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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIII no.8 Coimbra dez. 2012

https://doi.org/10.12707/RIII1217 

Sofrimento do doente oncológico em situação paliativa

 

Márcia Lúcia Sousa Dias Alves*; Maria Helena de Agrela Gonçalves Jardim**; Otília Maria Silva Freitas***

* Enfermeira nível I no serviço de otorrinolaringologia/hemato-oncologia do Hospital Dr. Nélio Mendonça no Funchal, Madeira. Licenciada em Enfermagem. Pós-graduada em Supervisão Clínica em Enfermagem. Mestre em Cuidados Paliativos [marcialves96@hotmail.com].

** Professora Coordenadora da Escola Superior de Enfermagem da Universidade da Madeira. Licenciada em Enfermagem. Pós-Graduada em Educação Intercultural. Mestre em Sociopsicologia da Saúde e em Ciências de Enfermagem. Doutorada em Desenvolvimento e Intervenção Psicológica. Especialista em Enfermagem de Saúde Pública [hjardim@uma.pt].

*** Professora Coordenadora na CTTS-UMa. Doutorada em Ciências de Enfermagem [omsfreitas@uma.pt].

 

Resumo

Contexto: o aumento da incidência do número de doentes crónicos da população portuguesa tornou-se um fenómeno preocupante com repercussões sociais, económicas e de saúde, estes doentes apresentam níveis de sofrimento variáveis. Este foco representa uma área de intervenção importante nos cuidados de enfermagem à pessoa em situação paliativa quer na perspetiva da sua prevenção quer no seu alívio. Objetivo: analisar a perceção do doente oncológico em situação paliativa quanto ao sofrimento e às suas várias dimensões. Metodologia: desenhou-se um estudo descritivo-correlacional com dimensão transversal. Aplicou-se o Inventário de Experiências Subjetivas de Sofrimento na Doença a 38 doentes em situação paliativa, internados num serviço de cirurgia e hemato-oncologia e que tivessem mais de 18 anos. Resultados: os doentes evidenciaram níveis intermédios de sofrimento global e observou-se a existência de correlação significativa entre a idade e a dimensão do sofrimento sócio relacional. Conclusão: pensamos ter contribuído para alicerçar de uma forma estruturada a importância desta área de intervenção do enfermeiro à pessoa em situação paliativa e desenvolver intervenções ao nível da prevenção e alívio do sofrimento destes doentes.

Palavras-chave: cuidados paliativos; pacientes; oncologia.

 

Suffering of cancer patients in a palliative situation

Abstract

Context: the increase in the number of chronically ill people in the Portuguese population has become a worrying phenomenon with social, economic and health repercussions, and with patients having varying degrees of suffering. This issue is an important area of nursing intervention for people at the palliative stage, whether from a preventive perspective or for the relief of suffering. Objectives: to analyze perceptions of the situation of cancer patients with regard to suffering and its various dimensions. Methodology: a descriptive-correlational study with a cross-sectional dimension was designed. We administered the Inventory of Subjective Experiences of Suffering to 38 patients in a palliative situation who had been admitted to surgical and hematology-oncology services and who were over 18 years of age. Results: patients showed intermediate levels of global suffering and a significant correlation was observed between age and the social relational dimension of distress. Conclusion: we believe that we have identified in a structured way the importance of this area of nursing intervention for people in a palliative situation and for the development of interventions for the prevention and relief of suffering of these patients.

Keywords: palliative care; patients; oncology

 

El sufrimiento de pacientes con cáncer en situación paliativa

Resumen

Contexto: el aumento de la incidencia del número de enfermos crónicos de la población portuguesa se ha convertido en un fenómeno preocupante con consecuencias sociales, económicas y, cuyos pacientes presentan niveles variables de sufrimiento. Este enfoque representa un área de intervención importante para los cuidados de enfermería a la persona en situación paliativa bien desde la perspectiva de su prevención, bien en su alivio. Objetivos: analizar la percepción del paciente con cáncer en situación paliativa con respecto al sufrimiento y a sus diversas dimensiones. Metodología: se diseñó un estudio descritivo-correlacional con una dimensión transversal. Se aplicó el Inventario de experiencias subjetivas de sufrimiento durante la enfermedad a 38 pacientes en situación paliativa, ingresados en los servicios quirúrgicos y de hemato-oncología, y quienes tenían más de 18 años. Resultados: los pacientes mostraron niveles intermedios de sufrimiento global y se observó una correlación significativa entre la edad y la dimensión del sufrimiento socio-relacional. Conclusión: pensamos haber contribuido a fundamentar de forma estructurada la importancia de esta área de intervención del enfermero a la persona en situación paliativa y a desarrollar intervenciones al nivel de la prevención y del alivio del sufrimiento de estos pacientes.

Palabras clave: cuidados paliativos; pacientes; oncología.

 

Introdução

O aumento da longevidade e da prevalência das doenças crónicas representam uma importância acrescida em termos de saúde pública. Segundo a Direção Regional da Saúde (2006), a segunda maior causa de mortalidade registada deveu-se a doenças oncológicas, e mais de metade destes doentes morreram em estabelecimentos de saúde com internamento. Os cuidados prestados nestas instituições estão preferencialmente vocacionados para a cura, procuram a normalidade fisiológica e parecem inadaptados para os cuidados paliativos, como atividades orientadas para o doente e família (Cerqueira, 2005). Como refere Moreira (2001), numa época em que todos os esforços são direcionados para prolongar a vida e retardar a morte, tem surgido progressivamente a preocupação de reverificar os cuidados prestados aos doentes em situação paliativa. No que concerne ao sofrimento dos doentes oncológicos, Gameiro (1999) sugere que é importante ter em conta os seus fatores desencadeantes, e refere ser fundamental, nos cuidados, uma abordagem humanística e respeito da autonomia e da dignidade, bem como das necessidades individuais e emocionais dos doentes e dos seus cuidadores informais. Neste contexto, partimos para a realização de um estudo descritivo-correlacional questionando-nos sobre qual a perceção que o doente oncológico em situação paliativa e internado em serviços de cirurgia e em hemato-oncologia sente em relação ao sofrimento.

 

Enquadramento teórico

A Organização Mundial de Saúde definiu, em 2002, cuidados paliativos como uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida dos doentes e de suas famílias – que enfrentam problemas decorrentes de uma doença incurável e/ou grave e com prognóstico limitado, através da prevenção e alívio do sofrimento, com recurso à identificação precoce e tratamento rigoroso dos problemas não só físicos mas também psicossociais e espirituais (Neto et al., 2004, p. 22). Estes cuidados centram-se nas necessidades e não nos diagnósticos médicos. Parafraseando Wright (2005), o sofrimento é definido como angústia, dor ou aflição física, emocional e espiritual. Segundo a International Council of Nurses (2011, p. 76) esta é uma “Emoção negativa: Sentimentos prolongados de grande pena associados a martírio e à necessidade de tolerar condições devastadoras, isto é, sintomas físicos crónicos como a dor, desconfortam ou lesão, stress psicológico crónico, má reputação ou injustiça”. Em cuidados paliativos, as principais fontes de sofrimento para os doentes são as perdas (autonomia e dependência de terceiros, sentido da vida, dignidade, papeis sociais, estatuto e regalias económicas), sintomas mal controlados, alterações da imagem corporal e nas relações interpessoais, modificação de expectativas e de planos futuros e abandono por parte dos familiares (Neto et al., 2004). Frankl apud Neto et al. (2004 p. 30) refere que uma pessoa com doença terminal pode encontrar um sentido positivo para o sofrimento, ou seja, um objetivo ou explicação para a situação, recorrendo à atividade laboral, projetos de vida, experiências vividas e a atitudes positivas face aos problemas existenciais, evitando que o sofrimento seja destrutivo, pois, como a autora cita, “o que destrói o homem não é o sofrimento, é o sofrimento sem sentido”. Assim sendo, os cuidados paliativos têm como objetivos o alívio e/ou diminuição do sofrimento físico, psicológico, social e/ou espiritual do doente, melhorar a qualidade de vida e garantir a dignidade dos doentes até ao final da vida. De acordo com Neto et al. (2004) existem áreas de cuidados fundamentais para atingir esses objetivos: controlo dos sintomas, apoio à família, comunicação e trabalho em equipa.

 

Questões de Investigação/Hipóteses

Nesta contextualização, questionamo-nos sobre qual a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa quanto ao sofrimento. As hipóteses formuladas foram: H1: A perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é tanto maior quanto maior é a idade; H2: A perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada no género feminino; H3: A perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada nos doentes casados; H4: A perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada quando estes se encontram em situação laboral; H5: A perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é tanto maior quanto maiores forem as habilitações literárias.

 

Metodologia

Tendo em conta os objetivos e a finalidade pretendida, desenhamos um estudo quantitativo descritivo-correlacional com uma dimensão transversal. A população foi representada pelos doentes oncológicos em situação paliativa internados em serviços de cirurgia geral e hemato-oncologia. Foi utilizada uma amostra não probabilística consecutiva, em que todos os elementos da população, nas condições de inclusão, foram selecionados. Os critérios de inclusão foram ter idade = 18 anos, que soubessem ler e escrever, que fossem portadores de doença oncológica em situação paliativa e que estivessem em sistema de internamento. Os critérios de exclusão foram os doentes que estivessem na fase agónica e que apresentassem alterações neurológicas que impedissem o preenchimento do questionário. Antes de proceder à colheita dos dados, foi dada autorização e parecer favorável da comissão de ética das instituições e posteriormente foi realizada uma reunião com os chefes dos serviços e enfermeiros voluntários para participar na colheita de dados, onde lhes foi explicado em que consistia o trabalho de investigação, quais os seus objetivos e a uniformização de procedimentos. A todos os elementos da amostra foi solicitado o consentimento informado, sendo informados sobre o objetivo do estudo, garantindo-lhes a confidencialidade e a privacidade dos dados. A mediação entre o investigador e os doentes foi realizada por um Enfermeiro do serviço. A investigadora, juntamente com os (as) enfermeiros (as) chefes, combinaram uma data, semanalmente, para recolher os envelopes fechados que continha os dados, para que estes pudessem ser codificados e tratados anonimamente. A colheita de dados realizou-se de janeiro a março de 2010. Para a avaliação da variável de estudo - sofrimento do doente oncológico em situação paliativa - aplicou-se um Inventário de Experiências Subjetivas de Sofrimento da Doença (IESSD). Esta foi validada para a população Portuguesa por Gameiro em 1999 (autorizado pelo próprio a utilização da mesma), com 22 itens. Mede cinco dimensões: sofrimento psicológico, físico, existencial, sócio relacional e as experiências positivas do sofrimento. Não existem pontos de corte, considerando o 44 o mínimo de sofrimento e 220 o máximo (quadro 1).

 

Quadro 1 – Pontos de corte da escala IESSD.

 

Ao realizar o somatório dos 44 itens, cinco destes terão de ser invertidos (24, 26, 38, 42 e 44). No entanto, na análise particular das experiências positivas nenhum item será invertido. O tempo de resposta foi entre 10 a 15 minutos e o questionário é de autopreenchimento. Avaliou-se a consistência interna do instrumento de colheita de dados através do cálculo do Alfa de Cronbach e obteve-se para o sofrimento global um valor de 0,936, (assim para a = 0,934 do estudo de Gameiro (1999)), concluindo-se que a população estudada apresentou uma elevada consistência interna (quadro 2).

 

Quadro 2 – Comparação do coeficiente alpha de Cronbach para o IESSD na população estudadas e na original.

 

Constatou-se uma boa consistência interna, oscilando os valores do coeficiente Alfa de Cronbach de 0,837 para a dimensão do sofrimento existencial, 0,854 para a dimensão do sofrimento físico e 0,885 para a dimensão do sofrimento psicológico. Verificou-se que estas dimensões têm um alpha de Cronbach semelhantes ao do autor (0,846 <a<0,883). No que concerne à dimensão do sofrimento sócio relacional, a consistência interna foi de 0,612, para o do autor com 0,757, embora ainda dentro dos parâmetros considerados como aceitáveis. Quanto à dimensão das experiências positivas do sofrimento, observou-se que o valor do seu alpha de Cronbach foi de 0,750 e é ligeiramente superior ao do autor, que foi de 0,690, e é interpretado como uma consistência interna aceitável.

 

Resultados

Para análise estatística descritiva e inferencial dos dados foi utilizado o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0. Realizou-se a parte inferencial, mais precisamente as correlações entre as variáveis quantitativas e as comparações das quantitativas em função das qualitativas. Recorremos ao teste não paramétrico de Shapiro-Wilk para aferir a normalidade da população, devido à amostra ser constituída por menos de 50 elementos (n=38). Tendo em conta o tamanho da amostra e dado que uma variável apresentou distribuição não normal, optou-se pela aplicação de testes não paramétricos. As hipóteses formuladas foram testadas recorrendo ao coeficiente de Spearman (correlação entre variáveis ordinais) e ao teste de Mann-Whitney (comparação de dois grupos independentes).

a) Caracterização sociodemográfica da amostra

A amostra do estudo (quadro 3) era 28,9% do sexo feminino e 71,1% do sexo masculino.

 

Quadro 3 – Distribuição absoluta e percentual dos doentes em estudo em função das variáveis sociodemográficas

 

O grupo etário foi designado, de acordo com Rowland (1989), em adulto jovem (20-35 anos), adulto maduro (36-45 anos), adulto velho (46-59 anos) e em adulto idoso (=60 anos). Constatou-se que predominava o grupo entre os 46 e os 59 anos de idade, com 50,0% da amostra. Seguidamente com 42,1% o grupo etário do adulto idoso. O grupo etário menos predominante foi o grupo entre 36-45 anos de idade, com uma percentagem de 7,9%. Salientamos que da amostra estudada a idade mínima foi de 37 e a máxima de 80. Em relação ao estado civil, 71,1% dos sujeitos da amostra eram casados/união de facto, enquanto 15,8% eram viúvos, 7,9% divorciados e 5,3% solteiros. Não se evidenciou elementos em separação judicial e 28,9% não estavam casados. Tendo em conta a situação laboral dos doentes, 65,8% da amostra eram reformados, 21,1% estavam ativos, 10,5% estavam desempregados e 2,6% eram domésticas ou nunca trabalharam. Realça-se que 78,9% dos sujeitos não tinham atividade laboral. No que se refere às habilitações literárias, a maioria da amostra, 63,2%, tinham o Ensino Básico, nomeadamente 39,5% com 4 anos de escolaridade, 15,8% com 6 anos de escolaridade e 7,9% com o 9º ano. De seguida, e em maior percentagem, temos os sujeitos com o Ensino Secundário, com 13,2% (5,3% com o 11º ano e com curso tecnológico/profissional e 2,6% com 12°ano), e depois os sujeitos com Ensino Superior, que apresentavam 13,1% (10,5% com bacharelato e os restantes 2,6% com licenciatura). Com menos de 4 anos de escolaridade perfez 10,5%.

b) Resultados das dimensões do IESSD

Constatou-se, no quadro 4, um nível de sofrimento global ligeiramente superior ao valor intermédio da escala (3) de 3,13, bem como das dimensões do IESSD, oscilando entre 3,35 para a dimensão do sofrimento psicológico e 3,46 para a dimensão das experiências positivas do sofrimento.

 

Quadro 4 – Estatísticas resumo das dimensões do IESSD.

 

Com valores muito próximos à última dimensão referenciada, encontrou-se a dimensão do sofrimento físico com 3,43. Por ordem decrescente, observou-se a dimensão do sofrimento sócio relacional com 3,38 e a dimensão do sofrimento existencial, com 2,87, evidenciando níveis intermédios de sofrimento, ou seja, níveis de sofrimento que não são baixos, mas também não são muito elevados. Relativamente aos valores da média ponderada citada por Gameiro (1999), estes oscilaram entre os 2,16 para a dimensão do sofrimento existencial e o 4,05 para a dimensão das experiências positivas. Entre estes valores, o mesmo autor apresenta uma média ponderada de 2,65 para a dimensão do sofrimento físico, 2,75 para a dimensão do sofrimento psicológico, 2,93 para a dimensão do sofrimento sócio relacional e 2,50 para a dimensão do sofrimento global.

Para testar a hipótese se «a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é tanto maior quanto maior é a idade», utilizou-se o coeficiente não paramétrico de Spearman e o respetivo teste de significância. Observou-se (quadro 5) uma correlação negativa, baixa e estatisticamente significativa (rs =-0,35 e p=0,030) entre a idade e a dimensão do sofrimento sócio relacional, afirmando-se assim que os doentes mais velhos tendem a evidenciar menor sofrimento sócio relacional e vice-versa.

 

Quadro 5 – Correlação do IESSD com a idade.

 

Para dar resposta à hipótese se «a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada no género feminino» procedeu-se à comparação das dimensões do IESSD em função do género através da utilização do teste de Mann-Whitney. Constatou-se (quadro 6) que os elementos do género feminino (x = 136,55) apresentaram níveis de sofrimento global mais baixos em comparação aos elementos do género masculino (x = 138,41), bem como nas dimensões do sofrimento existencial e do sofrimento sócio relacional. No entanto, no que concerne à dimensão do sofrimento psicológico, do sofrimento físico e das experiências positivas do sofrimento, os elementos do género feminino apresentaram níveis médios de sofrimento mais elevados do que os elementos do género masculino. Contudo, depreende-se que as diferenças observadas (p> 0.050) não corroboram a hipótese formulada.

 

Quadro 6 – Resultados da aplicação do teste U de Mann-Whitney às dimensões do IESSD em função do género.

 

Relativamente à hipótese sobre «a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada nos doentes casados», recorreu-se ao mesmo teste não paramétrico de Mann-Whitney. A variável qualitativa estado civil estava dividida em cinco grupos, nomeadamente nos solteiros, casado/união de facto, viúvo, divorciado e separado judicialmente e por existirem grupos com um número de elementos não representativo, como era o caso do grupo dos solteiros e dos divorciados, reagrupamos os doentes em duas categorias, não casados e casados/união de facto. Observou-se, através da análise do quadro 7, que os níveis médios de sofrimento, no grupo dos casados/união de facto, são mais elevados, em todas as dimensões e no global, no entanto, essas diferenças não tem significado estatístico (p> 0,050).

 

Quadro 7 – Resultados da aplicação do teste U de Mann-Whitney às dimensões do IESSD em função do estado civil agrupado.

 

Para testar a hipótese se «a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada quanto estes encontram-se em situação laboral» utilizou-se, novamente, o teste Mann-Whitney, pois reagrupou-se os elementos da amostra em duas categorias. Ou seja, a situação laboral apresentava vários grupos (ativo, reformado, desempregado e doméstica/nunca trabalhou) e por alguns deles não terem um número representativo de casos, optou-se por agrupar os indivíduos em ativos e não ativos. Verificou-se que os níveis médios de sofrimento são mais elevados no grupo dos não ativos, exceto na dimensão do sofrimento sócio relacional. No entanto, conclui-se, conforme quadro 8, que a hipótese foi rejeitada, pois apresenta um valor de significância p> 0,050.

 

Quadro 8 – Resultados da aplicação do teste U de Mann-Whitney às dimensões do IESSD em função da situação laboral agrupada.

 

Quanto à hipótese se «a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é tanto maior quanto é as habilitações literárias» aplicou-se, novamente, o teste Mann-Whitney. Esta variável inicialmente continha nove grupos, mas como as frequências eram baixas na maioria deles e, como tal, não representativas, optámos por agrupar os indivíduos em, apenas, duas categoriais (Ensino básico ou inferior e Ensino secundário ou superior). Através da análise do quadro 9, verificou-se que a não existência de diferenças estatísticas (p > 0.050) que corroborem a hipótese, ou seja, as habilitações literárias não influenciam o nível do sofrimento dos doentes oncológicos em situação paliativa.

 

Quadro 9 – Resultados da aplicação do teste U de Mann-Whitney às dimensões do IESSD em função das habilitações literárias agrupadas.

 

Discussão

Pelos resultados apresentados quanto ao sofrimento global, constatou-se um nível de sofrimento global ligeiramente superior ao valor intermédio da escala (3) de 3,13 e que este afere que sintomas mal controlados e/ou problemas mal resolvidos ameaçam o bem-estar e a realização pessoal nos doentes, pois como cita Fanhk in Neto et al. (2004, p. 30) “o que destrói o homem não é o sofrimento, é o sofrimento sem sentido”. Assim sendo, há que ter em conta as principais fontes de sofrimento mencionadas por Neto et al. (2004), principalmente as perdas (dignidade, sentido da vida, papeis sociais, autonomia), as alterações da imagem corporal, a modificação de expectativas e de planos futuros e o abandono. No que concerne à dimensão das experiências positivas do sofrimento na doença com 3,46, estas referem-se aos sentimentos de otimismo/esperança, sendo que Martins (2002) menciona que os doentes que aceitam a sua perda sofrem menos nas suas relações interpessoais. Quanto à dimensão do sofrimento físico obteve-se 3,43, este está relacionado com a dor, o desconforto e a perda de vigor. Segundo Dias (2000), reconhecer o direito ao controlo da dor é reconhecer a autonomia e a dignidade humana e aliviar o sofrimento. De acordo com Gameiro (1999) o corpo impede a pessoa doente de aceder ao mundo e de realizar objetivos de vida. Relativamente à dimensão do sofrimento psicológico, com 3,35, esta está relacionada com as alterações cognitivas (centram-se na gravidade da doença) e emocionais (aumento da ansiedade e da tensão provocadas pela doença). De acordo com Gameiro (1999), este sofrimento visa a consciência que a pessoa tem de si, através de perceções sensoriais, processos cognitivos, afetivos e espirituais. Pessini e Bertachini (2004) acrescentam, referindo que estes doentes tendem a apresentar alterações de humor, sentimentos de perda de controlo, perda de esperança e de sonhos. A dimensão do sofrimento sócio relacional, com 3,38, é composta pelas alterações afetivo-relacionais e sócio laborais e nesta é evidente a perda de papéis, estatutos e objetivos sociais, impedindo o desempenho na sociedade (Béfécadu, 1993 apud Gameiro, 1999). Barbosa e Neto (2006) complementam que para além da vertente social (perdas económicas, laborais, familiares, isolamento social e comunitário), este tipo de sofrimento visa problemas no meio familiar (culpabilização pela sua dependência, problemas sexuais, preocupações com o futuro e com a comunicação no seio familiar). Quanto à dimensão do sofrimento existencial, com 3,05, verificou-se alterações na identidade pessoal (dependência de terceiros, incapacidade de realizar tarefas), no controlo emocional (explosões emocionais, agressividades), nas limitações existenciais (dificuldade de encontrar um sentido para a vida) e nos projetos futuros (incapacidade de realizar projetos importantes). Como refere Gameiro (1999), a pessoa inicia o seu percurso de sofrimento através do experienciar de emoções e sentimentos de mal-estar e de tristeza. Posteriormente evolui para a consciencialização da perda e para a aceitação do facto de ter uma doença crónica e irreversível. A Direção Geral de Saúde (2004) complementa a informação supracitada, mencionando que estes doentes apresentam problemas e necessidades de difícil resolução, exigindo apoio específico, organizado e interdisciplinar. Os resultados observados, ao nível das várias dimensões e a nível global, permitem responder à questão atrás referida afirmando que os doentes evidenciaram níveis intermédios de sofrimento, ou sejam, níveis de sofrimento que não são baixos, mas também não são muito elevados. Observou-se a necessidade de minorar as experiências subjetivas de sofrimento dos doentes oncológicos em situação paliativa, no sentido de controlar, monitorizar e aliviar os sintomas, promovendo conforto, autonomia e funcionalidade ao doente dentro das suas capacidades, e realizando ações focadas no interesse da pessoa, ajudando a manter o seu orgulho e dignidade, promovendo significações e sentido à vida. Também, como profissionais de saúde, há que garantir a privacidade do doente, incentivando-o para o autocuidado e para a resolução de conflitos. Neste estudo observou-se uma correlação negativa entre a idade e o sofrimento sócio relacional, e no estudo de Gameiro (1999) existiram diferenças entre as idades e o sofrimento físico, indicando que os doentes mais jovens são os que apresentam maiores experiências subjetivas de sofrimento físico. No entanto, nos estudos de Apóstolo et al. (2006) não existem diferenças significativas entre a idade e as experiências subjetivas do sofrimento. O facto de 30 dos 38 doentes não trabalharem e de 57,9% da amostra estar compreendida entre os [37;59] anos de idade, coloca questões sobre as preocupações com a incapacidade de trabalhar e de ajudar no sustento familiar. Apóstolo et . (2006) refere que quanto mais nova é a pessoa doente, maiores são os obstáculos sobre os sentidos relativos aos desejos, ambições, carreira, sexualidade e família. O mesmo autor refere que este tipo de dimensão do sofrimento pode ser minimizado com a proximidade dos entes queridos, providenciando conforto, proximidade, apoio familiar e interação entre eles. Neste estudo, bem como no estudo de Martins (2002), não existem diferenças significativas entre os géneros. No entanto, Gameiro (1999) revelou a existência de diferenças significativas, quando em situações de igual morbilidade, em que os homens experienciam mais sofrimento psicológico que as mulheres. Também se constatou que a hipótese sobre a relação entre os níveis de sofrimento e a situação laboral não foi confirmada, tal como no estudo de Gameiro (1999). Contudo, Martins (2002) refere que os doentes com emprego ou com ocupação têm mais autoestima, pois isso promove uma sensação de contribui&c cedil;ão para a sociedade e de adaptação à doença. Verificou-se a não-existência de correlação entre o sofrimento e as habilitações literárias, contudo, no estudo de Gameiro (1999), estas comparações evidenciaram-se, referindo a associação das habilitações literárias com o sofrimento psicológico e com o sofrimento existencial. Gameiro (2004) menciona que os doentes com menores habilitações literárias tendem a sofrer mais com a doença, pois apresentam menor capacidade conceptual dos fenómenos perturbadores vividos. Segundo Barbosa e Neto (2006) os doentes apresentam respostas vivenciais designadas de desespero existencial e que são: descrença (despreocupação, denegação, descrença diagnóstico e descrença), desagrado (desassossego, desapontamento, descontrolo e desconfiança), desânimo (depressão, desesperança, desvitalização e desvalorização) e desapego (desamparo, desencanto, desistência e desinvestimento). Assim sendo, devemos avaliar estas respostas vivenciais com maior ênfase nos doentes com maior e menor escolaridade. Um estudo realizado a doentes oncológicos em cuidados paliativos no Japão identificou sete grupos de preocupações existenciais, que foram: Aceitação/Preocupação (25%); Relativas às relações (22%) - isolamento, preocupações com a preparação dos familiares, conflito; Esperança/Desesperança (17%); Perda de controlo (16%) - físico, cognitivo, sobre o futuro; Perda da continuidade (10%) - perda de papéis, de atividades, de identidade; Tarefas inacabadas (6,8%); Tornar-se um fardo (4,5%) (Morita, 2004 apud Paulo, 2006). Por outro lado, os doentes com maiores habilitações literárias, que apresentam grande capacidade cognitivo-conceptual, tendem a sofrer as subjetividades das significações atribuídas à realidade da doença e as perceções dos sintomas físicos e psicológicos. Como dificuldades deste trabalho apontamos a seleção e recrutamento da amostra, relacionada com a obtenção de doentes com os critérios pré-estabelecidos, e a de reunir todos os enfermeiros envolvidos na colheita de dados para uniformização de conceitos e procedimentos. As limitações prenderam-se ao facto de termos um reduzido tamanho de amostra (n=38) impedindo a generalização dos resultados e de apenas serem envolvidos doentes de serviços de cirurgia e hemato-oncologia, pelo que sugerimos, num futuro trabalho, alargar a outros serviços com este tipo de doentes, nomeadamente em serviços de medicina e em ambulatório.

 

Conclusão

O sofrimento do doente é um componente importante nos cuidados de saúde e, com o aumento das doenças crónicas, contempla-se o sofrimento como um foco na Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE), tornando-se pertinente a análise da perceção do doente oncológico em situação paliativa quanto ao sofrimento. A colheita de dados fez-se a todos os doentes oncológicos em situação paliativa, que se incluíssem nos critérios pré-estabelecidos. Relativamente à relação entre as dimensões das experiências subjetivas da doença com a idade, observou-se a existência de correlação negativa e estatisticamente significativa entre a idade e a dimensão do sofrimento sócio relacional com rs = -0,35 e p = 0,030), referindo que o sofrimento dos doentes oncológicos em situação paliativa está relacionado com a idade. No que concerne à comparação das dimensões das experiências subjetivas de sofrimento na doença em função das restantes características dos doentes, concluiu-se que os dados não corroboram a hipótese se a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada no género feminino», se a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada nos doentes casados», se a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é mais elevada quando estes se encontram em situação laboral» e se a perceção dos doentes oncológicos em situação paliativa do sofrimento é tanto maior quanto maior são as habilitações literárias. Os resultados obtidos podem contribuir para alicerçar de forma estruturada o papel do enfermeiro que presta ações paliativas e desenvolver intervenções de prevenção e alívio do sofrimento dos doentes. Assim, sugerimos elaborar um estudo experimental, no mesmo contexto deste estudo, com dois grupos de doentes, um grupo de controlo e um grupo experimental. Ambos serão submetidos aos cuidados de enfermagem standard, à exceção do grupo experimental que será introduzido o cuidado de enfermagem massagem terapêutica. A variável sofrimento seria avaliada com o mesmo instrumento deste estudo, nomeadamente o IESSD. Terá por objetivo geral o efeito da massagem terapêutica no sofrimento dos doentes oncológicos em situação paliativa.

 

Referências bibliográficas

APÓSTOLO, João [et al.] (2006) - Sofrimento e conforto em doentes submetidas a quimioterapia. Revista de Enfermagem Referência. Série 2, n° 3, p. 55-64.

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Recebido para publicação em: 22.01.12

Aceite para publicação em: 04.06.12

 

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