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Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283
Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.14 Coimbra set. 2017
https://doi.org/10.12707/RIV17027
ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO
RESEARCH PAPER
Evolução das pessoas dependentes no autocuidado acompanhadas na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados
Evolution of self-care dependent individuals admitted to the National Network for Integrated Continuous Care
Evolución de las personas dependientes en el autocuidado acompañadas en la Red Nacional de Cuidados Continuos Integrados
Fernando Alberto Soares Petronilho*; Cidália Maria Batista Coutinho Pereira**; Ana Isabel da Costa Magalhães***; Dora Marina Freitas Carvalho****; Jorge Miguel Costa Oliveira*****; Paula Ricardina Costa Vieira de Castro******; Maria Manuela Pereira Machado*******
* Ph.D., Professor Adjunto, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [fpetronilho@ese.uminho.pt]. Contribuição no artigo: ideia original, procedimentos estatísticos, discussão dos resultados e redação do artigo. Morada para correspondência: Travessa da Quinta, nº22, 4715-038, Braga, Portugal.
** MsC., Enfermeira chefe, Centro Saúde Cabeceiras de Basto, 4860-339, Cabeceiras de Basto, Portugal [cidaliacoutinhopereira@gmail.com]. Contribuição no artigo: ideia original e recolha de dados.
*** RN., Enfermeira, Centro Saúde Cabeceiras de Basto, 4860-339, Cabeceiras de Basto, Portugal [anisabelmag@gmail.com]. Contribuição no artigo: ideia original e recolha de dados.
**** RN., Enfermeira Chefe, Centro Social e Paroquial de Sta Eulália de Nespereira, 4810-507, Guimarães, Portugal [doracarvalho@gmail.com]. Contribuição no artigo: recolha de dados
***** RN., Enfermeiro chefe, Santa Casa da Misericórdia de Vizela, 4815-901, Vizela, Portugal [jorgeoliveira@uccvizela.com]. Contribuição no artigo: recolha de dados.
****** RN., Enfermeira especialista, Centro Saúde de Fafe, 4820-273, Fafe, Portugal [ecci.fafe@gmail.com]. Contribuição no artigo: recolha de dados.
******* Ph.D., Professor Adjunto, Escola Superior de Enfermagem, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [mmachado@ese.uminho.pt]. Contribuição no artigo: revisão do artigo.
RESUMO
Enquadramento: A Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados surgiu como resposta ao crescente envelhecimento da população portuguesa e ao consequente aumento do número de pessoas dependentes no autocuidado.
Objetivos: Avaliar o potencial de reconstrução de autonomia, e a evolução do compromisso nos processos corporais e da dependência no autocuidado das pessoas dependentes admitidas na Rede.
Metodologia: Estudo descritivo e exploratório, com uma amostra de conveniência constituída por 891 pessoas dependentes, realizado em 10 prestadores de cuidados da Rede da área de abrangência de uma Equipa Coordenadora Local da região Minho de Portugal.
Resultados: O potencial de reconstrução de autonomia situa-se entre reduzido a moderado. Verificou-se uma evolução positiva no compromisso nos processos corporais e no nível de dependência no autocuidado. Maior potencial de reconstrução de autonomia está associado a menor compromisso nos processos corporais e a maior independência.
Conclusão: O estudo revela ganhos em saúde efetivos na condição de saúde das pessoas dependentes acompanhadas nas diferentes tipologias de cuidados da Rede, o que demonstra a sua utilidade.
Palavras-chave: autonomia pessoal; constituição corporal; autocuidado; assistência de longa duração
ABSTRACT
Background: The National Network for Integrated Continuous Care (NNICC) emerged as a response to the increasing aging of the Portuguese population and the consequent increase in the number of self-care dependent individuals.
Objectives: To assess the potential for the recovery of autonomy, the evolution of bodily processes impairment, and the level of self-care dependence among dependent individuals admitted to the NNICC.
Methodology: A descriptive and exploratory study was conducted using a convenience sample of 891 dependent individuals from 10 NNICC care units within the area of influence of a Local Coordination Team in the region of Minho, Portugal.
Results: The results showed a low to moderate potential for the recovery of autonomy. There was a positive evolution in bodily processes impairment and in the level of self-care dependence. The greater potential for the recovery of autonomy is associated with a lower level of bodily processes impairment and a higher self-care independence.
Conclusion: The study reveals effective health gains in the health condition of dependent individuals admitted to the NNICC, within its different types of care, which demonstrates its usefulness.
Keywords: personal autonomy; body constitution; self-care; long-term care
RESUMEN
Marco contextual: La Red Nacional de Cuidados Continuados Integrados surgió como respuesta al creciente envejecimiento de la población portuguesa y al consiguiente aumento del número de personas dependientes en el autocuidado.
Objetivos: Evaluar el potencial de reconstrucción de la autonomía, y la evolución del compromiso en los procesos corporales y de dependencia en el autocuidado de las personas dependientes admitidas en la Red.
Metodología: Estudio descriptivo y exploratorio, con una muestra de conveniencia constituida por 891 personas dependientes, realizado en 10 prestadores de cuidados de la Red del área de cobertura de un equipo coordinador local de la región del Miño de Portugal.
Resultados: El potencial de reconstrucción de la autonomía se sitúa entre reducido y moderado. Se verificó una evolución positiva en el compromiso en los procesos corporales y en el nivel de dependencia en el autocuidado. Un mayor potencial de reconstrucción de la autonomía se asocia con un menor compromiso en los procesos corporales y una mayor independencia.
Conclusión: El estudio revela beneficios efectivos en la salud de las personas dependientes acompañadas en las diferentes tipologías de cuidados de la Red, lo que demuestra su utilidad.
Palabras clave: autonomía personal; constitución corporal; autocuidado; cuidados a largo plazo
Introdução
Em Portugal, nas últimas décadas, temos assistido a um efeito cumulativo da diminuição da mortalidade e da natalidade, tendo como consequência, um progressivo envelhecimento da população e o aumento de pessoas em situação de dependência. Dados do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS, 2015) referem a existência de cerca de 110 mil pessoas dependentes no autocuidado. As políticas de saúde, ancoradas em princípios de contensão de custos, mas também em princípios humanistas, apontam para que as pessoas dependentes sejam integradas no contexto familiar (Ribeiro, Pinto, & Regadas, 2014).
Assistimos desde há uma década ao incremento e desenvolvimento dos cuidados continuados por via da implementação da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI). Os objetivos definidos para o seu funcionamento, numa mudança de paradigma, assumem, social e politicamente, o autocuidado como a dimensão mais relevante da saúde dos cidadãos. De acordo com o estudo de Petronilho, Pereira, e Silva (2017), no momento da alta hospitalar, 58,6% das pessoas dependentes regressaram a casa e 28,1% tiveram como destino as unidades da RNCCI.
Os relatórios oficiais de monitorização do funcionamento da RNCCI carecem de indicadores de resultado que traduzam os ganhos em saúde das pessoas dependentes durante o seu acompanhamento e, em particular, ganhos no nível de dependência no autocuidado. Este facto despoletou a realização do presente estudo em unidades de internamento, nomeadamente, unidades de convalescença (UC), unidades de média duração e reabilitação (UMDR) e unidades de longa duração e manutenção (ULDM), e em respostas domiciliárias designadas equipas de cuidados continuados integrados (ECCI), para o qual foram definidos os seguintes objetivos: i) avaliar o potencial de reconstrução de autonomia; ii) avaliar a evolução do compromisso nos processos corporais; e iii) avaliar a evolução do nível de dependência no autocuidado, das pessoas dependentes acompanhadas em cada uma das tipologias referidas.
Importa ainda referir que o presente estudo faz parte de um projeto de investigação mais abrangente desenvolvido no Centro de Investigação em Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem da Universidade do Minho.
Enquadramento
Assistimos, atualmente, nos países da Europa a uma transição demográfica e consequente transição epidemiológica, caracterizadas pelo envelhecimento exponencial da população. Os censos de 2011 mostram que o Índice de envelhecimento em território nacional é de 129, com uma projeção estimada de 271 em 2060 (Instituto Nacional de Estatística, 2011). A investigação produzida na área da saúde sobre o fenómeno do envelhecimento dá-nos conta de uma expectável correlação positiva entre a idade e a dependência no autocuidado, resultante da diminuição da funcionalidade (OPSS, 2015). Desta evidência são colocados desafios à sociedade, exigindo-se respostas inovadoras, quer no modelo de organização dos cuidados de saúde e de apoio social, quer no modelo de organização das famílias, com centralidade na articulação efetiva entre o suporte profissional, a melhoria da condição de saúde dos indivíduos e o papel adequado dos familiares no processo de tomar conta.
Estudos empíricos no âmbito da saúde, desenvolvidos recentemente no concelho de Lisboa (Costa, 2013), região metropolitana do Porto (Filipe, 2015; Gonçalves, 2013; Ribeiro et al., 2014) e região Minho (Petronilho, 2013), permitiram a produção de conhecimento sobre a realidade portuguesa no que diz respeito à dimensão do fenómeno da dependência no autocuidado e das famílias que integram pessoas dependentes. Em Portugal residem aproximadamente 4 milhões de famílias clássicas, das quais, cerca de 2,9% integram, pelo menos, um familiar dependente (OPSS, 2015). Destes, uma parte substantiva são acamados, contabilizando cerca de 48 mil casos. A situação de acamado indica uma condição de saúde de grande vulnerabilidade, caraterizada por níveis elevados de dependência e compromisso nos processos corporais e mentais (e. g., a presença de úlceras de pressão, compromisso respiratório, compromisso cognitivo).
Estas pessoas, dependentes no autocuidado, têm critérios de referenciação para a RNCCI, de modo a garantir qualidade na continuidade de cuidados integrados, de saúde e de apoio social.
De acordo com o Conselho Internacional de Enfermeiros (CIE, 2005), o autocuidado é uma “Atividade executada pelo próprio com as características específicas: tratar do que é necessário para se manter, manter-se operacional e lidar com as necessidades individuais básicas e íntimas e as atividades da vida diária” (p. 46). A dependência refere-se à condição de saúde individual caracterizada por limitações na autonomia física, psíquica ou intelectual, decorrente de doença aguda ou crónica, detioração cognitiva, traumatismo ou mesmo ausência ou insuficiente suporte familiar ou outro, não permitindo que o indivíduo seja capaz de realizar de forma independente as atividades de vida diária (Decreto-lei nº 101/2006 de 6 de junho). Quando nos reportamos ao conceito de autocuidado, obrigatoriamente, este está interligado com outro conceito determinante na evolução da condição de saúde da pessoa: o potencial de reconstrução de autonomia (PRAut). Este é influenciado por processos corporais, processos mentais, presença de doenças crónicas, idade, consciencialização, atitude face à vida, significado atribuído e envolvimento na recuperação da autonomia. Acresce, ainda, fatores extrínsecos como os processos familiares, a comunidade e a sociedade, e as terapêuticas de enfermagem (Koç, 2015; Maciel, 2013; Petronilho, 2013; Sacco-Peterson & Borell, 2004). O estudo de Petronilho (2013) mostra que as pessoas com evolução mais favorável no nível de dependência no autocuidado demonstram maior PRAut e foram acompanhadas em unidades da RNCCI.
A prestação de cuidados na RNCCI, genericamente, está estruturada em torno de dois eixos: um, decorrente do nível de dependência e do potencial de reconstrução de autonomia das pessoas dependentes; o outro, da necessidade de promover a capacitação dos familiares cuidadores para o exercício do papel de tomar conta. Da missão da RNCCI, destaca-se: 1) a promoção de intervenções integradas de saúde e de apoio social; 2) a focalização num percurso de cuidados com centralidade na dependência (em detrimento da doença) e; 3) o incremento da prestação de cuidados globais em contexto domiciliário prestados pelas ECCIs.
O mais recente relatório de monitorização da RNCCI apresenta indicadores de saúde globais, nomeadamente, indicadores de processo como, o nº de vagas por tipologia, taxas de referenciação e de ocupação por prestador de cuidados, demora média e execução financeira que, embora importantes, são muito focalizados nas condições de acesso à RNCCI (Administração Central do Sistema de Saúde [ACSS], 2015). Todavia, na nossa opinião, seria importante a produção de indicadores de natureza clínica que possibilitassem a avaliação do impacte dos cuidados prestados na RNCCI na condição de saúde das pessoas dependentes e respetivas famílias. Assim, afigura-se como uma prioridade a produção de indicadores de resultado (e. g., ganhos no nível de dependência no autocuidado e ganhos de eficácia na prevenção de complicações) que permitam a monitorização da qualidade dos cuidados prestados nas unidades da RNCCI, que suportem a tomada de decisão clínica e as decisões estratégicas no âmbito das políticas em saúde, contributo que nos propomos concretizar com o desenvolvimento deste estudo.
Questões de investigação
Qual o potencial de reconstrução de autonomia das pessoas dependentes no autocuidado, no momento de admissão na RNCCI?
Qual a evolução das pessoas admitidas na RNCCI quanto ao compromisso nos processos corporais e ao nível de dependência no autocuidado, entre a admissão e a alta clínica?
Metodologia
Foi desenvolvido um desenho de investigação de perfil quantitativo, descritivo e exploratório, com dois momentos de avaliação, admissão e alta clínica, permitindo avaliar a evolução da condição de saúde dos participantes da amostra.
O estudo realizou-se nos 10 prestadores de cuidados da RNCCI da área de abrangência de uma Equipa Coordenadora Local da região Minho de Portugal, nomeadamente em duas UCs, uma UMDR, três unidades ULDMs e quatro ECCIs.
A amostra é constituída pela totalidade das pessoas dependentes admitidas num critério temporal de recolha de dados definido para 1 ano - de 01/03/2014 a 28/02/2015. Trata-se de uma amostra não probabilística, de conveniência. Na admissão foram alvo de avaliação 891 casos e na alta clínica 601 casos, distribuídos pelas quatro tipologias de cuidados (Tabela 1).
A evolução da amostra ao longo do período de recolha de dados, mostrando os motivos do decréscimo do nº de casos avaliados entre a admissão e a alta clínica, está representada na Figura 1.
A recolha de dados foi realizada pelas equipas de enfermagem dos prestadores de cuidados da RNCCI que integraram o estudo. Foi aplicado um instrumento de avaliação construído para esta investigação, denominado Perfil dos Dependentes e Famílias Integrados nos Prestadores de Cuidados da RNCCI.
Potencial de reconstrução de autonomia (PRAut)
Trata-se de uma dimensão da escala construída e validada por Petronilho (2013) e que foi aplicada na admissão na RNCCI. Resulta do somatório de sete itens: reconhecimento por parte do cliente das mudanças no seu estado de saúde; força de vontade expressa pelo cliente na aprendizagem; crença demonstrada pelo cliente que é capaz de recuperar; desejo expresso pelo cliente em tornar-se mais independente; motivação, proatividade e envolvimento do cliente no processo de ensino/aprendizagem; capacidade cognitiva do cliente; capacidade física do cliente (ex. força muscular).
A cada item é atribuído um score que varia entre 1 e 4 (score 1 - sem potencial; score 2 - potencial reduzido; score 3 - potencial moderado e; score 4 - potencial elevado). O score global mínimo para cada caso avaliado é 7 (sem potencial) e o score máximo é 28 (potencial elevado). Da aplicação da escala (n = 891) ficou demonstrada a sua excelente consistência interna com um valor do Coeficiente Alfa de Cronbach (α) de 0,975.
Compromisso nos processos corporais (CPCp)
Caracteriza as pessoas dependentes em função da existência (ou não) de alterações fisiológicas reais ou potenciais em 14 focos de atenção (úlcera pressão, risco de rigidez articular, rigidez articular, risco de maceração, maceração, risco de desidratação, desidratação, expetorar ineficaz, dor, ostomia ventilação/eliminação, força muscular diminuída, equilíbrio sentado, equilíbrio pé, risco de queda), aos quais é atribuído um juízo clínico: sim (score 1) e não (score 2). O score global mínimo atribuído a cada caso é 14 (corresponde a máximo CPCp) e o score máximo é 28 (ausência de CPCp). Assim, quanto maior o score global atribuído a cada pessoa dependente, melhor é a sua condição de saúde relativamente aos processos corporais.
Nível de dependência no autocuidado (NDAc)
Trata-se de uma escala que resulta do somatório de 10 domínios do autocuidado nomeados com recurso à Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem - CIPE® versão 1: tomar banho, vestir-se/despir-se, arranjar-se, uso do sanitário, alimentar-se, elevar-se, virar-se, transferir-se, andar e tomar a medicação (CIE, 2005). A cada domínio é atribuído um score que varia entre 1 e 4 (score 1 - totalmente dependente; score 2 – necessita de ajuda de pessoas; score 3 – necessita de equipamentos e; score 4 - independente). O score global mínimo atribuído a cada caso é 10 (totalmente dependente) e o score máximo é 40 (independente). Esta escala revelou, também, uma excelente consistência interna, quer na admissão (n = 891), quer na alta clínica (n = 601), sendo o valor do Coeficiente Alfa de Cronbach (α) apurado, respetivamente, 0,965 e 0,983.
Antes de se proceder à recolha dos dados foi solicitada às pessoas dependentes ou aos respetivos familiares a colaboração voluntária e esclarecida no estudo. Foi fornecida informação acerca dos objetivos da investigação e assegurada a confidencialidade das respostas dadas, bem como dos juízos clínicos formulados, cumprindo os princípios éticos e legais. O estudo foi autorizado pela Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte (Parecer nº 14/2014).
Foi realizada análise estatística descritiva e inferencial com recurso ao Statistical Package for the Social Sciences® (SPSS) versão 23.0. Nos testes estatísticos foi considerado um nível de significância de 5%.
Resultados
A maioria das pessoas dependentes é do sexo feminino (56,6%), casada (46%), embora com um número significativo de viúvos (38,8%). Têm em média 76,7 anos em que a maioria tem idade ≥ 80 anos (50,2%). A maioria tem o 1º ciclo (50,6%) ou são analfabetos (42,6%), são pensionistas ou reformados (60,4%). A causa major que originou a dependência foi a doença aguda (44,6%). Na maioria dos casos a instalação da dependência ocorreu de forma súbita (56,6%); o tempo de dependência anterior à referenciação para a RNCCI é, em média, de 1,5 anos e cerca de 2/3 da amostra já eram dependentes antes do evento de saúde gerador da referenciação para a RNCCI (66,9%). A maioria foi referenciada pelas equipas de gestão de altas (73%). A média de dias de acompanhamento foi de 112 dias nas ULDM e 91 dias nas ECCI. Verificou-se 11,9% de óbitos e 7% de agudizações com recurso à urgência hospitalar sem regresso à RNCCI.
Potencial de reconstrução de autonomia (PRAut)
O PRAut situou-se entre reduzido e moderado (média global = 16,8). Como se observa na Figura 2, os dependentes internados nas UC revelaram maior PRAut (média = 20,3). Os dependentes com menor PRAut foram admitidos nas ULDM (média =13,4), [Admissão: F (3,887) = 59,1, p < 0,001].
Evolução do compromisso nos processos corporais (CPCp)
Em relação ao CPCp foram avaliados 891 casos na admissão e 601 casos na alta clínica. Verificou-se uma evolução positiva no CPCp entre a admissão e a alta clínica em todas as tipologias de cuidados, como se observa na Figura 3 e também a nível global [Admissão: média global = 21,4; Alta: média global = 23,2; t (601) = -16,2, p < 0,001]. Numa avaliação intersujeitos, a comparação entre as quatro tipologias de cuidados mostra-nos menor CPCp nas UC, tanto na admissão [média = 22,4; F (3,887) = 40,5, p < 0,001], como na alta clínica [média = 24,4; F (3,598) = 39,7, p < 0,001]. Nos dois momentos de avaliação, verificou-se maior CPCp nas ULDM (Admissão: média = 20,3; Alta: média = 21,7).
Evolução do nível de dependência no autocuidado (NDAc)
No que diz respeito ao NDAc foram igualmente avaliados 891 casos na admissão e 601 casos na alta clínica. Observa-se uma evolução positiva no NDAc entre a admissão e a alta clínica em todas as tipologias de cuidados (Figura 4) e a nível global. O nível de dependência global na admissão variou entre totalmente dependente e necessita de ajuda de pessoas (média global = 18,6) e na alta clínica variou entre necessita de ajuda de pessoas e necessita de equipamentos (média global = 26); t (600) = -20,4, p < 0,001. Ao compararmos a evolução do NDAc entre as quatro tipologias verifica-se que as UC englobam os casos menos dependentes nos dois momentos de avaliação e com evolução mais positiva, variando na admissão entre necessita de ajuda de pessoas e necessita de equipamentos (média = 22,9); F (3,887) = 53,8, p < 0,001; e na alta clínica entre necessita de equipamentos e independente (média = 33,4); F (3,597) = 90,3, p < 0,001. As ULDM englobam os casos mais dependentes na admissão e na alta clínica, bem como, apresentam os casos com evolução menos positiva, mantendo-se entre totalmente dependente e necessita de ajuda de pessoas (Admissão: média = 14,5; Alta: média = 17,4).
Explorando as relações entre as principais variáveis do estudo, verificamos as seguintes associações com significado estatístico:
Maior PRAut na admissão está associado a menor idade (r = -0,240, p < 0,001); menos tempo de dependência anterior à admissão na RNCCI (r = -0,200, p < 0,001); menos dias de internamento (r = -0,234, p < 0,001); menos episódios de agudização (r = -0,131, p = 0,001); menor CPCp na admissão (r = 0,636, p < 0,001); menor CPCp na alta clínica (r = 0,600, p < 0,001); e evolução mais positiva no NDAc entre a admissão e a alta clínica (rs = 0,341, p < 0,001).
Menor score no NDAc na admissão (pessoas mais dependentes) está associado a idade mais avançada (r = -0,289, p < 0,001); menor PRAut na admissão (r = 0,755, p < 0,001); mais tempo de dependência anterior à admissão na RNCCI (r = -0,150, p < 0,001); mais dias de internamento na RNCCI (r = -0,269, p < 0,001); mais episódios de agudização (r = -0,159, p < 0,001); e maior CPCp na admissão (r = 0,683, p < 0,001).
Menor score no NDAc na alta clínica (pessoas mais dependentes) está associado a idade mais avançada (r = -0,312, p < 0,001); menor PRAut na admissão (r = 0,709, p < 0,001); mais tempo de dependência anterior à admissão na RNCCI (r = -0,198, p < 0,001); mais dias de internamento (r = -0,326, p < 0,001); mais episódios de agudização (r = -0,150, p < 0,001); e maior CPCp na alta clínica (r = 0,808, p < 0,001).
Evolução mais positiva no NDAc entre a admissão e alta clínica da RNCCI está associada a menos tempo de dependência anterior à admissão na RNCCI (rs = -0,251, p < 0,001).
Discussão
Relativamente à caracterização sociodemográfica, os resultados deste estudo estão alinhados com outros estudos realizados recentemente em contexto português e tendo por alvo a população dependente (Costa, 2013; Filipe, 2015; Gonçalves, 2013; Petronilho, 2013). Trata-se de uma amostra maioritariamente composta por idosos, confirmando a correlação expectável entre a idade mais avançada e o aumento do nível de dependência no autocuidado. São maioritariamente mulheres viúvas, confirmando a tendência da «feminização» do envelhecimento que se observa nos países desenvolvidos (Paúl, 2012). A percentagem de óbitos, 11,9%, é ligeiramente superior ao verificado a nível nacional no mesmo período de tempo, 11,4% (ACSS, 2015).
Na globalidade, as pessoas admitidas na RNCCI apresentam um potencial de reconstrução de autonomia baixo a moderado. A idade avançada, associada ao facto da causa major que originou a dependência ter sido a doença aguda, de instalação súbita, e a maioria dos casos já serem dependentes antes da admissão na RNCCI, condicionando maior deterioração dos processos corporais e mentais, poderão contribuir para os resultados obtidos (Sacco-Peterson & Borell, 2004). Ficou ainda demonstrado que as pessoas acompanhadas em UC e UMDR apresentam maior potencial de reconstrução de autonomia comparativamente às pessoas acompanhadas em ULDM e ECCI, o que vai de encontro aos critérios de referenciação previstos para cada tipologia de cuidados.
Estes resultados não se podem dissociar e são consonantes com o verificado para o nível de dependência no autocuidado e para o compromisso dos processos corporais: maior potencial de reconstrução de autonomia está associado a menor compromisso nos processos corporais e a maior independência no autocuidado. Os estudos de Costa (2013) e Gonçalves (2013) realizados com amostras de pessoas dependentes em contexto domiciliário, obtiveram resultados semelhantes.
Analisando e comparando de forma mais detalhada os resultados nas diferentes tipologias de cuidados, verificamos que nas UC e UMDR as pessoas dependentes apresentam simultaneamente maior potencial de reconstrução de autonomia, maior independência no autocuidado e menor compromisso nos processos corporais, comparativamente às pessoas dependentes acompanhadas em ULDM e ECCI. O estudo de perfil longitudinal de Petronilho (2013) confirma estes resultados revelando que parte significativa das pessoas com evolução positiva no nível de dependência no autocuidado ao longo de 3 meses após a alta hospitalar foram referenciadas para UC e UMDR. Os critérios de referenciação para a RNCCI, descritos no Decreto-lei 101/2006, contribuem para esta evidência, uma vez que as UC e UMDR têm por finalidade a prestação de cuidados a pessoas com perda transitória de autonomia e com potencial de recuperação. As ULDM destinam-se à prestação de cuidados temporários ou permanentes a pessoas dependentes com condição de saúde crónica e muito vulnerável, sendo o principal objetivo do internamento nesta tipologia de cuidados, a manutenção da condição de dependência, a prevenção de complicações nas funções corporais, o conforto, o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida das pessoas dependentes. Neste sentido é espectável que as pessoas admitidas na UC e UMDR apresentem maior potencial de saúde que as pessoas referenciadas para ULDM. Os resultados obtidos para as ECCI, por se tratar de cuidados prestados em contexto domiciliário, serão discutidos separadamente.
Quanto à avaliação da condição de saúde de cada pessoa dependente e, consequentemente, a identificação da tipologia da RNCCI mais adequada, os resultados deste estudo confirmam a adequação do juízo clínico das equipas multiprofissionais envolvidas no processo de referenciação. Os estudos de Koç (2015), Maciel (2013), Petronilho (2013) e Sacco-Peterson e Borell (2004) corroboram estes resultados. As pessoas dependentes com evolução mais positiva no processo de reconstrução de autonomia demonstraram maior envolvimento, maior competência de decisão, maior acesso aos recursos da sociedade, menos doenças crónicas e uma maior adesão ao regime terapêutico prescrito pelos profissionais de saúde.
Da análise dos resultados nas ECCI verificamos uma evolução positiva nas dimensões estudadas, tal como acontece nas restantes tipologias, no entanto, com resultados mais próximos dos verificados na UMDR. A referenciação para as ECCI tem como critério obrigatório a identificação de um familiar cuidador que, não sendo profissional de saúde, constitui um recurso fundamental na prestação de cuidados ao familiar dependente e, deste modo, na manutenção deste em sua casa (Schumacher, Stewart, Archbold, Dodd, & Dibble, 2000; Shyu, Chen, Chen, Wang, & Shao, 2008).
Este estudo mostra-nos que as pessoas dependentes admitidas nas ECCI e nas UMDR apresentam resultados semelhantes. O estudo de Filipe (2015) desenvolvido em quatro ECCI da região metropolitana do Porto conclui que os cuidados prestados em contexto domiciliário são economicamente mais sustentáveis comparativamente aos cuidados assegurados em contexto de internamento. Em Portugal, a manutenção das pessoas dependentes no domicílio é a opção preferencial das famílias, assumindo-se a institucionalização como uma solução de recurso face à ausência ou escassez de suporte formal e informal (Gonçalves, 2013; Machado, Vieira, & Almeida, 2016). Da conjugação das evidências descritas anteriormente, entendemos que um maior incremento de cuidados prestados em contexto domiciliário, seguindo o modelo das ECCI, deve orientar as decisões políticas no âmbito dos cuidados de saúde.
O facto de a amostra não ter sido selecionada de forma aleatória impõe limitações à extrapolação dos resultados. Ter como único critério de seleção o espaço temporal de 1 ano, condicionou diferente número de casos estudados em cada tipologia de cuidados, com implicações nas médias globais das variáveis investigadas. Sugere-se em futuros estudos a seleção de uma amostra aleatória, estratificada por tipologia de cuidados, representativa da realidade da RNCCI a nível nacional. No entanto, tratando-se de um primeiro estudo de avaliação do impacte dos cuidados prestados na RNCCI, a metodologia adotada permitiu produzir resultados importantes, clinicamente relevantes, a partir de uma amostra em número significativo e alargada a todas as tipologias de cuidados, com exceção das unidades de cuidados paliativos dada a sua natureza muito específica e também pela inexistência desta tipologia na área de abrangência da Equipa Coordenadora Local selecionada para esta investigação.
Conclusão
As pessoas dependentes acompanhadas pela RNCCI no período estudado apresentam reduzido a moderado potencial de reconstrução de autonomia. As mais dependentes, no momento da admissão, são mais idosas, com mais tempo de dependência prévia, tiveram mais tempo de internamento, mais episódios de agudização, maior compromisso nos processos corporais e apresentaram evolução menos positiva, sendo também mais dependentes na alta clínica.
Apesar do padrão de dependência e a sua evolução se manifestarem de forma distinta nas diferentes tipologias da RNCCI, expectável face aos critérios de referenciação definidos na legislação, verificaram-se ganhos em saúde efetivos na condição de saúde das pessoas dependentes durante o período de acompanhamento, nomeadamente, melhoria no compromisso nos processos corporais e melhoria no nível de dependência no autocuidado.
Os resultados deste estudo demonstram que o investimento na RNCCI, como um dos pilares do Serviço Nacional de Saúde, numa lógica de continuidade de cuidados, pode ser um recurso muito vantajoso para as famílias face ao envelhecimento exponencial da população e consequente aumento do número de pessoas dependentes no autocuidado.
A partir dos resultados desta investigação, consideramos igualmente pertinente o desenvolvimento de futuros estudos comparando no mesmo período de tempo e numa perspetiva longitudinal, a evolução de pessoas dependentes acompanhadas pela RNCCI e pelas Unidades de Saúde Familiar, permitindo uma avaliação rigorosa do valor acrescido da RNCCI enquanto modelo de cuidados de saúde e apoio social.
Referências bibliográficas
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Recebido para publicação em: 22.03.17
Aceite para publicação em: 29.05.17