uma equipa multidisciplinar. Há lugar para todos sem ser necessário conflitos nem sobreposições de profissionais, cada um tem o seu papel e juntos formam a equipa. Transformar as mentalidades do povo português para este facto a meu ver tão simples é um grande desafio.
A questão da autonomia, mais do que propriamente o reconhecimento social, parece-me ser aquela pela qual a profissão tem que lutar. Só depois de ganhar esta luta poderemos conseguir a dignificar a nossa profissão. Temos as habilitações, os conhecimentos, as competências e mesmo assim não nos conseguimos afirmar (…). Os nossos caros parceiros médicos continuam a conseguir com a sua prepotência manter-nos num nível inferior. Sinto isto todos os dias, apesar de conhecer muito bem toda a lei, código deontológico e conteúdo funcional da carreira (…).
Os participantes corroboram a opinião de Brandão (2008), que afirma ser essencial demonstrar à sociedade e valorizar as nossas intervenções autónomas para que se possa aumentar a visibilidade da profissão de enfermagem, tal como demonstrado pelas seguintes respostas: dar mais visibilidade às intervenções autónomas assumindo as responsabilidades inerentes, o que alguns enfermeiros ainda têm dificuldade (…).
Melhorar e reafirmar o nosso papel na qualidade dos cuidados. Ter um papel mais ativo e dando um especial ênfase aos cuidados autónomos (…).
Estamos perante uma mudança de paradigma, paradigma neoliberal, claramente marcado por tendências economicistas, gestão hospitalar e empresarialização, o que provoca alterações profundas a nível dos cuidados e, consequentemente, ao nível dos enfermeiros (Pedrosa, 2004). Esta mudança pode ser uma oportunidade de afirmação por parte dos mesmos, tendo em conta que o aumento da exigência e complexidade ao nível das instituições leva a um maior nível de autonomia dos profissionais de Enfermagem e, consequentemente, da sua responsabilidade (idem).
Carreira de enfermagem
Atualmente, a carreira de enfermagem estrutura-se nas categorias de enfermeiro e enfermeiro principal (Decreto-Lei nº 247/2009, Cap. III, art. 7º), ao contrário da antiga carreira que contemplava 5 graus: enfermeiro; enfermeiro graduado; enfermeiro especialista, chefe e assistente; enfermeiro supervisor e professor; e a categoria de técnico de enfermagem (Decreto-Lei nº 437/91, art. 2º).
Para aceder à categoria de enfermeiro principal é exigido ao enfermeiro o título de enfermeiro especialista, atribuído pela Ordem dos Enfermeiros e 5 anos de experiência (Decreto-Lei nº 247/2009, Cap. III, art. 11º). A remuneração é fixada em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (Decreto-Lei nº 247/2009, Cap. III, art. 13º).
Mediante as reformas de gestão hospitalar e perante as consequentes modificações na carreira de enfermagem, os enfermeiros sempre se mostraram apreensivos e relutantes a esta mudança.
No presente estudo, os enfermeiros mostram-se descontentes com o rumo da carreira de Enfermagem, sendo que, na sua maioria, consideram que a Carreira de Enfermagem não se adequa ao contexto prático, não lhes permitindo evolução na carreira. Além disso, afirmam que as especialidades não são valorizadas e que deviam ser operacionalizadas. Consideram que a remuneração não é adequada e que devia ser equiparada aos restantes licenciados. Estes aspetos são realçados nos seguintes extratos: (…) Fazer com que a carreira, e a tabela remuneratória a ela associada, reflita a prática, a sua especificidade e diferenciação.
(…) É imprescindível que exista uma carreira com patamares bem definidos, e principalmente com índices remuneratórios substancialmente melhores (…).
Primeiro uma remuneração adequada ao esforço que fazemos que é psicológico, físico, social, moral e ético todos os dias (…).
Ter uma carreira que nos valorize enquanto profissionais, de acordo com os anos de trabalho; Ajustes salariais, consoante anos de trabalho e formação (…).
Progressões na carreira de acordo com as atualizações académicas e investimento na atualização de conhecimentos.
Integração dos atuais enfermeiros gestores em enfermeiros principais, o que vai resultar em diferenças e conflitos relativamente aos que se quiserem manter na carreira antiga. Enfermeiro principal que está na área de gestão e tem que desempenhar atividades de prestação direta de cuidados..., onde está a qualidade do seu trabalho? (…).
Organização e desenvolvimento de uma carreira competitiva, motivadora e mais bem remunerada comparando com outras carreiras bem remuneradas e com menos responsabilidades, menos riscos profissionais.
Estas respostas refletem que, na opinião dos enfermeiros, a atual carreira de enfermagem não se adequa ao contexto prático e não valoriza as capacidades individuais dos enfermeiros, não existindo espaço para a progressão.
Formação e investigação
Apesar da diminuição do número de candidatos, o curso de Licenciatura em Enfermagem é aquele com maior número de colocados, com 1778 colocados em 2009 (Fernandes et al., 2010). É notório a consciência de que há necessidade necessidade de enfermeiros ao nível dos cuidados de saúde, como tal as escolas de enfermagem estão a formar profissionais consoante esta necessidade. Contudo, os jovens enfermeiros estão a ter cada vez mais dificuldade em iniciar atividade (idem).
Ao analisar as respostas dos participantes foi visível a sua preocupação com o crescente número de vagas para o curso de Licenciatura em Enfermagem e o crescente desemprego dos jovens enfermeiros, tal como demonstrado nas respostas seguintes: (…) Também ao nível do ingresso no curso de enfermagem, com consequente reflexo na entrada no mercado de trabalho, deveriam ser analisados parâmetros que permitissem o trágico desemprego que enfrentam os recém-formados.
Diminuição do número de vagas e avaliação das escolas (especial atenção para algumas privadas) ponderando encerrar as que não cumprem os requisitos de qualidade e que formam profissionais que não dignificam a profissão (…).
Limitar o número de admissões às escolas de enfermagem, de acordo com as necessidades do mercado de trabalho e não em função de argumentos demagógicos que levam a um excesso de mão-de-obra a uma desvalorização o trabalho económico da enfermagem e consequentemente a uma desvalorização social do seu trabalho.
Além deste aspeto, os participantes frisaram a importância de continuarem a sua formação após a licenciatura, apesar de considerarem que os esforços para aumentar os seus conhecimentos não são reconhecidos.
(…) Precisa de continuar a apostar na formação em serviço ou outras formações que mantenham os enfermeiros sempre atualizados e acima de tudo precisamos de ser uma classe unida para conseguirmos alcançar os nossos objetivos.
Valorizar as competências individuais de cada enfermeiro, para motivar os enfermeiros a continuarem o seu percurso formativo por toda a vida, atualizando os seus conhecimentos (…).
Formação permanente de forma a colmatarmos algumas falhas ou áreas menos desenvolvidas durante o nosso curso e para nos encontrarmos de acordo com o desenvolvimento tecnológico, novas técnicas e guidelines. A área da saúde é uma área sempre em desenvolvimento.
De acordo com Brandão (2008, p. 12), “só com a investigação, é que pode haver produção de uma base científica para guiar a prática e assegurar a credibilidade de uma profissão, pois não haverá um desenvolvimento contínuo do conhecimento sem o contributo da investigação”. De acordo com o mesmo autor, a investigação deve incitar os profissionais à reflexão crítica e funcionar como ponte entre a teoria e a prática (Brandão, 2008). Um grande número de participantes realçou este aspeto, como fundamental no desenvolvimento da profissão, apesar de referirem que é necessária uma maior ligação entre a teoria e a prática. Este aspeto é exemplificado nos excertos seguintes: em primeiro lugar, gostaria de assistir a uma evolução dos teóricos da enfermagem, uma vez que quando apresentam palestras ou realizam investigação apenas abordam temas teóricos sem realizar qualquer ponte com a prática atual. Seria interessante mudar a mentalidade desses teóricos e do ruma da sua investigação... só assim a profissão irá ser valorizada...
Encontrar mecanismos que permitam o desenvolvimento da profissão de forma sólida baseada no conhecimento científico (…).
Penso que o desafio está na investigação, de modo a tornar a enfermagem mais científica, sem esquecer a componente relacional inerente ao cuidar.
Conclusão
Atualmente, os enfermeiros consideram que a profissão de Enfermagem não é suficientemente valorizada ou reconhecida pela sociedade, por outros profissionais e até pelos próprios, sendo um dos principais desafios colocados à profissão. Os participantes consideram que só caminhando no sentido da autonomia e da construção do seu próprio corpo de conhecimentos, através da investigação, irá ser possível demonstrar o verdadeiro significado da Enfermagem, levando ao seu reconhecimento e valorização.
As mudanças na carreira de Enfermagem, induzidas pelo surgimento da Nova Gestão Pública, são consideradas como um dos principais desafios pelos enfermeiros, pois estes não a consideram adequada nem com possibilidade de evolução e remuneração justa.
Os participantes demonstraram preocupação com o número de vagas de acesso ao Curso de Licenciatura em Enfermagem, considerando que o combate ao desemprego será um desafio para a Enfermagem.
Desta forma, o presente estudo contribui para a compreensão de como, na perspetiva dos enfermeiros, a NGP os influenciou e de quais os desafios percebidos pelos mesmos. A análise das respostas dos participantes permitiu conhecer uma série de aspetos que devem ser tidos em conta pelos gestores e responsáveis.
Em suma, a emergência da NGP gerou mudanças no contexto de saúde que podem ainda nem ser conhecidas, é necessário realizar estudos acerca desta temática e das suas consequências nos profissionais de saúde, em particular para os enfermeiros, para que, desta forma, possam ser conhecidas as consequências das reformas e como se poderá atuar para minimizar as suas consequências negativas.
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Recebido para publicação em: 05.03.12
Aceite para publicação em: 29.08.12