Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283
Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.11 Coimbra dez. 2016
https://doi.org/10.12707/RIV16034
ARTIGO TEÓRICO/ENSAIO
Marcos e dispositivos legais no combate à violência contra a mulher no Brasil
Milestones and legal devices to combat violence against women in Brazil
Marcos y dispositivos legales para combatir la violencia contra la mujer en Brasil
Larissa Alves de Araújo Lima*; Claudete Ferreira de Souza Monteiro**; Fernando José Guedes da Silva Júnior***; Andrea Vieira Magalhães Costa****
* MsC., Enfermeira, Mestranda em Enfermagem, Universidade Federal do Piauí, 64.049-550, Brasil [larissaalves_@hotmail.com]. Morada para correspondência: Rua Beneditinos, nº 656, Teresina, 64.049-550, Brasil [larissaalves_@hotmail.com]. Contribuição no artigo: recolha e tratamento de dados, escrita do artigo.
** Ph.D., Enfermeira, Docente do Programa de Pós Graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Piauí, 64.049-550, Brasil [claudetefmonteiro@hotmail.com]. Contribuição no artigo: análise de dados e discussão.
*** MsC., Enfermeiro, Doutorando do Programa de Pós Graduação em enfermagem, Universidade Federal do Piauí (UFPI), Docente da graduação em Enfermagem, UFPI, 64.049-550, Brasil [fernandoguedesjr@gmail.com]. Contribuição no artigo: análise de dados e discussão.
**** MsC., Enfermeira, Mestranda em Saúde da Família, UFPI, 64.049-550, Brasil [andreavieira_mc@hotmail.com]. Contribuição no artigo: análise de dados e discussão.
RESUMO
Enquadramento: A violência contra a mulher é resultado de comportamentos agressivos que causam dano físico, psicológico, moral, patrimonial e sexual.
Objetivos: Discutir a evolução histórica dos marcos e dispositivos no combate à violência contra a mulher no Brasil.
Principais tópicos em análise: Os marcos e dispositivos legais para o combate à violência contra a mulher emolduram diversas leis, programas ministeriais, pactos, portarias, criação de delegacias especializadas. Têm por base a Constituição Federal de 1988, elevadas taxas de violência contra a mulher e a participação do país em convenções internacionais, das quais o Brasil é signatário.
Conclusão: O caminho histórico mostra que os marcos e dispositivos legais foram e continuam a ser importantes para visibilidade do problema, consciencialização e discussão comunitária e académica. Porém, torna-se necessário reconhecer que a violência contra a mulher é, ainda, um agravo de saúde pública.
Palavras-chave: violência contra a mulher; políticas públicas; saúde da mulher
ABSTRACT
Background: Violence against women is the result of a pattern of aggressive behaviors that cause physical, psychological, moral, material, and sexual harm.
Objectives: To discuss the historical evolution of the milestones and legal devices to combat violence against women in Brazil.
Main topics under analysis: The milestones and legal devices to combat violence against Brazilian woman include an apparatus of laws, ministerial programs, agreements, ordinances, and the creation of specialized police stations. They are based on the Federal Constitution of 1988, the high rates of violence against women, and the country's ratification of international conventions.
Conclusion: History shows that milestones and legal devices have been and still are important for the visibility, awareness, and community and academic discussion of the problem. However, it is important to recognize that violence against woman continues to be a public health issue.
Keywords: violence against woman; politics; women's health
RESUMEN
Marco contextual: La violencia contra la mujer es el resultado de un patrón de conducta agresiva que causa daño físico, psicológico, moral, patrimonial y sexual.
Objetivo: Analizar el desarrollo histórico de los marcos y dispositivos para el tratamiento de la violencia contra la mujer en Brasil.
Principales temas en análisis: Los marcos y dispositivos legales para combatir la violencia a la mujer brasileña engloban un aparato de leyes, programas ministeriales, acuerdos, entrenamiento de la red, ordenanzas, creación de comisarías especializadas. Se basan en la Constitución Federal de 1988, las altas tasas de violencia contra la mujer y la participación de Brasil en los convenios internacionales, de cuyas decisiones es signatario.
Conclusión: La ruta histórica muestra que los marcos y dispositivos legales han sido y siguen siendo importantes para la visibilidad del problema, la sensibilización y la discusión comunitaria y académica. Sin embargo, es necesario reconocer que la violencia contra la mujer sigue siendo un delito a la salud pública.
Palabras clave: violencia contra la mujer; políticas públicas; salud de la mujer
Introdução
A violência contra a mulher caracteriza-se como um grave problema de saúde pública. Historicamente, esse tipo de violência é produto de uma estreita relação com as categorias de género, classe, raça/etnia e as suas relações de poder. Este termo é mencionado desde a década de 50, mas só recentemente o tema passou a ser foco de atenção em saúde e a ter mais influência na criação de políticas de intervenção e iniciativas da sociedade no âmbito nacional e internacional visto que as vítimas apresentam maior vulnerabilidade social, stresse pós-traumático, depressão e podem evoluir até casos de suicídio (Michau, Horn, Bank, Dutt, & Zimmerman, 2015). A violência contra a mulher resulta de um padrão de comportamento do agressor que pode envolver desde socos, pontapés, uso de armas, humilhação, ameaças, ato sexual contra a vontade da vítima até abuso financeiro, este por meio do controlo rigoroso das finanças da parceira de modo a deixá-la dependente (White & Satyen, 2015).
A Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou os seus esforços contra esta forma de violência com a criação da Comissão de Status da Mulher que formulou entre os anos de 1949 e 1962 uma série de documentos sobre todos os direitos que deviam ser aplicados igualmente a homens e mulheres, sem distinção de qualquer natureza. Somado a isso, várias ações, políticas, marcos e dispositivos legais foram implantados no sentido de tornar efetivas as medidas preventivas e protetoras da mulher, bem como para promover o seu empoderamento (Pinafi, 2012).
Apesar dos avanços e conquistas, estudos realizados no Brasil mostram que a prevalência da violência contra a mulher, praticada pelo parceiro ainda é bastante elevada. Pesquisa realizada no estado de São Paulo, região sul do Brasil, com 2.379 mulheres, encontrou que 55,7% foram vítimas de violência praticada pelo parceiro íntimo (Mathias, Bedone, Osis, & Fernandes, 2013). Num outro estudo, realizado na região nordeste no estado da Paraíba, com uma amostra de 86 mulheres, verificou-se que 63% destas haviam sido vítimas de violência, das quais 39% foi praticada pelo companheiro (Albuquerque et al., 2013).
Este tipo de violência recebe influência cultural, social e histórica. Nesta perspetiva torna-se relevante o estudo dos marcos e dispositivos legais desenvolvidos no combate à violência contra a mulher, visto que a partir do conhecimento e reflexões sobre estes se encontram contributos para o redirecionamento de políticas e alargamento das discussões na comunidade, convidando-a para também refletir sobre tais acontecimentos, os seus efeitos e melhorias. Este estudo tem como objetivo discutir a evolução histórica dos marcos e dispositivos para o combate à violência contra a mulher no Brasil..
Para realização desta investigação, aplicou-se uma análise reflexiva sobre os marcos e dispositivos legais no combate à violência contra a mulher no Brasil. Para a operacionalização deste estudo, realizou-se uma prévia revisão da literatura a fim de obter uma análise mais ampliada.
A revisão da literatura foi realizada no período de julho a agosto de 2015, utilizando as seguintes palavras-chaves: violência contra a mulher; políticas públicas; saúde da mulher; violência de género. Os critérios de inclusão foram: abordar a temática, artigos, diplomas legislativos, livros e coleções publicadas pelas secretarias nacionais, foram excluídos cartilhas e documentos que não abordassem a temática. Os artigos foram pesquisados nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Scientific Electronic Library Online(SciELO) e sites oficiais do Governo Federal.
Desenvolvimento
A violência contra a mulher acontece em todos os países, raças e culturas. Este facto ocorre porque este tipo de violência tem raízes na discriminação, na visão de que a mulher é frágil e submissa ao homem (MacDonald, 2013). Ao longo da história, esta problemática foi camuflada pela sociedade e interpretada como uma situação familiar, na qual apenas a família era protagonista da sua resolução.
O homem sempre se apropriou da política, do poder de escolha, do direito de exercer profissões, de estar livremente em sociedade, enquanto a mulher devia ser vista apenas em trabalhos com costura, alimentação, o que resultou nas relações de dominância, violência e violação dos direitos humanos contra a mulher (Santos & Marques, 2014). Por despertarem para a vivência dessas situações de desigualdades as mulheres começaram a procurar outros papéis na sociedade, com o direito a desenvolverem atividades profissionais, a se envolverem com políticas, entre outras funções. Os resultados que serão aqui apresentados datam os acontecimentos importantes no Brasil para o combate à violência contra a mulher, no período de 1981 a 2015.
No entanto, tornou-se necessário abordar alguns acontecimentos do cenário internacional, que marcam a presença da mulher em novos cenários com destaque para a Revolução Francesa, considerada como um marco político e ideológico para todo o ocidente e que nela também sobressai o potencial feminino para reivindicar e definir novos status da mulher na sociedade. A mulher procura papéis diferentes dos de cuidadora do lar, dos filhos e de uma esposa submissa para lutar pela posição de cidadã e de trabalhadora. Esse movimento já presente no século XIX marca a trajetória das lutas feministas (Oliveira, 2012). Despontavam aí, muito embora fossem uma necessidade do contexto do momento, as primeiras lutas feministas por espaços que a mulher poderia ocupar além do privado.
Outro momento histórico acontece durante um incidente em 8 de março de 1857 em Nova York, Estados Unidos, quando as operárias de uma fábrica têxtil aderiram a uma greve em prol de melhores condições de trabalho, redução da carga horária e salários equiparados aos dos homens. Porém, foram reprimidas com o encarceramento e incêndio da fábrica com as mulheres dentro, o que ocasionou a morte de aproximadamente 130 tecelãs carbonizadas. Em homenagem a esse grupo, em 1910, durante uma conferência na Dinamarca, o dia 8 de março passa a ser considerado o Dia Internacional da Mulher. Mas somente em 1975 a data é oficializada pela ONU (Pinafi, 2012).
Ainda no cenário mundial, após anos de lutas das mulheres, em 1946, a ONU criou a Comissão de Status da Mulher (CSW) com a função de promover o direito das mulheres nas áreas política, social e educacional. Em 1979, realizou-se a Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), a qual foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Esta convenção foi resultado do movimento feminista internacional que visava à condenação da discriminação contra a mulher em todas as suas formas e manifestações (Santos & Marques, 2014).
A violência contra a mulher ganhou espaço no estado brasileiro, em 1981, quando o país ratificou a CEDAW e passou a compartilhar da defesa dos direitos femininos de forma mais efetiva. No Brasil, emergiam muitos problemas relacionados com a saúde da mulher, entre eles a mortalidade materna, a gravidez indesejada, o aborto e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Com o objetivo de fornecer uma resposta a esses problemas, o Ministério da Saúde Brasileiro cria, em 1983, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), o qual representa um marco para a saúde da mulher. Porém, o objetivo deste programa voltava-se apenas, para a saúde reprodutiva da mulher (Ramalho, Silva, Lima, & Santos, 2012).
Em 1985, há a implantação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e a primeira Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) no Brasil. Esses dispositivos foram importantes, muito embora essa questão para o estado brasileiro fosse vista apenas sob o ponto de vista da justiça e da segurança pública (Santos & Marques, 2014). Desde então, têm sido criados mecanismos com vista ao fortalecimento das políticas de combate à violência contra a mulher, como pode ser observado na Figura 1.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, algumas mudanças ocorreram no papel social das brasileiras, como a palavra cidadão, a qual fazia referência apenas ao homem e a partir de então passa a incluir as mulheres e novos direitos fundamentais, como a direito à vida, à igualdade, à não discriminação, à segurança e à propriedade, a fim de possibilitar a igualdade de gênero (Santos, 2014). Entretanto, não foi suficiente para mudar a cultura e a forma como a mulher era vista e tratada na sociedade, principalmente, pelos seus companheiros, os quais continuavam a praticar atos de violência contra as suas esposas.
Em 1995, o Brasil passa a fazer parte da convenção de Belém do Pará, que consiste na Convenção Intramericana, um tratado entre os países da América, com o objetivo de prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, estabelecendo no seu capítulo II, artigos que permitiam às mulheres o direito a liberdade e igualdade (Pinafi, 2012). Os objetivos eram triunfantes, porém, pouca atenção se deu a este tratado e somente em 2003, o governo brasileiro dá importância e cria a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) em 28 de maio de 2003.
Esta secretaria tem por objetivo promover a igualdade entre géneros e combater todas as formas de violência, preconceito e discriminação e atua em três linhas principais: políticas do trabalho e da autonomia económica das mulheres, combate à violência contra as mulheres, e programas e ações nas áreas de saúde, educação, cultura, participação política, igualdade de género e diversidade (Lei nº 10.863/ 2003 de 28 de Maio). A SPM é um grande marco no combate à violência contra as mulheres, pois mostrou-se mais eficaz na criação de políticas, realização de eventos e medidas de prevenção até aos dias atuais.
Aumenta a frequência de procura dos serviços por mulheres vítimas de violência e o governo brasileiro homologa a Lei nº 10.778, em 24 de novembro de 2003, tornando-se obrigatória a notificação de todos os casos de violência contra a mulher, assistidos em serviços de saúde, público ou privado, dentro do território nacional (Lei nº 10.788/ 2003 de 24 de Novembro). Esta lei representa o marco inicial da violência contra a mulher como um problema de saúde pública, devido aos danos ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, causados à mulher.
Ainda em 2004, com apoio da SPM, é criada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), derivada do PAISM, porém mais ampla, com enfoque nas questões de género, integralidade e promoção da saúde como princípios norteadores, inclusão dos direitos sexuais e reprodutivos, assistência no planeamento familiar, na atenção ao aborto inseguro e no combate à violência doméstica e sexual, sendo esta última um dos principais indicadores da discriminação de género contra a mulher. Constitui outro marco relevante para o combate à violência contra a mulher como uma questão de saúde, visto que é a primeira política de atenção às mulheres que dá ênfase a este assunto e traz uma abordagem mais humanizada (Ramalho et al., 2012).
A SPM realizou ainda a I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (I CNPM), em julho de 2004, a qual reuniu cerca de 120 mil mulheres, que após debates, apresentaram as propostas para a elaboração do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM). Ressalva-se que as conferências são importantes para a inclusão política das mulheres, visto que são elas que debatem os temas nas conferências e decidem a melhor forma de elaboração das políticas. Um estudo realizado em Belo Horizonte, porém, afirma que as resoluções decididas nas conferências não têm afetado de forma sistemática as políticas públicas (Brasil & Reis, 2015).
Em 2005, foi criado o PNPM, que foi orientado pelos seguintes pontos fundamentais: igualdade e respeito à diversidade, equidade e autonomia das mulheres, universalidade das políticas, laicidade do estado, justiça social, transparência dos atos públicos, participação e controle social. As ações prioritárias do plano foram organizadas em quatro linhas de atuação: autonomia, igualdade no mundo e no trabalho e cidadania, educação inclusiva e não sexista, saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos, e combate à violência contra a mulher. Estas linhas de ação foram consideradas como as mais urgentes e prioritárias para garantir o direito a uma vida melhor e mais digna a todas as mulheres (Osis, Pádua, & Faúndes, 2013).
O dispositivo legal com mais impacto no combate à violência contra a mulher foi a criação da Lei nº 11.340 em 7 de agosto de 2006, titulada Lei Maria da Penha. Esta lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Dentre estes é citada a punição aos agressores e disposição sobre a criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, além de alterar o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal e criar as casas-abrigos que recebem as mulheres em situação de risco ou em violência doméstica (Lei nº 11.340 de 7 de Agosto de 2006). Destaca-se que este dispositivo legal foi de grande importância, pois a partir da sua promulgação as pessoas passaram a respeitar mais os direitos das mulheres, e os homens a temer a sua punição, porém apesar dos avanços, estes mecanismos ainda não foram suficientes para extinguir a violência.
Ainda em 2006, como reforço à Lei Maria da Penha foi criada a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, um serviço oferecido pela SPM com o objetivo de receber denúncias ou relatos de violência, reclamações sobre os serviços da rede, bem como orientar as mulheres sobre os seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as para os serviços quando necessário. Esse serviço permitiu que a Lei Maria da Penha fosse cumprida de forma mais homogénea, levando o serviço para mais perto das mulheres, principalmente daquelas que preferiam o anonimato.
Para complementar as ações de combate à violência, aconteceu a II CNPM, em 2007, na qual foi lançado o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher como parte da Agenda Social do Governo Federal. Este pacto consiste num acordo entre as três esferas de governo, federal, estadual e municipal do Brasil, para o planeamento de ações que ratifiquem as políticas públicas para combate à violência contra as mulheres. A partir deste pacto houve mais disseminação de informação nos meios de comunicação, o que favoreceu bastante a prevenção e a denúncia dos casos, visto que as mulheres passaram a ter maior domínio sobre os seus direitos (Gomes, Bomfim, Diniz, Souza, & Couto, 2012).
Como forma de ampliar e integrar todos esses dispositivos a SPM cria em 2011 a Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. A rede apresenta uma atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais, não-governamentais, que visam o desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento das mulheres e os seus direitos humanos, assim como a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência.
Este marco foi fundamental, visto que cada serviço seja de atenção básica em saúde, polícia, assistência social ou outro que atue de forma isolada, não conseguia abranger a totalidade dos casos. Ao trabalharem em rede, o atendimento à mulher passa a ser responsabilidade de todos e deve estar interligado por meio da referência e contra-referência.
Diante deste novo foco de trabalhar em rede, a III CNPM, realizada de 13 a 15 de setembro de 2011, trouxe como meta para os próximos anos: reformar e construir serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência, capacitar os profissionais das áreas de segurança pública, saúde, educação, assistência social, justiça e demais áreas da rede de atendimento e ampliar os atendimentos válidos no Ligue 180, entre outras ações importantes que ligam o estado aos desejos da população (Brasil et al., 2015). Nota-se que as conferências vêm no sentido de complementar os espaços e que foram eficazes nos seus papéis e definições.
Em 2012, notou-se que as mulheres faziam a denúncia contra o agressor, mas desistiam, pois acreditavam, na maioria das vezes, no arrependimento do companheiro, o qual em seguida voltava a praticar as mesmas agressões. Essa conduta gerou uma nova ação por parte dos organismos públicos e surge a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424 que conferiu natureza pública e incondicionada à ação penal fundada na Lei nº 11.340 7 de Agosto de 2006 (Lei Maria da Penha). Dessa forma, a mulher após a denúncia contra o companheiro por agressão não poderá mais desistir da ação, o processo fica sob responsabilidade do Ministério Público (Supremo Tribunal Federal, 2012).
No ano seguinte, com o objetivo de integrar e ampliar os serviços públicos existentes voltados às mulheres em situação de violência foi estabelecida a criação da Casa da Mulher Brasileira, um centro de articulação dos atendimentos especializados no âmbito da saúde, da justiça, da rede sócio assistencial e da promoção da autonomia financeira, é o chamado Programa Mulher: Viver sem Violência (VIVA), que entra em vigor em 30 de agosto de 2013 por meio do Decreto 8.086 (Lei nº 8.086/13 de 30 de Agosto,2013). Esse programa teve um forte impacto na efetividade dos serviços, visto que passou a ser possível fazer a integração dos serviços públicos de segurança, justiça, saúde, assistência social, acolhimento, abrigo e orientação para o trabalho, emprego e renda em todas as capitais brasileiras.
Em 2014 foi publicado o Mapa da Violência, o qual apresentou que as taxas de homicídios de mulheres passaram de 2,3 (1980) para 4,8 homicídios por 100 mil mulheres (2012). Assim, essa taxa duplicou (Waiselfisz, 2014). Diante desses dados, observou-se a necessidade da criação de uma lei específica para o combate ao feminícidio, que é uma forma grave de violência contra mulher. Assim, em 9 de março de 2015 foi sancionada a Lei nº 13.104, a qual prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, sendo incluído no rol dos crimes hediondos (Lei nº 13.104/ 2015 de 09 de Março). O principal ganho com esta lei é torná-lo visível, além da punição mais grave para os que cometerem o crime contra a vida.
Conclusão
A violência contra a mulher é um grave problema de saúde pública, visto que se trata de um processo antigo, multifatorial e que acarreta problemas de natureza social, política,económica e de saúde.
A violência foi, ao longo dos anos, deixando de ser vista como uma realidade normal da situação familiar, passando a ocupar um lugar de destaque com o desenvolvimento de políticas e leis para a sua prevenção e combate. Ressalta-se também, a importância dos momentos de discussão aberta para a sociedade que são as conferências realizadas, as quais muito contribuem para a realização de políticas dentro da realidade da mulher vítima de violência.
Verifica-se que, entre os marcos, aquele que apresentou maior relevância social foi a Lei Maria da Penha, visto que tornou mais visível o problema da violência e encorajou as mulheres a realizarem as denúncias. Merece destaque também, o Ligue 180 e o Programa Viva Mulher, os quais permitem maior privacidade à mulher para realizar a denúncia, receber informações e receber um atendimento integrado da rede.
Diante dos marcos e dispositivos aqui apresentados, verifica-se uma tentativa do Governo Federal em facultar informação, acolhimento e assistência para mulheres em situação de violência, bem como punir os agressores. Nota-se, também, a importância do desenvolvimento de estudos como este, para refletir sobre a importância do empoderamento da mulher e determinação dos avanços e conquistas. Porém, torna-se necessário reconhecer que a violência contra a mulher é ainda um problema de saúde pública com a necessidade de análises contextuais sobre a cultura, educação e possíveis causas daquela população para a partir daí identificar estratégias específicas de cada local. Recomenda-se a realização de novos estudos que abordem o perfil e características dos agressores, das vítimas e das relações entre eles, por forma a guiar o desenvolvimento de novas medidas de combate à violência.
Referências bibliográficas
Albuquerque, J. B., César, E. S., Silva, V. C., Espínola, L. L., Azevedo, E. B., & Ferreira Filha, M. O. (2013). Violência doméstica: Características sociodemográficas de mulheres cadastradas em uma Unidade de Saúde da Família. Revista Eletrônica de Enfermagem, 15(2), 382-390. doi: 10.5216/ree.v15i2.18941 [ Links ]
Brasil, F. P., & Reis, G. G. (2015). Democracia, participação e inclusão política: Um estudo sobre as conferências de políticas para mulheres em Belo Horizonte. Revista do Serviço Público, 66(1), 7-27. doi: 10.21874/rsp.v66i1.684 [ Links ]
Gomes, N. P., Bomfim, A. N., Diniz, N. M., Souza, S. S., & Couto, T. M. (2012). Percepção dos profissionais da rede de serviços sobre o enfrentamento da violência contra a mulher. Revista Enfermagem UERJ, 20(2), 173-178. doi:10.12957/reuerj.2012.4035 [ Links ]
Lei nº 10.788/ 2003 de 24 de Novembro. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.778.htm
Lei nº 13.104/ 2015 de 09 de Março. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm
Lei nº 10.863/ 2003 de 28 de Maio. Recuperado de http://base.socioeco.org/docs/854780.pdf
Lei nº 11.340 de 7 de Agosto de 2006. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm
Lei nº 8.086 de 30 de Agosto de 2013. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8086.htm
MacDonald, M. (2013). Women prisoners, mental health, violence and abuse. International Journal of Law and Psychiatry, 36(3-4), 293-303. doi: 10.1016/j.ijlp.2013.04.014 [ Links ]
Mathias, A. K., Bedone, A. J., Osis, M. J., & Fernandes, A. M. (2013). Prevalência da violência praticada por parceiro masculino entre mulheres usuárias da rede primária de saúde do estado de São Paulo. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, 35(4), 185-191. doi: 10.1590/S0100-72032013000400009 [ Links ]
Michau, L., Horn, J., Bank, A., Dutt, M., & Zimmerman, C. (2015). Prevention of violence against women and girls: Lessons from practice. The Lancet, 385(9978), 1672-1684. doi: 10.1016/S0140-6736(14)61797-9 [ Links ]
Oliveira, M. A. (2012). Separações e divórcios: Elementos que fazem parte da dinâmica familiar ou elementos de “desestruturação” desta. In Reflexões sobre a sociologia aplicada a educação (p. 132). Teresina, Brasil: Fundação Universidade Estadual do Piauí. [ Links ]
Osis, M. J., Pádua, K. S., & Faúndes, A. (2013). Limitações no atendimento, pelas delegacias especializadas, das mulheres que sofrem violência sexual. BIS: Boletim do Instituto de Saúde, 14(3), 320-328. Recuperado de http://periodicos.ses.sp.bvs.br/pdf/bis/v14n3/v14n3a10.pdf [ Links ]
Pinafi, T. (2012). Violência contra a mulher: Políticas públicas e medidas protetivas na contemporaneidade. Recuperado de http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao21/materia03/texto03.pdf [ Links ]
Ramalho, K. S., Silva, S. T., Lima, S. M., & Santos, M. A. (2012). Política de saúde da mulher à integralidade: Efetividade ou possibilidade? Cadernos de Graduação: Ciências Humanas e Sociais Fits, 1(1), 11-22. Recuperado de https://periodicos.set.edu.br/index.php/fitshumanas/article/viewFile/462/198 [ Links ]
Santos, D. T., & Marques, A. D. (2014). A convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres no Brasil: Implicações nas políticas públicas voltadas às mulheres indígenas. Revista Di@logus, 3(1). Recuperado de http://revistaeletronica.unicruz.edu.br/index.php/Revista/article/view/1912/433 [ Links ]
Santos, F. L. (2014). O dilema jurídico da mulher no Brasil. Sinais: Revista de Ciências Sociais, 2(1), 38-59. Recuperado de http://periodicos.ufes.br/sinais/article/view/10364/7316 [ Links ]
Supremo Tribunal Federal. (2012). Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.424. Recuperado de http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6393143 [ Links ]
Waiselfisz, J. J. (2014). Mapa da violência 2014: Os jovens do Brasil. Recuperado de http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf [ Links ]
White, M. E., & Satyen, L. (2015). Cross-cultural differences in intimate partner violence and depression: A systematic review. Aggression and Violent Behavior, 24(Sept.-Oct. 2015), 120–130. doi: 10.1016/j.avb.2015.05.005 [ Links ]
Agradecimentos
Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por financiar a pesquisa intitulada Violência, consumo de álcool e drogas no universo feminino: prevalências, fatores de risco e consequências à saúde mental, em desenvolvimento pelo Grupo de Estudos sobre Enfermagem, Violência e Saúde Mental.
Recebido para publicação em: 19.04.16
Aceite para publicação em: 28.10.16