Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283
Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.21 Coimbra jun. 2019
https://doi.org/10.12707/RIV19016
ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)
RESEARCH PAPER (ORIGINAL)
O processo de morrer: que expressão tem nos registos de enfermagem
The dying process: its manifestation in nursing records
El proceso de muerte: qué expresión tiene en los registros de enfermería
Maria Filomena Passos Teixeira Cardoso*
https://orcid.org/0000-0001-5758-2310
Maria do Carmo Cardoso Morais Lessa Silva**
https://orcid.org/0000-0002-6049-3068
Cecília Maria Pereira de Macedo Alves***
https://orcid.org/0000-0003-2228-7623
Maria Manuela Ferreira Pereira da Silva Martins****
https://orcid.org/0000-0003-1527-9940
* MSc., Doutoranda em Ciências da Enfermagem, ICBAS. Professora, Universidade Fernando Pessoa. Enfermeira Diretora, Centro Hospitalar São João, 4200-319, Porto, Portugal [ptcardoso@gmail.com]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica; recolha de dados; análise de dados e discussão e escrita do artigo. Morada de correspondência: Alameda Professor Hernâni Monteiro, 4200-319, Porto, Portugal.
** Lic., Enfermeira Especialista, Centro Hospitalar São João, 4200-319, Porto, Portugal [carmolessa@gmail.com]. Contribuição no artigo: análise de dados e discussão.
*** MSc., Enfermeira Especialista, Centro Hospitalar São João, 4200-319, Porto, Portugal [cecilia.m.alves@gmail.com]. Contribuição no artigo: análise de dados e discussão.
**** Ph.D., Professora Coordenadora, Escola Superior de Enfermagem do Porto. Investigadora, Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, Grupo de Investigação NursID: Inovação e Desenvolvimento em Enfermagem, 4200-450, Porto, Portugal [mmmartins1956@gmail.com]. Contribuição no artigo: análise de dados e discussão e escrita do artigo.
RESUMO
Enquadramento: Apesar da mudança significativa na documentação dos cuidados de enfermagem ocorrida na última década, no âmbito do processo de morrer existem ainda algumas fragilidades que demonstram necessidade de serem estudadas.
Objetivo: Analisar os focos de enfermagem documentados pelos enfermeiros, durante o processo de morrer no contexto hospitalar e identificar as diferenças de registos relativos aos focos valorizados nas diferentes áreas clínicas.
Metodologia: Integrado numa investigação mais ampla intitulada Viver a Morte: desafio da profissão de enfermagem, este estudo quantitativo, descritivo e retrospetivo documental, foi realizado recorrendo à análise de 36.281 focos de enfermagem documentados por 1.270 enfermeiros.
Resultados: Dos 36.281 focos registados, verifica-se que a maioria da documentação é relativa à Função (56,5%), seguindo-se a Pessoa (43,5%), dados que evidenciam uma aparente desvalorização das transições vivenciadas pelas pessoas, no âmbito da morte e dos processos de morrer.
Conclusão: Torna-se emergente descentrar a atenção de uma prática predominantemente focada na componente biomédica, em prol de um cuidado centrado nas experiências vivenciadas pelas pessoas diante da iminência e inevitabilidade da finitude da vida.
Palavras-chave: registos eletrónicos de saúde; enfermagem; morte
ABSTRACT
Background: Despite the changes over the last decade in nursing care, some concerns about the care practice in the process of dying remain.
Objective: To analyze the focus documented by nurses during the dying process within the hospital context and to identify the differences in records relating to the focus valued in the different clinical areas.
Methodology: As part of a larger research project called Living Death: the challenge of the nursing profession, this quantitative, descriptive, and retrospective documentary study was performed based on the analysis of 36,281 nursing actions documented by 1,270 nurses.
Results: Of the 36,281 actions recorded, most of the documentation is related to Function (56.5%), followed by Person (43.5%), which shows an apparent disregard for the transitions experienced by patients within the context of death and the processes of dying.
Conclusion: It is increasingly important to decentralize the attention of a practice that is predominantly focused on the biomedical component, in favor of care focusing on the experiences facing the imminence and inevitability of death.
Keywords: electronic health records; nursing; death
RESUMEN
Marco contextual: A pesar del cambio significativo en la documentación de los cuidados de enfermería, ocurrido en la última década, en el marco del proceso de morir, existen todavía algunos puntos críticos que siguen precisando un estudio más a fondo.
Objetivo: Analizar los puntos de enfermería documentados por los enfermeros, durante el proceso de morir en el contexto hospitalario e identificar las diferencias en los registros relacionados con los focos valorados en las diferentes áreas clínicas.
Metodología: Integrado en una investigación más amplia titulada Vivir la Muerte: desafío de la profesión de enfermería, este estudio cuantitativo, descriptivo y retrospectivo documental, fue realizado recurriendo al análisis de 36.281 focos de enfermería documentados por 1.270 enfermeros.
Resultados: De los 36.281 focos registrados, se verifica que la mayoría de la documentación se refiere a la Función (56,5%), seguida de Persona (43,5%), datos que evidencian una aparente devaluación de las transiciones vivenciadas por las personas, en el ámbito de la muerte y de los procesos de morir.
Conclusión: Es prioritario descentrar la atención de una práctica predominantemente enfocada en la componente biomédica, en pro de un cuidado centrado en las experiencias vivenciadas por las personas ante la inminencia e inevitabilidad de la finitud de la vida.
Palabras clave: registros electrónicos de salud; enfermería; muerte
Introdução
A morte sempre despertou no ser humano uma grande inquietação e curiosidade. Mesmo sem querer, a morte nunca deixa de estar presente no nosso íntimo, constituindo um dos maiores mistérios e uma das mais duras realidades por que todos temos de passar ao ver extinguir os laços que fomos construindo com a partida dos que amamos. Sendo um processo fisiológico que ocorre com a ausência de todos os sinais vitais, trata-se também de um processo cultural, o qual passa pela não aceitação da perda e pela dificuldade em aceitá-la, envolvendo dimensões éticas, culturais, religiosas e sócioambientais (Lacerda et al., 2016).
A morte é um ato final da vida na terra, da mesma maneira que o nascimento marca o seu início. A única certeza acerca da vida de alguém é que um dia morrerá, embora com incerteza sobre o porquê, quando, onde e como. “A morte é uma das únicas certezas da vida, e deveria ser natural, no sentido da sua aceitabilidade, por ocorrer em todos os seres vivos e, logicamente, por ser parte integrante do ciclo vital humano” (Oliveira, Quintana, & Bertolino, 2010, p. 1080).
Cada ser humano carrega consigo uma representação individual da morte. Esta, é elaborada por influência do convívio social, dos meios de comunicação e por particularidades de cada indivíduo. De facto, como referem Sousa, Soares, Costa, Pacífico, e Parente (2009, p. 42):
É neste cenário de diversidade com relação à morte que se encontram os profissionais de enfermagem, vivendo em constante desafio, uma vez que diariamente permanecem em conflito, lutando pela vida e contra a morte, tomando para si a responsabilidade de salvar, curar ou aliviar, procurando sempre preservar a vida, já que a morte, na maioria das vezes, é vista por estes profissionais como um fracasso, sendo, desta forma duramente combatida.
Os enfermeiros, que são essencialmente preparados para prevenir a doença e promover a saúde, devem ser ensinados a não olhar a morte como uma derrota ou fonte de desmotivação. Devem olhá-la como uma fase em que o seu trabalho é fundamental na ajuda à pessoa doente e família, de modo a que o processo seja vivido com conforto.
Tal como defendido por alguns autores,
o profissional de enfermagem é a pessoa que está mais próxima ao paciente nos momentos difíceis e é quem o paciente e a família procura a, quando necessitam de explicação ou de cuidados imediatos. Esse cuidado pressupõe em conhecer não só sobre a patologia, mas saber lidar com os sentimentos dos outros, como com as próprias emoções perante a doença com ou sem possibilidade de cura. (Lima et al., 2014, p. 504)
O problema é que “a formação de caracter maioritariamente tecnicista que a academia oferta ao graduando em detrimento das questões ligadas à emoção, principalmente as causadas pela morte, contribuem para a falta de preparo no enfrentamento da morte nas actividades profissionais” (Lima et al., 2014, p. 506). E será que os registos efetuados pelos enfermeiros refletem a sua intervenção no âmbito do processo de morrer?
É na sequência desta inquietação que neste estudo, a partir da expressão dos registos em suporte eletrónico, se estabeleceram como objetivos: analisar a incidência dos focos registados pelos enfermeiros no processo assistencial dos doentes falecidos e identificar as diferenças de registos relativos aos focos valorizados nas diferentes áreas clínicas.
Enquadramento
Nas últimas décadas assistiu-se a uma mudança na forma como se passaram a realizar os registos de enfermagem. Passou-se de um registo escrito em papel para o uso generalizado de sistemas de informação estruturados. O Centro Hospitalar em estudo foi um dos pioneiros no desenvolvimento do Sistema de Apoio à Prática de Enfermagem (SAPE), no seu serviço de Cardiologia, em 1999.
O SAPE teve por base o modelo de sistema de informação em enfermagem desenvolvido por Silva (2001), que o designou de tipo II. Este modelo apresenta como características:
A inclusão da CIPE® na linguagem utilizada; a parametrização dos conteúdos por unidade de cuidados; a construção de padrões de documentação; a articulação entre a linguagem natural e a linguagem classificada, quer na pré combinação de termos, quer na documentação no dia-a-dia; e a disposição vertical das categorias de dados no “Plano de cuidados”. Para além destas, há ainda três aspectos característicos do modelo de sistema de informação em enfermagem: as regras de associação diagnóstico/intervenção de enfermagem; a organização das intervenções de enfermagem a implementar; e as regras de integridade referencial entre os diagnósticos, status, intervenções e dados da observação contínua do doente. (Silva, 2001, p. 270)
Desde 2010, o Centro Hospitalar alargou a documentação dos cuidados de enfermagem a todo o internamento hospitalar incluindo unidades de medicina intensiva, utilizando nestas unidades o sistema de informação B-ICU Care, com um modelo de sistema de informação tipo II (Silva, 2001). Atendendo a que nos sistemas de informação, à data da colheita de dados, estava em uso a versão ß2 da Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE®), será com base nesta linguagem classificada que se apresentam os resultados deste estudo.
Como já em 2006 referia o mesmo autor, a utilidade dos dados para a gestão/investigação, para a produção de indicadores e para potenciar a transformação da informação em conhecimento, sofre modificações com a implementação de uma estrutura de dados como a utilizada no sistema de informação em enfermagem tipo II, com a utilização da CIPE® e com a mudança no suporte do sistema de informação em enfermagem (Silva, 2006).
Partindo de todas estas premissas, e no âmbito do estudo mais amplo - Viver a morte: desafio da profissão de enfermagem, com o intuito de conhecer os registos efetuados pelos enfermeiros no âmbito do processo de morrer, analisou-se retrospetivamente a documentação produzida pelos enfermeiros, nos doentes que vieram a falecer no ano de 2016.
Questão de investigação
Será que os focos registados pelos enfermeiros no processo assistencial dos doentes falecidos, expressam a sua prática, durante o processo de morrer?
Metodologia
O estudo concretizado é descritivo, exploratório e retrospetivo documental. Os dados foram colhidos nos sistemas de informação SClínico e B-ICU Care, relativamente a pessoas falecidas em 2016 num centro hospitalar na região norte de Portugal. Foram incluídos os registos de enfermagem, com identificação clara dos enfermeiros, realizados nos sistemas de informação SClínico e B-ICU Care em pessoas falecidas em 2016 nas áreas cirúrgica, médica e de medicina intensiva. Foram identificados 36.281 focos de atenção de enfermagem, documentados por 1.270 enfermeiros, correspondendo a 98,4% do total de enfermeiros existentes nas áreas em estudo.
A técnica de amostragem foi não probabilístíca e intencional. Foram definidos como critérios de exclusão: registos de doentes com idade inferior a 18 anos e registos sem identificação do enfermeiro.
Após parecer favorável da Comissão de Ética (Parecer 102/2017), o projeto foi aprovado em reunião do Conselho de Administração de 30 de março de 2017.
A colheita de dados foi realizada em fevereiro de 2017, extraindo-se dos sistemas de informação em uso os focos registados e criando-se uma base de dados em Excel para posterior análise estatística. De modo a garantir o anonimato após a identificação dos focos, foi eliminada a informação relativa ao doente, bem como ao enfermeiro que efetuou o registo.
Resultados
Os 36.281 registos foram realizados por 1.270 enfermeiros que no ano de 2016 fizeram registos nos doentes falecidos neste ano.
Na distribuição destes enfermeiros pelas áreas (Figura 1) verifica-se que a maioria exerce funções na área intensiva (507 enfermeiros; 39,9%), seguindo-se a área médica (444 enfermeiros; 35,0%) e a área cirúrgica (319 enfermeiros; 25,1%).
A distribuição das idades de todos os enfermeiros é assimétrica positiva, o que significa que predominam as idades baixas e intermédias, destacando-se as idades entre 30 e 40 anos, e registando-se um decréscimo gradual do número de enfermeiros à medida que a idade aumenta a partir dos 35 anos. A idade mínima é de 23 anos e a máxima de 63 anos; observa-se um número muito reduzido de enfermeiros com idades inferiores a 25 anos ou superiores a 60. Assim, a idade média é 37,4 anos, ligeiramente superior à mediana, que atinge 35 anos (ou seja, metade dos enfermeiros tem idade até 35 anos), o 1º quartil é 33 anos (ou seja, um quarto dos enfermeiros tem idade até 33 anos) e o 3º quartil é 41 anos (ou seja, três quartos dos enfermeiros têm idade até 41 anos), o que mostra o predomínio de idades baixas e moderadas (Figura 2).
Em relação ao género, regista-se um forte predomínio das enfermeiras (1.002 enfermeiras; 78,8%). Este padrão é comum a todas as áreas, observando-se proporções quase iguais nas três: 254 (79,6%); 351 (79,1%); e 397 (78,3%) enfermeiras na área cirúrgica, médica e intensiva, respetivamente.
A análise dos registos realizados pelos enfermeiros aos doentes falecidos, teve por base a estrutura de organização da versão ß2 da CIPE®. Descrever-se-á a incidência dos focos por área da CIPE®, sendo que estes foram agrupados em cinco grandes categorias de análise: Indivíduo; Função; Pessoa; Ação; e Razão para Ação.
No âmbito dos 36.281 focos registados, na categoria Indivíduo, conforme o Eixo A -Foco da Prática de Enfermagem, na versão ß2 da CIPE (International Council of Nurses, 2001), verifica-se que a maioria da documentação é relativa à Função (20.505 registos; 56,5%), seguindo-se a Pessoa (15.776 registos; 43,5%; Figura 3).
Na área cirúrgica existe um total de 5.040 registos, verificando-se que mais de metade dos registos é relativa à Função (2.662 registos; 52,8%), cabendo menos de metade à Pessoa (2.378 registos; 47,2%).
Na área médica existe um total de 18.941 registos, confirmando-se que mais de metade dos registos é relativa à Pessoa (9.924 registos; 52,4%), cabendo menos de metade à Função (9.017 registos; 47,6%).
Na área intensiva existe um total de 12.300 registos, sendo que a maioria é relativa à Função (8.826 registos; 71,8%), seguindo-se a Pessoa (3.474 registos; 28,2%).
Comprova-se que a área intensiva é a que apresenta maior proporção de registos no domínio da Função, seguindo-se a área cirúrgica e a médica. Naturalmente, sucede o inverso com os registos Pessoa.
No que respeita à Função, dos 16 focos de registo possíveis (Tabela 1) o Tegumento é maioritário (12.444 registos; 60,7%), seguindo-se Respiração (2.276 registos; 11,1%), Sensações (1.407 registos; 6,9%), Atividade motora (1.266 registos; 6,2%), Eliminação (881 registos; 4,3%), Circulação (727 registos; 3,5%), Volume de líquidos (647 registos; 3,2%), Digestão (492 registos; 2,4%), Temperatura corporal (267 registos; 1,3%), Sistema imunitário (53 registos; 0,3%), Reparação (27 registos; 0,1%), Nutrição (10 registos; 0,05%), Desenvolvimento físico (4 registos; 0,02%), Metabolismo (3 registos; 0,01%) e Secreção (1 registo; 0,005%).
Sobre o Foco Pessoa existem dois tipos de registos diferentes: quase a totalidade é relativa à Ação (15.199 registos; 96,3%), sendo a Razão para Ação pouco frequente (577 registos; 3,7%; Figura 4).
A área médica é a que apresenta maior proporção de registos na Ação (e menor proporção de registos Razão para Ação), não se encontrando diferença significativa entre as outras duas áreas.
Detalhando um pouco mais, relativamente aos registos referentes à Ação observa-se que existem dois tipos de registos diferentes: a quase totalidade é relativa à Ação realizada pelo próprio (15.042 registos; 99%), sendo a Ação interdependente quase inexistente (157 registos; 1%; Figura 5).
A área médica é a que apresenta maior proporção de registos, relativos à Ação interdependente (e menor proporção de registos Ação realizada pelo próprio), não se encontrando diferença significativa entre as outras duas áreas.
Na distribuição da Ação realizada pelo próprio, o Autocuidado inclui a quase totalidade dos registos (15.036 registos; 99,96%), existindo poucos relativos aos Estilos de vida (apenas 6 registos; 0,04; Tabela 2).
O registo do Autocuidado mostra que a distribuição dos registos é quase igual nas três áreas, não existindo quaisquer registos Estilos de vida na área cirúrgica e na área intensiva e apenas existindo um número muito baixo de registos na área médica. Desta forma, não é possível realizar o teste da homogeneidade das proporções, concluindo-se que o Autocuidado é absolutamente dominante em todas as áreas.
Na distribuição da Ação Interdependente existem três tipos de registos diferentes: o registo Interação social é o mais frequente (71 registos; 45,2%), seguindo-se a Interação de papéis (50 registos; 31,8%) e a Comunicação (36 registos; 22,9%; Figura 6).
A análise descritiva mostra que o registo mais frequente na área cirúrgica é a Comunicação, enquanto na médica essa posição é ocupada pela Interação social, invertendo-se os papéis relativamente ao registo menos frequente. Por sua vez, a Interação de papéis ocupa em ambas uma posição intermédia, embora com proporções diferentes. Na área intensiva, quase todos os registos identificados dizem respeito à Comunicação.
Relativamente à Razão para a ação existem dois tipos de registos diferentes, a quase totalidade é relativa ao Auto-conhecimento (576 registos ou 99,8%), sendo o Auto-conceito quase inexistente (1 registo ou 0,2%).
A distribuição dos registos é igual na área Médica e na área Intensiva e quase igual na Cirúrgica. Com efeito, nas duas primeiras não há quaisquer registos de Auto-conceito e na terceira só existe um único (Tabela 3).
Detalhando os registos, verifica-se que relativamente ao Autoconceito existe o único registo que é relativo à Autoestima.
Já a distribuição dos registos do Autoconhecimento (Tabela 4) mostra que existem seis tipos de registos diferentes: o registo Memória é o mais frequente (250 registos; 43,4%); seguindo-se a Energia (174 registos; 30,2%); a Adaptação (104 registos; 18,1%); a Cognição (23 registos; 4%); a Emoção (22 registos; 3,8%); e a Força de vontade (3 registos; 0,5%).
Discussão
Da análise dos resultados, verifica-se que os enfermeiros dão mais importância aos registos biomédicos, privilegiando os focos no âmbito da Função, de forma global, sendo este facto mais vincado na área da medicina intensiva, seguida da área cirúrgica, tendo a área médica uma distribuição inversa face a estas duas áreas, surgindo os focos no domínio da Pessoa com 52,4%. Como defendem Lindolpho, Caldas, Sá, e Santos (2016), o fazer do enfermeiro não inclui apenas a execução de procedimentos técnicos cuja preocupação se centra na manutenção dos princípios científicos, esperando-se simultaneamente que os enfermeiros sejam capazes de reconhecer não apenas os aspetos biomédicos referentes ao processo de morrer, mas também as implicações psicossocioespirituais dessa vivência nos doentes e famílias (Salviano et al., 2016), o que os resultados não comprovam.
É interessante verificar que esta ênfase na Função tem a sua expressão mais significativa, nas três áreas, nos registos relativos ao foco Tegumento. Estes registos mostram uma preocupação que se pode associar à prevenção das úlceras de pressão, cumprindo as recomendações do Plano Nacional para a Segurança dos Doentes (Despacho n.º 1400-A/2015, de 10 de fevereiro, 2015).
Os registos relativos à Pessoa têm a sua quase total predominância (96,3%) no domínio da Ação em detrimento da Razão para Ação, o que mais uma vez mostra o enfoque na componente biomédica.
Na perspetiva de alguns autores (Salviano et al., 2016), a dimensão filosófica do cuidado perpassa por uma questão antropológica que inquieta o ser humano, desde os tempos antigos: o significado do ser humano. A resposta a essa inquietação varia conforme a visão do mundo de cada um, bem como da sua formação académica, social e vivencial. Assim, não é possível pensar o cuidado como apenas teorização sobre a ação, tampouco se pode defini-lo como uma simples e única estrutura em si mesma.
Detalhando os registos relativos à Ação, 99% dos registos são relativos à Ação realizada pelo próprio e, desses, 100% referem-se ao Autocuidado.
Analisados estes dados, e atendendo a que existem referenciais teóricos de enfermagem com potencial para sustentar a prática dos enfermeiros, importa perceber os que mais se destacam no âmbito da morte e dos processos de morrer.
Assim, numa investigação mais ampla desenvolvida a nível nacional “Contextos da prática hospitalar e conceções de enfermagem” (Cardoso, Ribeiro, & Martins, 2019), que teve como objetivo identificar o grau de concordância dos enfermeiros que exercem funções em contexto hospitalar, relativamente às conceções de enfermagem, verificou-se que os enfermeiros se identificam predominantemente com Virginia Henderson, seguindo-se Dorothea Orem e Afaf Meleis.
Os focos mais específicos no âmbito do Autocuidado, potencialmente o elevado número de registos, pode ser justificado pelo facto de os enfermeiros do Centro Hospitalar evidenciarem uma prática coerente com o referencial teórico de Dorothea Orem.
“Sentimentos como medo, angústia e depressão são expressos pelos indivíduos que estão enfrentando a terminalidade da vida e, de alguma forma, podem vir a influenciar e intensificar seu processo de sofrimento” (Brito et al., 2014, p. 320), que não é possível observar nos dados do presente estudo, no que respeita ao foco Razão para a Ação, maioritariamente centrado no autoconhecimento (99,8%), mostrando uma total desvalorização das emoções, que têm apenas 22 registos.
Apesar de existirem vários estudos sobre as vivências dos enfermeiros perante o doente em estado terminal (Brito et al., 2014; Lacerda et al., 2016; Lindolpho et al., 2016), este estudo vem acrescentar uma análise comprovativa da tipologia dos registos efetuados durante o processo de morrer.
Apesar do número elevado de registos analisados, este estudo tem como limitação o facto de ter sido realizado numa única instituição hospitalar. Para além disso, a par desta abordagem quantitativa seria interessante complementá-la com um estudo qualitativo que permitisse perceber as razões subjetivas da ausência de registos no domínio da Pessoa, mais especificamente em relação à Razão para Ação, que inclui outros focos, como Bem-estar, Emoção e Crença.
Conclusão
Atendendo à problemática em estudo, era expectável que os enfermeiros fossem capazes de reconhecer, não apenas os aspetos biomédicos referentes ao processo de morrer, mas também as implicações psicossocioespirituais dessa vivência nos doentes e famílias a seu cuidado, refletindo essa prática nos registos.
Verifica-se que tal não acontece, ficando comprovada uma forte componente biomédica expressa nos registos. As percentagens elevadas de registos relativos à Ação, em detrimento da Razão para Ação, poderão ter repercussões na transição vivenciada pelos doentes, sendo um aspeto muito importante para reflexão.
Os resultados obtidos determinam que é emergente a mudança das práticas de enfermagem no contexto hospitalar, descentrando a atenção de uma prática predominantemente focada na componente biomédica, em prol de um cuidado centrado nas experiências vivenciadas pelas pessoas diante da iminência e inevitabilidade da finitude da vida, com potencial para culminar numa morte digna e tranquila.
Relativamente ao referido, no âmbito da Razão para Ação, emergem focos que não tendo sido muito registados merecem ser evidenciados, talvez porque sejam o reflexo da recente atenção dos enfermeiros para aspetos relacionados com a facilitação das transições vivenciadas pelas pessoas, à luz do referencial de Afaf Meleis, de que é exemplo a cognição, a emoção e a força de vontade. Nota-se, no entanto, que ainda é necessário um longo percurso para que os registos evidenciem de forma consistente tal orientação.
Para tal, é crucial nos contextos académicos e profissionais, o desenvolvimento de estratégias que potenciem uma abordagem profissional mais qualificada às pessoas doentes e aos seus familiares, durante a vivência da morte e dos processos de morrer.
Referências bibliográficas
Brito, F. M., Costa, I. C., Costa, S. F., Andrade, C. G., Santos, K. F., & Francisco, D. P. (2014). Comunicação na iminência da morte: Percepções e estratégia adotada para humanizar o cuidar em enfermagem. Escola Anna Nery: Revista de Enfermagem, 18(2), 317-322. doi:10.5935/1414-8145.20140046 [ Links ]
Cardoso, F., Ribeiro, O., & Martins, M. (2019). Death and dying: Contributions to a practice based on nursing theoretical frameworks. Revista Gaúcha de Enfermagem, 40. doi:doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180139 [ Links ]
Despacho n.º 1400-A/2015, de 10 de fevereiro. (2015). Diário da República n.º 28/2015, 1º Suplemento, Série II. Ministério da Saúde, Lisboa.
International Council of Nurses. (2001). CIPE/ICNP® - Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem: Versão ß2. Lisboa, Portugal: Associação Portuguesa de Enfermeiros. [ Links ]
Lacerda, C. A., Camboim, F. E., Camboim, J. C., Nunes, E. M., Bezerra, A. L., & Sousa, M. N. (2016). O lidar com a morte em unidades de terapia intensiva: Dificuldades relatadas por enfermeiros. Revista Ciência e Desenvolvimento, 9(2), 173-184. Recuperado de: http://srv02.fainor.com.br/revista/index.php/memorias/article/view/559/294 [ Links ]
Lima, P. C., Comassetto, I., Faro, A. C., Magalhães, A. P., Monteiro, V. G., & Silva, P. S. (2014). O ser enfermeiro de uma central de quimioterapia frente á morte do paciente oncológico. Escola Anna Nery: Revista de Enfermagem, 18(3) 503-509. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ean/v18n3/1414-8145-ean-18-03-0503.pdf [ Links ]
Lindolpho, M. C., Caldas, C. P., Sá, S. P., & Santos, N. D. (2016). Nursing care of the elderly in the end of life. Ciência, Cuidado e Saúde, 15(2), 383-389. doi: 10.4025/cienccuidsaude.v15i2.23904 [ Links ]
Oliveira, S. G., Quintana, A. M., & Bertolino, K. C. (2010). Reflexões acerca da morte: Um desafio para a enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem 63(6) 1077-1080. doi:10.1590/S0034-71672010000600033 [ Links ]
Salviano, M. E., Nascimento, P. D., Paula, M. A., Vieira, C. S., Frison, S. S., Maia, M. A., Borges, E. L. (2016). Epistemology of nursing care: A reflection on its foundations. Revista Brasileira de Enfermagem, 69(6), 1240-1245. doi:10.1590/0034-7167-2016-0331 [ Links ]
Silva, A. A. (2001). Sistemas de Informação de enfermagem: Uma teoria explicativa da mudança (Tese de doutoramento). Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Porto, Portugal. [ Links ]
Silva, A. A. (2006). Sistemas de informação em enfermagem: Uma teoria explicativa da mudança. Coimbra, Portugal: FORMASAU. [ Links ]
Sousa, D. M., Soares, E. O., Costa, K. M., Pacifico, A. L., & Parente, A. C. (2009). A vivência da enfermeira no processo de morrer dos pacientes oncológicos. Texto Contexto Enfermagem, 18(1), 41-47. doi:doi.org/10.1590/S0104-07072009000100005 [ Links ]
Recebido para publicação em: 23.03.19
Aceite para publicação em: 06.06.19