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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.20 Coimbra mar. 2019

https://doi.org/10.12707/RIV18069 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)

RESEARCH PAPER (ORIGINAL)

 

Qualidade de vida das vítimas de trauma cranioencefálico submetidas a neurocirurgias

Quality of life of victims of traumatic brain injuries undergoing neurosurgery

Calidad de vida de las víctimas de traumatismo craneoencefálico sometidas a neurocirugías

 

Ana Carolina Bezerra de Lima*
https://orcid.org/0000-0003-3110-2117

Cristine Vieira do Bonfim**
https://orcid.org/0000-0002-4495-9673

Adriana Conrado de Almeida***
https://orcid.org/0000-0001-6141-0458

Fernando Ramos Gonçalves****
https://orcid.org/0000-0003-2692-9769

Betise Mery Alencar Sousa Macau Furtado*****
https://orcid.org/0000-0001-6344-8257

 

* Bel., Enfermeira Residente, Hospital da Restauração, 50070-025, Recife, Pernambuco, Brasil [lima.carolinab11@gmail.com]. Contribuição no artigo: elaboração do projeto; pesquisa bibliográfica; recolha de dados; tratamento e avaliação estatística; análise de dados e discussão.

** Ph.D., Sanitarista, Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, 52061-080, Recife, Pernambuco, Brasil [cristine.bonfim@uol.com.br]. Contribuição no artigo: tratamento e avaliação estatística e análise de dados e discussão.

*** Ph.D., Enfermeira, Professora Adjunta, Universidade de Pernambuco, 50100-010, Recife, Pernambuco, Brasil [aconradoalmeida@yahoo.com.br]. Contribuição no artigo: Contribuiu substancialmente na análise de dados e discussão.

**** Msc., Enfermeiro, Professor Assistente, Universidade de Pernambuco, 50100-010, Recife, Pernambuco, Brasil [fernandoramos30@uol.com.br]. Contribuição no artigo: análise de dados e discussão.

***** Ph.D., Enfermeiro, Professora Adjunta da Universidade de Pernambuco, 50100-010, Recife, Pernambuco, Brasil [betisemery@gmail.com]. Contribuição no artigo: elaboração do projeto; pesquisa bibliográfica; orientação da recolha de dados; tratamento e avaliação estatística, análise de dados e discussão, escrita do artigo. Morada para correspondência: Avenida Boa Viagem, 234, Apto 701, Pina, Recife, PE, Brasil, CEP 51011 000.

 

RESUMO

Enquadramento: As melhorias ocorridas no atendimento ao trauma repercutiram-se no aumento de sobreviventes de traumatismo cranioencefálico (TCE). Todavia, as deficiências e incapacidades não reduziram. A qualidade de vida (QV) foi reconhecida como um resultado essencial para quantificar a carga subjetiva do TCE em sobreviventes.

Objetivo: Avaliar a QV das vítimas de TCE submetidas a neurocirurgias em hospital de referência.

Metodologia: Estudo transversal, realizado com 116 vítimas de TCE acompanhadas em ambulatório de neurocirurgia. Os dados foram obtidos a partir dos prontuários e por meio da aplicação do questionário World Health Organization Quality of life – Bref.

Resultados: A QV dos participantes esteve acima da média (60,02). A menor média foi a do domínio físico (42,33). Pessoas que estudavam e/ou trabalhavam obtiveram scores maiores para os domínios físico (p = 0,027) e psicológico (p = 0,052).

Conclusão: Morar com alguém, estudar, trabalhar são fatores que interferem na perceção de uma melhor QV. Os idosos mostraram tendência a uma pior avaliação da QV relacionada com o pós-trauma.

Palavras-chave: qualidade de vida; lesões encefálicas traumáticas; reabilitação; avaliação em enfermagem; ferimentos e lesões

 

ABSTRACT

Background: The improvements occurred in trauma care reflected in the increase of survivors of traumatic brain injury (TBI). However, the deficiencies and disabilities have not reduced. The quality of life (QOL) has been recognized as an essential result to quantify the subjective burden of TBI in survivors.

Objective: To assess the QOL of TBI victims undergoing neurosurgeries in a hospital of reference.

Methodology: A cross-sectional study conducted with 116 TBI victims treated in a neurosurgery outpatient clinic. The data were obtained from medical records and using the application of the questionnaire World Health Organization Quality of Life – Bref.

Results: The QOL of participants was above the average (60.02). The lowest mean was the physical domain (42.33). People who studied and/or worked obtained higher scores for the physical (p = 0.027) and psychological (p = 0.052) domains.

Conclusion: Living with someone, studying, and working are factors that interfere with the perception of a better QOL. The elderly showed a tendency to a worse assessment of post-trauma-related QOL.

Keywords: quality of life; brain injuries, traumatic; rehabilitation; nursing assessment; wounds and injuries

 

RESUMEN

Marco contextual: Las mejoras que han tenido lugar en la atención al traumatismo han repercutido en el aumento de supervivientes al traumatismo craneoencefálico (TCE). No obstante, las deficiencias y discapacidades no se redujeron. La calidad de vida (QV, por sus siglas en portugués) se ha reconocido como un resultado esencial para medir la carga subjetiva del TCE en supervivientes.

Objetivo: Evaluar la QV de las víctimas de TCE sometidas a neurocirugías en un hospital de referencia.

Metodología: Estudio transversal, realizado con 116 víctimas de TCE acompañadas en un ambulatorio de neurocirugía. Los datos se obtuvieron a partir de los registros y por medio de la aplicación del cuestionario World Health Organization Quality of life – Bref.

Resultados: La QV de los participantes se situó por encima de la media (60,02). La media más baja fue la relativa al dominio físico (42,33). Las personas que estudiaban y/o trabajaban obtuvieron una puntuación más alta para los dominios físico (p = 0,027) y psicológico (p = 0,052).

Conclusión: Vivir con alguien, estudiar y trabajar son factores que interfieren en la percepción de una mejor QV. Los ancianos muestran una tendencia a una peor evaluación de la QV relacionada con el postrauma.

Palabras clave: calidad de vida; lesiones traumáticas del encéfalo; rehabilitación; evaluación en enfermería; heridas y lesiones

 

Introdução

Na atualidade, o traumatismo cranioencefálico (TCE) é uma das principais causas de morte e incapacidade a longo prazo, particularmente, em adultos jovens em plena fase produtiva (Scholten et al., 2015). Este tipo de trauma tem importantes repercussões físicas, cognitivas e comportamentais na vida da vítima além da fase aguda do evento, podendo resultar em deficiências e incapacidades e interferir no contexto familiar e social (Vieira, Hora, Oliveira, Ribeiro, & Sousa, 2013).

Estima-se uma incidência de aproximadamente 10 milhões de pessoas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, a cada ano, 1,17 milhões de pessoas dão entrada num serviço de emergência devido a traumas cerebrais, que ocupam a terceira posição entre os óbitos relacionados com lesões. Na Europa, foi verificada uma taxa de incidência global de 262 casos por 100 mil indivíduos, cujas causas mais frequentes são as quedas e os acidentes de trânsito (Blennow et al., 2016; Peeters et al., 2015). No Brasil, registou-se, no período entre 2008 e 2012, uma incidência anual de 65,7 admissões por 100 mil habitantes, com taxa de letalidade de 7,7%, e grupo etário de 20 a 29 anos com maior número de óbitos hospitalares (Almeida et al., 2016).

A qualidade de vida (QV) foi reconhecida como um resultado essencial para quantificar a carga subjetiva do TCE em sobreviventes (Scholten et al., 2015). Por isso, é importante obter mais informações sobre a medição da QV de pacientes com TCE, já que há uma grande necessidade de documentar os caminhos das pessoas para a recuperação e quantificar o impacto do TCE sobre a saúde da população ao longo do tempo, o que justifica a realização desta pesquisa. Portanto, o objetivo deste estudo consiste em avaliar a QV de vítimas de TCE submetidas a neurocirurgias em hospital de referência.

 

Enquadramento

O TCE é uma lesão que provoca alterações no crânio, meninges, encéfalo ou vasos intracranianos, podendo ocasionar, temporária ou permanentemente, comprometimento cognitivo ou funcional. A abordagem do atendimento dependerá da gravidade do TCE e os critérios de indicação cirúrgica incluem a localização, tamanho e volume da lesão, lesões associadas e quadro neurológico (Blennow et al., 2016).

Uma alta proporção de sobreviventes de TCE grave requer reabilitação prolongada e pode sofrer distúrbios físicos, cognitivos e psicológicos de longo prazo, podendo reduzir drasticamente a QV. Por outro lado, algumas consequências crónicas, a exemplo da síndrome pós-concussiva e da encefalopatia crónica traumática, também foram identificadas numa proporção de casos previamente classificados como moderados ou leves (Vieira et al., 2013). Independentemente da gravidade do trauma, esse ónus afeta a vida quotidiana dos sobreviventes e das suas famílias, e também tem custos sociais e económicos relevantes (Ruet et al., 2017). Considerando este cenário, tem-se no TCE um grave problema de saúde pública, com impactos sociais e económicos significativos e consequências marcantes na QV (Almeida et al., 2016).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) conceitua a qualidade de vida como sendo

a percepção do indivíduo sobre sua posição na vida, no contexto cultural e no sistema de valores em que vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e complicações, levando em consideração as dimensões física, social e psicológica do indivíduo, bem como suas relações com o meio ambiente. (World Health Organization [WHO], 1997, p. 3)

A Organização das Nações Unidas (ONU), através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), destaca que a QV é considerada um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (ODMs), o que implica a sua promoção nos cenários de saúde (Rodrigues et al., 2015).

As grandes melhorias ocorridas no atendimento ao trauma repercutiram-se no aumento do número de sobreviventes de TCE, no entanto as deficiências e incapacidades não reduziram (Sinha, Gunawat, Nehra, & Sharma, 2013).

 

Questão de investigação

Qual a QV de vítimas de TCE submetidas a neurocirurgias em hospital terciário de referência sob a ótica dos próprios pacientes?

 

Metodologia

Trata-se de um estudo transversal, desenvolvido no Hospital da Restauração Governador Paulo Guerra (HR), localizado no Recife (PE), Brasil. O HR é um hospital de ensino de alta complexidade, de referência em emergências e traumas, que realiza uma média de 700 cirurgias mensais e cerca 12.300 atendimentos ambulatoriais. A sua principal característica é o atendimento a pacientes politraumatizados, com predominância da neurocirurgia e traumas de crânio.

A população do estudo foi composta por vítimas de TCE acompanhadas no ambulatório de neurocirurgia do HR, com idade maior ou igual a 18 anos, submetidos a neurocirurgias. A amostra foi não probabilística, consecutiva, entre os pacientes que compareceram à consulta previamente agendada, totalizando 116 pessoas.

Os dados sociodemográficos foram obtidos através de um questionário elaborado para uso exclusivo nesta pesquisa, cujas variáveis controladas foram: sexo, idade, cor/raça, procedência, religião, situação conjugal, escolaridade, ajustamento social e rendimento salarial. Para a divisão socioeconómica, foi considerado o Critério de Classificação Económica do Brasil (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa) com base no rendimento médio familiar. Os dados clínicos foram obtidos no período de setembro de 2016 a fevereiro de 2017, a partir da análise de prontuários dos pacientes selecionados e da gravidade do trauma através da Escala de Coma de Glasgow (GCS), em que a melhor resposta do doente é considerada, e a soma dos scores classifica o TCE como leve (GCS = 13-15), moderado (GCS = 9-12) ou grave (GCS = 3-8; Oliveira, Pereira, & Freitas, 2014).

O instrumento utilizado para avaliar a QV dos participantes foi o World Health Organization Quality of Life – Bref (WHOQOL-Bref), instrumento adequado à avaliação da QV de vítimas de TCE devido à boa consistência interna e confiabilidade teste-reteste (Oliveira et al., 2014). Este instrumento é uma abreviação do WHOQOL-100, um questionário com 100 questões, desenvolvido pelo Grupo WHOQOL numa perspetiva transcultural para o uso internacional.

O WHOQOL-Bref foi adaptado e validado para a população brasileira (Fleck et al., 2000) e está organizado em 26 questões que contemplam duas questões gerais de QV (perceção da qualidade de vida e satisfação com a saúde) e 24 questões específicas dos domínios físico (dor e desconforto, energia e fadiga, sono e repouso, mobilidade, atividades da vida, dependência de medicação ou de tratamentos, capacidade de trabalho), psicológico (sentimentos positivos, pensar, aprender, memória e concentração, autoestima, imagem corporal e aparência, sentimentos negativos, espiritualidade/religião/crenças pessoais), relações sociais (relações pessoais, suporte/apoio social, atividade sexual) e meio ambiente (segurança física e proteção, ambiente no lar, recursos financeiros, cuidados de saúde e sociais, oportunidade de adquirir novas informações e habilidades, oportunidades de recreação e lazer).

As respostas seguem uma escala de Likert, cujos valores de 1 a 5 indicam: quanto maior a pontuação, melhor a QV. Posteriormente, os valores destas respostas são convertidos para uma escala percentual, onde quanto mais próximo de 100, melhor a QV.

Os dados recolhidos foram armazenados em plataformas eletrónicas para serem, posteriormente, analisados no programa R- 3.3.3 para Windows. Utilizou-se o coeficiente de correlação de Pearson para verificar a intensidade da associação linear que existe entre os scores das dimensões do WHOQOL (domínios e perguntas sobre QV geral) e as variáveis quantitativas. Este coeficiente mede a correlação linear entre duas variáveis quantitativas e pode assumir valores entre 0 e 1, sendo estes valores, tanto positivos quanto negativos. Uma classificação comummente utilizada para estes valores consiste em: correlação (i) muito baixa, para valores entre 0 e 0,1, (ii) baixa, para valores entre 0,1 e 0,3, (iii) moderada, para correlação entre 0,3 e 0,5, (iv) alta, entre 0,5 e 0,7, (v) muito alta, entre 0,7 e 0,9 e (vi) quase perfeita, entre 0,9 e 1 (Hinkle, Wiersma, & Jurs, 1998).

Quanto às variáveis qualitativas que descrevem as características sociodemográficas da população, foi utilizado o teste não paramétrico de Mann-Whitney para identificar diferenças entre as suas categorias e os scores do WHOQOL-Bref. O recomendado para este tipo de investigação é o teste t para comparação de médias, contudo, a aplicação deste não foi possível, pois uma das suas suposições não foi cumprida, que é a normalidade dos dados da amostra. Para constatar a não normalidade, foi usado o teste Kolmogorov-Smirnov (Contador & Senne, 2016), observando a máxima diferença absoluta entre a normal e a função empírica dos dados.

Foi calculado o coeficiente alpha de Cronbach para avaliar a consistência interna do questionário WHOQOL-Bref. Este coeficiente varia entre 0 e 1, sendo que quanto mais próximo de 1, maior será a consistência interna. Como regra geral, recomendam-se valores de alpha superiores a 0,8. Contudo, valores acima de 0,6 já indicam resultados satisfatórios (Cárdenas & Pons, 2012). Para este estudo foi utilizado um nível de confiança de 95%, logo, para valores estatisticamente significativos foi adotado como critério, evidências científicas que corroborem os resultados com valor de p menor que 0,05. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa do HR (Parecer nº 1.639.312), e teve a anuência da instituição, bem como a assinatura do consentimento livre e informado dos utentes.

 

Resultados

Dos 116 participantes da pesquisa, 93 eram do sexo masculino e 23 do sexo feminino, com média de idade de 39,6 ± 15,0 anos, variando de 18 a 91 anos, com mediana de 36 anos para as mulheres e 37 anos para os homens. Houve predomínio do sexo masculino (n = 93; 80,17%), faixa etária entre 31 a 45 anos (n = 44,37; 93%), etnia parda (n = 72; 62,07%), ensino fundamental incompleto (n = 42; 36,21%), com procedência de zona urbana (n = 107; 92,24%). A maioria dos pacientes vivia sozinha (n = 89; 76,72%), possui crença religiosa (n = 84; 72,41%), não voltou a trabalhar e/ou estudar (n = 60; 51,72%) e estava entre os níveis socioeconómicos mais baixos (n = 60; 51,72%).

As características clínicas da população estudada encontram-se na Tabela 1. Em relação ao tempo de hospitalização, o coeficiente de variação foi de 89,94%, revelando grande dispersão para essa variável. Um comportamento semelhante ocorreu com o tempo após o trauma, em que a mediana foi de 10 meses, com coeficiente de variação também com grande dispersão (143,75%).

Em relação à avaliação da QV, o primeiro passo na análise dos dados consistiu em calcular o coeficiente alpha de Cronbach. O coeficiente foi de 91,93%, demonstrando boa consistência interna. Foram obtidas medidas-resumo e de dispersão dos domínios do WHOQOL-Bref (Tabela 2). A maior média foi a da QV geral (60,02), enquanto o domínio físico obteve a menor média (42,33). Ao observar os coeficientes de variação, o domínio com a menor variabilidade é o de meio ambiente (27,98%) e o com a maior variabilidade, o físico (45,26%).

Após avaliar as medianas, pode notar-se que para o domínio social ela é maior que o limite superior do intervalo de confiança (Me = 58,33). Deve considerar-se que a maior concentração para este domínio se encontra próxima da mediana. Para os demais domínios, a mediana não está fora do intervalo de confiança, logo, a média não foi comprometida.

Foram calculadas as correlações entre os domínios do WHOQOL-Bref com as variáveis quantitativas tempo de hospitalização (em dias), tempo após o trauma (em meses) e a idade dos indivíduos (em anos completos; Tabela 3). Após os testes de hipótese para as correlações, obtiveram significância estatística as seguintes variáveis: idade e domínio social (-0,24; p = 0,008); idade e domínio meio ambiente (-0,22; p = 0,017); tempo após o trauma e domínio físico (-0,19; p = 0,035); tempo após o trauma e domínio qualidade geral de vida (-0,20; p = 0,029). Todas as correlações foram negativas. A variável tempo de hospitalização não obteve correlações estatisticamente significativas para nenhum dos domínios.

As variáveis qualitativas também foram associadas a WHOQOL-Bref (Tabela 4). Verificou-se que quem vive atualmente com a família apresenta scores maiores do que quem vive sozinho para o domínio social (p = 0,026). Para o ajustamento social, quem estuda, trabalha ou pratica as duas atividades, possui scores nos domínios físico e psicológico maiores do que indivíduos que não praticam nenhuma destas ações (p = 0,027; p = 0,052, respetivamente).

Quem deambulava sem dificuldades obteve scores superiores para o domínio físico quando comparados àqueles que se locomovem com dificuldades (p = 0,035). As pessoas pertencentes ao estrato socioeconómico de classe média ou superior apresentam scores melhores do que as mais pobres nos aspetos: psicológico (p = 0,012), social (p = 0,043) e meio ambiente (p = 0,01). As demais variáveis não apresentaram diferenças estatisticamente significativas.

 

Discussão

Algumas características dos indivíduos deste estudo acompanham o padrão epidemiológico mundial das vítimas de TCE, sendo composto basicamente por adultos jovens, do sexo masculino, procedentes de área urbana, vítimas de acidentes de trânsito e de quedas (Monteiro et al., 2016; Santos et al., 2013; Weber et al., 2016). O perfil clínico também se assemelhou ao encontrado em estudos similares, com tempo médio de hospitalização próximo de uma semana e predominância de TCE leve, seguido de grave, de acordo com a GCS (Alves et al., 2009; Blennow et al., 2016).

Em relação à aplicação do WHOQOL-Bref, não há um ponto de corte na literatura que classifique os valores percentuais obtidos. O domínio físico obteve o valor mais baixo, assim como contemplado em outro estudo (Alves et al., 2009). Observa-se que esse domínio detém o maior coeficiente de variação, o que mostra que há uma maior variabilidade na avaliação dos indivíduos sobre este domínio.

Os valores negativos dos coeficientes de correlação indicam que existe associação entre um aumento na idade e uma menor avaliação da QV. Tal pode ser explicado pelo facto de os pacientes mais velhos considerarem que as mudanças na sua saúde são decorrentes do processo do envelhecimento, e não advindas do TCE (Weber et al., 2016). No presente estudo, diferentemente do estudo de Weber et al. (2016), observou-se que pacientes com idades mais avançadas mostraram tendência a uma pior avaliação da QV, com redução dos scores do domínio físico, especialmente, não apenas relacionado com a própria idade, o que torna relevante estes resultados por trazerem subsídios para desenvolver atividades com pacientes nesta faixa etária que tenham sofrido lesões cerebrais traumáticas. Este grupo é considerado vulnerável, cuja QV pode ser beneficiada por abordagens especiais no atendimento integral desde o seu início (Alves et al., 2009).

Sobre o tempo decorrido após o trauma, verificou-se que os valores também negativos dos coeficientes de correlação indicaram que o aumento no tempo está associado a uma menor avaliação do domínio físico e da qualidade geral de vida. Outros estudos apresentam uma estabilidade na recuperação a partir dos 6 meses após o trauma (Alves et al., 2009; Weber et al., 2016). A medição do impacto da lesão é particularmente desafiadora devido à grande variação nos tipos e gravidade das mesmas. Para descrever o padrão de recuperação ou incapacidade residual de pacientes com lesão, ao longo do tempo, todas as dimensões do funcionamento são relevantes (Scholten et al., 2015).

O estudo da incidência, severidade e duração das consequências funcionais das lesões é necessário para fazer estimativas válidas dos anos vividos com incapacidade decorrentes deste tipo de agravamento. Alguns estudos mostram que a maioria das vítimas atinge o seu mais alto nível de capacidade funcional e resultados favoráveis em relação ao retorno à produtividade em até 6 meses. No entanto, numa parte expressiva das vítimas são observadas melhoras até 1 ano após o TCE (Vieira et al., 2013). Um estudo que descreveu a QV das vítimas de trauma craniencefálico, após 6 meses, constatou que o retorno à atividade produtiva foi o fator que mais se relacionou com a QV (Vieira et al., 2013). Convém destacar como fator de limitação do presente estudo a grande variação entre os tempos após o trauma entre os pacientes, configurando possibilidade de diferentes avaliações da QV, tendo em conta tratar-se de um estudo transversal que projeta a realidade do momento pesquisado.

Pacientes que deambulavam sem dificuldade apresentaram maior QV no domínio físico. Em investigações sobre traumatismo cranioencefálico e as suas implicações cognitivas na QV observou-se que a independência física e a competência para a realização das atividades de vida diária contribuem para uma melhor perceção de QV. Um resultado semelhante foi encontrado numa pesquisa que avaliou o resultado cognitivo, funcional e psicossocial em pacientes com TCE grave (Sinha et al., 2013).

Verificou-se também que existe diferença significativa na QV no domínio social, mostrando que esta foi maior para os pacientes que vivem com os seus familiares. Desta forma, estar casado ou viver com alguém influencia positivamente a perceção de QV de vítimas de TCE (O’Reilly, Wilson, & Peters, 2017; Vieira et al., 2013).

Quanto ao ajustamento social, observou-se que quem estuda e/ou trabalha tem uma QV melhor nos domínios físico e psicológico, resultado compatível com o de outros estudos (Ruet et al., 2017; Weber et al., 2016). Fatores que interferem na manutenção do emprego, como por exemplo a fadiga, ansiedade, dificuldade de concentração, irritabilidade, incapacidade na gestão das emoções e dificuldades para participar de atividades em grupo, podem ser originários de lesões cerebrais traumáticas, o que pode justificar os resultados deste estudo.

A literatura apresenta evidências de um aumento na probabilidade de regressar ao emprego nos dois primeiros anos após o trauma, porém esse valor cai nos anos posteriores, o que se traduz numa redução no regresso ao emprego a longo prazo (Grauwmeijer, Heijenbrok-Kal, Haitsma, & Ribbers, 2017). O regresso ao trabalho abrange também aspetos relacionados com o rendimento mensal. Pode-se afirmar que a QV foi melhor para as pessoas de classe média ou superior, nos domínios psicológico, social e meio ambiente. Os recursos financeiros são aspetos que interferem na satisfação com a vida, com grande potencial de afetar a recuperação de vítimas de TCE (Ruet et al., 2017).

As limitações deste estudo referem-se às características do tipo de TCE e às lesões associadas, onde apenas as cerebrais foram consideradas na avaliação da gravidade do trauma, sem considerar outras comorbidades. Além disso, a escala de Coma de Glasgow é a única utilizada no serviço em questão. Outra limitação foi a inexistência e/ou acesso a uma eficiente rede de apoio psicossocial após a alta hospitalar, o que pode ter influenciado na avaliação da QV pelos participantes.

 

Conclusão

As vítimas neurocirúrgicas de TCE apresentaram QV reduzida no domínio físico. Verificou-se também que indivíduos que deambulavam sem dificuldade, vivem com os seus familiares, estudam e/ou trabalham e possuem níveis socioeconómicos mais altos, apresentaram uma perceção de QV mais satisfatória.

Além disso, foi constatado neste estudo que os participantes idosos consideram que as mudanças na sua QV são decorrentes do evento traumático, e não apenas da idade, o que torna estes resultados relevantes para o planeamento das políticas de saúde voltadas para esta faixa etária.

Os resultados deste estudo fornecem subsídios para planear e organizar os programas de atendimento ao neurotrauma e de reabilitação. Estes programas devem abordar não somente as limitações físicas, mas também promover a reabilitação vocacional para que a vítima possa voltar ao estudo/trabalho mais cedo, fortalecer o convívio social e explorar a saúde mental, de forma que as equipas de saúde possam alcançar o desafio de restaurar a vida com o máximo de qualidade possível.

 

Referências bibliográficas

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Recebido para publicação em: 01.10.18

Aceite para publicação em: 04.01.19

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