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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.12 Coimbra mar. 2017

https://doi.org/10.12707/RIV16072 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO

 

Perceções dos estudantes de enfermagem sobre os processos formativos em contexto de ensino clínico

Nursing students' perceptions of training processes in clinical supervision contexts

Percepciones de los estudiantes de enfermería sobre los procesos formativos en el contexto de la enseñanza clínica

 

Carmen Maria dos Santos Lopes Monteiro da Cunha*; Ana Paula Morais de Carvalho Macedo**; Isabel Flávia Gonçalves Fernandes Ferreira Vieira***

* Ph.D., Professora, Centro Universitário Serra dos Orgãos (UNIFESO), 25964-004, Teresópolis, Rio de Janeiro, Brasil [carmenmarielouis@hotmail.com]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica, recolha de dados, tratamento e análise dos dados, análise de dados e discussão, escrita do artigo. Morada para correspondência: Rua Sacadura Cabral, 107, C/V D, 1945-704 Cruz Quebrada, Portugal.

** Ph.D., Professor Coordenador, Escola Superior de Enfermagem da Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [amacedo@ese.uminho.pt]. Contribuição no artigo: orientadora, análise de dados e discussão, revisão do artigo.

*** Ph.D., Professora Catedrática, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [flaviav@ie.uminho.pt]. Contribuição no artigo: orientadora, análise de dados e discussão, revisão do artigo.

 

RESUMO

Enquadramento: O presente texto situa-se no campo da supervisão em enfermagem e apresenta um estudo de cariz qualitativo e quantitativo, desenvolvido numa escola superior de enfermagem.

Objetivos: Descrever representações e vivências da atividade profissional dos estudantes e supervisores em contexto de ensino clínico; analisar a articulação escola-hospital no processo de formação em contexto de ensino clínico; discutir a função da supervisão em enfermagem como articuladora organizacional; inferir princípios constitutivos da qualidade da formação inicial de enfermeiros, com incidência na atividade em contexto profissional e na supervisão.

Metodologia: Os dados foram recolhidos através de um questionário a 92 estudantes em ensino clínico (2º ano) e entrevistas semiestruturadas a um grupo de 5 estudantes e 2 supervisoras.

Resultados: Apontam-se algumas potencialidades e fragilidades dos processos formativos, relacionadas com o papel da supervisão e a articulação da teoria com a prática, na construção do conhecimento na ação profissional.

Conclusão: Evidencia-se a necessidade de reforçar as relações interinstitucionais e promover modalidades de supervisão de orientação reflexiva e dialógica.

Palavras-chave: enfermagem; estudantes; estágio clínico; supervisão

 

ABSTRACT

Background: This article falls within the field of nursing supervision and describes a qualitative and quantitative study carried out in a Nursing School.

Objectives: To describe representations and experiences of students and supervisors' professional activity in clinical supervision contexts; to analyze the school-hospital articulation in training processes in clinical supervision contexts; to discuss the role of nursing supervision in the school-hospital articulation; to identify quality principles for pre-service nursing training with a focus on the activity in professional and supervision contexts.

Methodology: Data were collected through a questionnaire to 92 students in clinical contexts (2nd year) and semi-structured interviews with a group of 5 students and 2 supervisors.

Results: We found some strengths and weaknesses in the training processes regarding the role of supervision and the link between theory and practice in the development of professional knowledge.

Conclusion: The need to strengthen inter-institutional relationships and promote reflective, dialogic supervision practices is highlighted.

Keywords: nursing; students; clinical clerkship; supervision

 

RESUMEN

Marco contextual: El presente texto se sitúa en el campo de la supervisión en enfermería y presenta un estudio de cariz cualitativo y cuantitativo desarrollado en una escuela superior de enfermería.

Objetivos: Describir representaciones y vivencias de la actividad profesional de los estudiantes y supervisores en el contexto de la enseñanza clínica; analizar la articulación escuela-hospital en el proceso de formación en el contexto de la enseñanza clínica; discutir la función de la supervisión en enfermería como articuladora organizativa; inferir principios constitutivos de la calidad de la formación inicial de enfermeros, con incidencia en la actividad en el contexto profesional y en la supervisión.

Metodología: Los datos se obtuvieron a través de un cuestionario a 92 estudiantes en la enseñanza clínica (2.º año) y entrevistas semiestructuradas a un grupo de 5 estudiantes y 2 supervisoras.

Resultados: Se apuntan algunas potencialidades y fragilidades de los procesos formativos, relacionadas con el papel de la supervisión y la articulación de la teoría con la práctica, en la construcción del conocimiento en la acción profesional.

Conclusión: Se observa la necesidad de reforzar las relaciones interinstitucionales y promover modalidades de supervisión de orientación reflexiva y dialógica.

Palabras clave: enfermería; estudiantes; prácticas clínicas; supervisión

 

Introdução

Vários estudos de revisão de literatura no campo da supervisão clínica na formação em enfermagem sublinham a complexidade da supervisão, a diversidade de conceções e práticas que a caracterizam, a amplitude das competências do supervisor, assim como os dilemas, problemas e necessidades que supervisores e estagiários vivenciam (Creaner, 2014; Cutcliffe & Sloan, 2014; Falender, Shafranske, & Ofek, 2014; Jones, 2006; Silva, Pires, & Vilela, 2011). Um dos principais fatores de complexidade reside nas potenciais tensões entre os dois espaços de aprendizagem envolvidos, a escola de enfermagem e o hospital, frequentemente associados a racionalidades e formas de trabalho distintas, e também à separação entre teoria e prática, o que exige a definição de um projeto de formação coerente e partilhado por todos os intervenientes, assim como uma estratégia de articulação interorganizacional e uma abordagem colaborativa nas práticas supervisivas (Macedo, 2012, 2013; Pinheiro, Macedo, & Costa, 2014).

Foram definidos quatro objetivos de investigação: descrever representações e vivências da atividade profissional dos estudantes e supervisores em contexto de ensino clínico; analisar a articulação escola-hospital no processo de formação em contexto de ensino clínico; discutir a função da supervisão em enfermagem como articuladora organizacional escola-hospital; inferir princípios constitutivos da qualidade da formação inicial de enfermeiros, com incidência na atividade em contexto profissional e na supervisão. No presente texto, centramo-nos prioritariamente nas perceções dos estudantes, pressupondo-se um forte vínculo entre a supervisão pedagógica e a enfermagem no decurso da sua formação e defendendo-se a necessidade de (re)significar a sua aprendizagem enquanto processo dialético vivo, de encontros e desencontros entre os seus atores, que interagem continuamente para potenciar processos formativos de qualidade no contexto profissional.

 

Enquadramento

Sob esta ótica, consideramos que o campo de ensino clínico constitui um espaço de indagações constantes, sendo necessário investigar o modo como o seu sentido é construído pelos intervenientes, de forma a compreender e melhorar os processos formativos. No estudo aqui apresentado, centrámo-nos em perceções dos estudantes acerca da supervisão vivenciada, com incidência no papel da supervisão na construção do saber profissional, no quadro mais vasto da articulação escola-hospital.

A relação teoria-prática na formação profissional tem sido dominada por uma racionalidade técnica segundo a qual o bom profissional será aquele que aplica de modo eficaz os conhecimentos teóricos produzidos na escola, desvalorizando-se o papel da experiência na construção do conhecimento profissional. Contudo, a prática pode gerar conhecimento e articulação teoria-prática na formação, exige que se avance da teoria para prática e desta se retorne à teoria, devido à complexidade das situações profissionais e às emergentes transformações do contexto social, permeadas pela socialização dos estudantes no mundo do trabalho (Dantas da Silva, 2013). Por outro lado, a articulação entre saberes teóricos e experienciais depende de inúmeros fatores como a qualificação dos formadores, as culturas institucionais e a configuração dos currículos de formação (Mendes, 2011), obrigando a que professores, estudantes e gestores institucionais monitorizem a qualidade do processo formativo, reavaliando-o continuamente, objetivando a identificação de entraves e a resolução de problemas. A supervisão em contexto de ensino clínico assume aqui um papel central, desde logo porque coloca em diálogo dois espaços formativos na mediação entre teoria e experiência, com efeitos na construção do conhecimento profissional dos formandos.

A pedagogia da supervisão implica o recurso a estratégias centradas no formador e nos conteúdos substantivos e processuais do currículo, como a modelação e o ensino direto, mas também estratégias centradas no formando, que promovam a autorregulação das aprendizagens e a construção da sua identidade e autonomia profissionais. A reflexão e o feedback construtivo são elementos fulcrais na promoção de mudanças conceptuais e acionais do futuro enfermeiro (Goodyear, 2014; Silva, 2012). Importa que as aprendizagens realizadas na escola de enfermagem sejam relevantes para a preparação dos estudantes para a prática, mas também que as estratégias de supervisão favoreçam uma epistemologia praxeológica, através da qual eles produzam conhecimento situado e aprendam a lidar com a natureza complexa, indeterminada e única da sua profissão, em linha com uma formação de natureza reflexiva (Alarcão & Tavares, 2003; Schön, 1987; Vieira et al., 2010). Desta perspetiva, a supervisão deve possibilitar a compreensão da complexidade das situações profissionais, visando a sua transformação.

No caso da Escola de Enfermagem onde se realizou o presente estudo, tem havido a preocupação de favorecer a formação reflexiva dos estudantes (Macedo, 2012; Martins et al., 2009), pretendendo-se com esta investigação aprofundar conhecimento acerca do papel da supervisão no ensino clínico.

 

Questões de investigação

De que maneira transcorre o processo de formação em enfermagem no confronto com o exercício da profissão? Qual a função da supervisão na mobilização do saber teórico e prático em contexto profissional de enfermagem? Qual o impacto da supervisão pedagógica na qualidade da formação ao articular a escola de enfermagem com o hospital?

 

Metodologia

O estudo enquadra-se num projeto de pós-doutoramento da primeira autora, desenvolvido de janeiro a dezembro de 2015 com o acompanhanhamento das outras autoras. Insere-se no campo da supervisão na área da Enfermagem, numa abordagem metodológica qualitativa e quantitativa (Martinho, 2013). O cenário de recolha de dados foi o ensino clínico dos estudantes do 2º ano do curso de licenciatura em enfermagem de uma escola superior de enfermagem (ESE), uma unidade orgânica de ensino politécnico situada na zona norte de Portugal. A licenciatura em enfermagem tem 240 créditos – Sistema Europeu de Transferência de Créditos (European Credit Transfer System – ECTS) e estende-se por 4 anos/8 semestres. O plano de estudos prevê o ensino clínico em todos os anos do curso. Os participantes da investigação foram 92 estudantes do 2º ano em ensino clínico hospitalar e duas supervisoras (uma da ESE e outra do hospital), que aceitaram participar voluntariamente. Os estudantes estavam distribuídos em vários setores do serviço hospitar: ortopedia, cirurgia geral e vascular, neurocirurgia e urologia.

A colheita de dados decorreu durante o ensino clínico letivo no período de março a maio de 2015, recorrendo-se ao inquérito por questionário e à entrevista como meio de acesso a representações e vivências dos participantes.

Numa primeira fase, foi administrado um questionário anónimo a todos os estudantes do 2º ano da licenciatura (num total de 101, dos quais responderam 92). O questionário integra uma secção com 10 afirmações face às quais os estudantes expressaram o seu grau de concordância numa escala com cinco opções de resposta, (“Concordo totalmente”, “Concordo”, “Discordo”, “Discordo totalmente”, “Tenho dúvidas”), abarcando quatro dimensões relativas à construção do conhecimento profissional em contexto de ensino clínico: Papel da supervisão no desenvolvimento profissional; Articulação entre os conhecimentos teóricos adquiridos na ESE e a prática hospitalar; Papel da prática hospitalar na promoção do conhecimento profissional e na resolução de problemas; Saber construído em ensino clínico e preparação para atuar diante da prática hospitalar. O questionário integra, ainda, duas questões de resposta aberta, sobre dificuldades e aprendizagens percebidas na experiência de ensino clínico. Os dados quantitativos foram sujeitos a uma análise estatística descritiva a partir da base Excel sheet (Microsoft® Office for Windows®). As respostas às perguntas de resposta aberta foram sujeitas a uma análise de conteúdo com a finalidade de sintetizar as perspetivas dos sujeitos.

Numa segunda fase, e com a finalidade de aprofundar alguns aspetos do estudo, foram entrevistados cinco dos estudantes que responderam ao questionário, uma professora-supervisora da ESE e uma enfermeira-supervisora do hospital. As questões da entrevista incidiam em três tópicos: construção da competência profissional; conceções de supervisão e da relação ESE-hospital nos processos de supervisão; satisfação com o ensino clínico. As entrevistas foram audiogravadas, transcritas e sujeitas a uma análise temática que decorreu em três etapas: pré-análise através da leitura flutuante dos testemunhos, agrupamento dos dados por semelhança para identificação de unidades temáticas e interpretação dos resultados.

Dado o tamanho da amostra, este estudo tem uma natureza exploratória e não visa uma generalização estatística, embora as suas conclusões sejam relevantes no contexto em que se realizou e potencialmente transferíveis para contextos análogos. Foram respeitados os princípios éticos/legais da investigação, o que se expressa no anonimato dos sujeitos, na confidencialidade dos dados e no consentimento informado dos entrevistados, os quais assinaram um Termo de Consentimento Informado, Livre e Esclarecido (Gauthier, 1998). Para iniciar a investigação de campo, o projeto foi devidamente apresentado ao Comitê de Ética de Pesquisa do Hospital, que emitiu parecer favorável.

 

Resultados e Discussão

Apresentam-se aqui os resultados do questionário aos estudantes, indicando os respetivos itens nas tabelas e cruzando esses resultados com alguns testemunhos das entrevistas a estudantes e supervisoras. Nos depoimentos das entrevistas, identificam-se os entrevistados com as seguintes siglas – E (estudante), P-S (professora-supervisora da ESE) e E-S (enfermeira-supervisora do Hospital).

A primeira dimensão do questionário reporta-se ao Papel da supervisão (vivenciada na ESE e no hospital) no desenvolvimento profissional e integra três afirmações relativas à sua importância, coerência e relação com a promoção da autonomia. A distribuição de respostas, apresentada na Tabela 1, revela uma forte valorização do ensino clínico no desenvolvimento profissional, em consonância com outros estudos (Dantas da Silva, 2013; Dantas da Silva, Tanji, Santos, & Viana, 2010; Franco, 2009). Contudo, no que respeita à coerência entre a supervisão recebida na ESE e a supervisão no contexto hospitalar, observa-se uma maior variação de respostas, verificando-se que quase metade dos inquiridos discordam que ela exista ou expressam dúvidas. Relativamente à promoção da autonomia profissional, a maioria dos estudantes concorda que ela é favorecida pelas práticas de supervisão.

Os testemunhos seguintes apontam a complexidade dos contextos da prática como possível fator de desfasamento entre as aprendizagens realizadas nos dois contextos de formação, exigindo uma flexibilização do conhecimento teórico adquirido em função das circunstâncias e natureza da prática profissional:

É-nos instruída uma rigidez tal, que o conhecimento tem que ser assim, e não pode sair dali, e chegamos ao hospital e tem que ser muito mais flexível. Por vezes nem os próprios docentes percebem isso . . . não sabemos o que temos que fazer, lá está, adaptamos-nos. (E5; abril, 2015)

“E é importante que consigamos passar ao estudante que não está errado, aquilo que aprendeu. . . . ou então, explicar-lhes que na prática fazem-se as coisas mais improvisadas, não é tão exigente como é a teoria na escola” (E-S; abril, 2015).

É necessário que os dois cenários de supervisão se comuniquem numa relação dialógica, embora nem sempre isso aconteça, podendo mesmo assistir-se a uma certa dicotomização (Macedo, 2012, p. 67). Esta questão relaciona-se diretamente com a segunda dimensão do questionário, relativa à Articulação entre os conhecimentos teóricos adquiridos na ESE e a prática hospitalar, cujos resultados se apresentam na Tabela 2. Os estudantes parecem concordar com a importância do conhecimento teórico adquirido, mas o grau de concordância é menor quanto à sua capacidade para articular esse conhecimento com os desafios da prática.

Os testemunhos seguintes apontam três aspetos distintos da relação teoria-prática: o papel da teoria como filtro que possibilita uma tomada de decisões informada, o volume excessivo de conhecimento necessário para lidar com os desafios da prática, e a insuficiência do conhecimento adquirido na ESE face a desafios da prática que exigem uma aprendizagem continuada:

Chega-se ao hospital, essas bases já estão cimentadas, porque há uma uniformização de procedimentos, embora um enfermeiro atua de uma forma e noutro serviço outro enfermeiro faz completamente diferente. Cabe-nos a nós ter a destreza de entender qual dos atos é o melhor. A teoria da escola para a prática hospitalar vai servir como o filtro da prática. (E3; abril, 2015)

Eu acho que esses conhecimentos teóricos são a base de tudo. O que acontece é que muita coisa se perde, se desvanece depois, claro que agora criticam-nos muito numa prática clínica, mas a verdade é que a culpa não é nossa. É uma prova de esforço, em demasia, acho que não são métodos muito eficazes. Somos sacrificados porque nós não sabemos tudo, nós não podemos saber tudo. (E1; abril, 2015)

[Existem] dilemas por falta de conhecimentos, muitas vezes não sabem como atuar, e procuram ajuda. Os conhecimentos teóricos são importantes, sim, porque há aspetos que já não lhes vão constituir novidade em contexto clinico, e dão-lhes muito maior à vontade. No entanto há muitos conhecimentos novos que eles vão encontrar e que vão ter que estudar sucessivamente. (P-S; abril, 2015)

Destes testemunhos podemos inferir que o desenvolvimento profissional dos estudantes não é entendido como o resultado da aplicação da teoria adquirida à prática, o que é consonante com uma abordagem reflexiva da formação, assente no pressuposto de que não é possível compreender e gerir as situações profissionais apenas com base em conhecimentos e fórmulas pré-definidos, sendo necessário construir soluções criativas e ajustadas a essas situações (Schön, 1987). Neste âmbito, assume particular relevo a reflexão sobre a ação, o que nos conduz à dimensão de análise seguinte, relativa ao Papel da prática hospitalar na promoção do conhecimento profissional e na resolução de problemas. Os resultados, apresentados na Tabela 3, indicam que quase todos os estudantes valorizam o papel da reflexão sobre a prática na resolução de problemas e também na expansão do conhecimento teórico. A reflexão profissional em ensino clínico pode ser dificultada pela falta de experiência profissional dos estagiários e pelo facto de estarem a ser avaliados, mas constitui um suporte central ao seu desenvolvimento profissional, permitindo um vai-vém entre teoria e prática, em ciclos de aprendizagem continuada, “fazendo-se do processo educativo um vir a ser, em fluxo, alicerçado continuamente pelo movimento de mudança” (Dantas da Silva et al., 2010, p. 42). Acresce ainda que, “A aquisição de competências, aptidões e atitudes adequadas à prática clínica pressupõe uma ação refletida e uma transferência de conhecimentos da teoria para a prática, levando à construção do conhecimento pessoal na ação” (Martins et al., 2009, p. 110).

A quarta e última dimensão do questionário refere-se ao Saber construído em ensino clínico e à preparação para atuar diante da prática hospitalar. Nos resultados apresentados na Tabela 4, percebemos uma vez mais que os estagiários valorizam o saber experiencial, embora o seu grau de concordância seja menor relativamente à capacidade para enfrentar e resolver os problemas da prática. Comparativamente à dimensão 2, na qual se analisava a importância do conhecimento teórico adquirido na ESE face à prática hospitalar, as respostas indicam que a construção do saber profissional a partir da experiência parece ser ainda mais valorizada do que esse saber teórico.

Nas questões abertas do questionário sobre problemas e ganhos do ensino clínico, os estudantes assinalam diversas dificuldades e inseguranças relativas ao campo da prática, essencialmente resultantes dos desafios que ela apresenta e para os quais nem sempre se sentem preparados, e afirmam a importância da construção do conhecimento a partir da experiência. Desta perspetiva, caberá aos supervisores da ESE e do Hospital instigar uma relação dinâmica entre saberes teóricos e experienciais, promovendo a construção de uma identidade profissional reflexiva. Tal implica que ajustem a sua atuação às necessidades formativas emergentes da prática e coordenem a sua atuação. Alguns excertos dos entrevistados referem alguns destes aspetos:

Eu defendo a formação em alternância, escola/hospital. É uma forma dos estudantes adquirirem aprendizagens sucessivas, e conseguirem relacionar mais facilmente aquilo que aprendem em sala de aula, e depois no próprio contexto clínico. Penso que articulação entre escola e hospital só acontece se estivermos muito presentes e trabalharmos em conjunto. (P-S; abril, 2015)

O facto de virem para ensino clínico obriga-os a repensarem nas teorias, naquilo que foi lecionado na escola, nos conteudos teóricos. Obriga-os a fazer a ponte para a prática. Creio que o fundamental do ensino clínico é mesmo isso. Tenho sempre o cuidado de os questionar, como é que foi nas aulas, como é que vocês fizeram. E tento sempre conjugar, justificar, argumentar. (E-S; abril, 2015)

Nós, na escola, aprendemos as bases e os principios fundamentais para todos os procedimentos que nós fazemos no hospital. Já é um bocadinho confuso quando queremos fazer as coisas como elas são ditas, e notamos que cada enfermeiro tem a sua forma de fazer as coisas, e isso também é bom para nós refletirmos que nem sempre estão corretas as práticas que se fazem. (E4; abril, 2015)

Muitas vezes o que nós aprendemos na teoria, não se aplica exatamente à prática. Porque uma pessoa tem que adequar a situação ao doente, ao ambiente e, às vezes, não se podem seguir as regras à risca. Bem, a principal característica é a adaptabilidade, temos que saber adaptar-nos ao serviço e por vezes também ao docente. . . .Os vários professores ensinam de maneiras diversas, porque o que o docente aprova, entre aspas, não é a mesma coisa que o outro docente aprova. . . . É que no hospital, aprendo aquele pequeno truque, que ajuda que a intervenção corra melhor. (E5; abril, 2015)

Numa tentativa de sintetizar as principais potencialidades e fragilidades das vivências de ensino clínico, apresentamos na Tabela 5 um resumo das respostas dos estagiários à questão aberta do questionário, agregadas em função do seu enfoque: pessoal, ESE, hospital e ESE-hospital. As suas perceções evidenciam claramente o valor formativo da experiência de ensino clínico no desenvolvimento de competências profissionais (atitudes, conhecimentos e capacidades), mas também a complexidade dessa experiência, indicando a existência de problemas relativos à gestão dos processos de cuidado, à preparação prévia dos estudantes, à integração nos serviços, à relação teoria-prática e à coerência de ensinamentos e procedimentos na ESE e no Hospital.

Embora os problemas não sejam sentidos de igual forma entre os estudantes e alguns deles pareçam ser de algum modo superados, o que se pode inferir da comparação entre as duas colunas da Tabela, a sua resolução exige uma estratégia que reforce as relações interinstitucionais, nomeadamente através do desenvolvimento de modalidades de supervisão colegial e reflexiva (Macedo, 2012, 2013), e também da formação dos supervisores, entendendo-se que a supervisão pode mediar e favorecer a articulação escola-hospital, promovendo uma maior integração entre saberes teóricos e experienciais e rentabilizando as potencialidades formativas dos dois espaços de formação.

 

Conclusão

Nunca é demais sublinhar a complexidade dos processos formativos em contexto de ensino clínico e o papel da supervisão, que ao mobilizar o saber teórico e prático, e ao exigir um diálogo interinstitucional, cria desafios aos estudantes e aos supervisores. O estudo reforça a ideia de que o ensino clínico representa a aquisição de conhecimentos e saberes práticos. Os resultados evidenciam a relevância da interação institucional e do processo pessoal-individual na formação, destacando os modos como a teoria e a prática se conjugam ou distanciam na construção do conhecimento profissional. São sinalizadas tensões e incoerências que importam compreender melhor, a fim de responder às exigências dos processos de cuidado e aos modelos de desenvolvimento profissional na área da Enfermagem. Na análise efetuada, foram identificadas diversas dificuldades da formação, assim como aprendizagens realizadas, como quase sempre acontece em contextos profissionais que se apresentam complexos. A identificação de problemas é importante, pois são os desvios, os desconformismos e os entraves que permitem que os atores avaliem e transformem, gradualmente, métodos e estratégias, posturas e atuações, conhecimentos, e assim possam crescer de forma dialógica e colaborativa, investindo juntos na qualidade das ações e planos de cuidado/saúde-doença, ao serviço do outro.

O estudo possibilitou ainda aos atores da supervisão expressar a sua voz, o que permitiu uma reflexão acerca dos processos formativos, nomeadamente quanto ao papel da supervisão na relação teoria-prática e na relação ESE-hospital. Embora situado numa única instituição, o estudo interessará certamente a outros atores, envolvidos na formação inicial em enfermagem, esperando-se que contribua para reforçar a ideia, de que conhecer as vivências dos intervenientes da formação pode constituir uma base importante de reflexão acerca da qualidade dos processos formativos, no sentido de os compreender e melhorar.

 

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Recebido para publicação em: 10.10.16

Aceite para publicação em: 13.01.17

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