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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.17 Coimbra jun. 2018

https://doi.org/10.12707/RIV18002 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO

RESEARCH PAPER

 

Autoavaliação da intensidade da dor: correlação entre crianças, pais e enfermeiros

Self-report of pain intensity: correlation between children, parents, and nurses

Autoevaluación de la intensidad del dolor: correlación entre niños, padres y enfermeros

 

Luís Manuel da Cunha Batalha*; Ana Filipa Domingues Sousa**

* Ph.D., Professor Coordenador, Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-851, Coimbra, Portugal [batalha@esenfc.pt]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica, planeamento da pesquisa, análise e discussão dos resultados, redação e revisão final do manuscrito. Morada para correspondência: Lomba Chão do Bispo, Lt 8, R/c Esq., 3030-416 Coimbra, Portugal.

** MSc., Enfermeira, Instituto Português Oncologia de Coimbra Francisco Gentil E.P.E., 3000-075 Coimbra, Portugal [afilipas87@esenfc.pt]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica, colheita de dados, análise e discussão dos resultados, e redação do manuscrito.

 

RESUMO

Enquadramento: Em pediatria são frequentes as situações clínicas em que existe impossibilidade de autoavaliação da dor e incerteza quanto à correlação existente entre a avaliação feita por pais e enfermeiros e o autorrelato da criança.

Objetivo: Avaliar o grau de correlação da avaliação da intensidade da dor entre crianças, pais e enfermeiros.

Metodologia: Estudo descritivo correlacional, transversal, realizado em duas unidades de saúde com a participação de 64 crianças (5 - 17 anos), seus pais e enfermeiros cuidadores. Na avaliação da intensidade da dor foram utilizadas a Escala Visual Analógica e a escala Face, Legs, Activity, Cry, Consolability (FLACC).

Resultados: Quando pais e enfermeiros avaliaram a dor com a escala FLACC, a correlação com o autorrelato revelou-se moderada entre crianças e pais (rs = 0,51; p < 0,01) e entre crianças e enfermeiros (rs = 0,55; p < 0,01).

Conclusão: A autoavaliação da intensidade da dor das crianças apresenta moderadas correlações com a avaliação feita por pais e enfermeiros.

Palavras-chave: enfermagem; dor; avaliação; criança

 

ABSTRACT

Background: In pediatrics, pain self-report is often impossible and the uncertainty regarding the degree of agreement between parents and nurses' proxy-report and children's self-report is a concern.

Objective: To assess the degree of agreement between children, parents, and nurses' reports of pain intensity.

Methodology: A descriptive, cross-sectional study was conducted in two health units involving 64 children (aged 5-17 years), their parents, and nurses. The Visual Analogue Scale and the Face, Legs, Activity, Cry, Consolability (FLAAC) scale were used to assess pain intensity.

Results: When parents and nurses used the FLACC scale to assess pain, a moderate correlation was found between children and nurses' reports (rs = 0.51; p < 0.01) and between children and parents' reports (rs = 0.55; p < 0.01).

Conclusion: Children's self-report of pain intensity is moderately correlated with parents and nurses' proxy-reports.

Keywords: nursing; pain; assessment; child

 

RESUMEN

Marco contextual: En pediatría son frecuentes las situaciones clínicas en las que existe cierta imposibilidad de autoevaluación del dolor, así como incertidumbre en cuanto a la correlación existente entre la evaluación hecha por padres y enfermeros y el autorrelato del niño.

Objetivo: Evaluar el grado de correlación de la evaluación de la intensidad del dolor entre niños, padres y enfermeros.

Metodología: Estudio descriptivo correlacional, transversal, desarrollado en dos unidades de salud con la participación de 64 niños (de 5 a 17 años), sus padres y enfermeros cuidadores. En la evaluación de la intensidad del dolor se utilizaron la Escala Visual Analógica y la Escala Face, Legs, Activity, Cry, Consolability (FLACC).

Resultados: Cuando los padres y los enfermeros evaluaron el dolor con la escala FLACC, la correlación con el autorrelato se mostró moderada entre niños y padres (rs = 0,51; p < 0,01) y entre niños y enfermeros (rs = 0,55; p < 0,01).

Conclusión: La autoevaluación de la intensidad del dolor de los niños presenta moderadas correlaciones con la evaluación hecha por padres y enfermeros.

Palabras clave: enfermería; dolor; evaluación; niño

 

Introdução

A dor tem um início precoce na vida de cada ser humano, sendo definida como uma experiência universal, pessoal e subjetiva, envolvendo múltiplas dimensões (fisiológicas, sensoriais, cognitivas, afetivas, socioculturais e comportamentais), fazendo parte de uma resposta a uma situação patológica, ou constituindo em si mesma um problema de saúde (Batalha, 2010). A negligência na sua avaliação e controlo é um problema reconhecido que carece de uma atenção particular em prol da qualidade dos cuidados.

A dor, quando ocorre em contexto pediátrico, apresenta um grau acrescido de complexidade. O padrão de ouro na avaliação da intensidade da dor, incluindo a criança, é o autorrelato. No entanto, enfermeiros e pais só deverão avaliar a dor na criança pré-verbal ou cuja situação clínica impede o autorrelato, com o auxílio de escalas padronizadas (heteroavaliação). Estas situações são comuns em contexto pediátrico, pelo que importa saber até que ponto a avaliação dos pais/acompanhante significativo e enfermeiros se correlaciona com o autorrelato da criança. A tomada de decisão para o eficaz controlo da dor deve ser coerente com a avaliação percecionada pela criança.

Os poucos estudos que analisaram a problemática da correlação entre o autorrelato da dor e a avaliação feita por pais e enfermeiros apresentam resultados díspares, mas com tendência consistente da dor relatada pela criança ser normalmente superior à avaliada pelos pais e enfermeiros (Brudvik, Moutte, Baste, & Morken, 2017; Kamper, Dissing, & Hestbaek, 2016; Lifland, Mangione-Smith, Palermo, & Rabbitts, 2017; Zhou, Roberts, & Horgan, 2008).

Clarificar a correlação que existe entre o autorrelato da intensidade da dor feita pela criança e a avaliação feita pelos seus pais e enfermeiros permite que na prática dos cuidados se tomem decisões válidas no diagnóstico da situação e se implementem estratégias que propiciem um controlo da dor eficaz. Assim, este estudo tem como objetivo avaliar o grau de correlação da avaliação da intensidade da dor entre crianças, pais e enfermeiros.

 

Enquadramento

A Internacional Association for the Study of Pain, considera a dor como uma experiência sensorial e emocional desagradável, que está associada a danos reais ou eventuais dos tecidos ou é descrita em termos desses danos. Esta definição amplamente aceite, não é isenta de crítica. A criança pré-verbal ou cuja situação clínica impede o autorrelato, não a deixa de experienciar só porque não possui capacidade para a descrever. O não reconhecimento desta evidência tem constituído um importante obstáculo ao controlo da dor.

A perceção da dor é uma qualidade inerente à vida, tratando-se de uma sensação primária e intrínseca, como qualquer outra sensação orgânica, seja ela olfativa, visual, tátil, auditiva ou gustativa, presente em todos os seres constituídos de sistema nervoso central e com desenvolvimento precoce (Batalha, 2015). O mito de que as crianças não sentem dor, sentem menos dor que os adultos ou esquecem rapidamente a dor (não a memorizam) são falsas convicções. Pelo contrário, a criança é hiperálgica comparativamente ao adulto (Goksan et al., 2015) e as crianças incapazes de autorrelato estão mais vulneráveis e dependentes da validade e fiabilidade da avaliação da intensidade da dor, realizada por quem delas cuida (Batalha, 2010).

Na equipa de saúde, o enfermeiro tem um papel preponderante na avaliação e controlo da dor, por se constituir o garante de uma avaliação regular, objetiva, válida e fiável da dor, que assume especial complexidade na criança incapaz de autorrelato. Nestas crianças, os indicadores fisiológicos e comportamentais são a forma que utilizam para comunicar e descrever a dor. A descodificação desta linguagem só é possível com recurso a escalas padronizadas que incluem estes indicadores. A sua utilização requer competência, pois a interpretação das manifestações de dor deve ser isenta de juízos de valor, tarefa nem sempre fácil, dada a multiplicidade de fatores (biológicos, cognitivos, psicológicos, socioculturais e situacionais) que podem influenciar a sua perceção, manifestação e significado (Batalha, 2010; Brudvik et al., 2017).

As orientações para a avaliação da intensidade da dor na criança, emanadas pela Direção-Geral da Saúde (DGS), recomendam uma avaliação regular e sistemática desde o primeiro contacto com a criança, com a utilização de escalas adequadas à idade/desenvolvimento cognitivo, tipo de dor e situação clínica (DGS, 2010). Sempre que possível, o autorrelato é o método de avaliação da intensidade da dor (passível de utilização a partir dos 4 anos), mas quando impossível, esta é avaliada pelos profissionais da saúde (geralmente enfermeiros), pais ou outros. Sendo o autorrelato a melhor forma de obter uma avaliação válida e fiável, importa saber, quando esta não é possível, quem se aproxima mais da avaliação realizada pela criança. Esta é uma preocupação antiga (Colwell, Clark, & Perkins, 1996; Favaloro & Touzel, 1990; Manne, Jacobsen, & Redd, 1992), no entanto, apenas alguns estudos realizados no contexto da dor analisaram a correlação entre a avaliação da dor entre as crianças, pais e enfermeiros e com resultados distintos (Brudvik et al., 2017; Voepel-Lewis, Malviya, & Tait, 2005).

Numa pesquisa realizada, na base de dados MEDLINE e Revista de Enfermagem Referência, com as palavras-chave: enfermagem, dor, avaliação e criança, ligadas pelo operador booleano “AND”, inseridas em todos os campos de pesquisa, encontrámos uma meta-análise, com análise de 12 estudos, e quatro estudos publicados entre 2009 e 2017, que analisaram as correlações nas avaliações da intensidade da dor entre crianças, pais e enfermeiros.

A meta-análise realizada por Zhou et al. (2008) teve como objetivo investigar a correlação entre o autorrelato da avaliação da intensidade da dor nas díades de crianças e pais, crianças e enfermeiros e pais e enfermeiros. Dos 12 estudos analisados, que incluíram crianças entre 1 e 18 anos, avaliaram-se nove correlações entre crianças e pais, oito correlações entre crianças e enfermeiros e cinco correlações entre pais e enfermeiros. Nestes estudos verificaram-se correlações moderadas, avaliadas pelo coeficiente de correlação de Pearson, entre as avaliações das crianças e seus pais (r = 0,64) e entre crianças e enfermeiros (r = 0,58) e uma fraca correlação entre pais e enfermeiros (r = 0,49). Os estudos revelaram resultados heterogéneos, variando as correlações na díade crianças-pais entre 0,32 e 0,76, díade crianças-enfermeiros entre 0,08 e 0,85 e díade pais-enfermeiros entre 0,04 e 0,75. Os autores concluíram que as perceções dos pais e dos enfermeiros sobre a dor dos seus filhos só devem ser consideradas como estimativas da dor experienciada pelas crianças, pois não estão associadas à dor referida pelas crianças.

Os outros quatro estudos analisados utilizaram metodologias distintas, mas todos indicaram que a intensidade da dor vivenciada pelas crianças é superior à relatada pelos pais e enfermeiros (Brudvik et al., 2017; Lifland et al., 2017; Kamper et al., 2016; Khin Hla et al., 2014; Rajasagaram, Taylor, Braitberg, Pearsell, & Capp, 2009).

Em síntese, apesar da escassez dos estudos, verifica-se uma heterogeneidade nas correlações da avaliação da intensidade da dor entre crianças, pais e enfermeiros. Todavia, existe uma tendência para que a avaliação da dor feita pelos pais e enfermeiros, seja subestimada relativamente à sua intensidade, em comparação com a autoavaliação das crianças.

 

Questão de investigação

Qual o grau de correlação da avaliação da intensidade da dor entre crianças, pais e enfermeiros?

 

Metodologia

Estudo transversal e correlacional entre-sujeitos (Polit & Beck, 2016), realizado no serviço de internamento das duas instituições e Serviço de Ambulatório do Centro Hospitalar de São Francisco, envolvendo crianças entre os 5 e os 17 anos (inclusive), os seus pais e os enfermeiros responsáveis pelos seus cuidados. A amostra foi selecionada de forma consecutiva, decorrendo a colheita de dados entre 23 de maio a 23 de novembro de 2015. Foram incluídas crianças internadas para realização de intervenção cirúrgica e consultas de pediatria, oftalmologia, cirurgia e admissão no serviço de ambulatório para realização de procedimentos ou tratamentos. Foram excluídas as crianças incapazes de realizar a autoavaliação da dor e os pais que não conseguiram realizar a avaliação da intensidade da dor, mesmo com ensino prévio. Os instrumentos utilizados na avaliação da intensidade da dor foram as versões portuguesas da Escala Visual Analógica (EVA; Batalha, 2010) e a Escala Face, Legs, Activity, Cry and Consolability (FLACC; Batalha, Reis, Costa, Carvalho, & Miguens, 2009). Ambas as escalas medem a dor de 0 pontos (sem dor) a 10 pontos (dor máxima) e são recomendadas pela DGS (DGS, 2010). Categorizámos a intensidade da dor em: ausência de dor (0 pontos); dor ligeira (1-3); dor moderada (4-6) e dor intensa (7-10; Batalha & Mendes, 2013).

Para registo dos dados relativos à caracterização demográfica, clínica e da avaliação da intensidade da dor foi concebido um formulário.

A avaliação da intensidade da dor foi realizada de forma independente respeitando a seguinte sequência: criança, pais e enfermeiro. A escala EVA foi utilizada na avaliação da intensidade da dor pelas crianças, pais e enfermeiros, e a escala FLACC, na avaliação da intensidade da dor da criança feita pelos pais e pelos enfermeiros. Os dados foram analisados através do programa estatístico IBM SPSS Statistics, versão 19.0. A normalidade das distribuições foi avaliada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov e análise do histograma, tendo-se verificado que nenhuma das variáveis assumiu o pressuposto de distribuição normal. O resumo de dados foi realizado através das frequências absolutas e relativas para as variáveis categóricas e a mediana e os limites, mínimo e máximo, para as variáveis contínuas. O coeficiente de correlação de Spearman foi utilizado para avaliar a correlação nas avaliações da intensidade da dor entre crianças, pais e enfermeiros. Neste estudo, valores de rs < 0,20 indicaram uma associação muito baixa, entre 0,20 e 0,39 baixa, entre 0,40 e 0,69 moderada, entre 0,70 e 0,89 alta e entre 0,9 e 1 muito alta (Pestana & Gageiro, 2008).

O estudo cumpriu as normas propostas pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida em Portugal, submetendo à aprovação pela Comissão de Ética da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA: E) da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC; parecer P243-11/2014), e solicitada autorização à Direção da Casa de Saúde de Santa Filomena e Centro Hospitalar de São Francisco.

 

Resultados

A amostra do estudo foi constituída por 64 díades de crianças, pais e enfermeiros. A média de idades das crianças foi de 9,2 ± 4 anos, sendo 34 (53,1%) do sexo feminino. A média da idade dos pais foi de 40 ± 5,3 anos e maioritariamente mulheres 48 (75%). As habilitações literárias dos pais eram predominantemente a licenciatura com 33 (51,6%), seguindo-se o 12.º ano com 18 (28,1%). Os enfermeiros apresentaram uma média de idades de 29,7 ± 8,7 anos, sendo 50 (78,1%) do sexo feminino.

O motivo de internamento das crianças foi a intervenção cirúrgica em 31 (48,4%) e a necessidade de admissão para consulta de especialidade ou de cuidados em unidade de atendimento permanente no serviço de ambulatório em 33 (51,6%).

A avaliação da intensidade da dor foi realizada por 32 (50,0%) crianças no serviço de internamento e igual número no ambulatório. Na altura da avaliação da intensidade da dor, a criança não estava sob efeito de qualquer analgésico em 45 (70,3%) dos casos e maioritariamente referiram não estar com medo 37 (57,8%).

A avaliação da intensidade da dor feita com a escala EVA e realizada pelas crianças apresentou uma mediana de 3,0 (0-9) pontos, pelos pais, uma mediana 2,0 (0-10) pontos, e pelos enfermeiros 1,0 (0-9) pontos. Quando os pais e enfermeiros avaliaram a dor com a escala FLACC os resultados foram semelhantes, respetivamente 2,0 (0-9) pontos e 1,0 (0-9) pontos.

A Tabela 1 revela que a avaliação da intensidade da dor, com a utilização da escala EVA pelas crianças, pais e pelos enfermeiros, apresenta uma associação moderada com valores de rs entre 0,48 e 0,66. A correlação mais elevada verificou-se entre as crianças e pais (rs = 0,66; p < 0,01) e a mais baixa entre as crianças e os enfermeiros (rs = 0,48; p < 0,01).

Quando pais e enfermeiros avaliaram a dor com a escala FLACC, a sua correlação com o autorrelato da criança revelou-se moderada em ambas as díades. Entre crianças e pais (rs = 0,51; p < 0,01) e uma associação um pouco maior entre crianças e enfermeiros (rs = 0,55; p < 0,01).

Entre pais e enfermeiros, independentemente da escala utilizada (EVA ou FLACC), as correlações foram moderadas com valores de rs entre 0,42 e 0,68. A correlação mais elevada verificou-se entre os pais quando avaliaram a dor com a escala FLACC e a escala EVA (rs = 0,68; p < 0,01) e a mais baixa correlação entre a avaliação feita pelos enfermeiros com a escala EVA e os pais com a escala FLACC (rs = 0,42; p < 0,01).

 

Discussão

De acordo com as diretrizes emanadas pela DGS (DGS, 2010), a avaliação da intensidade da dor nas crianças é feita pela própria criança com a escala EVA com idade igual ou superior a 6 anos. Sempre que esta não consegue fazer a autoavaliação, seja pelo seu desenvolvimento cognitivo ou condição clínica, a avaliação será feita por outros (pais ou enfermeiros), utilizando como primeira opção a escala FLACC.

O objetivo deste estudo foi avaliar o grau de correlação existente entre a avaliação da intensidade da dor feita pelas crianças, pais e enfermeiros. De acordo com os critérios de Pestana e Gageiro (2008), as correlações moderadas encontradas neste estudo, apresentam a mesma tendência de outros estudos (Brudvik et al., 2017; Rajasagaram et al., 2009; Kamper et al., 2016; Khin Hla et al., 2014) em dois aspetos: na tendência para a subavaliação da dor de enfermeiros e pais e a tendência de que os relatos dos pais sobre a dor dos seus filhos se aproximam mais do autorrelato de dor dos seus filhos.

Independentemente das escalas utilizadas pelos pais e enfermeiros (EVA e FLACC), as avaliações foram sempre inferiores às relatadas pelas crianças. A subavaliação da dor das crianças por parte dos pais/acompanhante significativo e enfermeiros merece atenção especial. Se a criança em si mesma já é mais vulnerável à experiência dolorosa, muito mais o é quando se encontra numa situação que a impede de comunicar verbalmente a sua dor. Nestas situações, a heteroavaliação da intensidade da dor é o último recurso para se fazer a avaliação da dor, quer em crianças quer em adultos. A utilização de escalas de heteroavaliação requer, por parte de quem as utiliza, a valorização e interpretação dos comportamentos expressos, seguindo as indicações específicas metodológicas de cada escala. Em caso de dúvida, o princípio a ser seguido na avaliação da dor deve ser escolher o valor mais alto para corrigir a tendência que os estudos têm vindo a mostrar para uma subavaliação da intensidade da dor do outro. O pressuposto a seguir no controlo da dor é o de que é preferível tratar a dor numa criança que não sente do que não tratar a dor na criança que a sente (Batalha, 2010).

Os pais aproximaram-se mais da avaliação feita pela criança do que os enfermeiros, quando todos usam a mesma escala, a EVA. Esta é uma escala de autoavaliação, sendo questionável a sua utilização por outros que não o próprio, neste caso a criança (Batalha, 2010). No entanto, os resultados encontrados neste estudo deixam em aberto essa possibilidade, pois há estudos que comprovam que quando crianças, pais e enfermeiros, utilizam a mesma escala de avaliação, as correlações são superiores, ao invés de quando se utilizam escalas diferentes (Zhou et al., 2008).

Duas razões podem ser evocadas para explicar este fenómeno. Por um lado, os pais geralmente são os que melhor conhecem a criança e, por outro lado, a escala EVA é unidimensional e mais fácil de aplicar comparativamente a escalas comportamentais, como é o caso da escala FLACC.

Segundo as normas da DGS (DGS, 2010), a avaliação da intensidade da dor da criança, quando incapaz de autorrelato, deve ser feita com a escala FLACC. Utilizando esta escala, os enfermeiros apresentaram uma melhor correlação, embora muito ligeira com a autoavaliação das crianças, comparativamente à realizada pelos pais.

Os enfermeiros são detentores de competências na área de avaliação da dor, pelo que é expectável que tenham melhores correlações com as avaliações das crianças do que os pais/acompanhante significativo. Todavia, cremos que, se devidamente instruídos, os pais são um valioso elemento da equipa de saúde para avaliar a intensidade da dor dos seus filhos, quando incapazes de autorrelato: o seu profundo conhecimento da criança permite uma descodificação das manifestações de dor válida e fiável. O facto de os pais terem obtido a maior correlação, entre todas as díades analisadas, quando se compararam as avaliações feitas entre si, reforça a convicção de que estes devem ser envolvidos na avaliação da dor dos seus filhos, desde que devidamente instruídos.

Quando ambos utilizaram a escala EVA, a mais baixa correlação encontrada verificou-se entre crianças e enfermeiros. Este dado reforça as orientações emanadas pela DGS (2010), na avaliação da intensidade da dor da criança, quando recomenda o uso de escalas comportamentais e/ ou compostas para a heteroavaliação da dor.

Em suma, os resultados das correlações entre as díades crianças e pais, e entre as díades crianças e enfermeiros são semelhantes aos encontrados na meta-análise realizada por Zhou et al. (2008). Tal como os autores, partilhamos a opinião de que a avaliação feita por pais e enfermeiros são estimativas das experiências de dor das crianças, não refletindo de forma segura a dor que realmente experienciam. Importa, uma vez mais, ressalvar que, em caso de impossibilidade de autoavaliação da dor, deve existir um cuidado extremo, de enfermeiros e pais/acompanhante significativo não desvalorizarem os sinais de dor da criança, e que estes últimos sejam sempre incluídos na avaliação da dor dos seus filhos.

Os resultados devem ser interpretados à luz de algumas reconhecidas limitações. O reduzido tamanho da amostra, a pouca diversidade das situações clínicas comuns em idades pediátricas e do facto de quase metade das crianças ter afirmado, antes de terem avaliado a dor, que estavam com medo. Esta variável não foi controlada neste estudo e não sabemos se o foi em outros, mas pode interferir nos resultados da autoavaliação da dor, pelo que se recomenda o seu controlo em futuros estudos.

Este estudo é um contributo para o esclarecimento da verdadeira intensidade de dor sentida por quem a experiencia, ao indiciar que a dor autorrelatada pelas crianças está moderadamente correlacionada com as avaliações feitas por pais e enfermeiros.

 

Conclusão

As moderadas correlações na avaliação da intensidade da dor entre crianças, pais e enfermeiros revelam que as perceções de enfermeiros e pais são válidas e devem ser tidas em conta na prática clínica, no entanto importa sublinhar que não deixam ser apenas estimativas da intensidade da dor realmente sentida pelas crianças.

Independentemente das escalas de dor utilizadas, enfermeiros e pais, globalmente subestimaram a intensidade da dor da criança quando comparada com a autoavaliação da criança. Os pais são os elementos integrantes da equipa de saúde que melhor conhecem a criança, pelo que precisam de ser envolvidos na avaliação da intensidade da dor, pois as moderadas correlações verificadas neste estudo podem ser melhoradas com o ensino dos pais na avaliação da dor dos seus filhos.

Futuros estudos são necessários, com amostras de maiores dimensões, representativas da diversidade das situações clínicas mais comuns em idades pediátricas, utilizando escalas preconizadas na avaliação da intensidade da dor, de acordo com o tipo de dor, contexto clínico e idade/ desenvolvimento cognitivo da criança.

 

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Recebido para publicação em: 17.01.18

Aceite para publicação em: 28.03.18

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