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Revista de Enfermagem Referência
versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883
Rev. Enf. Ref. vol.serV no.4 Coimbra out. 2020
https://doi.org/10.12707/RV20024
ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)
RESEARCH PAPER (ORIGINAL)
Conceptualização dos cuidados de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida após o acidente vascular cerebral
Conceptualization of nursing care to the person with post-stroke dysphagia
Conceptualización de los cuidados de enfermería a la persona con problemas de deglución después del accidente cerebrovascular
Isabel de Jesus Oliveira* 1,2
https://orcid.org/0000-0001-6627-3907
Susana Isabel Faria de Almeida 3
https://orcid.org/0000-0002-4631-5222
Liliana Andreia Neves da Mota 1,4
https://orcid.org/0000-0003-3357-7984
Germano Rodrigues Couto 5,4
https://orcid.org/0000-0002-5423-7375
1 Escola Superior de Saúde Norte da Cruz Vermelha Portuguesa, Oliveira de Azeméis, Portugal
2 Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal
3 Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro - Rovisco Pais, Tocha, Portugal
4 Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, Porto, Portugal
5 Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal
RESUMO
Enquadramento: O compromisso na deglutição é uma condição clínica que afeta um número significativo de pessoas com acidente vascular cerebral (AVC). As suas complicações estão entre as principais causas de morte após o AVC, apesar de não ser considerada como causa de mortalidade.
Objetivo: Compreender como os enfermeiros conceptualizam os cuidados de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida após o AVC.
Metodologia: Estudo exploratório e descritivo, realizado num serviço de internamento de um centro de reabilitação, usando a técnica de focus group e observação participante, durante o período de abril a julho de 2019.
Resultados: Vários fatores influenciam o processo de tomada de decisão em enfermagem, resultando em práticas assentes na lógica da intervenção interdependente. Nas terapêuticas de enfermagem identificam-se constrangimentos na documentação das práticas. Salienta-se o foco na pessoa e família e o seu envolvimento no processo de cuidados.
Conclusão: Existem aspetos organizacionais que influenciam negativamente a conceção dos cuidados. Reforça-se a necessidade de melhorar a documentação das terapêuticas de enfermagem.
Palavras-chave: acidente vascular cerebral; deglutição; cuidados de enfermagem
ABSTRACT
Background: Dysphagia is a clinical condition that affects a significant number of stroke patients. Its complications are among the main causes of death after a stroke, although dysphagia is not considered a cause of death.
Objective: To understand how nurses conceptualize nursing care to the person with post-stroke dysphagia.
Methodology: An exploratory descriptive study was conducted in an inpatient unit of a rehabilitation center, using the focus group and participant observation techniques, between April and July 2019.
Results: Several factors influence the decision-making process in nursing, resulting in practices based on interdependent intervention. Constraints were identified in the documentation of nursing therapeutic approaches. The focus on the person and family and their involvement in the care process is highlighted.
Conclusion: There are organizational aspects that negatively influence the conceptualization of care. The need to improve the documentation of nursing therapeutic approaches is reinforced.
Keywords: stroke; deglutition; nursing care
RESUMEN
Marco contextual: El deterioro de la deglución es un cuadro clínico que afecta a un número significativo de personas que han sufrido un accidente cerebrovascular (ACV). Sus complicaciones se encuentran entre las principales causas de muerte después del ACV, aunque no se la considera una causa de mortalidad.
Objetivo: Comprender cómo los enfermeros conciben el cuidado de la persona con problemas de deglución después de un ACV.
Metodología: Estudio exploratorio y descriptivo realizado en un servicio de internamiento de un centro de rehabilitación, para lo cual se utilizó la técnica de grupos focales y la técnica de observación participante durante el período de abril a julio de 2019.
Resultados: Varios factores influyen en el proceso de toma de decisiones en enfermería, lo que da lugar a prácticas basadas en la lógica de la intervención interdependiente. En las terapias de enfermería, las limitaciones se identifican en la documentación de las prácticas. Se destaca el enfoque centrado en la persona y la familia, y su participación en el proceso de atención.
Conclusión: Hay aspectos organizativos que influyen negativamente en la conceptualización de la atención. Se refuerza la necesidad de mejorar la documentación de las terapias de enfermería.
Palabras clave: accidente cerebrovascular; deglución; atención de enfermería
Introdução
O acidente vascular cerebral (AVC) representa, atualmente, uma das principais causas de morte e morbilidade e é a segunda causa de anos de vida saudável perdidos por incapacidade (GBD 2016 Stroke Collaborators, 2019). Uma das complicações mais frequentes após o AVC é a disfagia, cuja presença está associada a um aumento do risco de pneumonia, desidratação e desnutrição, traduzindo-se em piores resultados funcionais e pior qualidade de vida (Cohen et al., 2016). A existência de orientações formais que sistematizem as terapêuticas de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida tem um impacte significativo nas complicações decorrentes do compromisso na deglutição, nomeadamente na pneumonia e morte, melhorando os resultados em saúde (Hines, Kynoch, & Munday, 2016). Torna-se assim preponderante a implementação de sistemas de melhoria contínua da qualidade, enquadrados nos Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem, que impulsionem a apropriação, nos contextos de prática clínica, das orientações clínicas existentes para este foco de atenção. Estudos anteriores focados na análise à documentação das terapêuticas de enfermagem revelaram a existência de limitações na mesma, evidenciando a necessidade de pesquisa que clarifique se a documentação encontrada nos processos clínicos corresponde à prática efetiva dos cuidados de enfermagem (Abreu, Barroso, Segadães, & Teixeira, 2015; Oliveira, Couto, & Mota, 2019). Neste contexto, este estudo teve como objetivo compreender como os enfermeiros conceptualizam os cuidados de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida após o AVC. Estes resultados serão indispensáveis para o enquadramento do problema como ponto de partida para a implementação de um projeto de melhoria contínua da qualidade dos cuidados de enfermagem, que vise a sistematização das terapêuticas de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida.
Enquadramento
A enfermagem objetiva a saúde e bem-estar da pessoa, colocando na natureza da prática a relação que se estabelece entre o enfermeiro e a pessoa (Standing, 2014). A prática dos enfermeiros é a expressão do processo de enfermagem e do juízo clínico subjacente à tomada de decisão e, para compreender a forma como conceptualizam os cuidados, é importante conhecer a natureza do raciocínio clínico que orienta o processo de tomada de decisão na avaliação, definição de diagnósticos, determinação dos resultados, planeamento e intervenção de enfermagem (Kuiper, O’Donnell, Pesut, & Turrise, 2017). Cada uma destas fases despoleta diferentes tipos de pensamento relacionados com a pessoa e a sua história, a necessidade de cuidados e a resposta às questões de saúde, que influenciam a forma como o enfermeiro seleciona, enquadra e prioriza os dados, o conhecimento e a evidência existente para o processo de tomada de decisão (Kuiper et al., 2017). O juízo clínico traduz-se numa opinião informada que relaciona a observação e avaliação da pessoa com a identificação e avaliação de opções terapêuticas de enfermagem (Standing, 2014). São distintos os fatores que influenciam o processo de tomada de decisão do enfermeiro: a cultura da organização, a formação, a consciência da situação da pessoa, a autonomia, o conhecimento científico e evidência disponível e, sobretudo, a sua experiência profissional (Nibbelink & Brewer, 2018; Standing, 2014). De facto, a experiência está profundamente ligada ao desenvolvimento de competências em enfermagem, pressupondo-se que o nível mais elevado de proficiência (perito) se adquire num processo dinâmico que é aprimorado e aprofundado pela experiência (Benner, 2001). Este é um dos requisitos para a prática baseada na evidência (PBE) em enfermagem, que para além da experiência do profissional, integra a sua perícia, os recursos, o estado e contexto clínico, circunstâncias e preferências da pessoa (Chinn & Kramer, 2015). Este é o processo que, usado na tomada de decisão, assegura cuidados de enfermagem de elevada qualidade. Apesar das reconhecidas vantagens da implementação da PBE, são muitas as barreiras que persistem, nomeadamente a falta de conhecimento e competências dos enfermeiros em PBE, falta de ambientes e cultura que suportem a PBE e a limitação de recursos e de instrumentos para a sua implementação (Melnyk, Gallagher-Ford, & Fineout-Overholt, 2017). Urge por isso promover a PBE no sentido de reduzir o hiato existente entre a produção da evidência e a sua integração na prática clínica (Melnyk et al., 2017).
Neste contexto, e sabendo que a deglutição comprometida expõe a pessoa após o AVC a um maior risco de pneumonia, incapacidade e morte (Cohen et al., 2016), a intervenção precoce sistematizada na sua identificação e gestão, iniciada por enfermeiros e refletida em protocolos, tem um impacte significativo nos resultados em saúde, nomeadamente maior eficácia na prevenção da pneumonia por aspiração, redução da mortalidade à alta e redução do tempo de internamento (Hines et al., 2016). Em contrapartida, existe evidência que aponta no sentido de que é limitada a sistematização das práticas dos enfermeiros neste contexto, do ponto de vista da análise da documentação (Oliveira et al., 2019). Estes achados foram reforçados em estudos desenvolvidos em outros contextos e com outros focos de atenção (Abreu et al., 2015). Importa por isso clarificar se este fenómeno não é valorizado, não estando por isso refletido na documentação, ou se existem constrangimentos à sua documentação. Nesse sentido, a análise da conceção e implementação dos cuidados permitirá explicitar a intenção para a ação e os elementos utilizados pelos enfermeiros e assim compreender como os enfermeiros conceptualizam os cuidados de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida após o AVC.
Questão de investigação
Como é que os enfermeiros conceptualizam os cuidados de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida após o AVC?
Metodologia
Estudo exploratório e descritivo, orientado pelo método para construir uma teoria fundamentada proposto por Charmaz (2006), desenvolvido num serviço de internamento de um centro de reabilitação de Portugal, com recurso a duas técnicas de recolha de dados: focus group e a observação participante, complementada com notas de campo. Participaram neste estudo 20 enfermeiros, que correspondem à totalidade dos enfermeiros do serviço. Os participantes eram maioritariamente do sexo feminino (n = 15), correspondendo a 75% dos profissionais. A idade média era de 36,7 ± 6,2 anos (mínimo de 28 e máximo de 52), a média de tempo de serviço de 12,9 ± 6,5 anos (mínimo de cinco e máximo de 29) e a média do tempo total em exercício de funções naquele serviço era de 6,9 ± 5,0 anos (mínimo de um e máximo de 18). Desta equipa, 45% eram enfermeiros especialistas (n = 9), dos quais dois em enfermagem médico-cirúrgica e sete em enfermagem de reabilitação. O focus group foi realizado com um grupo de enfermeiros do serviço, identificados como informantes-chave e delineado para promover a reflexão sobre as práticas tendo como foco a pessoa com deglutição comprometida após o AVC. A seleção dos participantes para o focus group foi realizada por amostragem teórica, tendo sido selecionados os enfermeiros especialistas em enfermagem de reabilitação, a exercer funções de especialistas e enfermeiros com mais experiência profissional no contexto, ou seja, os enfermeiros em exercício de funções há mais tempo no serviço, considerando que estes seriam os mais relevantes para dar resposta ao objetivo do estudo. Foi constituído por cinco enfermeiros, dois do sexo masculino e três do sexo feminino, com uma média de idade de 36,6 ± 8,7 anos (mínimo de 31 e máximo de 52), uma média de tempo de serviço de 13,8 ± 8,5 anos (mínimo de 9 e máximo de 29) e uma média de tempo de exercício de funções naquele serviço de 10,2 ± 4,4 anos (mínimo de 5 e máximo de 17 anos). Destes, três eram enfermeiros especialistas em enfermagem de reabilitação, em exercício de funções como enfermeiro especialista. Foram realizados, pelo investigador principal, no serviço, três focus group durante o período de maio a julho de 2019 com a duração aproximada de uma hora em cada um deles. Todos os focus group foram gravados e transcritos integralmente. Outra das técnicas de recolha de dados utilizada foi a observação participante sobre as práticas dos enfermeiros inerentes à intervenção terapêutica à pessoa com deglutição comprometida após o AVC, desde a admissão da pessoa até à alta. Foi utilizada uma grelha de registo para a observação participante, com a informação sobre: 1) o ambiente - onde ocorre a atividade e aspetos relevantes do ambiente; 2) os participantes - quem está presente, quais os seus papéis e quem tem acesso; 3) as atividades desenvolvidas - o que está a ser feito, como comunicam e com que frequência; 4) frequência e duração da atividade - quando começa e termina a atividade, com que frequência se repete; 5) processo - como está a atividade organizada; e 6) resultados - porquê a atividade está a acontecer dessa maneira, quais os resultados. Estas grelhas foram organizadas por momentos/atividades-chave da prestação de cuidados: admissão/avaliação inicial, alimentação, higiene oral, avaliação para reajuste da planificação dos cuidados e preparação para a alta, seguido de um espaço para notas de campo. A observação participante foi realizada por um dos investigadores associados ao estudo, profissional do contexto de estudo e, por isso, parte integrante da dinâmica da prestação de cuidados. Com a observação participante procuraram-se os aspetos que poderiam não ser explícitos a partir dos dados obtidos no focus group. A observação participante aconteceu durante os meses de abril a junho de 2019, altura em que foi dada por concluída por saturação por redundância de dados, tendo sido observados 12 enfermeiros, num total de 65 observações. Paralelamente, foram sendo registadas notas de campo relevantes e complementares aos dados recolhidos quer através do focus group, quer da observação participante. A análise e tratamento dos dados qualitativos foi realizada com recurso ao QDA Miner 4 Lite, que começou com uma codificação inicial que gerou uma lista de códigos que posteriormente progrediu para uma codificação focada e consequente categorização. A redução dos dados qualitativos foi realizada por meio da análise de conteúdo e a codificação e categorização foram realizadas por dois investigadores independentes. A análise dos dados quantitativos, nomeadamente os dados sociodemográficos dos participantes, foi realizada com recurso ao IBM SPSS Statistics, versão 25.0.
Todos os participantes consentiram à participação neste estudo e à gravação áudio do focus group. O Conselho de Administração da instituição autorizou o estudo, que obteve igualmente parecer favorável da Comissão de Ética.
Resultado
Da análise dos achados emergiram três categorias, com diferentes subcategorias em cada uma delas (Tabela 1): Conceção dos cuidados de enfermagem, Implementação das terapêuticas de enfermagem e O ambiente de cuidados.
Conceção dos cuidados de enfermagem
Esta categoria emergiu da reflexão dos participantes sobre o raciocínio clínico envolvido no processo de avaliação, definição de diagnósticos de enfermagem e planificação dos cuidados. Das subcategorias incluídas nesta categoria, a que se salienta pela sua frequência é a documentação das práticas, ao que os participantes deram particular relevância: “não registamos todos da mesma maneira. Os registos é o mais difícil” (enfermeiro [E]5, maio de 2019), “já tinha dito que mesmo no SClínico tem lá a parte de avaliar a deglutição e nós não conseguimos. Nós não conseguimos preencher o quadro que lá está” (E12, maio de 2019), “a escala que está no SClínico ninguém sabe fazer … e depois em termos de registos é complicado de fazer esses registos” (E2, maio de 2019), “não sabemos como fazer … pomos em notas gerais” (E5, junho de 2019). Os participantes não descuram a importância da documentação, “como registamos também é importante” (E12, maio de 2019), e entendem ser relevante conseguir “colocar nos registos os dados da avaliação, diagnósticos e intervenções para depois podermos extrair os resultados e informação” (E2, maio de 2019). Registam-se ainda as seguintes observações:
As dietas, consistências e restrições alimentares estão registadas num sistema informático de gestão hospitalar de aprovisionamento e farmácia, não sendo realizado qualquer registo no processo clínico. Toda a informação considerada relevante é transmitida oralmente entre os diferentes profissionais, por exemplo a necessidade de estratégias adaptativas ou ajudas técnicas. (nota de campo [NC]7, maio de 2019).
Para além disso, todos os dados de evolução são, como referido acima, monitorizados pelas terapeutas da fala e “transmitidos oralmente aos restantes profissionais” (NC18, junho de 2019).
Na subcategoria conhecimento/formação, os participantes manifestaram dificuldade na conceção de cuidados de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida por considerarem que durante a sua formação pré-graduada esta temática não terá sido abordada, “na formação de base não tive mesmo formação nenhuma sobre disfagia” (E5, maio de 2019). Acrescentam que: “sinto que preciso de formação em termos dos cuidados a ter com o doente com disfagia, quais são as intervenções que devemos ter no sentido de uniformizar” (E2, maio de 2019), “precisamos de melhorar os nossos conhecimentos na parte da fisiopatologia e como avaliar” (E13, maio de 2019). Este facto, relacionam e referem ter reflexo na conceção e planeamento dos cuidados, traduzido na subcategoria a avaliação da pessoa, “tenho alguma dificuldade em avaliar [a pessoa]” (E12, maio de 2019), “e avaliar é importante” (E13, junho de 2019), “não sei o que avaliar nem como avaliar no processo inicial” (E5, junho de 2019).
De notar, ainda através da observação que, “não existem dados provenientes da observação que identifique os instrumentos/estratégias para avaliação das intervenções e reformulação do plano de cuidados” (NC2, abril de 2019). No âmbito da equipa multidisciplinar não são consideradas as competências dos enfermeiros no processo de avaliação, “toda a intervenção que se refere à avaliação da deglutição é definida pelo médico que orienta sempre a pessoa para a terapia da fala, não sendo valorizado o resultado das observações dos enfermeiros” (NC5, abril de 2019). “Nós às vezes até achamos que eles até podiam beber já sem espessante, mas mesmo que a gente o faça, não parte de nós fazer essa alteração e dizer “olhe, a partir de hoje pode beber” (E12, maio de 2019), “na maior parte das vezes vêm com uma indicação ou não e os médicos acabam por pedir sempre uma avaliação por parte das terapeutas” (E12, maio de 2019), “depois nós ajudamos na parte da alimentação e colaboramos com elas, mas essa avaliação, até mesmo a nível dos espessantes, são elas” (E13, maio de 2019). “A monitorização da evolução clínica da pessoa com deglutição comprometida é realizada exclusivamente pelas terapeutas da fala” (NC18, junho de 2019). Neste contexto os participantes identificam, ao nível do planeamento, dificuldades na sistematização das práticas, “devíamos padronizar as intervenções de todos os colegas no serviço, para que todos façamos da mesma forma, seria o mais importante” (E13, junho de 2019), “e todos usarmos a mesma linguagem” (E2, maio de 2019). Estes são os fatores percecionados pelos profissionais como barreiras à conceção de cuidados. Salienta-se, ainda, da análise do corpus textual a preparação para a alta como foco de atenção dos enfermeiros, “quando as famílias vêm cá de tarde ou ao fim de semana, vemos as dificuldades delas e identificamos logo, vê-se o problema e agendamos” (E1, junho de 2019), “Vamos preparar a família para quando o doente for sair” (E5, junho de 2019). Os participantes tomam como alvo dos cuidados a pessoa e a família, “fazemos reunião familiar de 15 em 15 dias, a consulta com a família para estabelecer os objetivos e destino pós alta” (E5, maio de 2019), “regista-se a observação de várias atividades, principalmente nos turnos da tarde e fins de semana, de estratégias promotoras do envolvimento da família no processo de cuidados” (NC18, junho de 2019), com “momentos de interação dos enfermeiros com a pessoa e a sua família na capacitação para o autocuidado e para a utilização de estratégias adaptativas e ajudas técnicas para o autocuidado, tendo em vista a alta” (NC18, junho de 2019).
Implementação das terapêuticas de enfermagem
Esta categoria emerge da análise do discurso dos participantes em resposta ao como executam os cuidados e que decorreu de duas subcategorias. A primeira subcategoria identificada relaciona-se com a prestação de cuidados. Os participantes referem que “os enfermeiros sabem o que fazer neste e naquele doente” (E5, maio de 2019), “eu acho que todos nós sabemos atuar perante um doente com disfagia” (E2, maio de 2019), no entanto “sabemos como fazer, não fazemos é todos igual” (E12, maio de 2019), verbalizando a perceção de práticas adequadas.
As refeições são, na maior parte das vezes, realizadas no refeitório, exceto em cliente com indicação para isolamento ou cuja condição clínica não permita deslocar-se para o refeitório. Assistem ou supervisionam os clientes durante a alimentação, dependendo do grau de dependência, os enfermeiros, os assistentes operacionais e as terapeutas da fala (estas apenas ao almoço em dias úteis), que utilizam como medidas compensatórias os ajustamentos posturais, modificações de consistências alimentares e ajudas técnicas e cuja duração é de cerca de 20 a 30 minutos. (NC 2, abril de 2019)
Relativamente ao autocuidado higiene oral “os enfermeiros supervisionam, assistem ou substituem todos os clientes, sendo realizado uma vez por dia, com pasta de dentes fluoretada e colutório à base de benzidamina, durante cerca de 3/4 minutos” (NC 13, maio de 2019). Ainda nesta categoria encontra-se a subcategoria delegação de tarefas, sendo que no contexto da prestação de cuidados à pessoa com deglutição comprometida após o AVC é delegada nas assistentes operacionais a tarefa de alimentar o cliente “não numa fase inicial, mas sim depois quando a situação clínica está mais estável” (E5, maio de 2019), “avaliamos as condições de segurança e vemos se elas [assistentes operacionais] podem dar a alimentação” (E13, maio de 2019), “estamos sempre por perto e supervisionamos” (E12, maio de 2019).
O ambiente de cuidados
A terceira categoria identificada reflete os elementos relevantes do enunciado descritivo A organização dos cuidados de enfermagem, dos Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem (Ordem dos Enfermeiros, 2012). Relativamente à subcategoria metodologia de trabalho, a de maior expressão dentro desta categoria, os participantes referem “o problema é que o circuito aqui é mau” (E13, maio de 2019), “quando entram [clientes] não somos nós que fazemos a avaliação inicial, é feita na consulta externa e não conhecemos logo os doentes e as famílias” (E2, junho de 2019), “a admissão e avaliação inicial do cliente é realizada em outro serviço, por elementos da equipa de enfermagem desse mesmo serviço, sendo o cliente e familiar (acompanhante) posteriormente encaminhado para o serviço de internamento” (NC5, abril de 2019).
A segunda subcategoria identificada com maior expressão foi recursos materiais, “não temos clorohexidina para fazer a higiene oral nos doentes com disfagia” (E5, julho de 2019), “copos [com abertura nasal] temos há pouco tempo” (E1, julho de 2019), “esses materiais são importantes para a segurança dos doentes” (E2, julho de 2019). Ainda nesta subcategoria os participantes referem “não temos bombas [para a alimentação entérica]” (E1, julho de 2019), que identificam como útil pois “quando temos 4 ou 5 sondas na tarde é complicado” (E12, julho de 2019), “não consigo estar tanto tempo … meia hora para cada é mais de uma hora” (E5, julho de 2019), “isso resolvia o problema [bomba para alimentação entérica] … na altura chegamos a falar para o hospital adquirir, falamos” (E2, julho de 2019). Outra subcategoria, dotações, é abordada pelos participantes como constrangimento na prestação de cuidados, “…não conseguimos alimentar os doentes todos” (E13, maio de 2019), “os disfágicos devíamos de ser sempre nós” (E12, junho de 2019), “precisávamos de mais tempo para alimentar os doentes … e tratar da higiene oral” (E5, junho de 2019), “não fazemos a higiene oral com a frequência que devíamos de fazer, não conseguimos, depende de como está o serviço” (E2, junho de 2019). As outras subcategorias identificadas são a motivação, “as pessoas [enfermeiros] andam desmotivadas” (E13, junho de 2019) e “a motivação é importante” (E12, junho de 2019) e a cultura organizacional/corporativismo, “a parte interdisciplinar pode ser mais difícil porque vivemos num contexto muito próprio nesse aspeto” (E13, maio de 2019), “as terapeutas sentem isto como um afrontamento se tivermos ali alguma intervenção direta e aí é mais difícil porque deveríamos funcionar em complementaridade” (E5, maio de 2019).
Discussão
A primeira etapa no processo de enfermagem é a avaliação, que implica a recolha de dados e informação pertinente relacionada com a pessoa/família ou comunidade, informação esta indispensável para a identificação dos diagnósticos de enfermagem (Kuiper et al., 2017). Nesta área os participantes evidenciam a influência de vários fatores no processo de tomada de decisão. A formação é um dos fatores que está positivamente relacionada com a tomada de decisão (Nibbelink & Brewer, 2018). Os participantes reconhecem a importância do desenvolvimento profissional contínuo enquanto estratégia promotora do desenvolvimento profissional e da qualidade dos cuidados de enfermagem (Ordem dos Enfermeiros, 2012). Neste contexto, os participantes identificam que a avaliação é fundamental na conceção de cuidados como a primeira etapa para o processo de enfermagem (Kuiper et al., 2017), o que contraria achados anteriores que revelam que é baixa a consciência da importância da avaliação da deglutição nos enfermeiros (Abu-Snieneh & Saleh, 2018). Por outro lado, reconhece-se como positivo o foco na pessoa e família na preparação para a alta, verificando-se que os participantes os tomam como alvo dos cuidados, reforçando a importância dada pelos enfermeiros no processo de tomada de decisão colaborativo, que coloca a pessoa no centro dos cuidados de saúde (Standing, 2014). No entanto, ao nível da conceção de cuidados, os dois fatores que mais influenciam negativamente o processo de tomada de decisão são a documentação das práticas e a desvalorização das competências dos enfermeiros. Os resultados tornam clara a particular relevância atribuída pelos participantes à documentação das práticas, pelo entendimento que têm que a mesma é fundamental para a avaliação do progresso no sentido da consecução de resultados em saúde. As limitações expressas pelos participantes coincidem com os achados da análise às práticas documentais de clientes a quem, na avaliação inicial, foi identificado o compromisso na deglutição, mas que, no entanto, não ficou refletido nos diagnósticos e intervenções de enfermagem (Oliveira et al., 2019). O relato dos participantes clarifica que este é um foco valorizado na prática, no entanto existem constrangimentos na operacionalização da documentação. Importa compreender se essas limitações são inerentes ao sistema de informação ou aos profissionais, uma vez que neste momento é crescente a evidência da necessidade de melhorar a documentação das práticas (Abreu et al., 2015; Oliveira et al., 2019). Só assim é possível medir os ganhos em saúde dos clientes sensíveis aos cuidados de enfermagem, tornando claro o contributo da enfermagem, no seio da equipa multidisciplinar, para a consecução de resultados em saúde. Este é o mandato social da profissão e a existência de um sistema de registos de enfermagem “que incorpore sistematicamente, entre outros dados, as necessidades de cuidados de enfermagem do cliente” contribui para a máxima eficácia na organização dos cuidados de enfermagem (Ordem dos Enfermeiros, 2012, p. 18).
Outro dos fatores que influencia em grande medida o processo de tomada de decisão é a desvalorização das competências dos enfermeiros. Estes resultados evidenciam a atualidade da lógica da hierarquização em que o princípio dominante do trabalho é a oposição entre o comando e a execução, desenvolvendo-se a relação entre enfermeiros e terapeuta da fala numa relação de dominação/subordinação ao invés de cooperação (Carapinheiro, 1998). Esta lógica é potenciada pelas metodologias de trabalho instituídas e por fatores identificados no ambiente de cuidados, como a cultura organizacional. Estes constrangimentos impelem a perda de autonomia dos enfermeiros, passando estes a assumir o papel de executor numa lógica de intervenção interdependente (Decreto-Lei n.º 161/96, de 4 de Setembro), distanciando-se da utilização da metodologia científica que caracteriza o processo de cuidados de enfermagem (Kuiper et al., 2017). Os profissionais, mesmo com vários anos de exercício profissional naquele contexto, que levaria a pressupor um elevado nível de proficiência, não se assumem como peritos nesta área, influenciando negativamente o processo de tomada de decisão. Existem ainda outras subcategorias identificadas no ambiente de cuidados que contribuem negativamente: as dotações e a motivação. Efetivamente, as dotações têm impacte na qualidade e segurança dos cuidados e, mesmo sendo difícil a definição de dotações seguras em enfermagem (Freitas & Parreira, 2013), a evidência mostra que a redução do rácio cliente/enfermeiro melhora os resultados dos clientes (Aiken, et al., 2011) o que, por sua vez, tem impacte na motivação. É conhecido o efeito do ambiente de cuidados, incluindo a dotação, na motivação profissional (Freitas & Parreira, 2013). Ao nível da prestação de cuidados, na categoria Implementação das terapêuticas de enfermagem, existe por parte dos participantes a perceção de práticas adequadas, traduzida na implementação de estratégias compensatórias. Este conjunto de medidas parece ser o mais eficaz para garantir a segurança da via aérea das pessoas com deglutição comprometida após o AVC (Bath, Sean, & Everton, 2018). Os participantes revelam igualmente valorizar o autocuidado higiene oral na pessoa com deglutição comprometida. De facto, a implementação de protocolos de higiene oral intensificada com utilização de clorohexidina reduz a incidência de pneumonia por aspiração (Sørensen, et al., 2013).
Quando os enfermeiros incorporam na sua prática clínica os princípios da PBE, promovem a qualidade dos cuidados e satisfação do cliente, melhoram a saúde das populações, reduzem custos em saúde e aumentam a satisfação profissional (Melnyk et al., 2017).
As principais limitações deste estudo relacionam-se com o facto de este ter sido desenvolvido num contexto de prática clínica concreto e com foco na deglutição. Existirão constrangimentos que são próprios deste contexto e outros, nomeadamente relativos aos sistemas de informação e à documentação das práticas, que carecerão de validação em outros contextos de prática cínica através da replicação de estudos desta natureza.
Conclusão
O corpus de análise para este estudo foi constituído pela totalidade do conteúdo dos focus group, da observação participante e notas de campo, excluídos os aspetos considerados acessórios. Verifica-se congruência entre o relatado pelos participantes e o que efetivamente desenvolvem. Em resposta à questão de investigação, existem vários fatores que influenciam negativamente o processo de tomada de decisão em enfermagem para a conceção dos cuidados à pessoa com deglutição comprometida após o AVC resultante, por um lado, da perceção dos participantes de não possuírem competências e, por outro, de barreiras organizacionais, o que os leva a desenvolverem as suas práticas assentes na lógica de intervenção interdependente. Relativamente às terapêuticas de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida após o AVC tendo por foco nomeadamente a alimentação e o autocuidado higiene oral, os participantes utilizam medidas compensatórias promotoras da segurança da via aérea, reconhecendo, no entanto, espaço para melhorar as suas práticas e a necessidade de formação contínua. Salienta-se o foco na pessoa e família e o seu envolvimento no processo de cuidados, indo ao encontro do exercício de excelência preconizado no mandato social da profissão. Na perspetiva da organização dos cuidados, estes resultados vêm uma vez mais evidenciar a importância de se melhorar a documentação das práticas uma vez que o executado não corresponde ao documentado e a existência de aspetos organizacionais que têm repercussão na conceção dos cuidados de enfermagem.
Ressaltam, como implicações para a prática clínica, o facto de que as práticas assentes numa lógica de intervenção interdependente comprometem negativamente o processo de tomada de decisão, o que se traduz no risco de perda de autonomia da profissão. Para além disso, de salientar a potencial dificuldade de mensuração dos ganhos sensíveis aos cuidados de enfermagem por constrangimentos na documentação, obstaculizando a produção de evidência daquilo que é resultante da intervenção autónoma do enfermeiro.
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Contribuição de autores
Conceptualização: Oliveira, I. J.
Metodologia: Oliveira, I. J., Mota, L. N., Couto, G. R.
Tratamento de dados: Oliveira, I. J., Almeida, S. F., Couto, G. R.
Redação - preparação do rascunho original: Oliveira, I. J., Almeida, S. F.
Redação - revisão e edição: Oliveira, I. J., Almeida, S. F., Mota, L. N., Couto, G. R.
Autor de correspondência:
* Isabel de Jesus Oliveira
E-mail: ijoliveira12@gmail.com
Como citar este artigo: Oliveira, I. J., Almeida, S. I., Mota, L. A., & Couto, G. R. (2020). Conceptualização dos cuidados de enfermagem à pessoa com deglutição comprometida após o acidente vascular cerebral. Revista de Enfermagem Referência, 5(4), e20024. doi:10.12707/RV20024
Recebido: 17.02.20
Aceite: 12.09.20