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Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283
Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.14 Coimbra set. 2017
https://doi.org/10.12707/RIV17040
ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO
RESEARCH PAPER
Diagnósticos de enfermagem num serviço de urgência psiquiátrica: contributos para a sistematização dos cuidados
Nursing diagnoses in a psychiatric emergency service: contribution to care systematization
Diagnósticos de enfermería en un servicio de urgencias psiquiátricas: contribuciones a la sistematización de los cuidados
Ricardo Jorge de Sousa Antunes*; Francisca Gertrudes Caeiro Roberto Manso**
* Ph.D., Enfermeiro Especialista, Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, 1600-190, Lisboa, Portugal [riantunes2003@sapo.pt]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica, elaboração do enquadramento teórico, construção do questionário, recolha de dados e aplicação dos questionários aos clientes, tratamento estatístico, análise e discussão dos dados, redacção do artigo.
Morada para correspondência: Rua de São Silvestre nº18, 1600-190, Lisboa, Portugal.
** Ph.D., Professora Coordenadora, Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. 1600-190, Lisboa, Portugal [francisca.roberto@esel.pt]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica, elaboração do enquadramento teórico, construção do questionário, análise dos dados, redacção e revisão do artigo.
RESUMO
Enquadramento: Num serviço de urgência psiquiátrica acorrem uma diversidade de situações clínicas que traduzem diferentes necessidades e problemas de enfermagem.
Objetivo: Identificar os diagnósticos de enfermagem, no domínio da doença mental, mais frequentes num serviço de urgência psiquiátrica.
Metodologia: Investigação extensiva-quantitativa numa amostra de 49 clientes que acorreram ao serviço de urgência psiquiátrica. Elaboração dos diagnósticos de enfermagem segundo a Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE), com a mobilização dos instrumentos de aferição: Mini-Exame do Estado Mental; Medida da Adesão Terapêutica (MAT) e Escala de Insight de Markova Berrios.
Resultados: A adesão ao regime terapêutico comprometido constituiu o diagnóstico de enfermagem mais frequente, destacando-se, também, uma grande prevalência de diagnósticos relacionados com a sintomatologia psicótica e com o domínio psicológico do humor, como a tristeza, a ansiedade e a baixa autoestima.
Conclusão: As alterações verificadas no domínio da sintomatologia psicótica representam a maior concentração de diagnósticos e de desafios de enfermagem.
Palavras-chave: enfermagem psiquiátrica; diagnóstico de enfermagem; transtornos mentais; serviços de urgência psiquiátrica
ABSTRACT
Background: In a psychiatric emergency service, there is a diversity of clinical situations that reflect different nursing needs and problems.
Objective: To identify the most common mental health-related nursing diagnoses in a psychiatric emergency service.
Methodology: Extensive-quantitative study in a sample of 49 patients in the psychiatric emergency service. Elaboration of nursing diagnoses according to the International Classification for Nursing Practice (ICNP) and using the Mini-Mental State Examination, the Measure of Adherence to Treatment (MAT), and the Markova and Berrios Insight Scale.
Results: Impaired therapeutic adherence was the most common diagnosis, followed by a high prevalence of diagnoses related to psychotic symptoms and the psychological domain of mood, such as sadness, anxiety, and negative self-esteem.
Conclusion: The changes in the domain of psychotic symptoms represent the main nursing diagnoses and challenges.
Keywords: psychiatric nursing; nursing diagnosis; mental disorders; emergency services, psychiatric
RESUMEN
Marco contextual: A un servicio de urgencias psiquiátricas acuden una diversidad de cuadros clínicos que traducen diferentes necesidades y problemas de enfermería.
Objetivo: Identificar los diagnósticos de enfermería en el dominio de la enfermedad mental más frecuentes en un servicio de urgencia psiquiátrica.
Metodología: Investigación extensiva y cuantitativa en una muestra de 49 pacientes que acuden al servicio de urgencias psiquiátricas. Elaboración de los diagnósticos de enfermería según la Clasificación Internacional para la Práctica de Enfermería (CIPE), con el uso de los siguientes instrumentos de evaluación: Miniexamen del Estado Mental; Medida da Adhesión Terapéutica (MAT) y Escala de Insight de Markova Berrios.
Resultados: La adhesión al régimen terapéutico comprometido constituyó el diagnóstico de enfermería más frecuente, aunque destacó también una gran prevalencia de diagnósticos relacionados con la sintomatología psicótica y con el dominio psicológico del humor, como la tristeza, la ansiedad y la baja autoestima.
Conclusión: Los cambios observados en el ámbito de la sintomatología psicótica representan la mayor concentración de diagnósticos y de desafíos por parte de los enfermeros.
Palabras clave: enfermería psiquiátrica; diagnóstico de enfermería; transtornos mentales; servicios de urgencia psiquiátrica
Introdução
As intervenções de enfermagem, num serviço de urgência psiquiátrica, direcionam-se, maioritariamente, para as fases agudas da doença ou para os primeiros episódios de instalação da doença. O serviço de urgência psiquiátrica constitui-se como uma porta de entrada do Serviço Nacional de Saúde em Portugal e como um local de recurso para a realização de consultas e de acompanhamento médico e de enfermagem. Contudo, e apesar da centralidade deste tipo de serviço, verifica-se uma produção teórica e de investigação empírica muito escassa, oriunda da enfermagem em Portugal. No plano da produção de conhecimento, o serviço de urgência psiquiátrica constitui-se como uma unidade de análise empírica importante devido à multiplicidade de situações que aqui acorrem, e pelo facto de que o que é transmitido e exposto, pelos clientes e familiares, refletir situações muito recentes, o que permite uma maior consciência sobre os processos emotivos e racionais que levaram as pessoas a procurarem ajuda profissional. Apesar destes contextos de trabalho exigirem uma maior rapidez de ação e de raciocínio clínico, mantém-se a necessidade de mobilizar uma terminologia transversal tendo por base um logos padronizado em enfermagem. A padronização da documentação em enfermagem torna-se de relevância central, como sustentam Passos, Sequeira, e Fernandes (2014), no sentido em que permite uma valorização da prática e uma sistematização dos cuidados através da identificação de diagnósticos, intervenções e resultados sensíveis aos cuidados de enfermagem.
No intuito de responder a alguns destes desafios, a presente investigação pretende reforçar a importância da mobilização da formulação dos diagnósticos de enfermagem, mesmo em contexto de urgência psiquiátrica. A investigação segue uma orientação teórica-empírica baseada nos diagnósticos de enfermagem, entendida como uma etapa dinâmica, organizada e complexa do processo de enfermagem que envolve não só as respostas humanas mas uma avaliação crítica para a tomada de decisão. A orientação que subjaz à elaboração dos diagnósticos baseia-se na Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE; Conselho Internacional de Enfermeiros, 2016). Importa referir que esta investigação vai ao encontro de outros trabalhos de investigação em enfermagem que relevam as prevalências dos diagnósticos de enfermagem que emergem de contextos concretos de trabalho quotidiano de enfermagem, como os trabalhos de Amaral (2010), Carvalho (2010), Passos et al. (2014) e de Sequeira (2006). A investigação tem como principal objetivo identificar os diagnósticos de enfermagem, no domínio da doença mental, mais frequentes nos clientes em contexto de urgência psiquiátrica. Pretende-se analisar de forma mais pormenorizada a articulação entre os diagnósticos de enfermagem e as dimensões sociodemográficas, os diagnósticos médicos, o estado cognitivo, o grau de adesão ao regime terapêutico e o grau de insight.
Enquadramento
Em Portugal, as perturbações psiquiátricas afetam, atualmente, mais de um quinto da população portuguesa (Observatório Português dos Sistemas de Saúde, 2015). No âmbito da produção de conhecimento sobre a doença mental, o serviço de urgência psiquiátrica constitui um local privilegiado de investigação em enfermagem. Um serviço de urgência psiquiátrica conduz a um tipo de intervenções de enfermagem que exige rapidez de raciocínio clínico e rapidez na prestação de cuidados. Contudo, e apesar destes contextos exigirem respostas rápidas, isto não significa que as intervenções se situem ao nível dos automatismos mecânicos e isentos de reflexão sobre a ação. Na verdade, e contrariamente à representação social mais espontânea, as intervenções de enfermagem numa urgência de psiquiatria privilegiam as intervenções baseadas nas dimensões relacionais com os clientes e famílias como o demostram os trabalhos de Antunes (2016), Buriola, Kantorski, Sales, e Martsuda (2016). Num serviço de urgência psiquiátrica acorrem uma diversidade de situações clínicas que traduzem diferentes necessidades e problemas de enfermagem. Devido, precisamente, a esta heterogeneidade de situações complexas importa defender a necessidade de mobilizar uma terminologia transversal assente na definição de diagnósticos de enfermagem.
A elaboração dos diagnósticos de enfermagem resulta de um processo conceptual mental, de aferição e avaliação multidimensional sobre o estado de um foco de atenção do cliente. Como refere Sequeira (2006) os diagnósticos de enfermagem devem ter uma base conceptual multidimensional assente nos termos dos eixos do foco da prática, do juízo clínico e do risco/probabilidade. Pressupõe-se que os diagnósticos não sejam definidos de forma apriorística, mas que representem o resultado de um processo de construção dialética englobado na relação com o cliente, assentes na combinação de conceitos a partir dos eixos definidos pela CIPE. Neste sentido, Amaral (2010) defende que não se deverá considerar associações automáticas entre diagnósticos de enfermagem e diagnósticos médicos. Contudo, uma análise que inclua as realidades do exercício prático quotidiano da enfermagem implica considerar que as diferentes tomadas de decisões clínicas, e de escolhas de intervenções, são confrontadas com diferenciados níveis de implicações e de condicionamentos que, conjuntamente, podem interferir na elaboração das componentes mais teóricas da prática da enfermagem. As especificidades que são inerentes ao cuidar, num contexto de urgência psiquiátrica, podem tornar pouco exequível a elaboração dos diagnósticos a partir da seleção e combinação dos conceitos individuais presentes nos eixos da CIPE. Neste sentido, e como forma de apoiar a mobilização dos diagnósticos de enfermagem em contextos clínicos, os catálogos da CIPE (Conselho Internacional de Enfermeiros, 2016) apresentam conjuntos pré-coordenados de enunciados para uma área particular de cuidados ou para uma especialidade, sendo que estes enunciados poderão ser usados de forma mais rápida e exata para documentar diagnósticos.
Questões de Investigação
Quais os diagnósticos de enfermagem, relacionados com o domínio da psiquiatria, mais frequentes nas pessoas que acorrem ao serviço de urgência de psiquiatria?
Qual a relação entre estes diagnósticos de enfermagem e os sistemas de relações sociais em que os indivíduos se encontram inseridos, o tipo de patologia médica, as dimensões cognitivas, o grau de adesão terapêutica e o grau de insight?
Metodologia
O desenho metodológico tem uma componente descritiva e correlacional, e adota uma estratégia de tipo extensivo-quantitativo. A técnica central de recolha de informação é constituída pelo inquérito por questionário de administração indireta.
Os critérios inclusivos subjacentes à seleção empírica englobaram: i) os clientes que se encontrassem ou que acorressem a este serviço de urgência psiquiátrica e, ii) os clientes que compreendessem e concordassem em participar no estudo, englobando todas as situações patológicas. Por outro lado, não foram incluídos os clientes que se encontrassem: i) muito sonolentos, ii) incapazes de falar, ou iii) com deficits cognitivos que inibissem a compreensão acerca da concordância na participação do estudo.
As dificuldades inerentes às diferentes situações clínicas, associadas às fases agudas da doença psiquiátrica e défices cognitivos, constituíram um desafio metodológico ao nível da seleção e recrutamento dos participantes para esta investigação. Neste sentido, a execução do processo de amostragem baseou-se no método de amostra por conveniência.
Tendo em conta os objetivos da investigação, pretendeu-se a produção de uma base de dados com as seguintes dimensões: i) Atributos sociodemográficos ii) Avaliação do estado cognitivo; iii) Avaliação do grau de adesão terapêutica e iv) Avaliação do grau de insight. A Avaliação sociodemográfica pretendeu situar o indivíduo no sistema de relações sociais e destacar os indicadores diferenciadores relativamente ao género, à idade, grau de escolaridade e situação no trabalho. A avaliação do estado cognitivo foi realizada através da aplicação da versão portuguesa revista do Mini Mental State Examination (MMSE; Morgado, Rocha, Maruta, Guerreiro, & Martins, 2009); o grau de adesão à terapêutica foi avaliado através da escala de Medida de Adesão aos Tratamentos (MAT), que reflete uma versão da Escala de Morisky, validada por Delgado e Lima (2001) para a realidade portuguesa; o grau de insight foi aferido através da Escala de Insight Marková e Berrios, validada em Portugal por Vanelli et al. (2010).
A participação dos clientes foi voluntária e ancorada numa prévia explicação pormenorizada sobre os objetivos do trabalho e os temas do estudo, com a garantia de confidencialidade e anonimato, com o esclarecimento de dúvidas e, no caso de aceitação, foi solicitado o preenchimento e a assinatura de um consentimento informado. No processo de construção do questionário foi elaborada uma primeira versão que foi sujeita a um pré-teste aplicado a 11 clientes do serviço de urgência psiquiátrica. Posteriormente, a aplicação dos questionários definitivos decorreu durante 5 meses, entre outubro de 2015 e março de 2016.
O serviço de urgência de psiquiatria encontra-se aberto 24 horas por dia durante todos os dias do ano. A recolha de dados limitou-se aos períodos coincidentes com o turno das 8 às 16 horas e circunscrito aos dias de semana. Durante o período de tempo em que decorreu a recolha de dados acorreram ao serviço de urgência um total de 522 clientes. Do total desta população foi possível entrar em contacto com 96 clientes. Deste total, e de acordo com os critérios de seleção, a amostra ficou restringida a 49 participantes. A aplicação do inquérito foi realizada sob a forma de uma entrevista estruturada, cujas respostas eram preenchidas pelo investigador. A colheita de dados constituiu uma tarefa morosa, pois pretendia-se que os clientes compreendessem bem os objetivos da investigação. Estes procedimentos que se situam no plano metodológico e ético envolvem, simultaneamente, questões ligadas às relações sociais o que implicou uma fase preparatória para a criação de relações de confiança com os clientes, respeitando sempre os ritmos de resposta e as recusas dos inquiridos. A colheita de dados englobou outras fontes de informação como os registos clínicos informatizados, oriundos dos enfermeiros e dos psiquiatras. Durante todo este percurso de planeamento e execução do trabalho de investigação foram respeitados as premissas éticas e deontológicas da Enfermagem, tendo o projeto sido apresentado e autorizado pela Comissão de Ética da instituição hospitalar incluída nesta investigação. O tratamento estatístico teve por base o programa de software Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão nº 21.
Resultados
A caracterização desta amostra, constituída por 49 clientes, revela uma distribuição por género relativamente igualitária, os homens representam 46,9% e as mulheres 53,1%, com idades compreendidas entre os 18 e os 79 anos (M = 45,8 anos; DP = 14,8), com diferentes níveis de escolaridade fortemente associados aos escalões etários (M = 7,8 anos; DP = 3,6), em que os mais novos apresentam níveis de escolaridade muito mais elevados do que os mais velhos; a análise das relações sociais mais próximas, familiares e de coabitação, revelam que 24,5% das pessoas viviam sozinhas e as restantes 75,5% viviam em contextos familiares, sendo estes muito diversificados. Relativamente ao estado civil 34,7% eram divorciados, 34,7% solteiros, 20,4% encontravam-se casados/união de facto e 10,2% na situação de viuvez. Importa referir a presença de uma elevada taxa de inatividade, com um valor de 61,2%, que resulta das situações de desempregados/sem trabalho (34,7%) e reformados (26,5%). Destaca-se nesta dimensão o valor baixo, de 38,8%, de pessoas que referem exercer uma profissão. Os diagnósticos médicos mais frequentes são as perturbações depressivas (26,5%) e a esquizofrenia (24,5%).
Foram identificados 35 diagnósticos de enfermagem, nesta amostra de 49 clientes, sendo que, deste total foram selecionados os 17 diagnósticos mais frequentes, como se apresenta na Tabela 1. Verifica-se que o diagnóstico de enfermagem mais frequente relaciona-se com a adesão ao regime terapêutico comprometido (69,4%). De uma forma mais agregada observa-se uma grande prevalência de diagnósticos relacionados com os focos do domínio psicológico do humor e ansiedade, como a tristeza (63,3%), a ansiedade (61,2%) e a baixa autoestima (55,1%). Destacam-se, igualmente, elevadas prevalências de consumo de substâncias psicoativas como tabaco (63,3%), álcool (46,9%) e consumo de drogas (24,5%).
Análise dos diagnósticos de enfermagem com as dimensões sociodemográficas
A Tabela 2 apresenta a distribuição das frequências nas dimensões sociais. A análise que cruza os diagnósticos de enfermagem com a dimensão género tem por base os testes de Qui-quadrado (X2) e respetivos valores de significância (p). Esta análise revela que é no género masculino que se concentram os diagnósticos relativos às alterações do comportamento, como a agitação (56,5%), e relativos aos consumos de substâncias psicoativas, como o abuso de álcool (69,6%), o abuso de drogas ilícitas (43,5%) e o consumo de tabaco (78,3%). Nos restantes diagnósticos o género não constitui um fator de diferenciação significativa entre homens e mulheres.
Relativamente à idade, recorreu-se ao coeficiente de Pearson, e verificou-se uma correlação significativa associada a seis diagnósticos, que traduz um efeito geracional. Este padrão geracional revela que os mais jovens apresentam um consumo de substâncias psicoativas mais frequente, como o abuso de álcool (r = -0,33; p = 0,022), o consumo de drogas ilícitas (r = -0,31; p = 0,031) e o consumo de tabaco (r = -0,40; p = 0,032). Em sentido contrário verifica-se com o avançar da idade o aumento da prevalência da baixa autoestima (r = 0,45; p = 0,021), da tristeza (r = 0,28; p = 0,050) e da cognição comprometida (r = 0,31; p = 0,030). Relativamente à escolaridade verificam-se correlações significativas entre o menor grau de escolarização e a baixa autoestima e a cognição comprometida. Apesar dos restantes resultados não revelarem diferenças estatisticamente significativas verifica-se, contudo, um padrão em que menores níveis de escolaridade correspondem a uma menor aceitação do estado de saúde, menor grau de adesão terapêutica e, igualmente, uma associação entre menor grau de escolarização e os domínios do humor de características mais depressivas, com maiores prevalências de tristeza, depressão e ideação suicida.
A dimensão de coabitação revela um padrão bastante forte que permite visualizar que as pessoas que vivem sós apresentam persistentemente maior prevalência de problemas nas várias dimensões bio-psico-sociais. Para além deste padrão destacam-se os casos estatisticamente significativos na relação entre viver só e o isolamento social (p < 0,001), a ansiedade (p = 0,01) e a baixa autoestima (p = 0,05). Em sentido contrário, e apesar da grande heterogeneidade de situações, verifica-se que viver integrado em relações familiares constitui, de um modo geral, um fator protetor em saúde mental.
A análise que tem por base o cruzamento entre os diagnósticos de enfermagem e os diagnósticos médicos mais frequentes (esquizofrenia e as perturbações depressivas) é reveladora de importantes diferenças (Tabela 3). Em primeiro lugar verifica-se que as situações de esquizofrenia originam uma prevalência de problemas e diagnósticos de enfermagem superior aos casos relativos às perturbações depressivas. Por outro lado, verifica-se, nos casos de esquizofrenia, uma maior concentração dos diagnósticos do domínio psicológico e alterações do comportamento, associado aos delírios (75%), perceção alterada (66,7%), alucinação (41,7%), desorientação (75%) e agitação (58,3%). Destaca-se, também nas situações de esquizofrenia, a elevada frequência do diagnóstico de adesão ao regime terapêutico comprometido (83,3%), em contraste com os valores mais baixos verificados nas perturbações depressivas (46,2%). Outro grande fator de contraste situa-se no domínio das relações sociais, em que se verifica a presença maioritária, nas situações de esquizofrenia, do diagnóstico de isolamento social (66,7%). No consumo de substâncias psicoativas, o maior contraste verifica-se no consumo de drogas (41,7%), associado à esquizofrenia, maioritariamente aqui constituída por consumo de canabinoides. O consumo de tabaco e o consumo de álcool apresentam padrões mais semelhantes, tanto na esquizofrenia como nas perturbações depressivas. Importa referir, contudo, que no conjunto das várias patologias psiquiátricas, destaca-se, nas perturbações depressivas, uma grande prevalência do abuso de álcool (46,2%). Nas perturbações depressivas concentram-se os diagnósticos do domínio do humor e ansiedade, como a tristeza (100%), o humor depressivo (100%), a baixa autoestima (100%) e a ansiedade (76,9%). A ideação suicida apresenta valores mais baixos (38,5%) e com frequências muito semelhantes com os casos de esquizofrenia (33,3%).
Relação entre os diagnósticos de enfermagem e as dimensões cognitivas, insight e adesão terapêutica
O processo de construção dos enunciados dos diagnósticos de enfermagem pressupõe, como defende Carvalho (2010), um trabalho de rigor que inclui a mobilização de um conjunto adequado de instrumentos de avaliação, que estão ao alcance da enfermagem e que devem ser integrados no trabalho quotidiano. Para este artigo selecionou-se a mobilização de três instrumentos de aferição sobre domínios de ação que surgem expressos pelas equipas de enfermagem, no serviço da urgência psiquiátrica, como sendo os mais centrais, ou sejam: o estado cognitivo, o grau de adesão ao regime terapêutico e o grau de insight. A próxima análise articula os diagnósticos de enfermagem com os resultados destes três instrumentos de aferição em saúde mental. Para cada um destes instrumentos de aferição identificam-se os extremos das escalas: o MMSE varia entre 0-20, a MAT varia entre 1-6 e a Escala de Insight Marková e Berrios que varia entre 0-30.
A avaliação do domínio cognitivo, tendo por base os valores do MMSE, reflete uma consonância entre valores baixos do MMSE e o diagnóstico de enfermagem de cognição comprometida. Por outro lado, os valores mais baixos do MMSE encontram-se relacionados com dimensões centrais do trabalho de enfermagem, que representam desafios no desempenho das funções em contexto de urgência, nomeadamente nos problemas relacionados com o fraco grau de adesão ao regime terapêutico, a desorientação, a presença de atividade delirante e a dificuldade na aceitação do estado de saúde. O domínio da adesão terapêutica, aferido através do MAT, apresenta médias mais baixas, que refletem uma fraca adesão, nas situações diagnosticadas com a aceitação do estado de saúde comprometida, com a presença de atividade delirante, com o consumo de substâncias psicoativas ilícitas, com a alteração da perceção, mas também, e em menor grau de relação, com o isolamento social. Em sentido contrário verifica-se um maior grau de adesão ao regime terapêutico nos casos associados aos diagnósticos de depressão e de tristeza. O domínio de avaliação do insight, realizado através da Escala de Insight Marková e Berrios, revela que os valores baixos de insight se encontram em estreita relação com o diagnóstico de aceitação do estado de saúde comprometida, e que, de um modo geral, o menor grau de insight se encontra relacionado com os diagnósticos de adesão ao regime terapêutico comprometido, cognição comprometida, presença de atividade delirante e desorientação. Em sentido contrário, verifica-se que os valores de insight mais elevados se encontram relacionados com o diagnóstico de tristeza.
Discussão
Decorrente das especificidades e limitações deste tipo de investigação, realizada num serviço de urgência psiquiátrica, a construção da amostra ficou circunscrita a 49 pessoas o que limitou posteriores análises estatísticas. Contudo, destacam-se algumas dimensões de análise importantes. A análise sobre a dimensão social mostra que a confluência das categorias que refletem o enfraquecimento dos laços sociais - pessoas viveram sós, em situações de desemprego ou divórcios - surge associado a uma maior prevalência de diagnósticos de enfermagem. Estes diagnósticos englobam a fraca adesão ao regime terapêutico, o maior consumo de álcool, a dificuldade na aceitação do estado de saúde ou a presença de atividade delirante. Verifica-se que o diagnóstico de isolamento social dá conta de situações de desigualdades sociais, refletindo pessoas com menores recursos financeiros e casos de maior pobreza. A análise complementar que resulta das entrevistas aos clientes e da análise de conteúdo, permitiu inferir que os problemas relacionados com as desigualdades sociais estão associados às dificuldades financeiras, como por exemplo na dificuldade em adquirir os medicamentos ou ter acesso aos serviços de saúde, mas estão, sobretudo, relacionados com o desenraizamento social, níveis muito baixos de escolaridade e, finalmente, relacionados com a situação de solidão em que vivem. Esta análise vai ao encontro dos resultados de investigações realizadas sobre o efeito que as desigualdades sociais têm nas desigualdades em saúde (Antunes, 2014).
Importa referir que a prevalência do diagnóstico de adesão ao regime terapêutico comprometido surge de forma mais frequente nesta análise multidimensional. É, na realidade, um diagnóstico de enfermagem transversal que se encontra em ambos os géneros, nas diversas faixas etárias, nos diferentes contextos de inserção social e nas diferentes patologias psiquiátricas. É de realçar que a única exceção parece estar associada às perturbações depressivas que apresentam um melhor grau de adesão ao regime terapêutico. No serviço de urgência os casos que surgem com a presença de atividade delirante encontram-se mais associados aos quadros de esquizofrenia e menos associado a quadros de depressão. Contudo, uma análise mais pormenorizada dos resultados permite verificar que as situações de depressão com atividade delirante também são acompanhadas de fraca adesão ao regime terapêutico. Neste sentido, não é propriamente o tipo de patologia médica que, por si só, explica a diferença no grau de adesão terapêutica mas é, sobretudo, a presença de atividade delirante e a consequente diminuição do grau de insight que trazem consequências mais negativas para a adesão ao regime terapêutico. Estas conclusões revelam uma tendência, já plasmada noutras investigações (Beck, Cavelti, Kvrgic, Kleim, & Vauth, 2011) em que a presença de episódios psicóticos mais graves, com alterações da perceção e do pensamento, vão sendo destacadas como influenciando negativamente a adesão terapêutica.
A análise destes resultados permite visualizar algumas particularidades do desempenho das funções de enfermagem num serviço de urgência psiquiátrica. Neste sentido, verifica-se que as situações em que há presença de atividade delirante afiguram-se como os casos clínicos que conduzem aos maiores desafios para a prática da enfermagem na urgência de psiquiatria. Na verdade, percebe-se que a presença de atividade delirante irá condicionar negativamente um conjunto de outras dimensões como a adesão ao regime terapêutico, a aceitação do estado de saúde, a dimensão cognitiva e as alterações comportamentais com um maior pendor de agitação.
Este trabalho, realizado em contexto de urgência psiquiátrica, evidencia que a mobilização dos diagnósticos de enfermagem permite uma análise mais pormenorizada dos contextos reais de intervenção, ainda muito marcados pela definição dos diagnósticos médicos. O estudo mais pormenorizado destes contextos de intervenção, a que se encontra associado a elaboração dos diagnósticos de enfermagem possibilita a identificação das prioridades e dos problemas de enfermagem o que, por sua vez, permite ganhos de autonomia na prática da enfermagem.
Na articulação entre o plano prático, da prestação de cuidados de enfermagem, e o plano mais teórico, de reflexão e análise, fica claro, e como refere Carvalho (2010), que a elaboração dos diagnósticos de enfermagem, e as suas prevalências circunscritas a um específico contexto de trabalho, ainda que não constitua uma tarefa fácil, será certamente um desafio com maior sucesso do que elaborar e colocar os diagnósticos em situações práticas, ao serviço das pessoas que acorrem a um serviço de urgência psiquiátrica. No plano da elaboração dos diagnósticos, e como também concluem Passos et al. (2014) para o caso dos focos de enfermagem, na presente investigação também se verificaram dificuldades em identificar a presença ou ausência de alguns focos de enfermagem e a consequente elaboração dos diagnósticos, devido ao facto de a CIPE apresentar conceitos com características sobreponíveis o que dificulta a mobilização da informação colhida para a elaboração dos focos e dos diagnósticos de enfermagem.
Conclusão
As especificidades do cuidar em enfermagem, num serviço de urgência psiquiátrica, revelam padrões, ao nível dos sinais e sintomas, que constituem os principais focos de atenção dos enfermeiros. Neste sentido, importa destacar alguns padrões de problemas e necessidades em enfermagem que estão na base da elaboração dos diagnósticos nos contextos de urgência psiquiátrica. Por um lado, reconhece-se a existência de um padrão relacionado com o domínio psicológico do humor associado à depressão, à tristeza, à baixa autoestima e à ansiedade que, simultaneamente, corresponde a um padrão que apresenta melhores graus de adesão terapêutica, melhor aceitação da doença e menores compromissos cognitivos. Por outro lado, reconhece-se a presença de um outro padrão maioritário, associado ao domínio da sintomatologia psicótica, com a presença de atividade delirante, alucinações, alterações do comportamento e défices de insight, cujo padrão encontra uma maior associação à fraca adesão terapêutica e ao abuso do consumo de substâncias psicoativas, em que as situações de esquizofrenia continuam a representar a maior concentração de desafios e de atenção por parte dos enfermeiros.
Com a presente investigação ficou clara a necessidade de mobilizar uma terminologia transversal e padronizada, baseada na elaboração dos diagnósticos de enfermagem que, deste modo, cumpra o objetivo de sistematizar os cuidados de saúde. É uma linha de investigação que necessita de continuidade de estudos quantitativos, mas que futuramente deverá igualmente incluir a mobilização de estratégias de investigação qualitativas que sejam direcionadas aos enfermeiros que trabalham em contexto de urgência psiquiátrica, sobre a construção e as dificuldades sentidas na elaboração dos diagnósticos de enfermagem.
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Recebido para publicação em: 18.05.17
Aceite para publicação em: 13.07.17