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Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883
Rev. Enf. Ref. vol.serV no.2 Coimbra abr. 2020
https://doi.org/10.12707/RV20003
ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)
RESEARCH PAPER (ORIGINAL)
Educação permanente na rede de atenção às mulheres em situação de violência
Permanent education in the health care network for women in situations of violence
Educación continua en la red de atención a mujeres en situación de violencia
Marli Aparecida Rocha de Souza*1
https://orcid.org/0000-0003-3032-9619
Aida Maris Peres1
https://orcid.org/0000-0003-2913-2851
Terezinha Maria Mafioletti1
https://orcid.org/0000-0002-6783-6027
1 Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil
RESUMO
Enquadramento: A educação permanente em saúde é uma estratégia para transformar a realidade quotidiana dos profissionais por ações educativas. Procurou-se a sua aplicação na prática diária dos que realizam atendimento à mulher em situação de violência.
Objetivo: Identificar desafios para capacitação e desenvolvimento dos profissionais que atuam numa rede intersetorial de atenção às mulheres em situação de violência.
Metodologia: Estudo qualitativo, realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com 49 profissionais de uma rede intersetorial de atenção à mulher em situação de violência, entre outubro de 2016 a abril de 2017, na região Sul do Brasil. As entrevistas foram transcritas e o software IRAMUTEQ® processou análises textuais denominadas com classificação hierárquica descendente, similitude e nuvem de palavras.
Resultados: Identificaram-se os desafios articulação em rede, formação profissional, comunicação intersetorial e interface entre serviços de saúde, social e educação.
Conclusão: Educação permanente em saúde foi evidenciada como uma estratégia eficaz para a consolidação de avanços na rede intersetorial.
Palavras-chave: violência contra a mulher; colaboração intersetorial; educação permanente; capacitação em serviço
ABSTRACT
Background: Permanent health education is a strategy to transform the daily reality of professionals through educational actions. This strategy was applied in the daily practice of the professionals who provide care to women in situations of violence.
Objective: To identify challenges in the training and development of the professionals who work in an intersectoral health care network for women in situations of violence.
Methodology: A qualitative study was conducted using semi-structured interviews to 49 professionals who work in an intersectoral health care network for women in situations of violence, between October 2016 and April 2017, in the southern region of Brazil. The interviews were transcribed and processed using IRAMUTEQ® software for data analysis. Descending hierarchical classification, similarity analysis, and word clouds were used.
Results: The following challenges were identified: networking, vocational training, intersectoral communication, and interface between health, social, and education services.
Conclusion: Permanent health education proved to be an effective strategy for consolidating advances in the intersectoral network.
Keywords: violence against women; intersectoral collaboration; permanent education; inservice training
RESUMEN
Marco contextual: La educación continua en la salud es una estrategia para transformar la realidad cotidiana de los profesionales mediante acciones educativas. Su aplicación se buscó en la práctica diaria de quienes atienden a las mujeres en situación de violencia.
Objetivo: Identificar los desafíos para la capacitación y el desarrollo de los profesionales que trabajan en una red intersectorial de atención a las mujeres en situación de violencia.
Metodología: Investigación cualitativa, realizada mediante entrevistas semiestructuradas con 49 profesionales de una red intersectorial de atención a mujeres en situación de violencia, entre octubre de 2016 y abril de 2017, en la región meridional de Brasil. Las entrevistas se transcribieron y el software IRAMUTEQ® procesó los análisis textuales llamados clasificación jerárquica descendente, similitud y nube de palabras.
Resultados: Se identificaron los desafíos articulación en red, formación profesional, comunicación intersectorial e interfaz entre servicios sanitarios, social y educación.
Conclusión: Se destacó la educación continua en la salud como una estrategia eficaz para consolidar los avances en la red intersectorial.
Palabras clave: violencia contra la mujer; colaboración; intersectorial; educación permanente; capacitación en servicio
Introdução
As discussões sobre violências de género no Brasil são consideradas um foco de luta entre as feministas, o que permitiu a ampliação das discussões nos diversos setores e a criação de condições necessárias para sua legitimidade e amplitude nas políticas públicas e posterior resposta do Estado (Bandeira, 2014). A violência contra as mulheres (VCM) é entendida na sua dimensão, com a inclusão do género, historicidade, questões políticas e culturais nas relações entre homens e mulheres (Barufaldi et al., 2017; Winters, Heidemann, Maia, & Durand, 2018).
Caracterizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um fenómeno que irá atingir até um terço das mulheres em algum momento, a violência torna-se um problema de saúde pública global, onde metade destas mulheres sofre algum tipo de lesão física. As mortes de mulheres por agressão têm enorme relevância social e epidemiológica, por serem motivadas, na sua maioria, por razões de género e cometidas por parceiros íntimos ou ex-parceiros (Barufaldi et al., 2017), considerada uma grande incidência no total de homicídios de mulheres no mundo (Domínguez Fernández, Martínez Silva, Vázquez-Portomeñe, & Rodríguez Calvo, 2017).
Neste contexto, a implantação de processos educativos com foco na transformação profissional e organização da atenção à mulher em situação de violência torna-se um recurso necessário à gestão do trabalho, e premissa presente na educação permanente, em que a transformação e organização dos serviços, resulte em melhores condições de acesso e qualidade na atenção à saúde. Em consonância, a educação permanente em saúde (EPS) apresenta nos seus objetivos, a valorização do conhecimento do trabalhador, a discussão e desenvolvimento de estratégias de atendimento com foco nas necessidades da população (Lemos & Silva, 2018).
Do mesmo modo, gerar o aperfeiçoamento profissional com a qualificação das potencialidades pessoais e o desenvolvimento de competências para transformar a técnica, o conhecimento e a atitude, gera a aproximação dos serviços e a realização de uma assistência integral e efetiva (Silva, Matos, & França, 2017). No Brasil, tais estratégias são designadas pelo termo EPS, já em estudos internacionais como os de Loeffen et al. (2017) e Reis, Lopes, e Osis (2017), ações similares recebem a designação de treinamento ou programa de educação. Porém, independente do termo, o objetivo está voltado para o desenvolvimento do profissional.
Contudo, a implementação de um processo educativo implica ter um olhar voltado para os profissionais que a compõem e que podem contribuir através das suas experiências e reflexões. A transformação profissional está ligada à mudança de mentalidade do individual para o coletivo e em aprendizagem contínua, não pontual. Logo, a organização não deve desconsiderar o conhecimento existente, mas direcionar e potencializar o seu desenvolvimento, as suas habilidades e competências (Senge, 2018).
Na promoção de um acolhimento às mulheres em situação de violência e uma atenção voltada para o conhecimento da integralidade e interpretação das suas necessidades, alguns programas relacionados com esta temática foram implantados no país e entre eles o Programa Mulher de Verdade (PMV). Lançado em 2002, na região Sul do Brasil e de forma concomitante à rede intersetorial de Atenção à mulher em Situação de Violência (RAMSV) e que procura garantir a atenção às mulheres em situação de violência sexual e doméstica. Para tanto, algumas ações foram realizadas como; organização dos serviços, criação de fluxos de atenção à saúde das mulheres, articulação intersetorial e interdisciplinar (Mafioletti, 2018).
Ressalta-se que, com a implantação da RAMSV, estratégias inovadoras foram estabelecidas, entre elas o fluxo do atendimento à violência sexual, o que promoveu a agilidade e minimizou a rota crítica percorrida pelas mulheres na procura pela atenção imediata. Diversos foram os fatores que convergiram para o enfrentamento da violência, o que culminou numa melhor estruturação do PMV e da RAMSV de forma intersetorial, e numa maior abrangência na sua atuação. As capacitações foram consideradas estratégia de enfrentamento à VCM e intensamente difundidas na sua implementação. Neste processo, um indicador observado foi o aumento do número de notificações, esta foi considerada uma das situações que gerou premiações referentes à inovação e enfrentamento da violência contra as mulheres bem como a atuação em rede (Mafioletti, Peres, Laroca, & Fontoura, 2018).
No entanto, apesar das ações voltadas para os processos educativos dos profissionais que atuam no PMV e na RAMSV, evidencia-se a necessidade do seu aprofundamento. Assim, este estudo tem como objetivo identificar os desafios na capacitação e desenvolvimento dos profissionais que atuam na rede de atenção às mulheres em situação de violência de um município do Sul do Brasil.
Enquadramento
Na procura pelo enfrentamento da VCM, ações foram implantadas de forma abrangente. Uma destas estratégias é a formação da rede intersetorial que visa organizar os serviços de forma a proporcionar um atendimento resolutivo que auxilie estas mulheres para a sua saída do ciclo de violência (Santos & Freitas, 2017). Entretanto, somente a constituição de uma rede não é suficiente, sem a articulação necessária entre os serviços no direcionamento destas mulheres.
Assim, um dos fatores debatidos na literatura como forma de organizar o trabalho e transformar o quotidiano profissional é a implantação da EPS nos serviços. Porém, ressalta-se a importância da participação dos profissionais, com o objetivo de gerar reflexão sobre as suas potencialidades, bem como as dificuldades apresentadas na sua prática diária (Silva et al., 2017)
Ao procurar, com esta implementação, uma aprendizagem contínua, optou-se neste estudo, pela utilização do referencial teórico de Senge (2018), sobre a quinta disciplina: a arte e a prática da organização que aprende, no qual ele descreve as cinco disciplinas como ferramentas relacionadas com o processo de aprendizagem nas organizações. São elas: domínio pessoal; visão compartilhada; modelos mentais; aprendizagem em equipa e o pensamento sistémico. Esta última foi nomeada como a quinta disciplina por promover a visão do todo e possibilitar que as outras sejam vistas de forma integrada e sistemática. Ao serem inseridas na organização geram a participação como estratégia de aprendizagem, pois focam o indivíduo e de como as suas ações têm impacto no outro, e na organização como um todo (Senge, 2018).
Questão de investigação
Quais os desafios enfrentados no que se refere à capacitação e desenvolvimento de profissionais que atuam na rede de atenção às mulheres em situação de violência?
Metodologia
Neste estudo utilizou-se a abordagem qualitativa do tipo exploratória, e análise textual, ancorada nos relatos dos participantes denominados como informantes chaves (ICs), constituídos por entrevistas semiestruturadas e realizadas com participantes de um programa voltado para o atendimento às mulheres em situação de violência numa rede intersetorial. A referida rede está localizada no município de Curitiba, região Sul do Brasil e foi lançada em 2002, juntamente com o PMV (Mafioletti, 2018) e que integra serviços na área da Saúde, Bem-Estar Social, Justiça, Segurança Pública (Política de Segurança Pública; Guarda Nacional Republicana; Instituto Nacional de Medicina Legal).
A abordagem à(ao) participante foi feita de forma individual para apresentação do estudo e agendamento de data, hora e local de disponibilidade das(os) participantes, que optaram pelo local de trabalho e em sala privada. Foram propostas medidas para garantir privacidade e evitar a exposição referente às suas falas perante a rede intersetorial, a qual integra. Na data marcada, o investigador apresentou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e solicitou autorização para gravação das entrevistas, realizadas com a utilização de um gravador portátil. As entrevistas serão arquivadas durante 5 anos pelo investigador principal, como garantia do sigilo das informações.
Participaram nas entrevistas 49 ICs no período de outubro de 2016 a abril de 2017, com duração de 30 a 60 minutos. Os ICs foram assim denominados, por terem feito parte da implantação das políticas voltadas para esse atendimento ou atuarem com o programa ou com a rede intersetorial. Das(os) participantes, 47 eram do sexo feminino e a média de atuação no PMV ou na RAMSV foi de 1 a 15 anos (Mafioletti, 2018).
Ao término das entrevistas, uma das investigadoras realizou as transcrições e confeção do corpus primário, caracterizado pelas falas dos participantes, também designadas por segmentos de textos (ST; Camargo & Justo, 2018). Após a leitura na íntegra desta primeira etapa, constituiu-se um novo corpus, foi classificado como secundário por outra investigadora. Nesta nova etapa utilizou-se somente os relatos das(os) participantes voltados para a capacitação, treinamento, formação, qualificação, orientação, ou outro termo ligado aos processos educativos. A constituição do novo corpus deu-se na procura pela identificação da perceção do profissional que atua na atenção às mulheres em situação de violência, quanto ao atendimento vinculado ao programa e rede intersetorial.
Como apoio ao processamento dos dados, utilizou-se o software IRAMUTEQ® (Interface de R pour les Analyses Multidimensionneles de Textes et de Questionnaires) e que apoia o investigador na análise, associando os resultados que emergem do processamento, em consonância com o material de pesquisa (Souza, Wall, Thuler, Lowen, & Peres, 2018). Como possibilidades de análises textuais (Camargo & Justo, 2018) citam-se: Análises lexicográficas, Especificidades e Análise Fatorial de Correspondência (AFC), Análise de similitude, Nuvem de palavras e a Classificação Hierárquica Descendente (CHD). Neste estudo foram utilizadas: Análise de Similitude, Nuvem de palavras e a CHD.
Os preceitos nacionais e internacionais de pesquisa com seres humanos foram seguidos conforme as orientações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e aprovação do Parecer da Comissão de Ética em pesquisa pela Universidade e pela Secretaria Municipal de Saúde em que o estudo foi realizado, sob o CAAE: 47647015000000102.
Resultados
Após a elaboração do corpus secundário, constatou-se que 31 dos 49 ICs tiveram no relato, algum termo relacionado com os processos educativos no PMV e RAMSV. Entre os ICs, foi prevalente o sexo feminino, média de idade de 41 a 60 anos e tempo de atuação no PMV e RAMSV entre 1 a 15 anos. Todos apresentam ensino superior em áreas como Serviço Social, Direito, Enfermagem, Medicina, Odontologia, Farmácia, Psicologia, Pedagogia, Administração, Matemática, Sociologia, História e Letras.
O corpus secundário, após o processamento no software IRAMUTEQ®, possibilitou a identificação das palavras que tiveram maior ocorrência entre si (Camargo & Justo, 2018). Na Figura 1 pode verificar-se a análise de similitude e na Figura 2 a nuvem de palavras. Destaque para palavras "capacitação", "não" e "muito", entre elas "capacitação" obteve maior destaque, constituindo nos relatos estratégia para melhorar o atendimento intersetorial e desafios na implantação nos serviços. As palavras "porque", "gente", "muito" e "estar", não foram analisadas por serem consideradas anáforas, figura de linguagem para explicar uma ideia. Entre os destaques ao entorno da palavra "capacitação", está a palavra "instituição", citada pelos ICs sobre a necessidade de investimento nos processos educativos: "Não basta a instituição falar que tem tal missão e tal valor, precisa capacitar seus profissionais para que não haja desrespeito . . . aos direitos das pessoas" (IC43; março, 2017).
A palavra "não" nas Figuras 1 e 2, estava inserida em relatos sobre o sentimento perante a capacitação, comunicação/informação e intersetorialidade. Tais como: "O grande problema para mim nesse trajeto da vítima é a pessoa, o profissional que não sabia informar para onde encaminhar a pessoa" (IC16; outubro, 2016).
"A gente como profissional não tem muito treinamento sobre isso ou nunca teve ou se teve treinamento foram raras e faz muitos anos" (IC41; março, 2017).
Na Figura 1 e 2 destacaram-se as palavras "violência" e "capacitação", e nos relatos estão ligadas a falas das fragilidades referentes aos processos educativos, conforme segue: "Algumas instituições que eu acompanho não estão preparadas e não se investe em formação e a questão da violência . . . as pessoas naturalizam muito" (IC48; abril, 2017). "Ocorre a violência e eu preciso dar a elas ferramentas para sair desse ciclo . . . e eu me questiono se nós estamos conseguindo oferecer estas ferramentas" (IC27; fevereiro, 2017).
A CHD, outra forma de análise textual, está representada na Figura 3, na qual o corpus secundário foi constituído por 31 textos, respetivos às 31 entrevistas e que após o processamento se constituiram em 67 ST, com obtenção de 82,09% de aproveitamento do corpus. O conteúdo para análise foi procedente das classes representadas pelas partições no corpus durante o processamento, constituídas por palavras com frequência média entre si, diferentes entre elas por meio de testes qui-quadrado (X2). O dendograma da Figura 3, mostra que o corpus sofreu quatro divisões, duas iniciais e em seguida mais duas. Para análise foram consideradas as palavras que apresentavam um qui-quadrado (X2) maior que 3,80, o que representa maior associação dos ST entre as classes e maior força de ligação (Camargo & Justo, 2018).
A partir deste resultado, as classes foram nomeadas: 1) Capacitação como potencialidade a ser investida nos profissionais que atuam na rede intersetorial de atenção às mulheres em situação de violência; 2) Capacitação como um desafio vivenciado nos serviços; 3) Conhecimento deficiente quanto ao tema e de informações às mulheres; 4) A rotatividade de profissionais e o conhecimento deficiente como fragilidade no atendimento. Algumas palavras não foram analisadas por serem consideradas anáforas, na explicação das(os) participantes, ligando os relatos: Classe 1: "grande", "dentro", "gente"; Classe 2: "dar", "mais".
Classe 1: Capacitação como potencialidade a ser investida nos profissionais que atuam na rede intersetorial de atenção às mulheres em situação de violência. As palavras analisadas foram "acreditar", "instituição" e "capacitação", relacionadas com a perceção dos participantes, na relevância de um processo de educação de forma contínua e com maior envolvimento das instituições nestes processos. Como exemplo: "Eu acredito que as instituições têm que investir muito . . . nessa capacitação porque as universidades não preparam as pessoas para isso segundo porque existe uma rede de profissionais" (IC48; abril, 2017).
Classe 2: Capacitação como um desafio vivenciado nos serviços e as palavras analisadas foram; "capacitar", "falar", "participar", "processo", e estiveram ligadas com a preocupação na atuação dos profissionais que compõem a rede, na intersetorialidade e ao conhecimento dos processos vivenciados em cada serviço, o que corrobora as Figuras 1 e 2.
"Seria importante ter capacitação e esclarecer a função de cada profissional na rede intersetorial . . . a notificação . . . muita gente acredita que somente assistência social preenche, mas qualquer profissional da saúde pode preencher" (IC19; novembro, 2016).
"Eu acho que gente ainda não tem uma efetividade dentro da intersetorialidade apesar de falarmos muito sobre isso e ter capacitação" (IC22; dezembro, 2016).
Classe 3: Conhecimento deficiente quanto ao tema e de informações às mulheres. As palavras analisadas foram: "violência", "sensibilizar", "estar", "situação', "mulher", "conseguir". A palavras "estar", "sensibilizar" e "situação" estiveram vinculadas aos relatos ligados à "violência". Ênfase aos desafios enfrentados na complexidade do fenómeno e impactada pela fragilidade no conhecimento sobre a temática na sua especificidade e falha no nível de informação transmitida às mulheres:
"A comunicação e a formação está ruim tem que sensibilizar esses profissionais para que tenham empatia . . . falta trabalhar para conhecer o fluxo de atendimento o acolhimento dar valor atendimento à mulher que sofre violência" (IC16; outubro, 2016).
"Pois será que é falta de conhecimento ou falta de capacitação ou estão há muito tempo na rede . . . e estão com aquele olhar viciado sobre a mesma família e não conseguem ver além daqui . . ." (IC47; abril, 2017).
Classe 4. A rotatividade e o conhecimento deficiente como fragilidade no atendimento. As palavras analisadas foram: "porque", "bem", "acontecer", "rotatividade", "recurso", "problema", "importante", "órgão", "atender", "precisar", "serviço". Explanado sobre como mudança e rotatividade na estrutura de gestão governamental, geração de conflitos internos e a referência na "capacitação" como ferramenta de apoio. Para os ICs esta deve ser realizada de forma a não desconstruir conquistas. "Porque", "importante", "precisar", "recursos" e "bem" estiveram ligados entre si nos ST referente à capacitação e rotatividade, bem como palavras como "órgãos" e "serviços", ligados entre eles e ao vocábulo "rotatividade".
"Mudam muito os órgãos governamentais . . . precisa de capacitação e humanização . . . mudam muito as pessoas que trabalham no . . ." (IC18; novembro, 2016).
"A gente tem muito presente no senso comum dos profissionais que atendem a população usuária é que a gente precisa de capacitação . . . não só através de cursos, mas de articulação" (IC43; março, 2017).
"Fazer capacitação permanente e ampliar de uma maneira muito maior porque às vezes na reunião da rede . . . nem sempre vão todos os profissionais que atendem os casos . . ." (IC25; janeiro, 2017).
Discussão
As classes foram exploradas individualmente conforme as figuras apresentadas no que diz respeito às falas dos participantes e em conexão com o referencial escolhido para este estudo. Nos relatos destacaram-se o interesse na capacitação, envolvendo os serviços com ênfase para a comunicação e para as especificidades que envolvem a temática, para os protocolos existentes e profissionais de atendimento diário.
A implantação do PMV e da RAMSV teve como objetivo a garantia dos direitos humanos para as mulheres em situação de violência. E, para tanto, organizaram-se os serviços por meio do direcionamento de fluxos na atenção à saúde e diversas parcerias relacionadas com a saúde, tanto ao nível social como jurídico, com o intuito de uma promoção das questões assistenciais e de prevenção. As suas ações foram orientadas segundo a identificação dos sinais de alerta para violência, consequências físicas e psicológicas, e as informações obtidas sobre os direitos das mulheres e a atuação dos serviços disponíveis ao atendimento (Mafioletti, 2018).
O profissional que atua nesta área, deve deter um olhar abrangente acerca das violências e na compreensão do seu impacto na vida das mulheres e das suas famílias, pontos necessários para a articulação entre as áreas da saúde, assistência social, assistência jurídica, e segurança do trabalho (Mafioletti, 2018). O que torna o tema VCM um grande desafio, pela construção de novas compreensões no âmbito desta assistência, na qualificação e na organização do trabalho para as práticas profissionais (Arboit et al., 2017). A desarticulação dos serviços proporciona dificuldades no acolhimento, principal obstáculo na atuação em redes de atenção (Macedo & Almeida, 2017).
Neste estudo, as fragilidades na comunicação e organização dos processos, demonstram que a capacitação profissional, apesar de um dos pilares do programa, não foi avaliada como marco contínuo, o que diverge do descrito por Senge (2018), ao relatar que o processo de aprendizagem, não deve ser visto como ponto final.
Outro ponto destacado por Senge (2018) foi a disciplina do domínio pessoal, ao referir que ao conhecer o seu contexto de inserção, o profissional eleva o seu conhecimento e utiliza-o no desenvolvimento de atividades em conexão com outros, além de si. Assim, mesmo que não aconteçam de forma imediata, as decisões poderão ser melhor definidas, pois as reflexões apoiadas pelo conhecimento geram possibilidades de melhorar o seu processo de trabalho (Senge, 2018). Portanto, a articulação na RAMSV gera crescimento e promove benefício na atenção às mulheres.
A EPS tem como proposta uma ação estratégica que contribui para a qualificação e transformação das práticas de saúde, na organização das ações e dos serviços, por dar ênfase ao fortalecimento de trabalhadores e usuários (Silva et al., 2017). Ao promover um serviço no qual as necessidades da população são priorizadas, a transformação profissional reverbera nos serviços prestados à comunidade, com foco em favorecer o acolhimento e um olhar que contemple a complexidade na relação da temática género e violência (Suryavanshi et al., 2018). Estudos que investigaram experiências de coping com a VCM em forma de redes concluíram que existem sérios problemas na visão estereotipada do tema género e violência e invisibilidade deste fenómeno nos serviços de saúde (Angela & Raquel, 2018; Hassen & Vieira, 2017).
A inclusão do profissional em processos educativos e a visão dos aspetos que interferem na origem e ciclo da VCM é indispensável, por estar ligada a um fenómeno sociocultural e com base numa relação de poder. Sem este conhecimento, as ferramentas dispostas para estas mulheres serão fornecidas conforme o olhar do profissional. A articulação efetiva e a gestão de processos com foco em viabilizar ferramentas para a prática diária e maior interação no atendimento, promovem a atenção com foco nas necessidades individuais.
A atenção realizada além das expectativas resulta em sentimento de conforto, mesmo quando as necessidades apresentadas não são resolvidas de imediato, mas a procura pelo melhor direcionamento, gera acolhimento e satisfação (Mantler & Wolfe, 2017). Deste modo, o processo de EPS, ao ampliar o conhecimento profissional quanto ao contexto histórico destas mulheres, permite que o profissional atue na mediação, catalise e propulsione o direcionamento para o desenvolvimento das capacidades destas mulheres (Suryavanshi et al., 2018).
Um atendimento articulado e a otimização da rota promove melhores condições para a conquista de autonomia e vai além de protocolos biomédicos. Constata-se a promoção de uma cultura de trabalho voltada para a setorização e para a verticalização, o que dificulta o trabalho em redes intersetoriais e contrapõe os seus princípios de integração setorial, horizontalidade, conectividade e complementaridade. Exige-se, portanto, a constituição de um processo de comunicação eficaz, promoção da agilidade nos encaminhamentos e descentralização das decisões (Arboit et al., 2017).
Para que se verifique efetividade na resolução de conflitos, os domínios do modelo mental e do pensamento sistémico são utilizados de forma concomitante. O modelo mental refere-se à utilização, pelos profissionais, de formas diferentes de agir perante uma mesma ação. Ao associar o pensamento sistémico, permeia-se a perceção por meio do diálogo, reflexões e indagações, na procura por melhores soluções para os problemas enfrentados (Senge, 2018). A fragilidade do pensamento sistémico sobre a desarticulação da rede foi evidenciada durante os relatos dos participantes.
A EPS promove, por meio das práticas educativas, em articulação com os profissionais, a capacidade de comunicação e compromisso social, ao procurar o envolvimento individual das equipas e gestoras. Isto impacta a cultura e a prática do sujeito de maneira dialógica, com quebra de paradigmas como parte de um processo educativo, em prol da transformação do individual para o coletivo, na articulação entre as necessidades da população e aprimoramento da gestão, qualificando e suscitando as potencialidades pessoais (Silva et al., 2017).
A visão compartilhada e aprendizagem em equipa de Senge (2018), vai ao encontro desta necessidade, na qual a missão da organização deve ser compartilhada por todos, sem desvalorizar o individual, elevada por meio de ações de transformação pessoal. Neste estudo, o compartilhamento dos objetivos do PMV e da RAMSV, a serem executados pelos profissionais, não como imposição, mas pela utilização de processos educativos geram reflexões e mudanças na prática diária.
Na visão compartilhada, a missão organizacional é maior do que a prática isolada de uma ação, é o comprometimento no processo e na ação, e não somente na aceitação. Juntamente com a aprendizagem em equipa, Senge (2018) descreve que as ações tomadas de forma individual, precisam ser refletidas sobre o impacto que tiveram no todo. O foco em processos educativos deve voltar-se para a interação das pessoas na ação em conjunto. Neste estudo foi identificado o desenvolvimento da intersetorialização e de como a ação de cada serviço impacta no outro, mais especificamente na atenção às mulheres em situação de violência.
O Relatório Mundial sobre Prevenção da Violência 2014 recomenda a criação de meios para capacitação dos profissionais na prevenção da violência e cita como muitos países têm implantado planos de ação nacional, políticas e leis respeitantes à violência, entre elas contra as mulheres, Revela ainda que a sua aplicação não é executada plenamente e de como o fortalecimento na colheita de dados pode revelar a verdadeira extensão do problema. Este relatório considera esta colheita como um meio importante na ampliação dos programas de prevenção, atendimento e integração. Destarte, as capacitações são fortalecidas de forma contínua pelas avaliações dos resultados (Arboit et al., 2017).
Este estudo revelou que no município de Curitiba, Brasil, muitos dados foram levantados e a partir deles foi possível capacitar os profissionais para o atendimento. Porém, apesar de devidamente documentados, os relatos dos profissionais revelam que ainda existem desafios a serem superados para que o enfrentamento da VCM tenha a efetividade recomendada pela OMS.
Conclusão
Os desafios evidenciados na implementação dos processos educativos aplicados aos profissionais de uma rede intersetorial de atenção à mulher em situação de violência estão relacionados com as fragilidades apresentadas pela falta de comunicação/articulação intersetorial e setorial e falta de conhecimento dos profissionais sobre a temática género e violência, o que gera prejuízo no atendimento integral e individualizado, uma das propostas apresentadas na construção deste programa. No entanto, a melhoria dos serviços no acolhimento, notificação e promoção do atendimento e direcionamento de forma efetiva, destacou-se no discurso dos profissionais.
Desta forma, apresenta-se como reflexão, e apesar dos desafios destacados pelos profissionais que atuam no PMV e na RAMSV na sua atuação diária, que EPS pode apresentar estratégias e diretrizes que podem contribuir para que os obstáculos sejam suplantados. Assim, a EPS deve ser planeada pelos gestores, com a participação dos que atuam no seu combate, na organização dos serviços, tendo em conta que conhecem as suas fragilidades e potencialidades.
O referencial teórico da organização que aprende propõe ferramentas que podem auxiliar gestores na abordagem das equipas ao refletir que as mudanças acontecem não somente nas organizações, mas também nas pessoas que dela fazem parte. Por fim, e como contribuição à construção de um modelo de educação abrangente, este estudo teve foco as fragilidades apontadas e validadas por quem diariamente percebe as lacunas durante o atendimento a estas mulheres. Como fator limitante do presente estudo, aponta-se para a sua realização numa região específica que possuam um programa e uma rede já implantados.
Referências bibliográficas
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Contribuição de autores:
Conceptualização: Souza, M. A., Peres, A. M., & Mafioletti, T. M.
Tratamento de dados: Souza, M. A., Peres, A. M., & Mafioletti, T. M.
Análise formal: Souza, M. A., Peres, A. M., & Mafioletti, T. M.
Investigação: Souza, M. A., Peres, A. M., & Mafioletti, T. M.
Metodologia: Souza, M. A., Peres, A. M., & Mafioletti, T. M.
Administração do projeto: Peres, A. M.
Software: Souza, M. A.
Supervisão: Peres, A. M.
Redação - análise e edição: Souza, M. A., Peres, A. M., & Mafioletti, T. M.
* Autor de correspondência:
Marli Aparecida Rocha de Souza
Email: marlirochasouza2@gmail.com
Como citar este artigo: Souza, M. A., Peres, A. M., & Mafioletti, T. M. (2020). Educação permanente na rede de atenção às mulheres em situação de violência. Revista de Enfermagem Referência, 5(2), e20003. doi:10.12707/RV20003
Recebido: 26.12.19
Aceite: 15.04.20