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Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883
Rev. Enf. Ref. vol.serV no.2 Coimbra abr. 2020
https://doi.org/10.12707/RIV19082
ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)
RESEARCH PAPER (ORIGINAL)
Vivências da mulher mastectomizada: a enfermagem de reabilitação na promoção da autonomia
Experiences of women after mastectomy: rehabilitation nursing care in promoting autonomy
Experiencias de la mujer sometida a una mastectomía: la enfermería de rehabilitación en la promoción de la autonomía
Kátia Martins Merêncio* 1
https://orcid.org/0000-0002-6453-9094
Maria Clara Amado Apóstolo Ventura 2
https://orcid.org/0000-0002-3617-0779
1 Hospital do Arcebispo João Crisóstomo, Cantanhede, Coimbra. Portugal
2 Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem. Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, Coimbra, Portugal
RESUMO
Enquadramento: A mulher mastectomizada vivencia alterações ao nível da funcionalidade, e ao nível emocional e social. O enfermeiro de reabilitação desempenha uma função importante na promoção da autonomia e independência.
Objetivos: Descrever as vivências da mulher mastectomizada em contexto domiciliário e identificar a importância atribuída pela mulher mastectomizada à intervenção do enfermeiro de reabilitação.
Metodologia: Assenta numa abordagem qualitativa fenomenológica. Recorreu-se ao método por redes/bola de neve para a seleção de 9 participantes. Realizada uma entrevista semiestruturada.
Resultados: As mulheres experienciam vivências relacionadas com complicações físicas e dificuldades na execução das tarefas. Atribuem significado ao enfermeiro de reabilitação na recuperação da funcionalidade, e na aceitação da imagem corporal. Relatam sentimentos como medo, revolta e alteração nas relações interpessoais.
Conclusão: Um programa de enfermagem de reabilitação adequado a cada mulher e à fase do processo de adaptação em que se encontra é fundamental para prevenir complicações e promover a autonomia.
Palavras-chave: neoplasias da mama; mastectomia; enfermagem; reabilitação; autonomia
ABSTRACT
Background: The woman with mastectomy experiences changes in functionality and at the emotional and social level. Rehabilitation nursing plays an important role in promoting autonomy and independence.
Objectives: Describe the experiences of women with mastectomy at home and identify the importance attributed by women with mastectomy to the rehabilitation nursing intervention.
Methodology: This study is based on a phenomenological qualitative approach. The snowball sampling technique was used to select the 9 participants. A semistructured interview was conducted.
Results: The women experience physical complications and difficulty in performing tasks. They consider the rehabilitation nursing intervention as significant to recovering functionality and accepting body image. They report feelings like fear, outrage, and changes in interpersonal relationships.
Conclusion: A rehabilitation nursing program adapted to each woman and the phase of the adaptation process she is in is fundamental to prevent complications and promote autonomy.
Keywords: breast neoplasms; mastectomy; nursing; rehabilitation; autonomy
RESUMEN
Marco contextual: La mujer que se ha sometido a una mastectomía experimenta cambios a nivel de la funcionalidad, así como a nivel emocional y social. El enfermero de rehabilitación desempeña una función importante en la promoción de la autonomía y la independencia.
Objetivos: Describir las experiencias de la mujer sometida a una mastectomía en el contexto domiciliario e identificar la importancia que la mujer atribuye a la intervención del enfermero de rehabilitación.
Metodología: Se basa en el enfoque cualitativo fenomenológico. Se recurrió al método por redes/bola de nieve para seleccionar 9 participantes. Se realizó una entrevista semiestructurada.
Resultados: Las mujeres vivieron experiencias relacionadas con complicaciones físicas y dificultades en la ejecución de las tareas. Atribuyen significado al enfermero de rehabilitación en la recuperación de la funcionalidad y la aceptación de la imagen corporal. Señalaron sentimientos como miedo, enfado y cambio en las relaciones interpersonales.
Conclusión: Un programa de enfermería de rehabilitación adecuado para cada mujer y para la fase del proceso de adaptación en la que se encuentra es fundamental para prevenir complicaciones y promover la autonomía.
Palabras clave: neoplasias de la mama; mastectomía; enfermería; rehabilitación; autonomía
Introdução
No mundo, o cancro da mama é o mais comum entre as mulheres (World Health Organization [WHO], 2019).
A elevada ocorrência e as implicações da mastectomia na vida da mulher suscitam várias questões que levam à reflexão sobre a importância desta temática e de como a intervenção da enfermagem de reabilitação nestas mulheres pode ter um impacto na autonomia e independência.
A mastectomia pode resultar em complicações físicas e psicológicas, sendo que a inserção de mulheres num programa de enfermagem de reabilitação contribui de forma eficaz no processo de reabilitação, na prevenção e no tratamento destas complicações. No sentido de assegurar a continuidade de cuidados, é necessário que a alta hospitalar e a reabilitação destas mulheres sejam planeadas pela equipa inter/multidisciplinar da qual o enfermeiro de reabilitação constitui parte integrante, para que possam ser ensinadas, instruídas e treinadas acerca dos cuidados a ter, assim como sobre os exercícios físicos e cuidados que previnam e levem à gradual recuperação da capacidade funcional (Camões, Gomes, & Pinto, 2015).
A enfermagem de reabilitação apresenta uma função de destaque no decorrer do tratamento, na prevenção e na gestão eficaz das complicações que podem comprometer a funcionalidade e afetar a qualidade de vida da mulher, surgindo o enfermeiro como o elo de ligação entre a vivência da mulher e o respetivo processo de adaptação.
Assim, definem-se como objetivos: descrever as vivências da mulher mastectomizada em contexto domiciliário e identificar a importância atribuída pela mulher mastectomizada à intervenção do enfermeiro de reabilitação.
Enquadramento
Segundo a Organização Mundial de Saúde, até ao ano de 2020, serão diagnosticadas com cancro da mama, por ano, a nível mundial, um número superior a 1,2 milhões de mulheres (WHO, 2019).
Em Portugal, por ano, são diagnosticados 6000 novos casos de cancro da mama, o que equivale ao diagnóstico de 11 novos casos desta doença por dia (Liga Portuguesa Contra o Cancro [LPCC], 2019).
De acordo com a National Comprehensive Cancer Network (NCCN, 2011), o cancro da mama divide-se em carcinoma in situ, que consiste no carcinoma localizado a uma área limitada da mama e que é considerado não invasivo, e em carcinoma invasivo, que invade estruturas adjacentes, ocorrendo metastização. O cancro da mama é dividido em cinco estádios que têm em conta os seguintes indicadores: tamanho do tumor, número de gânglios afetados e presença de metástases. Existem várias opções de tratamento, como a cirurgia, a quimioterapia, a radioterapia, a terapêutica hormonal e as terapêuticas dirigidas.
É necessário instituir um programa de reabilitação precoce, pois é possível obter resultados satisfatórios ao nível do aumento da amplitude de movimento articular, da diminuição do volume do edema do membro homolateral à mastectomia, e consequentemente da diminuição da dor e da incapacidade funcional (Táboas et al., 2013).
Existem três fases inerentes ao processo de enfermagem de reabilitação: Fase pré-operatória que tem como objetivo conhecer alterações prévias, verificar fatores de risco para o pós-operatório, o que contribui para a melhoria funcional do membro homolateral à mastectomia (Silva, Koetz, Sehnem, & Grave, 2014); Fase pós-operatória, em que no período de pós-operatório imediato, implica uma série de procedimentos como posicionamento no leito contralateral à mastectomia, exercícios de relaxamento e alongamento para o alívio da dor e da contração muscular, e exercícios ativo-assistidos de baixa amplitude (Camões et al., 2015); Fase crónica, que tem como objetivo primordial a continuidade dos cuidados de forma a garantir a qualidade de vida da mulher, no que confere ao desenvolvimento das atividades de vida diária (AVD's).
A intervenção do enfermeiro de reabilitação reflete-se na independência e autonomia da pessoa para cuidar de si mesma e também em ganhos em saúde para a mulher mastectomizada. Esta intervenção acontece ao nível da prevenção de complicações secundárias à cirurgia, do capacitar a mulher na realização das AVD's, e na recuperação e/ou manutenção das capacidades funcionais (Camões et al., 2015).
A autonomia e a independência, não sendo sinónimos, encontram-se frequentemente associadas. A definição de autonomia, consiste na capacidade para controlar, ser responsável pelas ações e pela tomada de decisão em concordância com o meio em que se encontra (WHO, 2002). Ainda, de acordo com o mesmo autor, a independência relaciona-se com a capacidade para desempenhar as AVD's, ou seja viver em comunidade sem ajuda.
A reabilitação à mulher mastectomizada deve objetivar uma intervenção que promova a independência e a autonomia através da definição de estratégias que ajudem no processo de adaptação de forma a contribuir para o bem-estar físico, psicológico e social da mulher.
Questões de Investigação
Quais as vivências da mulher mastectomizada?
Qual a importância atribuída à intervenção do enfermeiro de reabilitação na promoção da autonomia?
Metodologia
Trata-se de um estudo de investigação qualitativo fenomenológico. A fenomenologia constitui um método qualitativo que surgiu da filosofia e da psicologia. Os autores Polit, Beck, e Hungler (2004, p. 207) referem que "o fenomenologista investiga os fenómenos subjetivos, na crença de que as verdades críticas sobre a realidade estejam fundamentadas nas experiências vividas pelas pessoas".
As participantes incluídas no estudo selecionaram-se de acordo com o conhecimento específico que detêm acerca do fenómeno, com a particularidade de partilharem esse conhecimento (Streubert & Carpenter, 2002).
Este estudo de investigação teve como base o contacto socioprofissional com uma mulher mastectomizada, que referenciou outras mulheres a vivenciarem idêntica experiência. Realizada a seleção da amostra através do método de amostragem em rede/bola de neve. A amostra intencional é constituída por nove participantes, definida no momento em que se atingiu a saturação dos dados.
A escolha do contexto em que acontece a colheita de dados teve em consideração os objetivos delineados para este estudo, implicando a abordagem no domicílio, pelo que a entrevista decorreu na residência das participantes, proporcionando uma maior envolvência da mulher que vivencia o fenómeno.
Partindo das questões de investigação e dos objetivos, selecionou-se como método de recolha de dados, a entrevista semiestruturada, com base num guião de entrevista, onde constam os blocos temáticos que se pretendem analisar.
Solicitado parecer à Comissão de Ética da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde - Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, com obtenção de Parecer favorável (Parecer nº P27:2-03/2015).
As participantes receberam informação sobre o estudo e os seus contributos para a enfermagem, sociedade e mulheres mastectomizadas. Entregue o documento do Consentimento Informado Livre e Esclarecido e solicitada a autorização para proceder à gravação de áudio dos relatos. Foram considerados os seguintes critérios de inclusão: sexo feminino; consentir a colaboração no estudo; apresentar-se orientada; ter sido intervencionada por diagnóstico de carcinoma da mama; ter realizado mastectomia há mais de 1 ano; encontrar-se no domicílio. No que refere aos critérios de exclusão, inteiram o não cumprimento de um dos critérios de inclusão.
Após a recolha de dados, procedeu-se à transcrição das entrevistas na íntegra. Foram analisados os dados obtidos, através do método de análise de acordo com o autor Loureiro (2002; 2006), que deriva essencialmente de trabalhos pioneiros, no entanto, procura preservar o essencial da proposta de Husserl.
Para garantir a credibilidade foi realizado um último contacto, via telefónica e correio eletrónico, de acordo com a vontade expressa pelas mulheres, validando as transcrições. Para assegurar a transferabilidade do processo de colheita de dados foi aplicado o processo de amostragem intencional na seleção das participantes, de acordo com os critérios de inclusão, mas também a descrição pormenorizada dos relatos associada à recolha rigorosa das descrições. No que confere à fiabilidade, que assegura o rigor da investigação, realizou-se uma colheita de dados minuciosa baseada na entrevista, procedendo à transcrição rigorosa dos relatos. A confirmabilidade foi garantida através da realização da contextualização sobre o estado atual de conhecimentos acerca da mastectomia e da descrição rigorosa do percurso e opção metodológica.
Resultados e Discussão
Tendo como base os objetivos e o fenómeno em estudo, e após transcrição dos relatos surge um conjunto de temas e subtemas, que se dividem em dois grupos: vivências da mulher mastectomizada no domicílio e vivências da mulher mastectomizada relativamente aos cuidados de saúde, temas centrais com os quais é realizado o cruzamento com a literatura.
Os relatos transcritos das participantes são identificados pela letra P (Participante) seguida do número referente à ordem pela qual as participantes foram entrevistadas.
Vivências da mulher mastectomizada no domicílio
A mastectomia continua a ser o método mais utilizado para o tratamento do cancro da mama (Furlan et al., 2013), sendo unânime o relato de complicações físicas e o impacto com a realidade.
Complicações e dificuldades percecionadas
Na adaptação no domicílio, surgem as complicações como a dor, "e o braço do lado da mastectomia é muito limitado . . . É isso que me provoca muitas dores" (P2; junho, 2015), e de acordo com Bani-Hashem et al., citado por Mourão et al. (2013), o controle da dor está diretamente relacionado com o bem-estar e a qualidade de vida da mulher. É também referida como complicação, a falta do peso da mama, que leva a alteração da biomecânica postural, "sentia dores nas primeiras semanas na coluna" (P5; julho, 2015), situação que quando não corrigida pode causar deformidades irreversíveis.
"As complicações apareceram ao fim de 1 ano, o edema do braço a partir do ombro" (P7; setembro, 2015). As alterações ao nível da drenagem linfática são referidas por quatro mulheres, e de acordo com Táboas et al. (2013) estima-se que 20 a 25% das mulheres submetidas a intervenção cirúrgica por cancro da mama desenvolverão linfedema e restrição da amplitude de movimento articular "Senti sempre o braço muito preso, impedia-me os movimentos mais simples . . . A mão incha e o braço aumenta . . ." (P1; junho, 2015).
Ocorrem limitações funcionais que as impedem de realizar ou desenvolver determinadas AVD's, tais como não poder carregar peso e realizar tarefas que exijam força, por sentirem dor "deixei cair alguns pratos da sopa, e a estender a roupa sentia muito o braço a arrepanhar" (P1; junho, 2015); "porque não posso pegar pesos, não posso pegar os meninos ao colo em termos de profissão" (P9; setembro, 2015).
É notório o sentimento de inutilidade por parte das mulheres, pelo motivo de deixarem ou diminuírem a execução das tarefas diárias "Tenho muitas dificuldades com tudo o que implica esforços . . . na cozinha já estou muito limitada (suspiro)" (P4; julho, 2015). Surge nestas mulheres a necessidade de definir estratégias que as auxiliem na manutenção do quotidiano em prol da satisfação do autocuidado, que segundo Galvão e Janeiro (2013) engloba a capacidade da pessoa cuidar de si própria e de desempenhar ações indispensáveis para manter, recuperar ou promover a saúde.
As participantes referem solicitar o apoio de um familiar ou pessoa significativa no processo, interromper as tarefas no surgimento de dor, e adquirir materiais como eletrodomésticos que auxiliem na execução das tarefas "Em vez de varrer com a vassoura, uso o aspirador, sempre. Subo a um banco para estender a roupa porque sinto dor ao esticar muito o braço . . ." (P5; julho, 2015); "se o meu marido não estiver em casa só faço coisas até onde sei que posso ir" (P3; junho, 2015).
Verifica-se que ao longo do processo, todas estas mulheres se apoiam num ou mais elementos para ultrapassar as demais dificuldades, indicando principalmente como pessoas significativas no processo o marido e/ou os filhos, e ainda a crença em Deus como parte do suporte na adaptação a esta fase de vida "A minha família, os filhos, porque já não tenho marido, e Deus são o meu apoio, meu grande apoio . . . o apoio da família é muito importante e o de Deus também . . . rezei muito e ainda rezo, todos os dias . . . tenho muita fé" (P4; julho, 2015); "O meu marido foi a minha grande esperança, sempre sempre ao meu lado a dar-me força, foi o meu braço direito" (P8; setembro, 2015).
Sentimentos percecionados
A mastectomia provoca dúvidas, anseios e medo do futuro, principalmente pela falta de informação em relação à situação vivenciada. A ablação da mama altera a identidade da mulher a nível social e sexual, influenciando os relacionamentos interpessoais (Natalia, Fangel, Almeida, Prado, & Carlo, 2016) "Tive medo relativamente ao meu marido, e escondi-me muito dele no início . . . Não queria que ele visse a cicatriz, mas acho que isso é normal em todas as mulheres . . . "(P1; junho, 2015).
Após leitura e análise dos relatos, constata-se que os sentimentos predominantes entre as mulheres são sobretudo a tristeza associada ao medo "sinto-me triste . . . medo de me ver ao espelho . . . " (P3; junho, 2015), o desânimo e a revolta, "Afetou-me muito, não estava nada a contar com isto, e de um momento para o outro aparece-me isto e cai-me tudo em cima (choro)" (P6; agosto, 2015).
O sofrimento relacionado com a mutilação de uma parte do corpo, leva ao relato de sentimentos onde predomina a tristeza (Camões et al., 2015), "Quando me olhava sentia-me triste . . . só ter uma mama no início custou . . . ainda custa" (P5; julho, 2015).
A esperança é referida por uma participante, "Sei que não tenho uma mama, mas aceitei. Ajuda muito ter esta personalidade positiva, e ter sempre esperança (sorriso)" (P1; junho, 2015), sentimento que acaba por surgir em alguma etapa do processo que engloba a mastectomia (Araújo & Fernandes, citado por Lago, Andrade, Nery, Avelino, & Noleto, 2014).
Em concordância, está o estudo de Mourão et al. (2013), que revela que os sentimentos predominantes nas mulheres mastectomizadas são a tristeza, o desânimo, a desvalorização da imagem corporal, a não-aceitação da mutilação e a alteração na sexualidade, "Senti-me triste, desanimada, há dias piores do que outros e de Inverno sinto-me muito pior (silêncio) " (P7; setembro, 2015); "há muitas coisas que não consigo fazer em casa, o que me deixa triste porque era muito independente (silêncio)" (P8; setembro, 2015).
No que confere à alteração da imagem corporal, as mulheres referem o que sentiram relativamente ao processo da mastectomia e o que implica na imagem corporal, "e só tive a consciência de que me iriam tirar a mama nas vésperas da operação (silêncio)" (P1; junho, 2015); "A nível psicológico, ainda não me consigo ver ao espelho, faz me alguma impressão, prefiro não ver, depois fico a pensar nisso . . ." (P3; junho, 2015).
Processo de reabilitação
A reabilitação integra uma função importante no que refere à funcionalidade, pois as mulheres que realizaram sessões de reabilitação tanto no internamento como em ambulatório, referem uma melhoria nos movimentos articulares e na redução do edema, e mencionam benefícios na manutenção física do membro, o que as leva a executar com menor dificuldade as AVD's "para além da reabilitação que faço no centro de saúde, que me tem ajudado muito a superar as dificuldades físicas . . ." (P1; junho, 2015); "Não sei, mas são estes tratamentos de reabilitação que me ajudam a continuar a trabalhar . . . Estes cuidados ajudam-me no movimento e na diminuição da dor" (P2; junho, 2015). No que confere à reabilitação no domicílio, apenas uma mulher refere ter realizado, o que leva a pressupor que é uma área em que a intervenção do enfermeiro de reabilitação precisa ser desenvolvida "tenho ainda uma enfermeira amiga que me faz reabilitação em casa, a pressoterapia, com uma manga, e ajuda-me a corrigir a ginástica para eu depois ir fazendo sozinha" (P1; junho, 2015). Segundo Táboas et al. (2013) é conhecida a importância em manter um programa de reabilitação realizado de forma regular e constante, pelo que um controle semanal no domicílio leva a uma maior adesão por parte da mulher.
O sucesso da reabilitação da mulher mastectomizada está associado a vários fatores, nomeadamente, ao fator laboral, ao qual delegam importância, e no qual as mulheres referem sentir-se mais limitadas devido à condição de saúde atual "no trabalho as minhas colegas ajudam-me muito na divisão da limpeza das salas (sorriso)" (P1; junho, 2015); "Vou para o meu salão de cabeleireiro trabalhar mas (silêncio) . . . queria reformar-me por invalidez" (P2; junho, 2015).
Esta informação corrobora com o estudo de Ferreira (2017) que consigna que a qualidade de vida das mulheres que realizaram mastectomia está associada a vários fatores, sendo um deles o trabalho.
No que confere à escassez de apoios, cinco participantes não indicam apoio psicológico e social para além do fornecido a nível hospitalar, exceto aquelas que referem o apoio da Enfermagem de Reabilitação: "Graças à reabilitação as minhas dificuldades em casa foram desaparecendo, admiro muito todos os enfermeiros que me acompanharam ao longo desta caminhada" (P1; junho, 2015); "A nível da reabilitação não tenho nada a dizer, foi um processo que me ajudou muito . . ." (P2; junho, 2015). De salientar que uma das participantes não teve qualquer apoio após Alta Clínica, nem realizou sessões de reabilitação.
Relativamente aos cuidados inerentes à mastectomia surgem fatores como a hidratação cutânea, a exposição solar e o uso da manga compressiva, referidos por três mulheres, que corroboram com as indicações específicas para diminuir o risco de complicações referidas por Táboas et al. (2013), como manter a pele do membro homolateral limpa e seca, hidratar a pele do membro homolateral com creme hidratante com pH neutro e usar manga compressiva, "uso sempre uma manga de pressão no braço, no meu dia-a-dia, para me proteger o braço e ajudar ao nível da circulação" (P3; junho, 2015); "Tenho muito cuidado com o sol" (P4; julho, 2015).
É fundamental fomentar nestas mulheres a importância de cumprir medidas diárias que diminuam a probabilidade de desenvolver complicações físicas após a mastectomia.
Vivências da mulher mastectomizada relativamente aos cuidados de saúde
Relativamente aos cuidados de saúde, a maioria das participantes revelam-se satisfeitas e falam acerca da satisfação com os profissionais de saúde, "Sim de forma geral estou satisfeita" (P6; agosto, 2015); Os profissionais de saúde tanto no internamento como agora na reabilitação foram excecionais " (P8; setembro, 2015); e acerca da insatisfação "A nível hospitalar senti muito descuido comigo . . ." (P2; junho, 2015).
Considera-se, no âmbito da problemática estudada, que a mulher tem uma ação relevante na organização e melhoria dos cuidados nas instituições, pois a avaliação da sua satisfação constitui um indicador de qualidade, que deve ser tido em conta na planificação de cuidados personalizados (Mendes, Mantovani, Gemito, & Lopes, 2013).
Ao longo do internamento as participantes descreveram como significativa a realização de ensinos pelos profissionais de Enfermagem, "ensinaram-me a trepar a parede com a mão . . . e eu tinha uma bolinha para apertar, para fazer movimentos de aperto . . . fazia mobilização com o braço . . ." (P3; junho, 2015).
É essencial que a mulher receba informações sobre os cuidados necessários com o membro homolateral, sobre os exercícios que recuperem a capacidade funcional do braço e ombro, e sobre dúvidas naturais desta vivência (Bani-Hashem et al., citado por Mourão et al., 2013), "Fiz sempre os exercícios recomendados que me foram ensinados após a cirurgia. Deram-me uns folhetos, com os primeiros exercícios a fazer nos primeiros dias . . ." (P9; setembro, 2015); "falaram dos cuidados que devia ter: cuidado com as rosas, os picos, até foi um pouco assustador entre aspas (sorriso) porque era muita coisa . . . houve ali muitas recomendações . . ." (P3; junho, 2015).
Segundo Moniz, Fernandes, e Oliveira (2011), deve fazer parte integrante do plano de cuidados a necessidade de informação da mulher mastectomizada de forma a criar oportunidades para que esta possa colocar questões, revelando-se importante a atenção por parte do enfermeiro à natureza individual das necessidades de informação da mulher, bem como ao seu estilo de aprendizagem.
De salientar a importância da família no processo de cuidados à mulher, no qual o profissional de enfermagem é responsável por criar a ligação e o envolvimento da família como parceira nos cuidados. A família deve por sua vez ser um recetor destes ensinos, de forma a poder ser estabelecida a continuidade ao programa de enfermagem de reabilitação no domicílio, tendo em vista o incentivo e motivação que pode incutir na mulher ao longo do processo de adaptação.
A maioria das mulheres realizou sessões de enfermagem de reabilitação, o que significa que cada vez mais há uma procura e um direcionar de mulheres mastectomizadas para a continuidade da reabilitação após a Alta Clínica "para além da reabilitação que faço no centro de saúde, tenho uma enfermeira que me faz reabilitação em casa" (P1; junho, 2015).
Nascimento, Oliveira, Oliveira, e Amaral (2012), no seu estudo, referem que a introdução de mulheres que experienciam esta problemática num programa de reabilitação facilita o processo de conhecimento/capacitação na prevenção e tratamento de complicações que possam advir, "fui reencaminhada após a cirurgia logo para a reabilitação pela médica de família" (P2; junho, 2015).
A mulher mastectomizada passa por um processo que se estende por um longo período de tempo, ao qual acrescem inúmeras implicações a nível físico, psicológico e social, com compromisso do autocuidado. É imprescindível que os enfermeiros, em particular os enfermeiros de reabilitação, direcionem a intervenção para a promoção da independência e autonomia da mulher (Camões et al., 2015).
Pode verificar-se que tanto os estudos complementares selecionados para esta discussão como os significados emergidos dos relatos das mulheres demonstram que a mastectomia provoca, para além das alterações físicas, alterações de carácter psico-socio-emocional, ao longo do processo a que são submetidas. A intervenção do enfermeiro de reabilitação detém importância notória nos relatos, no sentido da promoção da autonomia e independência.
No decorrer do estudo surgiram dificuldades e limitações. No processo de análise de resultados, a aplicabilidade do método fenomenológico constituiu uma dificuldade, pois verificou-se uma tarefa nova, pormenorizada e morosa para o investigador. Quanto à limitação ocorreu ao nível da pesquisa de literatura devido à escassez de estudos, utilizando a metodologia qualitativa fenomenológica, principalmente desenvolvidos por enfermeiros.
Os resultados e as reflexões que se foram construindo permitem-nos perspetivar novos desenvolvimentos, numa dinâmica construtiva do conhecimento. Compreende-se que deverá haver uma maior articulação dos cuidados de reabilitação após a alta clínica da mulher mastectomizada, de forma a garantir a continuidade dos cuidados e um acompanhamento personalizado no processo de adaptação numa perspetiva do cuidado de reabilitação na comunidade.
Conclusão
Em Portugal, sendo o cancro da mama uma das patologias mais prevalentes na mulher, urge a necessidade de cuidados de reabilitação dada a exigência dos tratamentos que lhe estão associados.
O enfermeiro de reabilitação detém competência e compreensão sobre todo o processo podendo auxiliar a mulher na capacitação para o desenvolvimento de estratégias que previnam complicações e auxiliem na adaptação ao quotidiano. É fundamental incutir nas mulheres o cumprimento das medidas de prevenção de complicações físicas. A vertente do ensino nas várias fases do processo de reabilitação proporciona à mulher e à família a adoção de estratégias para enfrentar as dificuldades do quotidiano, contribuindo para a recuperação funcional.
Dos resultados do estudo, emerge a importância de um programa de enfermagem de reabilitação adequado a cada mulher e à fase do processo de adaptação, de forma a dar continuidade aos cuidados de enfermagem prevenindo complicações, e promovendo a autonomia e a independência.
O enfermeiro de reabilitação intervém face a mulheres com esta problemática, desenvolvendo estratégias no sentido de contribuir no seu processo de adaptação, incluindo ativamente a família. Desta forma, promove um conjunto de elementos facilitadores no envolvimento no plano de reabilitação no domicílio, para o qual possui o suporte científico e prático, favorecendo a autonomia da mulher.
A análise da intervenção do enfermeiro de reabilitação nestas mulheres revela-se de cariz importante ao nível dos estudos de investigação. Seria importante o desenvolvimento de novas pesquisas, com um número maior de participantes e a identificação de outras perceções e significados atribuídos pelas mulheres a este fenómeno, de forma a atingir-se níveis mais elevados de compreensão acerca da mulher mastectomizada e das suas vivências.
Sugere-se o desenvolvimento de atividades formativas direcionadas aos enfermeiros que contactam diariamente com mulheres mastectomizadas no sentido de desenvolverem uma prática alicerçada nas evidências científicas no que concerne à promoção do autocuidado; o desenvolvimento de uma investigação sobre os ganhos em saúde decorrente das práticas de enfermagem desenvolvidas por enfermeiros de reabilitação no acompanhamento das mulheres mastectomizadas.
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Contribuição de autores
Conceptualização: Merêncio, K. M.
Tratamento de dados: Merêncio, K. M.
Análise de dados e discussão: Merêncio, K. M., Ventura, M. C.
Metodologia: Merêncio, K. M., Ventura, M. C.
Redação - preparação do rascunho original: Merêncio, K. M.
Redação - revisão e edição: Merêncio, K. M., Ventura, M. C.
* Autor de correspondência:
Kátia Martins Merêncio
Email: mmkatia@hotmail.com
Como citar este artigo: Merêncio, K. M., & Ventura, M. C. (2020). Vivências da mulher mastectomizada: a enfermagem de reabilitação na promoção da autonomia. Revista de Enfermagem Referência, 5(2), e19082. doi:10.12707/RIV19082
Recebido: 05.11.19
Aceite: 20.03.20