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Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283
Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.6 Coimbra set. 2015
https://doi.org/10.12707/RIV14073
ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO
Como as famílias portuguesas percecionam a transição para a aposentação
How Portuguese families perceive transition to retirement
Cómo las familias portuguesas perciben la transición a la jubilación
Helena Maria Almeida Macedo Loureiro*; Margareth Ângelo**; Margarida Alexandra N. C. G. M. Moreira da Silva***; Ana Teresa Martins Pedreiro****
* Ph.D., Professora Adjunta, Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro, Edifício 30, Agras do Crasto - Campus Universitário de Santiago, 3810-193 Aveiro, Portugal [hloureiro@ua.pt]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica; realização do plano de investigação; realização das entrevistas e recolha de dados; tratamento e análise dos dados; discussão dos resultados; escrita do artigo. Morada para correspondência: Avenida 5 de Outubro, n.º 29, Bloco E, 3.º B, 3810-082, Aveiro, Portugal.
** Ph.D., Professora titular da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo [angelm@usp.br]. Contribuição no artigo: participação na análise dos dados; discussão dos resultados; escrita do artigo.
*** MsC., estudante de doutoramento no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, Professora Adjunta na Escola Superior de Enfermagem de Coimbra [margarida@esenfc.pt]. Contribuição no artigo: participação na análise dos dados; discussão dos resultados; escrita do artigo.
****MsC., estudante de doutoramento na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Bolseira de Investigação na Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem. Contribuição no artigo: participação na análise dos dados; escrita do artigo.
RESUMO
Enquadramento: A aposentação é um evento de vida transicional que origina mudanças às quais os indivíduos se têm que adaptar, associadas às vulnerabilidades biofisiológicas, psicológicas e sociológicas. Desconhece-se se esta transição interfere na dinâmica sistémica das suas famílias.
Objetivos: Compreender as perceções das famílias Portuguesas relativamente à sua experiência de transição para a aposentação.
Metodologia: Estudo qualitativo, com 14 famílias de indivíduos que se aposentaram recentemente e experimentaram alterações e/ou dificuldades nessa transição. Os dados foram recolhidos por meio de entrevistas e as informações foram analisadas utilizando o NVivo10®.
Resultados: A aposentação não interfere apenas na vida dos indivíduos recém-aposentados mas também na sua sistémica familiar. Todos os elementos da sua família percecionam esta transição simultaneamente como ganhos e perdas e a uma necessidade de reaprender a Ser, Sentir e Estar em família.
Conclusão: Cuidar na passagem à reforma deve obedecer a um modelo muito próprio de intervenção de enfermagem que harmonize a singularidade de famílias e a especificidade das mudanças que essa experiência suscita.
Keywords: aposentadoria; família; saúde; enfermagem.
ABSTRACT
Theoretical Framework: Retirement is a transitional life event which requires an adaptation to change associated with biophysiological, psychological, and sociological vulnerabilities. It is unknown whether this transition interferes with the systemic dynamics of the families.
Objectives: To understand how Portuguese families perceive their experience of transition to retirement.
Methodology: Qualitative study conducted with 14 families of individuals who had recently retired and experienced changes and/or difficulties in this transition. Data were collected through interviews and analysed using NVivo10®.
Results: Retirement influences not only the lives of retired individuals, but it also affects their family systems. Family members perceive this transition as having gains and losses and as bringing about the need to relearn how to Act, Feel and Be in family.
Conclusion: Care provision in the transition to retirement should follow a very specific model of nursing intervention that combines the families' uniqueness and the specificity of the changes brought about by this experience.
Palavras-chave: retirement; family; health; nursing.
RESUMEN
Marco contextual: La jubilación es un acontecimiento transicional de la vida que provoca cambios a los que los individuos se tienen que adaptar y que están asociados a las vulnerabilidades biofisiológicas, psicológicas y sociológicas. Se desconoce si esta transición interfiere en la dinámica sistémica de sus familias.
Objetivos: Comprender las percepciones de las familias portuguesas sobre su experiencia de transición a la jubilación.
Metodología: Estudio cualitativo con 14 familias de personas que se habían jubilado recientemente y habían experimentado cambios y/o dificultades en esa transición. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas y la información se analizó utilizando NVivo10®.
Resultados: La jubilación no solo interfiere en la vida de las personas recién jubiladas, sino que también afecta al sistema familiar. Todos los miembros de la familia perciben simultáneamente esta transición como ganancias y pérdidas y como una necesidad de reaprender cómo Ser, Sentir y Estar en familia.
Conclusión: El cuidado de la transición a la jubilación debe ajustarse a un modelo propio de intervención de enfermería que armonice la singularidad de las familias y la especificidad de los cambios derivados de esa experiencia.
Palabras clave: jubilación; familia; salud; enfermería.
Introdução
A aposentação anuncia o final da vida ativa. Trata-se de um evento transicional (Meleis 2010) caracterizado por uma adaptação à mudança que pode causar vulnerabilidades em saúde (Loureiro, Fonseca, & Veríssimo, 2012). O aumento do número de reformados observado na maioria das sociedades desenvolvidas levanta um grande número de problemas, nomeadamente uma maior procura de cuidados de saúde (Hermon & Lent, 2012).
Os estudos sobre o impacto da reforma em famílias de aposentados são escassos em todo o mundo e, em Portugal, são praticamente inexistentes. A investigação neste domínio é necessária a fim de proporcionar evidências para promover a saúde da família durante este processo adaptativo. Assim, este estudo tem como objetivo conhecer as perceções das famílias Portuguesas relativamente à sua experiência de transição para a aposentação.
Enquadramento
As sociedades atuais estão a enfrentar um dos maiores desafios de sempre: o crescente envelhecimento da população. O número de aposentados tem vindo a aumentar em todo o mundo e, também, em Portugal. Este desafio pode ser respondido com um equilíbrio entre os determinantes da saúde que incluem o ambiente social e económico, o ambiente físico e as características e comportamentos individuais (Marmota, Allen, Bell, Bloomer, & Goldblatt, 2012), que são influenciados pelos acontecimentos transicionais (Meleis, 2010).
A aposentação é um desses eventos transicionais, caracterizada por um processo contínuo de adaptação à mudança e que pode expor as pessoas a diferentes níveis de vulnerabilidade biofisiológica (Loureiro, 2011), psicoemocional (Fonseca, 2011) e socioeconómica (Fernandes, 2008). Este evento é uma das principais transições na vida dos indivíduos na meia-idade. É o início de uma nova fase da vida que exige a reestruturação das rotinas diárias, bem como das dinâmicas relacionais internas das famílias.
Uma transição é um processo psicológico interno que os indivíduos atravessam quando têm que enfrentar uma nova situação (Nuss & Schroeder, 2002). As transições podem ser eventos previstos, como a aposentação, ou eventos imprevistos. Cada indivíduo traz pontos fortes e fracos para lidar com o processo de transição e a família pode ser vista como uma força ou como uma fraqueza.
A aposentação anuncia o final da vida ativa e traz muitas perdas que podem aumentar o risco de doença entre os recém-aposentados. No entanto, a aposentação é desejada por muitos, uma vez que constitui a oportunidade para libertar a pressão e a responsabilidade, a falta de tempo e muitas outras restrições que são normalmente atribuídas ao trabalho. Mas é também temida por outros que fizeram do seu trabalho fonte de prazer, investimento pessoal e/ou reconhecimento social. Para muitos indivíduos esta transição pode mesmo chegar a ser percebida como uma perda da sua identidade.
A experiência bem-sucedida deste evento depende de muitos fatores individuais (Loureiro et al, 2012; Mintzer & Taylor, 2012) que se podem refletir na saúde das famílias.
Questão de Investigação
Como é que as famílias portuguesas percecionam a experiência de transição para a aposentação?
Metodologia
Os métodos qualitativos constituíram a base metodológica deste estudo, tendo-se recorrido ao interacionismo simbólico, como referencial teórico, e à investigação narrativa como método de análise da informação cedida pelos participantes. A investigação narrativa foi conduzida pela análise das narrativas em si, e posteriormente, elas foram recontados pelo investigador (sendo o principal objetivo desta ação, ouvir e questionar os participantes sobre a validade das narrativas expressas). Numa segunda fase, após a análise fora do contexto, o investigador relatou essas mesmas narrativas na presença dos participantes, elaborando uma meta-narrativa.
A seleção dos participantes resultou de uma investigação anterior (Loureiro, 2011), realizada a uma amostra de 432 indivíduos recém-aposentados (há menos de 5 anos), a quem foi aplicado um questionário e no qual identificamos 136 participantes que haviam percecionado alterações e/ou dificuldades na aposentação. Entre os indivíduos identificados com estas características, 30 foram sinalizados porque as suas famílias obedeciam aos seguintes critérios de inclusão: todos os elementos tinham experienciado o período de transição para a aposentação com o indivíduo numa situação de coabitação e todos os elementos expressaram a participação voluntária no estudo através da obtenção de consentimento informado. Os critérios de exclusão foram: todos os elementos que tinham uma idade inferior a 18 anos; todos os elementos que não apresentavam capacidades cognitivas para participar do estudo (por exemplo: demência, doença de Alzheimer) e todas as famílias em que pelo menos um dos seus elementos revelasse um índice de APGAR familiar (Smilkstein, 1978) inferior a quatro (traduzindo ausência de disfunção familiar).
Depois de verificar todos os critérios acima mencionados e da obtenção do consentimento informado, a amostra de famílias participantes ficou restringida a 14. Maioritariamente, estas eram constituídas por dois elementos, nenhuma família era reconstruída, apresentavam-se num estadio do ciclo de vida de «ninho vazio» (Wright & Leahey, 2012) e o índice de APGAR familiar, percebido por estes, situava-se entre os valores de 4 e 9 (média do índice = 6). A caracterização das famílias participantes foi baseada no Modelo de Avaliação Familiar de Calgary (Wright & Leahey, 2012).
A colheita de dados foi realizada através de entrevista semi-estruturada a todos os elementos, no mesmo momento, das famílias selecionadas. O processo de colheita de dados foi desenvolvido em duas etapas distintas. Uma primeira fase em que a entrevista com a família foi realizada através de uma entrevista semiestruturada, com a pergunta Como passou a ser a sua vida após a aposentação?, e gravada em vídeo, após obtenção do consentimento informado de todos os seus elementos. Uma segunda fase, realizada posteriormente, em que os participantes foram confrontados com uma sistematização das suas narrativas, a fim de validar o contexto do seu discurso. A análise da informação, propriamente dita, iniciou com a transcrição completa das entrevistas e, em seguida, com a codificação de acordo com o número de participantes da família e da relação estabelecida com o aposentado identificado (I – individuo recém-aposentado; C – cônjuge; A – ascendente; D – descendente). O material resultante desta transcrição foi analisado por consenso, utilizando o programa NVivo10®.
Todos os princípios éticos e deontológicos de investigação foram salvaguardados [aprovado pela Comissão de Ética da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde (UICISA: E), Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (P131-01 / 2013)] e, de uma forma muito particular, das famílias que foram selecionadas para este estudo.
Resultados
As famílias viram-se confrontadas com uma nova realidade após a aposentação e, ainda que esta transição tenha sido protagonizada por um dos seus elementos, o referido acontecimento foi responsável por um conjunto de processos de adaptação que não deixou indiferente nenhum dos elementos da família. Esta evidência emergiu nos significados atribuídos a esta transição, que sugeriram a aposentação enquanto evento e enquanto vivência (Figura 1).
As famílias percecionaram a aposentação como um acontecimento gerador de ganhos e/ou perdas nas suas vidas (Figura 2).
Os ganhos percecionados estiveram particularmente relacionados com a obtenção de melhor estado de saúde “Foi bom ter-me reformado . . . porque aquela angústia que não me deixava descansar, passou.” (I1) (2013), com a diminuição do stresse “a minha perspetiva era a de que existisse uma maior tranquilidade por parte da minha mulher. . . . veio a verificar-se” (C1) (2013), com a obtenção de mais tempo para si próprio . . . só tem uma coisa boa é que passei a ter mais tempo para me dedicar a numismática . . .” (I5) (2013) e para outros “agora, que tenho tempo, ajudo a minha filha, cuidando dos meus netos.” (I12) (2013), e ainda com a perceção de melhoria da relação sistémica familiar “mas agora tenho o meu filho mais próximo de mim” (A1) (2013).
Relativamente às perdas percecionadas, estas estiveram relacionadas com a diminuição do ritmo da vida “parece que lhe falta um pouco daquelas pilhas que a moviam” (C1) (2013), com a perda de relação social “às vezes sinto alguma pena, porque perdi algum contato com a vida do dia-a-dia” (I1) (2013), com a perda de status “esquecem-se daquilo que eu fiz por elas . . . Deixei de ser o Dr. . . . para passar a ser o senhor” (I5) (2013), com a perda económica “mas a dificuldade económica que me trouxe foi o pior” (I11) (2013), com a perceção de perda de liberdade “Pelo menos não tinha ninguém para me chatear . . . agora é um stresse. Sinto-me preso. Sinto-me como um passarinho que foi metido na gaiola.” (I9) (2013) e, com o aumento de stresse no sistema familiar “chegar a casa e ainda ter tudo para fazer? Nem o pão me é capaz de comprar! Ora, uma mulher também se cansa. Eu já só lhe peço que não desarrume.”(C5) (2013).
Interessante foi verificar que este evento suscitou sempre, num mesmo participante e numa mesma família, uma ambivalente perceção de ganhos e perdas. Exemplo dessa ambivalência foi o caso da família número 2, em que protagonista e cônjuge atribuíram simultâneos ganhos e perdas a esta vivência:
Acabaram-se as guerrilhas com a direção . . ., mas cá em casa começou outra guerra . . . a minha mulher não entende que temos que nos preparar para um futuro incerto . . . . (I2) (2013)
Saiu-me tudo ao contrário . . . Agora ele (I2) diz que não tem muito dinheiro . . . que podemos vir a precisar quando estivermos doentes . . . e o facto de termos a minha sogra cá em casa não nos deixa muito espaço para o fazer. (S2) (2013)
Com respeito ao significado atribuído à vivência da aposentação, a tipologia e o contexto em que as perceções foram proferidas permitiu verificar que na sua grande maioria se reportavam a experiências que se faziam acompanhar por uma certa reaprendizagem sistémica, reaprendizagem essa que se desenvolveu em torno das dimensões estar, sentir e ser em família (Figura 3).
Relativamente ao reaprender a estar em família, esta dimensão reportou-se às atitudes que passaram a adotar em resposta à mudança que o referido acontecimento de vida lhes terá suscitado, sugerindo a existência de uma atitude: pró-ativa, quando o indivíduo foi agente da sua reaprendizagem, podendo esta ter sido sentida de forma positiva (se construtiva para o sistema familiar), negativa (se não construtiva para o sistema familiar) ou ambivalente (quando se manifestou de uma forma dualística para o sistema familiar); reflexa, quando se verificou que o indivíduo sentiu uma alteração da sua forma de estar em família, mas em que o próprio não se constituiu agente desta reaprendizagem, podendo ter sido igualmente sentida de uma forma positiva, negativa ou ambivalente e/ou; neutra, quando se verificou que o indivíduo, ainda que a possa ter sentido, não manifestou qualquer alteração na sua forma de estar em família.
Na família 3 o elemento que protagonizou este acontecimento de vida, proferiu: “para dar a volta à questão, passei a tomar conta das questões caseiras . . . é, posso dizer, de certa forma, me tornei um pouco . . . um dono de casa . . . .” (I3), o significado de reaprender a estar em família, tornou-se evidente, estando este relacionado com uma nova forma de ocupar o seu tempo livre. Contudo, numa análise mais atenta, tornou-se evidente a atribuição simbólica que o protagonista deu a esta nova forma de estar em família, e apesar de aparentemente satisfeito com esta, a maneira hesitante e o tom irónico com que a transmitiu, deixou transparecer que forma de estar não seria propriamente a habitual para a sua condição e género, no contexto sociocultural em que vivia e, como tal, considerou-se que a sua atitude foi pró-ativa e de caráter ambivalente.
Já as narrativas da família cinco fizeram notar que o facto de o (I5) se ter aposentado não terá exercido uma grande interferência na sua forma de estar em família. Essa situação poderá ter sido decorrente do desinvestimento na relação familiar que este elemento foi assumindo ao longo dos anos e de ter mantido essa mesma postura, após a ocorrência deste acontecimento de vida.
Encontrei uma nova forma de ocupar o meu tempo . . . eu já me interessava pela numismática, mas agora passei a dedicar-me mais a este assunto . . . Nunca me preocupei com as questões caseiras porque eu sei que minha mulher cuida bem dessa parte. (I5) (2013)
O facto do meu marido se ter reformado não alterou em nada a minha forma de estar na vida . . . também já não tinha muita esperança de ele vir a colaborar com a dinâmica caseira, uma vez que também nunca o tinha feito . . . . (C5) (2013)
A reaprendizagem relativa ao sentir em família foi também evidente nos participantes e, segundo a análise efetuada, a deceção, a saudade e a solidão transpareceram. Estas formas de sentir poderão ter estado relacionadas com o facto dos elementos protagonistas do acontecimento em estudo terem manifestado a vivência de alterações e/ou dificuldades numa fase anterior a esta investigação, mas não apenas com esse aspeto. A análise dos contextos narrativos, nos quais os referidos significados foram proferidos, fizeram notar que outros fatores poderão ter estado também na origem desta forma de sentir em família.
No que diz respeito à deceção, os significados proferidos estiveram relacionados com o facto de a vida após a aposentação não ter correspondido às expectativas e, de forma particular, com a externalização de um sentimento dado pela não concretização de alguns ganhos em família que seriam esperados com a referida transição. A narrativa de (I1) foi ilustrativa deste sentimento perante tal evento que, a seu ver, deveria ser previamente preparado, a fim de evitá-lo.
Nem tudo é um mar de rosas . . . pensava que iria ser melhor! Agora sinto falta daquela que era a minha vida . . . Considero que o ritmo de vida que eu tinha não me deu a mínima oportunidade para eu preparar esta mudança . . . deveriam ser criadas oportunidades para as pessoas se prepararem para esta mudança de estatuto . . . e acho que no início o meu marido também sentiu que eu não estava preparada para esta mudança tão brusca. (I1) (2013)
A nostalgia foi a premissa para o aparecimento do sentimento de saudade nas narrativas de muitos dos indivíduos neste estudo. Os excertos de algumas narrativas descreveram esse facto e a sua análise ajudou a perceber que essa forma de sentir se relacionou com o cessar do exercício profissional, com o afastamento dos sistemas com os quais habitualmente estabeleciam relação e, de uma forma geral, com o distanciamento daquelas que tinham sido as suas vidas passadas. I1, na sua narrativa, foi explícita desta forma de sentir quando referiu: “mas, o meu gosto pela lecionação nunca me abandonou e é sobre esse que ainda hoje sinto saudade. . . . o próprio convívio com alguns dos meus colegas de trabalho também ainda me deixa muitas saudades . . . tento que esse sentimento não interfira na minha vida, mas . . .”. (I1) (2013).
A solidão foi outra reaprendizagem do sentir em família que emergiu nas narrativas, sobre a experiência após a aposentação. Este sentimento foi particularmente proferido pelos indivíduos que protagonizaram o referido acontecimento, mas não foi exclusivo. Ainda que de uma forma mais discreta, também outros membros da família manifestaram um idêntico sentimento que esteve essencialmente relacionado com o facto de terem esperado que com a referida vivência pudessem ter passado a usufruir de uma maior companhia e participação deste elemento, na sua dinâmica familiar. As narrativas da família 3 fizeram notar essa perceção, quando um dos seus elementos proferiu:
Sentia-me só! . . . No meu trabalho estabelecia contato com muitas pessoas . . . enfim, tinha um outro tipo de vida que agora não tenho! Acho que a minha maior dificuldade foi mesmo essa: o ter deixado de ter essa relação com as pessoas. Também não tinha outra atividade para me entreter e, dessa forma, parecia que os meus dias tinham 48 horas. Dei por mim a ligar à minha mulher, só para sentir companhia! (I3) (2013)
O subtema reaprender a ser em família emergiu nos discursos das famílias participantes quando se reportaram às dinâmicas relacionais que passaram a estabelecer, em resposta à mudança que o referido acontecimento de vida lhes terá propiciado. Esta reaprendizagem foi particularmente manifestada pelo subsistema conjugal, terá estado relacionada com as diferentes tarefas instrumentais e expressivas que passaram a experimentar e manifestou-se pela negociação da interdependência relacional:
Depois de falarmos, estabelecemos um plano: em determinados dias da semana, cada um de nós teria um tempo para as suas próprias atividades. Nos outros dias, passaríamos a desenvolver atividades conjuntas (I1) (2013)
Torna-se imprescindível que cada um mantenha o seu espaço e, em conjunto, torna-se também importante que o casal encontre o seu espaço comum! (C1) (2013)
Pela gestão do conflito relacional:
a minha mulher nunca mais me deu sossego” (I2) (2013)/Nunca mais tive sossego, desde que meu marido se reformou! . . . Estava sempre a reparar naquilo que fazia”. (C2) (2013)
E, pela reorganização de papéis e funções conjugais, destacando-se nesta área a função de cuidador particularmente direcionado para gerações descendentes:
Passei a ocupar o meu tempo com os meus netos. . . . sinto-me bastante orgulhoso com esta minha nova função, porque as pessoas reconhecem-me e vêm felicitar pelos dois lindos netos, que tenho. (I8) (2013) “tem muito jeito para os netos . . . desconhecia esse seu papel . . . às vezes até fico com a sensação de que passei a ter um novo marido”. (C8) (2013)
Discussão
As evidências empíricas mostraram que a aposentação é uma transição vivida de forma ambivalente, que desperta significados simultâneos de ganho e perda. Para os protagonistas, o facto de começarem a ter mais tempo para si, viver sem as responsabilidades e obrigações que o trabalho lhes requeria, estar longe do stresse e conflitos e outros aspetos organizacionais que constituíam uma fonte de insatisfação, facilitaram a expressão dos significados de ganho que foram encontrados nas suas narrativas. Estes e outros motivos levaram a uma idêntica perceção da aposentação pelos restantes elementos da sua família, porque começam a viver com uma pessoa mais relaxada, com um melhor bem-estar e que tem mais tempo para eles, o que foi, sem dúvida, uma mais-valia para o ambiente familiar.
No entanto, porque o confronto com a perspetiva que tinham antes de este acontecimento ocorrer se torna inevitável e porque para aqueles cujas expetativas atribuídas à aposentação não correspondeu à experiência que passarão a viver, essa situação terá originado algum descontentamento, traduzida pelos significados de perda presentes nas suas narrativas. Embora essa perceção tenha sido mais aparente em indivíduos que sofreram este acontecimento de vida, essa perceção esteve igualmente presente em outros elementos das suas famílias.
A proliferação de significados de ganho e perda e a forma concomitante em que estes foram revelados nas narrativas analisadas constituiu assim uma das mais claras evidências de que indivíduos e famílias estavam a experienciar um fenómeno de transição (Meleis, 2010).
Este estudo acrescenta um pouco mais a esta área do conhecimento, pois alerta que a experiência da transição para a reforma não se manifesta apenas no protagonista deste acontecimento, mas também, e de forma muito evidente, nos outros membros da família.
Estes resultados reiteraram a perspetiva do modelo ecológico do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1986), quando dão a perceber que as experiências de transição não podem ser entendidas de forma isolada. Pelo contrário, têm de ser analisadas no contexto transitório de interação sistémica em que se desenvolvem, e que integram inevitavelmente o sistema familiar.
Com base nessa perspetiva e no domínio da Enfermagem, estes profissionais de saúde devem estar sensibilizados para o facto de a sua intervenção não poder ser apenas focada nos indivíduos que experienciam este acontecimento, mas deverem ser simultaneamente abordados os sistemas que também estão envolvidos nessa transição, entre os quais se destaca a família.
Com efeito, no que diz respeito ao contexto do seu desenvolvimento e dada a interação sistémica nela estabelecida (Hanson, 2005), o envolvimento da família torna-se inevitável: não só pelos efeitos que esta transição pode ter sobre eles (família, enquanto destinatária de cuidados), mas também porque os seus elementos podem ser um aliado importante na implementação de estratégias que minimizem os significados de perda mencionados (família enquanto cuidador informal).
No que respeita ao significado atribuído à experiência da aposentação e mais especificamente em relação a ser em família, as atitudes neutras, reflexivas e proactivas expressas nas narrativas dos participantes evidenciaram que há muitas maneiras de os indivíduos lidarem com a adaptação à mudança que esta transição suscita. Estas resultam certamente das trajetórias de vida das famílias, da sua capacidade de resiliência para responder aos desafios e como se preparam para essa transição. De acordo com este achado, consideramos que uma preparação atempada e bem-sucedida para essa transição pode fazer toda a diferença no momento em que as famílias a experienciam.
Em Portugal, esta prática não é comum. Até ao momento não há programas de saúde ou políticas especificamente concebidas para este fim e, como afirmado anteriormente, também não existe uma particular atenção por parte dos profissionais de saúde para o acompanhamento de indivíduos e famílias nesta transição. Como este acontecimento de vida ocorre normalmente no início da anciania, considera-se que esta intervenção deverá começar ainda na idade adulta, numa fase de meia-idade. Por conseguinte, em relação às consequências que surgem a partir de uma experiência menos bem-sucedida desta transição, reiteramos a adequação de investir num programa de promoção da saúde, nesta fase do ciclo de vida da família, cuja construção deve ser adaptada à realidade sociocultural portuguesa (Loureiro, 2014 ).
Sobre sentir em família e porque os significados atribuídos à experiência em estudo estiveram essencialmente relacionados com perceções menos positivas do mesmo, esta evidência alertou para o facto de que esta transição é muitas vezes sentida como uma experiência possivelmente difícil dentro da sistémica familiar. Mas embora os sentimentos de deceção, saudade e solidão, tenham sido expressos com alguma frequência pelos participantes deste estudo, eles não têm necessariamente de ser vividos nessa transição. Contudo porque em estudos anteriores (Loureiro et al., 2012) se identificaram idênticas alterações e/ou dificuldades percecionadas em indivíduos que tinham experienciado este mesmo acontecimento, os resultados apresentados sugerem que esta reaprendizagem deve ser objeto de especial atenção por parte dos enfermeiros que cuidam de indivíduos e famílias durante esta transição. Explorar a composição e qualidade das relações estabelecidas no sistema familiar, fomentar as relações que podem ser desenvolvidas com outros sistemas comunitários e promover a continuidade ou mesmo o início de projetos de vida que são estimulantes para o desenvolvimento de um sentido de autoestima renovado (Hanson, 2005), são algumas das muitas intervenções que os enfermeiros podem desenvolver com estes indivíduos, a fim de minimizar esses sentimentos.
Em relação à reaprendizagem de estar em família a evidência veio reiterar a importância atribuída ao cônjuge, como uma fonte de apoio nesta experiência de transição (Loureiro, 2011). Uma vez que é o elemento da família que está mais próximo do protagonista desta transição, por o ter acompanhado ao longo dos vários anos do seu desenvolvimento, tendo construído objetivos de vida comuns e/ou porque os laços afetivos o induzem; a verdade é que esta relação é considerada de extrema importância no processo de adaptação à aposentação (Hanson, 2005; Alarcão, 2006).
No entanto, porque nesta mesma fase do ciclo de vida este tipo de relação é muitas vezes dotado de sinais de desequilíbrio, resultante de outras experiências de transição (por exemplo: a saída dos filhos, a entrada dos pais) e/ou das relações conjugais anteriores de menos sucesso, resultado do desencanto da vida; é necessário notar que para alguns subsistemas conjugais esta transição seja mais um esforço adaptativo. A negociação de interdependência, a gestão de conflitos relacionais e papéis conjugais e a reorganização de funções, foram manifestações expressas dessa necessidade. No que diz respeito à negociação da interdependência e porque os significados denotaram a ocorrência de atitudes opostas de conformismo ou de inconformismo, essa dualidade revelou que o desenvolvimento desta adaptação expôs os seus protagonistas a momentos de ajuste relacional.
A aposentação pode ser então vivida com maior dificuldade por parte de casais que apresentem relações conflituosas (Mintzer & Taylor, 2012), como as relatadas. Estes achados corroboram a ideia de que a relação conjugal é frequentemente sujeita a constrangimentos nesta fase do ciclo de vida (Alarcão, 2006; Ribeiro, 2005; Wright & Leahey, 2012), e que estes são em grande parte resultantes dos processos adaptativos a que estiveram expostos ao longo da sua vida conjugal. À luz desta evidência, os enfermeiros devem intervir no sentido de promover a autonomia, a relação de partilha e de desenvolvimento destes casais, sendo certo que decorrente esta intervenção resultarão ganhos para ambos os membros do casal (Ribeiro, 2005; Bushfield, Fitzpatrick, & Vinick, 2008).
Com respeito à reaprendizagem dos papéis e funções familiares, verificou-se que a função de cuidar, mais particularmente cuidar dos netos, foi evidente em termos de resposta adaptativa. Este achado teve de alguma forma a sua origem nos costumes da cultura portuguesa, onde era comum a existência de famílias extensas em que prática de autocuidado estava instituída. Considerando que o casal não se deve esquecer nunca de explorar as várias formas e estratégias de promover a sua conjugalidade (Bushfield et al., 2008), será este o protagonista de um equilíbrio que permitirá a alcançar a tão desejada saúde.
Conclusão
As coisas, os símbolos, a linguagem, a sociedade, a auto interação, a ação humana e a atividade de grupo que emergiram das narrativas evidenciaram que a aposentação é uma experiência de transição que não é exclusiva do protagonista, mas que é transversal a toda a família. Também foi possível perceber que, dependendo das características envolventes, este acontecimento pode resultar em diferentes perceções de ganho e perda, que se traduz numa atribuição de significado ambivalente. Numa perspetiva experiencial, também foi percetível que esta transição leva a um processo de mudança e adaptação na sistémica familiar que só é conseguido através de uma reaprendizagem de ser, sentir e estar em família. Assim, cuidar durante a transição para a aposentação deve seguir um modelo muito próprio de intervenção que harmonize a singularidade dos indivíduos e das famílias que são protagonistas desse evento. Este modelo ainda não existe nos cuidados de saúde primários Portugueses. No entanto, com base nessas evidências, está a ser desenvolvido um programa para ser implementado neste contexto de cuidados. O REATIVA [Reforma Ativa: estudo de um programa promotor de um envelhecimento saudável (PTDC / MHC-PSC / 4846/2012)] é um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, pelo Governo Português e pela União Europeia, inscrito na UICISA: E, que está a procurar mais evidências para sustentar o programa a ser implementado em cuidados de saúde primários, que visa melhorar a saúde biopsicossocial de indivíduos e famílias de meia-idade, a experienciar um processo de adaptação à aposentação por forma a promover um envelhecimento ativo.
Referências Bibliográficas
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Received for publication: 28.10.14
Accepted for publication: 04.02.15