SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.serIII número11Saúde mental em cuidadores informais de idosos dependentes pós-acidente vascular cerebralComportamentos dos enfermeiros perante os alarmes clínicos em Unidades de Cuidados Intensivos: uma revisão integrativa índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIII no.11 Coimbra dez. 2013

https://doi.org/10.12707/RIII12120 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO

 

Violência nas relações de intimidade: crenças e atitudes de estudantes do ensino secundário

Violence in relationships: beliefs and attitudes among high school students

Violencia en las relaciones de intimidad: creencias y actitudes de estudiantes de la enseñanza secundaria

 

Maria Clara Amado Apóstolo Ventura*; Maria Manuela Frederico-Ferreira**; Maria José de Sousa Magalhães***

* Professora Adjunta. Mestre em Sociopsicologia da Saúde. Doutoranda em Ciências de Enfermagem de Coimbra. Unidade Científico Pedagógica de Enfermagem de Reabilitação, Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-85, Coimbra, Portugal [cventura@esenfc.pt].

** Professora Coordenadora. Doutorada em Ciências Empresariais. Pós Doutorada em Ciências Empresariais. Unidade Científico Pedagógica de Enfermagem Fundamental, Escola Superior deEnfermagem de Coimbra, 3046-85, Coimbra, Portugal [mfrederico@esenfc.pt].

*** Professora Auxiliar, Doutorada em Ciências da Educação. Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Ciências da Educação. 4200-135. Porto, Portugal [mjm@fpce.up.pt].

 

Resumo

A violência é definida como a ameaça ou o uso intencional da força ou do poder e engloba atos de agressão física, psicológica e sexual, fundamentados muitas vezes em conceções sociais e culturais estereotipadas. Foi desenvolvido um estudo quantitativo descritivo, com o objetivo de identificar crenças e atitudes legitimadoras de violência nas relações de intimidade, através da aplicação da Escala de Crenças sobre Violência Conjugal (Machado, Matos e Gonçalves, 2006). O somatório total da escala mede o nível de tolerância/aceitação em relação à violência física e psicológica exercida no contexto de relações do tipo conjugal. A soma de cada fator permite compreender as crenças e atitudes específicas deste tipo de violência.

A amostra é constituída por 688 estudantes de duas escolas secundárias, com média de idades de 17,44 anos, 61,30% do sexo masculino e 38,70% do sexo feminino. Os dados foram tratados no programa SPSS 18.0.

De acordo com os resultados, os/as estudantes inquiridos/as são, em maior percentagem (68,9%), discordantes com as crenças e atitudes legitimadoras da violência. Os estudantes do sexo masculino apresentam respostas mais concordantes com a legitimação da violência, tanto no Global da Escala como em cada um dos fatores de legitimação.

Palavras-chave: violência; conjugal; atitudes; estudantes.

 

Abstract

Violence is defined as the threat or intentional use of strength/power, including acts of physical, psychological or sexual violence, often based on social and cultural stereotypical conceptions. We developed a quantitative and descriptive study to identify beliefs and attitudes that legitimate violence in relationships, using the Scale of Beliefs about Marital Violence (Machado, Matos and Gonçalves, 2006), which measures the level of tolerance/acceptance of physical and psychological hostility carried out in the context of intimate relationships such as marriage. The sum of each factor allows us to understand the beliefs/attitudes about this specific type of violence. 688 students from two high schools were surveyed, with an average age of 17.44 years; 61.30% were male and 38.70% were female. The data were processed using SPSS 18.0. According to the results, a higher percentage (68, 9%), of the surveyed students disagreed with beliefs and attitudes that legitimate violence. The answers of males were more consistent with the legitimation of violence, both on the Global Scale and on each of the factors.

Keywords: violence; marriage; attitudes; students.

 

Resumen

La violencia se define como la amenaza o el uso intencional de la fuerza o el poder, e incluye actos de violencia física, psicológica y sexual, que a menudo se basan en concepciones estereotipadas, sociales y culturales. Se desarrolló un estudio cuantitativo, descriptivo, con el objetivo de identificar creencias y actitudes que legitimasen la violencia en las relaciones de intimidad, mediante la aplicación de la Escala de Creencias sobre la Violencia Conyugal (Machado, Matos y Gonçalves, 2006). La suma total de la escala mide el nivel de tolerancia/aceptación en relación a la violencia física y psicológica ejercida en el contexto de las relaciones conyugales. La suma de cada factor permite comprender las creencias/actitudes específicas de este tipo de violencia.

La muestra está constituida por 688 estudiantes de dos escuelas secundarias, con una media de edad de 17,44 años, de los cuales el 61,30 % son varones y el 38,70 % mujeres. Los datos se trataron con el programa SPSS 18.0.

De acuerdo con los resultados, de los/las estudiantes encuestados, el porcentaje más elevado (68,9%), no concuerda con las creencias y actitudes que legitiman la violencia. Las respuestas de los estudiantes varones concuerdan más con la legitimación de la violencia, tanto en el Global de la Escala como en cada uno de los fatores.

Palabras clave: violencia; conyugal; actitudes; estudiantes.

 

Introdução

A violência é um fenómeno de grande abrangência e complexidade em que o conceito de condutas aceitáveis e não aceitáveis é influenciado pela cultura e sujeito a uma constante transformação, podendo manifestar-se de forma subtil como a violência emocional ou o insulto verbal, ou com forte evidência, como na agressão física. De acordo com a OMS (2002), a violência pode ser definida como uma ameaça ou uso intencional de força física ou poder e que implica risco de lesão, morte ou dano psicológico. A violência doméstica é considerada uma grave violação dos direitos humanos, sendo a violência contra as mulheres um impedimento à concretização da igualdade e do desenvolvimento, constituindo-se como um obstáculo aos direitos e liberdades fundamentais (Resolução do Conselho de Ministros, nº100, 2010).

Os termos violência doméstica, violência conjugal e violência nas relações de intimidade são comummente utilizados com significados próximos, ou seja, referem-se à violência nas relações interpessoais íntimas. Englobam todos os atos de violência física, psicológica e sexual cometidos contra pessoas, conceito que foi alargado a ex-cônjuges e a pessoas do outro ou do mesmo sexo com quem a vítima mantenha ou tenha mantido uma relação, com ou sem coabitação. O fenómeno assenta, muitas vezes, em conceções estereotipadas, de âmbito social e cultural (Resolução do Conselho de Ministros nº 100, 2010). Em 2003, a OMS considerou a violência doméstica como um grave problema de saúde pública tendo em conta que as consequências que lhe estão associadas são prejudiciais para a saúde e para o bem-estar de quem a sofre, da família e de toda a comunidade (ibidem). A violência doméstica tem vindo a ganhar visibilidade na última década sendo que a sua conceção tem sofrido alterações desde a noção de que este é um problema da responsabilidade exclusiva dos indivíduos e das famílias, para uma conceptualização, hoje, como crime público. Em média,1 em cada 3 mulheres é vítima de violência e, por ano, 52% das mulheres são vítimas de alguma forma de violência, constituindo, assim, um dos problemas mais importantes entre os que afetam a qualidade de vida (Portugal. Ministério da Saúde, 2004).

Os conceitos de parentesco, de deveres entre cônjuges, entre pais e filhos, fazem parte da conceção acerca do que devemos ser e fazer dentro da família. Ao identificarmo-nos como membros, situamo-nos num espaço socialmente construído e esperado de relações e papéis sociais, na família e na comunidade. Esta construção social pode ser o suporte de sustentação e legitimação das desigualdades de género, e de certas omissões relativamente à violência doméstica (Dias, 2010).

A violência nas relações de intimidade tem sido referida como largamente cometida por homens contra as mulheres, mas essa violência ocorre também em casais do mesmo sexo e por mulheres contra homens. Alguns estudos, particularmente em amostras de estudantes e casais em relações de namoro, têm revelado que uma proporção significativa de homens experienciou situações de violência pelos seus parceiros íntimos. No entanto, a esmagadora maioria das vítimas continua a ser feminina, sendo que a evidência empírica também mostra que os homens vítimas são-no sobretudo por parte de outros homens e no espaço público (Lisboa, 2008). Assim, apesar da situação das vítimas masculinas ser uma preocupação, continua a ser adequado manter políticas e programas sobre violência nas relações de intimidade contra as mulheres, principalmente nos países com menores níveis de igualdade de gênero (Archer 2002 apud WHO, 2007). De acordo com Caridade e Machado (2006), a violências nas relações de intimidade só se tornou um problema social específico em meados do séc. XX, nomeadamente a partir da década de 60 e, em Portugal, a maior atenção sobre este fenómeno surge a partir do início da década de 1990. Fazendo uma análise retrospetiva, verificamos que a investigação sobre esta temática foi desenvolvida no âmbito da violência marital e só mais recentemente se dedicou ao estudo da violência nas relações juvenis, referenciada internacionalmente como dating violence. Este interesse científico acerca da violência no contexto de namoro teve origem nos resultados de estudos sobre esta temática, que revelaram a existência de níveis elevados de violência nas relações de intimidade juvenil, demonstrando que este tipo de violência não se reduz às relações conjugais (Caridade, 2011). De acordo com González-Ortega, Echeburúa e Corral (2008), o prognóstico para casais de namorados que vivem uma relação violenta não é favorável porque a violência, após o casamento, tende a continuar e até agravar-se.

O desenvolvimento de pesquisas para conhecer os fenómenos e os programas de intervenção nas escolas, pelos enfermeiros, dão suporte ao desenvolvimento de políticas promotoras de saúde (Mendes, 2010). Assim, consideramos importante não só o conhecimento acerca do fenómeno mas também a intervenção junto de jovens para a prevenção da violência e a promoção de relações saudáveis.

Com este estudo, pretendemos identificar crenças e atitudes socioculturais legitimadoras da violência nas relações de intimidade e verificar as diferenças nas crenças e atitudes socioculturais legitimadoras da violência de acordo com o sexo, em estudantes do Ensino Secundário.

 

Enquadramento/Fundamentação Teórica

Crenças e atitudes envolvidas na violência

Quando falamos da violência nas relações de intimidade é importante compreender o contexto, os mitos e as crenças envolvidos e o significado que a violência tem para cada um/a. Para procurar explicar a origem da violência conjugal, temos que deixar a visão simples de vítima e agressor, e dirigir a atenção ao reconhecimento de mitos e crenças sobre a violência (Aldrighi, 2004).

Na opinião de Machado (2010), o aumento da complexidade das relações humanas contribui bastante para as constantes transformações das conceções de violência, dificultando a sua definição e a concordância acerca de determinadas manifestações como sendo ou não violentas. Ao refletir sobre a origem das crenças no comportamento humano, percebemos que o nosso desenvolvimento é construído com base nas interações com os outros, havendo uma forte influência de tudo o que nos rodeia e as crenças surgem como consequência das perceções que vamos construindo. Assim, o fenómeno da violência encontra-se ligado às representações sociais, o que se considera ou não violento tem origem no quadro de referência de cada pessoa. Para a mesma autora, as crenças sociais assumem maior relevância no período da adolescência, pois os rapazes e as raparigas nesta fase experimentam e intensificam as expectativas de género, sendo importante analisar as atitudes e crenças que legitimam a violência nas relações de intimidade e as perceções dos/as jovens acerca da representação desse tipo de violência. Assistimos a uma predisposição cultural para a aceitação da violência, como sendo esta natural e comum, e esta conceção fomenta o exercício da mesma, transformando os atos agressivos numa vivência normal do quotidiano (idem).

A legitimação da violência é, muitas vezes, uma consequência de crenças erradas que desculpam as condutas abusivas, sendo que estas constituem o resultado da socialização e são interiorizadas desde cedo influenciando os nossos comportamentos (Mendes e Cláudio, 2010). Muitas destas crenças ligam-se à desigualdade entre homens e mulheres; os homens, com mais poder, têm o direito de controlar os outros membros da família, com a aprovação das mulheres, das crianças e da sociedade, sendo com frequência estas ideias transmitidas por adultos de ambos os sexos quando educam as crianças (Afonso, 2010).

Para González-Ortega, Echeburúa e Corral (2008), as crenças e atitudes mais tolerantes da violência contra as mulheres constituem um fator de risco para a ocorrência de abuso. As crenças mais conservadoras sobre os papéis de homem e de mulher estão relacionadas com a tendência dos homens a usar a violência e culpar as mulheres pela violência sofrida e das mulheres para justificar, ou pelo menos desculpar os comportamentos dos agressores. Consideram ainda que, entre os jovens, há uma crença, principalmente entre os rapazes, de que o uso de violência (ameaças, empurrões, humilhação, …) é aceitável para a resolução de conflitos interpessoais. Esta crença é parte integrante da socialização dos jovens rapazes para a masculinidade hegemónica (Hatty 2000; Connell, 2005), em que a violência (em geral, no desporto, nas interações entre rapazes, nas relações sociais) constitui uma dimensão crucial na construção social do que é ser homem.

No estudo de Machado, Matos e Moreira (2003), os rapazes subscrevem mais a crença de que a violência poderá ser justificável em função dos comportamentos das mulheres, consideram importante preservar a privacidade familiar e acreditam que a violência poderá ser atribuída a causas externas e fora do controlo do agressor (e.g., o álcool ou a pobreza), desvalorizando a “pequena violência” no contexto das relações íntimas. Considerando a violência de alguma forma normal no curso das relações, as raparigas adolescentes parecem continuar a confundir ciúme com amor. Por seu turno, para os rapazes, o ciúme desempenha um papel importante nas autoatribuições para a violência. González-Ortega, Echeburúa e Corral (2008) consideram que, depois de acontecer as primeiras agressões, as vítimas querem justificar porque não terminam com a relação. A crença de que o amor pode ultrapassar tudo e que, com o tempo, tudo vai melhorar, supera o conhecimento da realidade e leva algumas jovens a considerar que os seus esforços conseguirão resolver os problemas. Segundo Mendes e Cláudio (2010), ao longo do tempo, em que têm sido realizados estudos neste campo, temos observado uma atitude de banalização da violência por parte dos mais jovens, que caraterizam estes comportamentos agressivos como simples atos de ciúme e amor. A maior aceitação da violência pelo critério de normalidade, frequentemente associada a atos de ciúme, dificulta a tomada de consciência dos/as mais jovens para a gravidade deste tipo de conduta.

Caridade (2011) e Mendes e Cláudio (2010) desenvolveram estudos em que aplicaram a Escala de Crenças sobre a Violência Conjugal (ECVC) com amostras de jovens de ambos os sexos dos ensinos universitário, secundário e profissional. Os resultados revelaram níveis baixos de legitimação dos comportamentos violentos e diferenças significativas nos dois sexos, sendo que o masculino mostrou uma maior aceitação da violência. Os/as estudantes mais novos/as revelaram valores significativamente mais elevados de tolerância a este tipo de violência. Também no estudo de Afonso (2010), em que os participantes são casais (casamento, união de facto, namoro ou outra) e em que foi utilizada a mesma escala, os resultados foram similares. Num estudo de Ribeiro e Sani (2008), em que foi utilizada a Escala de Crenças da Criança sobre a Violência (ECCV) e em que os participantes eram estudantes de ambos os sexos, com idades entre os 11 e os 18 anos, verificou-se que as causas de ordem individual são para os/as adolescentes as que mais legitimam o uso da violência, nomeadamente as características da vítima (e.g. a vitima provocar ou confiar no agressor) e externas ao agressor (e.g. o abuso de álcool ou perturbações mentais). Relativamente à existência de diferenças na forma como jovens do sexo masculino e do sexo feminino se colocam quanto às crenças, os resultados mostram equivalência no geral, mas com diferenças significativas quanto aos fatores socioculturais, com os rapazes a aceitar mais este tipo de argumentos na justificação da violência.

Neste enquadramento, este estudo foca a legitimação da violência apoiada nas crenças e atitudes socioculturais, sendo a legitimação percebida como uma tolerância e/ou justificação das condutas violentas, com base em estereótipos culturais e normas sociais que tendem a desvalorizar e desculpabilizar práticas violentas nas relações de intimidade.

 

Metodologia

A identificação das crenças dos/as estudantes integra-se numa das primeiras etapas de uma de investigação, prévia à aplicação de um programa de formação. Trata-se de um estudo de investigação quantitativa de características descritivas-correlacionais. Os dados obtidos foram tratados no programa SPSS 18.0 para Windows.

Como variável principal temos a «crenças legitimadoras de violência nas relações de intimidade» e como variável secundária «o sexo» dos/as inquiridos/as.

Como questões de investigação foram identificadas as seguintes:

Q1 - Quais as crenças e atitudes socioculturais legitimadoras da violência nas relações de intimidade em estudantes do Ensino secundário?

Q 2 - Existem diferenças significativas nas crenças e atitudes acerca da violência nas relações de intimidade de acordo com o sexo?

 

População/amostra

A população é constituída por estudantes do ensino secundário. Após contacto pessoal, com várias instituições de ensino secundário, obtivemos confirmação de duas escolas que por motivos de necessidade de intervenção neste âmbito e disponibilidade de horário escolar para a implementação do programa de formação, foram recetivas para o desenvolvimento do trabalho empírico.

A amostra de conveniência é constituída por 682 estudantes do 11º (51,8%) e do 12º ano (48,2%), de duas escolas secundárias da região de Coimbra, dos Cursos Profissionais e Cientifico-Humanísticos. 61,30% (418) do sexo masculino e 38,70% (264) do sexo feminino, com média de idades de 17,44 de anos, ±1,16.

Constituíram critérios de Inclusão/Exclusão: ser aluno do 11º e 12º ano e querer participar.

 

Instrumento de recolha de dados

Foi utilizada a Escala de Crenças sobre Violência Conjugal (ECVC). Esta escala foi desenvolvida e validada para a população portuguesa por investigadores/as da Universidade do Minho (Machado, Matos e Gonçalves, 2006) e mede o grau de tolerância e/ou aceitação do sujeito quanto à violência conjugal (física ou psicológica). Sendo uma escala de atitudes, permite-nos conhecer as representações do sujeito sobre o fenómeno. Valores mais elevados representam uma maior legitimação das crenças e atitudes sobre violência conjugal; a soma de cada fator permite perceber o tipo de crenças e atitudes específicas deste tipo de violência. É composta por 25 itens apresentados com uma escala de resposta de 5 pontos (desde 1 = discordo totalmente, até 5 = concordo).

A escala original apresenta 4 fatores: i) o fator “legitimação e banalização da pequena violência” onde estão incluídos os itens relacionados com as crenças que normalizam a pequena violência (“insultos”, “bofetadas”…); ii) o fator “legitimação da violência pela conduta da mulher” (“má esposa”; “infiel”...) refere-se à justificação da violência conjugal pelo comportamento da mulher; iii) o fator “Legitimação da violência motivada por causas externas” justifica a violência através de fatores externos (“álcool”; “desemprego”); iv) por último, o fator “legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar” desculpabiliza a violência pela proteção da intimidade familiar (“A violência conjugal é um assunto privado”…) (Machado, Matos e Gonçalves, 2006).

Nesta amostra, após a análise fatorial, foram encontrados 3 fatores, não se verificando a eliminação de nenhum item da escala mas apenas o rearranjo dos fatores. O fator 1 é composto por 11 itens e refere-se à “Legitimação e banalização da pequena violência”. O fator 2 é composto por 5 itens e refere-se à “Legitimação da violência pela conduta da mulher”. O fator 3, composto por 9 itens, refere-se à “Legitimação da violência motivada por causas externas e preservação da privacidade familiar”. Não há itens que apresentem carga fatorial inferior a 0,30, pelo que a solução fatorial encontrada afigura-se satisfatória, quer do ponto de vista estatístico, quer do ponto de vista do significado. É esta escala que utilizamos no presente estudo.

 

Procedimentos

Este projeto de investigação foi submetido à apreciação da Comissão de Ética da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde - Enfermagem (UICISA-E) da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC), obtendo parecer favorável.

Foi solicitada autorização a duas escolas Secundárias de Coimbra e, após obtida autorização das respetivas Instituições e dos sujeitos que participaram no estudo, foram aplicados os questionários de janeiro a abril de 2011. Foi solicitada autorização (consentimento informado) aos pais e/ou estudantes (quando maiores de 18 anos) para a participação e foi fornecida informação prévia aos pais e aos estudantes sobre os objetivos desta recolha de opinião. A participação foi voluntária e foram garantidos o anonimato e a confidencialidade dos dados. A aplicação foi efetuada pela investigadora e alguns professores que se disponibilizaram para colaborar.

 

Resultados

Para a confiabilidade da escala, procedeu-se à análise da consistência interna através do cálculo do coeficiente alfa de Cronbach por ser considerada uma das medidas mais usadas para verificação da consistência interna em escalas de tipo Likert (Pestana e Gageiro, 2000). Os valores do coeficiente de alfa de Cronbach são de 0,907 para o fator “Legitimação e banalização da pequena violência”, de 0,813 para o fator “Legitimação da violência pela conduta da mulher” e de 0,758 para o fator “Legitimação da violência motivada por causas externas e preservação da privacidade familiar”. O alfa da escala no global (25 itens) é de 0,922, (Quadro 1). Em todos os fatores, o valor de alfa não melhorava com a extração de qualquer um dos itens.

Analisando os resultados relativamente à avaliação das crenças (Gráfico 1), e procedendo à percentagem do somatório dos itens, verificamos que no geral os estudantes inquiridos são discordantes com as crenças legitimadoras da violência (68, 9%), com percentagem maior de respostas no “Discordo totalmente” (40,40%). Contudo, encontrámos 19,30% das respostas no “não concordo nem discordo” e 11,8% situadas no “concordo” e “concordo totalmente”.

 

 

A média score da ECVC é de 51,19, com um desvio padrão de 15,06 e valor mínimo de 25 e máximo de 106. Relativamente às crenças e atitudes socioculturais legitimadoras da violência nas relações de intimidade (Questão 1), os valores mais elevados das respostas situaram-se no fator legitimação da violência motivada por causas externas e preservação da privacidade familiar” (21,02), seguindo-se a “Legitimação e banalização da pequena violência” (20,88).

 

Quadro 2

 

No que se refere à Questão 2, se existem diferenças significativas nas crenças acerca da violência nas relações de intimidade de acordo com o sexo dos inquiridos, pela aplicação do teste T de diferença de médias para amostras independentes, foram encontradas diferenças significativas entre os sexos, tanto no ECVC global como em cada um dos três fatores, com valores superiores de legitimação de violência nos inquiridos do sexo masculino.

 

Quadro 3

 

Discussão

A realização deste estudo apresenta algumas limitações, nomeadamente a amostra utilizada ter sido por conveniência, abranger apenas uma determinada região do país e tratar-se de um grupo específico de jovens dentro do sistema de ensino e etapa de formação académica. Estas situações impossibilitam retirar generalizações para a população juvenil portuguesa. Para além disso, tratando-se de um estudo quantitativo, em que foram utilizados questionários, não foi possível perceber e esclarecer questões relacionadas com o significado atribuído às crenças e atitudes acerca da violência nas relações de intimidade. Uma vez que o presente estudo se inscreve num projeto mais alargado, algumas destas questões serão clarificadas noutra etapa da nossa investigação. No entanto, apresenta algumas potencialidades no que diz respeito ao conhecimento sobre as representações da juventude para equacionar a intervenção e a prevenção no campo da saúde, mais concretamente, em enfermagem.

Pelos resultados, verificamos que os/as estudantes inquiridos/as são discordantes com as crenças legitimadoras da violência, com percentagem maior de respostas no item “Discordo totalmente” (40,40%). Contudo, encontramos ainda 11,8% das respostas situadas no “concordo” e concordo totalmente”, o que parece indicar que nesta amostra existe ainda uma percentagem considerável de jovens que aprovam atitudes violentas nas relações de intimidade. No estudo de Mendes e Cláudio (2010), os/as estudantes também demonstraram, no geral, discordância relativamente à legitimação da violência conjugal, com 54% das respostas situadas no “Discordo totalmente” e 30% no “Discordo”, e uma baixa frequência de respostas como o “Concordo” (5%) e o “Concordo totalmente” (1%), que são inferiores às verificadas neste estudo. De acordo com (Afonso, 2010), muitas destas crenças que legitimam a violência ligam-se à desigualdade entre homens e mulheres; os homens experimentam o direito ao controle dos membros da família, com consentimento e aprovação de todos, mulheres, crianças e sociedade, sendo estas ideias perpetuadas e transferidas com frequência pelos adultos de ambos os sexos para as crianças quando as educam. Foram registadas 19,30% de respostas no item “não concordo nem discordo” o que poderá revelar alguma indiferença relativamente a este fenómeno, prevalecendo as representações sociais que interpretam alguns comportamentos violentos como condutas habituais numa relação. Estes resultados são superiores aos verificados no estudo de Mendes e Cláudio (2010), referindo estes autores que estas respostas poderão indicar algum desinteresse dos sujeitos face à violência, corroborando de alguma forma a opinião de Machado (2010), quando refere que existe uma tendência cultural para aceitar a violência como natural e comum, vivenciando os atos agressivos como normais no quotidiano.

A média dos scores da ECVC foi de 51,19, apresentando valores próximos dos encontrados no estudo de Caridade (2011), e revelando uma baixa tolerância aos comportamentos violentos. Relativamente às crenças e atitudes socioculturais legitimadoras da violência nas relações de intimidade, questão 1, os fatores de legitimação com valores mais elevados de respostas situaram-se no fator “Legitimação da violência motivada por causas externas e preservação da privacidade familiar”, seguindo-se a “Legitimação e banalização da pequena violência”. A desculpabilização da violência ligada a estes fatores pode apontar para uma perceção deste tipo de comportamento que vai sendo construída com base em determinados valores, onde a violência pode ser legitimada perante algumas condutas da mulher; a privacidade no contexto das relações íntimas é um fator que continua fortemente marcado; e para muitos jovens algumas atitudes violentas são interpretadas como atos de amor. Estes resultados corroboram os encontrados no estudo de Mendes e Cláudio (2010), que consideram a perceção das atitudes violentas como sendo um comportamento aceitável, principalmente quando são associadas a situações de ciúme. Esta perceção dificulta a conscientização dos/as mais jovens para a gravidade deste tipo de condutas. Na investigação de Caridade (2011), o fator com valores mais elevados foi “Legitimação e banalização da pequena violência”, mas tendo em conta que nesta investigação o fator “Legitimação da violência motivada por causas externas e preservação da privacidade familiar” poderá corresponder na investigação desta autora aos fatores “Legitimação da violência pela sua atribuição a causas externas” e “ Legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar”, verificamos que, nessa amostra, os valores relativos a estas condutas, quando analisados conjuntamente, são também elevados. Estes dados vão de encontro à opinião de Afonso (2010) quando refere que o conceito do “lar” surge como lugar privilegiado de bem-estar e segurança da mulher representando um local privado, onde a entrada de pessoas estranhas à família não deve ser permitida e em que todos os problemas devem ser resolvidos pelos seus membros.

Relativamente aos resultados da questão 2 verificámos que existem diferenças estatisticamente significativas entre os dois sexos, tanto no ECVC global como em cada um dos três fatores, com valores superiores de legitimação de violência nos inquiridos do sexo masculino. Os rapazes apresentam-se neste estudo como mais permissivos relativamente aos comportamentos violentos, podendo indicar uma interpretação de violência ligada a estereótipos de género, onde este tipo de atitudes confere poder e domínio e representa o que é ser masculino. Também nos estudos de Mendes e Cláudio (2010), de Caridade (2011) e de Afonso (2010), foram encontrados resultados similares, sendo os sujeitos do sexo masculino os que apresentaram atitudes mais tolerantes com as condutas violentas, tanto no global como no que se refere a cada um dos fatores. No estudo de Ribeiro e Sani (2008), os resultados mostraram equivalência no geral, na opinião acerca das crenças em relação à violência, entre inquiridos/as de ambos os sexos, mas com diferenças significativas nos fatores socioculturais, onde os rapazes aceitavam mais este tipo de argumentos na justificação da violência.

 

Conclusão

Apesar das limitações referidas, os resultados encontrados permitiram corroborar os resultados de outros estudos desenvolvidos acerca desta temática. Verificamos que, na sua maioria (68,9%), os/as jovens inquiridos/as discordam das crenças legitimadoras da violência, contudo, foram encontradas ainda respostas de concordância (11,8%) relativas a este tipo de atitudes que justificam as condutas violentas. Os valores mais elevados relacionados com a justificação da violência pelas causas externas, como o álcool ou o desemprego, e a preservação da privacidade familiar, continuam a indicar que, na perspetiva dos/as inquiridos/as, se justifica a utilização dos comportamentos violentos nas relações de intimidade, o que pode levar a uma desculpabilização do agressor. Os resultados mostraram uma concordância maior dos indivíduos do sexo masculino com as condutas violentas. Isto pode estar relacionado com os fatores socioculturais, nomeadamente com as conceções mais tradicionais de socialização do sexo masculino com resistência a comportamentos mais afetivos e emocionais e com integração de papéis relacionados com força física e conflitos verbais para mostrar que é forte, legitimando, assim, condutas de controlo e agressões na intimidade.

Assim, consideramos importante o desenvolvimento de estudos acerca da violência nas relações de intimidade, com diferentes metodologias que permitam não só conhecer as crenças e atitudes dos jovens relativamente a este fenómeno, mas implementar programas que promovam a aquisição de conhecimentos, identificar e produzir mudanças nas crenças socioculturais relacionadas com a violência nas relações de intimidade e promover o desenvolvimento de competências para gerir situações de violência e relações saudáveis.

 

Rerências bibliográficas

AFONSO, J. I. G. (2010) - “ (…) Mais gosto de ti”??? Diferenças entre homens e mulheres nas crenças e comportamentos sobre violência conjugal. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Dissertação de mestrado.

ALDRIGHI, Tânia (2004) - Prevalência e cronicidade da violência física no namoro entre jovens universitários do Estado de São Paulo. Psicologia. Teoria e Pratica. Vol. 6, nº 1, p. 105-120.

CARIDADE, Sónia (2011) – Vivencias íntimas violentas: uma abordagem científica. Coimbra: Almedina.

CARIDADE Sónia ; MACHADO Carla (2006) - Violência na intimidade juvenil: da vitimação à perpetração. Análise Psicológica. Vol. 24, nº 4, p. 485-493.

CONNELL, R. W. (2005) – Change among the Gatekeepers: men, masculinities, and gender equality in the global arena. Signs: Journal of Woman in Culture and Society. Vol. 30, nº 3, p. 1801-1825.

DIAS, I. (2010) - Violência doméstica e justiça. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP. Vol. 20, p. 245-262.

GONZÁLEZ-ORTEGA, Itxaso ; ECHEBURÚA Enrique ; CORRAL Paz de (2008) -Variables significativas en las relaciones violentas en parejas jóvenes: una revisión. Behavioral Psychology / Psicología Conductual. Vol. 16, nº 2, p. 207-225.

HATTY, Suzanne E. (2000) - Masculinities, violence and Culture. London: Sage Publications.

LISBOA, Manuel (2008) – Memorando síntese. Resultados do inquérito violência de género. Lisboa: Gabinete de Investigação em Sociologia Aplicada, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa.

MACHADO, Carla ; MATOS, Marlene ; GONÇALVES, Miguel M. (2006) - Manual da escala de crenças sobre violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Psiquilíbrios.

MACHADO, Carla ; MATOS, Marlene ; MOREIRA, A. I. (2003) - Violência nas relações amorosas: comportamentos e atitudes na população universitária. Psychologica. Nº 33, p. 69-83.

MACHADO, Lúcia Maria Gonçalves da Silva (2010) - Crenças e representações sociais dos adolescentes sobre a violência interpessoal. Porto: Universidade Fernando Pessoa. Dissertação de mestrado.

MENDES, Carla S. (2010) – Violência na escola: conhecer para intervir. Revista de Enfermagem Referência. Série 2, nº 12, p. 71-82.

MENDES, Ema ; CLÁUDIO Victor (2010) - Crenças e atitudes dos estudantes de enfermagem, engenharia e psicologia acerca da violência doméstica. In Atas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho. p. 3219-3230.

OMS (2002) - Rapport mondial sur la violence et la santé. Genève. OMS.

PESTANA, M. ; GAGEIRO, J. (2000) - Análise de dados para ciências sociais. 2ª ed. Lisboa: Edições Sílabo.

PORTUGAL. Ministério da Saúde (2004) - Plano Nacional de Saúde 2004-2010: mais saúde para todos. Lisboa: Direcção Geral da Saúde.

RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS n.º100/2010. D.R. I Série. 243 (10-12-17) 5763-5773.

RIBEIRO, Maria da Conceição Osório ; SANI, Ana Isabel (2008) - As crenças de adolescentes sobre a violência interpessoal. Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Vol. 5, p. 176-186.

WHO (2007) - Primary prevention of intimate partner violence and sexual violence: Background paper for WHO expert meeting. Geneva: WHO, Department of Violence and Injury Prevention and Disability ; WHO, Department of Reproductive Health and Research.

 

O presente estudo está integrado no estudo de investigação para doutoramento em Ciências de Enfermagem, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e cujo projeto de investigação foi financiado pela Fundação para a Ciência e Técnologia (FCT) através do Programa à formação avançada de docentes do Ensino Superior Politécnico (PROTEC) com a referência PEst-OE/SAU/UI0742/2011.

 

Recebido para publicação em: 10.09.12

Aceite para publicação em: 26.07.13

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons