Introdução
A integração ensino-serviço é um elemento que impulsiona mudanças na formação dos profissionais de saúde. Como dinâmica que aproxima a formação dos profissionais de saúde ao contexto real de vida das pessoas e comunidade, o ensino para o trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS) é um elemento fundamental, dado que a regulamentação do mesmo explicita o dever do campo de atuação do SUS na ordenação da formação na área da saúde (Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde, 2004).
Nesta perspectiva, programas e políticas foram impulsionados, como a Política Nacional de Educação Permanente (Ministério da Saúde, 2004), entre outras.
Entretanto, a proporcionalidade de movimentos criados no sentido de integrar o ensino em serviço à comunidade não acompanhou o estabelecimento de acordos entre as instituições de ensino e os serviços de saúde, relativamente ao desenvolvimento organizado dessa estratégia de educação (Silva et al., 2018).
O que se percebe, é a dicotomia de objetivos entre ambas as instituições, dando espaço a movimentos unilaterais, sem a participação dos serviços de saúde nas instituições de ensino, caracterizando de forma pontual as experiências de integração entre os gestores, desarticulando a incorporação do currículo na rotina dos serviços de saúde (Zarpelon et al., 2018).
Com isto, é possível que outras problemáticas venham a surgir, como referem Pinto e Cyrino (2015), ao apontarem o desempenho de atividades de ensino em serviço, por vezes, em estruturas deficitárias, que não foram preparadas para comportarem os estudantes e as necessidades pedagógicas, ficando o processo de aprendizagem aquém de ações importantes, especialmente da formação para a atenção primária em saúde (APS), foco deste estudo, como a realização de grupos e atividades educativas direcionadas para a prevenção de doenças e promoção de saúde.
É também importante mencionar as questões associadas ao comprometimento entre os corresponsáveis do desenvolvimento de atividades de ensino junto dos serviços de saúde, evidenciando a sua operacionalização no sistema, como atividade secundarizada, deslegitimando o papel formador do SUS (Pinto & Cyrino, 2015).
Neste processo, a celebração dos contratos organizativos de ação pública ensino-saúde (COAPES), foi uma estratégia importante de regulamentação da relação entre as instituições para o processo de mudança (Silva et al., 2018). Isso evidencia, de certa forma, a existência de um olhar sobre as fragilidades das políticas e diretrizes acerca da formação em serviço, muito embora os desafios ainda permaneçam, fazendo-se necessária a indução de ações que qualifiquem ainda mais esta atividade.
Neste sentido, este estudo teve como objetivo descrever as ações identificadas por enfermeiros supervisores e enfermeiros docentes em comunidade de prática docente assistencial no ensino na APS.
Enquadramento
Os professores têm um papel fundamental no avanço de inovações e transformação efetiva na educação de nível superior (Silva et al., 2018). Mas, para que isso ocorra, há a necessidade de ações que promovam a formação docente, diante dos desafios da reorientação da formação de profissionais de saúde que fortaleçam a tríade ensino-serviço-comunidade.
A comunidade de prática definida por Wenger (2011) como grupo de membros que compartilham responsabilidades ou paixão por uma temática, potencializa a articulação entre os atores do ensino na APS. Assim, o autor (2011) reconhece na constituição de comunidades de prática, um caminho à aprendizagem e à mudança, por ser contexto de negociação de significados e estabelecimento de compromissos.
Wenger (2011) também define que a comunidade de prática constitui-se por engajamento de indivíduos com enfoque num interesse comum. O seu desenvolvimento ocorre pela definição de significados a partir da interação dos membros que constituem a comunidade de prática, com enfoque primordial na prática, considerando a dimensão do fazer num contexto social, agregado a questões históricas, políticas, económicas, bem como, na construção de identificações das formas de ser neste contexto. Trata-se de um conceito de interação de grupos de pessoas que se debruçam sobre um determinado conhecimento.
Para compreender o que está implícito no quotidiano do trabalho do profissional, como crenças, valores, atitudes e conhecimentos, é necessário um processo de reflexão, o qual ressignifica a ação e promove a redefinição de significados.
Nesse sentido, Wenger (2011) considera que a associação entre prática e comunidade não significa dizer que qualquer coisa constituiria uma comunidade de prática, dado que para associar ambos os termos são necessárias algumas dimensões que dão coerência a uma comunidade. Assim, Wenger (2011) destaca três dimensões no que tange uma comunidade de prática, sendo elas o engajamento mútuo, que são as competências de cada participante, o que fazem para alcançar o que ainda não sabem; empreendimento conjunto, que se trata de um objetivo em comum, oriundo do compromisso mútuo entre os membros, e repertório compartilhado, que são maneiras de comportamento que o grupo adquiriu ao longo do processo de integração, como jeito de falar, documentos que construíram, olhares.
Questão de Investigação
Quais as ações identificadas por enfermeiros supervisores e enfermeiros docentes em comunidade de prática docente assistencial para o ensino na APS?
Metodologia
Estudo de carácter qualitativo do tipo pesquisa-ação, desenvolvido através de cinco grupos focais que tiveram duração média de 2 a 3 horas cada, tendo sido aprovado pelo Comité de Ética em Pesquisa sob CAAE nº 83737518.0.0000.0121.
Foi desenvolvido num município da região sul do Brasil, no estado de Santa Catarina, a partir da parceria com uma instituição de ensino superior (IES) e com os campos de prática da APS de um órgão público. Assim, os locais de desenvolvimento deste estudo foram nas unidades básicas de saúde (UBS) vinculadas à secretaria municipal de saúde, em articulação com a IES.
Para a execução do estudo, seis UBS foram previamente selecionadas. Consideraram-se como unidades de grande porte as que fossem constituídas por mais do que uma equipa de Estratégia de Saúde da Família. Os participantes deste estudo foram os enfermeiros docentes de enfermagem, que realizavam atividades de ensino prático na APS, vinculados a uma IES de carácter privado que desempenha as suas atividades teórico-práticas nas UBS do município. Ainda, foram incluídos os enfermeiros vinculados à instituição municipal de saúde, à secretaria municipal de saúde que acompanham os discentes em enfermagem, que estão a realizar atividades práticas de ensino na APS, nessas UBS. Convencionou-se para este trabalho denominar o primeiro grupo de participantes como enfermeiros docentes e o segundo, dos profissionais vinculados à instituição de saúde, como enfermeiros supervisores.
Foram considerados critérios de inclusão dos docentes da IES, profissionais graduados em enfermagem, que exercem funções de docência no ensino superior em saúde como professores de discentes de enfermagem, em atividades teórico-práticas, na APS, possuindo vínculo empregatício na IES selecionada e atuação na formação discente em APS há pelo menos seis meses. Os critérios de exclusão foram: docentes em enfermagem que estivessem de licença, férias ou afastados do trabalho no momento da colheita de dados.
No total, participaram no estudo sete docentes vinculados à IES de carácter privado, para além de seis enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família, que exerciam funções nas UBS selecionadas no desenvolvimento do estudo, totalizando treze participantes. Os dados foram recolhidos no período de junho a outubro de 2018.
Realizou-se contacto individual através de correio eletrónico para realizar o convite para a participação no estudo, determinando posteriormente o dia, local e horário para o primeiro momento. Os cinco momentos, ou seja, cinco grupos focais foram realizados através de perguntas norteadoras à luz de Wenger (2011), sobre as dimensões da comunidade de prática, para alcance das ações propostas.
Os grupos foram conduzidos por meio das perguntas: Como me constituí professor de enfermagem e enfermeiro supervisor na UBS? Quais os problemas/necessidades que considero essenciais para serem refletidas que toca à formação inicial e permanente como docente e como assistencial que supervisiona estudantes de enfermagem? O que conheço sobre formação docente-assistencial? Como se fundamenta a minha prática docente-assistencial na UBS? Que ações proponho para modificar a minha prática atual com base nos referenciais teóricos estudados? Quais os compromissos que assumo (individualmente) diante do trabalho desenvolvido coletivamente?
Os dados qualitativos foram obtidos por meio de gravação, sendo transcritos e analisados a partir da análise de conteúdo de Bardin (2011), utilizando-se o software de análise de dados AtlasTi8, para a codificação escrita e categorização dos textos referentes aos cinco momentos da pesquisa. Utilizaram-se, neste texto, oito codificações, contendo 23 excertos significativos, agrupados em três categorias que revelaram as ações a serem realizadas por cada interveniente desse cenário de ensino. De forma a preservar o anonimato dos participantes, os constructos dos resultados deste manuscrito utilizam a letra D para os enfermeiros docentes e E, para os enfermeiros supervisores. Tais letras, sequenciadas por número, dizem respeito à ordenação da codificação no AtlasTi 8 de cada excerto significativo (quotation).
Resultados
Os resultados evidenciaram três categorias que expuseram as ações dos membros da comunidade, sendo elas: Ações dos enfermeiros docentes para a qualificação da formação em enfermagem na APS; Ações dos enfermeiros supervisores para a qualificação da formação em enfermagem na APS; Ações das Instituições de Ensino e de Saúde para a qualificação da prática docente na atenção primária em saúde.
Quanto aos enfermeiros docentes, como ações para a qualificação da formação em enfermagem na APS, eles referem a necessidade de definir papéis sobre a atuação como docente de enfermagem no momento do processo de ensino
Lá em Areias, eu fui professora há muitos anos, e a coordenadora dizia que eu era a quarta enfermeira da unidade, havia paciente que ligava e queria falar comigo em horário que eu não estava. Eu sempre dizia: “Estou aqui como IES”. A gente tem que estar o tempo todo mediando e nos colocando em nossos lugares . . . Eu já tive momentos em que eu estava como a única enfermeira… uma tinha ido a uma reunião e “a outra falou que tu estarias aqui”. Não! Espera aí?!. (D01)
“Eu vejo a importância de preparar o campo, porque a gente respeita o atendimento por área que tem os enfermeiros que são os responsáveis. Eu sou uma enfermeira também, mas eu estou como IES” (D03).
Sem deixarem de mencionar a articulação das ações e conteúdos a serem enfocadas no âmbito do ensino na APS, entre enfermeiro docente e enfermeiro supervisor daquela unidade de saúde:
Acho bastante importante essa articulação com os enfermeiros da Unidade, para organizar as ações que a gente vai realizar no campo de estágio . . . Eu fico dois meses com o mesmo grupo de alunos, dá pra ver a Atenção Básica em toda sua complexidade e na sua amplitude. Portanto, essa articulação do enfermeiro do que podemos realizar é muito importante para o professor e para o aluno. (D04)
Teve unidade que eu estudei tanto, eu e a enfermeira juntas e o aluno também. Então a gente acaba forçosamente tendo que aprender. Isso exige que tu tenhas muito mais preparo do que lá no hospital, porque lá é a minha “praia” e dificilmente vai dar algum problema . . . Na Atenção Básica, é todo dia uma coisa diferente, uma situação diferente. Então o preparo do professor é fundamental. (D02)
Nessa dimensão, reconhecem também que não somente o enfermeiro supervisor, mas também a equipa colabora no ensino e tem um importante papel nele: “O professor está ali pra orientar, ensinar, pra acompanhar, pra mediar, mas também o enfermeiro da Unidade e outros que trabalham ali, acabam contribuindo também para o aprendizado do aluno” (D02).
No núcleo da definição das ações necessárias para o ensino na APS, a comunidade de prática permitiu revelar escolhas didáticas dos docentes de enfermagem, tendo em conta a etapa curricular de cada discente:
Eu assumo todas as agendas dos enfermeiros, portanto, aonde eu estou, como eu sou da 9ª fase que, teoricamente, é um aluno que já está se formando e que deveria ter o seu conhecimento mais aprofundado, são as consultas, são os atendimentos, eu assumo tudo e faço com que o aluno experimente exatamente isso. Então: “agora você tem que terminar o atendimento e fazer tudo” porque, é o que o enfermeiro tem que fazer. (D03)
Quanto aos enfermeiros supervisores, para a qualificação da formação em enfermagem na APS, eles reconhecem que a atuação da equipa tem impacto na formação do profissional enfermeiro, numa dimensão que expõem a necessidade de serem exemplos para os discentes em enfermagem:
Eu sempre falo para minha equipe: que profissionais vocês iriam querer encontrar se vocês fossem os estagiários? Então, procurem ser para eles o que vocês gostariam de encontrar aqui se vocês fossem estagiários. Quando a gente é estagiário, a gente tem expectativas, chega lá e é tudo completamente diferente, frustra! (E06)
Neste sentido, os enfermeiros supervisores reconhecem a importância que tem o estímulo aos discentes para participarem nas atividades junto deles, mencionando a importância dos envolvimentos dos professores também:
articular com o enfermeiro da UBS as participações de Saúde em suas atividades, tentar envolver. O tempo, sabemos que é corrido, mas é bom motivar . . . ir puxando o aluno para participar de todas as atividades e também das consultas . . . que o professor se disponibilize a fazer esse atendimento também, agendas, preventivos, pré-natal. Para que ele também possa visualizar como é o trabalho do enfermeiro. (E02)
Finalmente, tanto os enfermeiros docentes como os enfermeiros supervisores referem a necessidade de antecipar o contacto da IES com a UBS na qual irão desenvolver o ensino:
A gente, enquanto profissional de campo de estágio, precisa participar antes de começar as atividades com uma reunião de Unidade, promover essa empatia com todos os profissionais. Acho que seria um momento importante, porque quando a gente entra com os alunos, tem que olhar os alunos . . . às vezes a gente não consegue dizer o que é o nosso trabalho; o que é que a gente espera deles e o que é que eles podem esperar da gente enquanto no campo de estágio. (D03)
O espaço físico para receber o aluno é importante, precisa estruturar a equipe, ver se tem algum local para o aluno e ver com a Instituição de Ensino quais são os dias e tentar encaixar, rever as agendas pra liberar uma sala, ver horários pra atender aos alunos; a responsável por isso é a equipe da UBS. (E01)
Ainda, referem a importância do serviço de saúde ser reconhecido como local de ensino, sendo importante essa sensibilização junto da equipa e também, com a gerência da instituição de saúde. Os excertos seguintes demonstram a compreensão de que a inserção do grupo nas unidades vai além do processo de ensino-aprendizagem do aluno, pois contribuiria para o trabalho qualitativo da mesma:
a questão da dinâmica da unidade que acaba atrapalhando . . . Mas eu acho que o nosso trabalho é de ter uma parceria, eu acho que a gente trabalha junto com a equipe da Unidade. Então, esse é o nosso grande objetivo, de inserir os alunos ali, dentro das Unidades para que eles possam contribuir com o trabalho da unidade. (D02)
A necessidade de sensibilizar o aluno em relação ao conhecimento teórico acerca de políticas sobre o SUS. Então, a gente pensou em proporcionar momentos de discussão e troca sobre a Atenção Básica, não apenas para os alunos, mas para toda aquela equipe de profissionais de Atenção Básica, pessoas da assistência e da gerência da Atenção Básica, por exemplo, para gerar essa discussão. (D04)
Discussão
A realização do processo de ensino-aprendizagem nos serviços de saúde é uma prática que tem gerado discussão. Diante disso, surge a preocupação sobre formas e maneiras de aprimorá-la, particularmente na APS, serviço com inúmeras especificidades e que responde a uma parte importante dos problemas de saúde pública (Ministério da Saúde, 2017).
Tal, justifica-se pelas características da APS que aproximam a equipa de saúde do utente, permitindo que se conheça a pessoa, família e comunidade, garantindo adesão aos tratamentos e intervenções, levando à maior resolutividade dos problemas de saúde (Ministério da Saúde, 2017), que certamente diminuem as intervenções em níveis de atenção que geram custos mais elevados, como a média e alta complexidade.
Ao passo que tais ações têm vindo a ser fortificadas, surge a necessidade de garantia de formação de profissionais qualificados, corroborando Sales et al. (2015), que também destacam que no contexto tecnológico e científico avançado, sendo a assistência em saúde uma atividade de trabalho humano, a formação de profissionais torna-se condição sine qua non. Desta forma, os espaços de encontro para problematizar a integração entre a academia e serviço de saúde são ferramentas primordiais à efetivação das relações entre os atores desse cenário.
Assim, a comunidade de prática (Wenger, 2011), por se focar no compartilhamento de boas práticas, criando novos conhecimentos para melhorar uma atividade profissional, corrobora a formação contínua de profissionais que quotidianamente vivenciam esse ensino e que, por isso, reconhecem as nuances a serem trabalhadas para a sua melhoria. Nesta perspectiva de avanço, justifica-se o movimento de realização de comunidade de prática docente-assistencial que inclua os intervenientes envolvidos, a fim de operacionalizar ações correspondentes à especificidade da APS.
A sua importância encontra-se especialmente nas três dimensões necessárias à sua efetivação (engajamento mútuo; empreendimento conjunto e repertório compartilhado), em que o engajamento mútuo se estabelece pelas competências de cada participante ou seja, o que realizam, as suas habilidades, o que fazem para alcançar o que ainda não sabem. Além disso, esta dimensão transpõe uma comunidade abstrata a algo mais concreto, porque a prática passa a existir visto que as pessoas participam em ações cujo significado negoceiam mutuamente, deste feito, a prática reside numa comunidade de pessoas e nas relações mútuas que constroem. Esta afiliação à comunidade torna-se o compromisso mútuo, e embora pareça que para que isso ocorra, far-se-ia necessário convívio próximo, não é isso que lhe determina uma prática, mas sim a manutenção de relações densas, organizadas em torno do tema que lhes interessa, conforme apresentado nos resultados do estudo que incluiu enfermeiros e docentes envolvidos sobre uma mesma ótica (Wenger, 2011).
E, se considerarmos que no aspecto da formação em saúde, especialmente da APS, uma série de necessidades são exigidas, seja da ordem dos utentes, das demandas do serviço, do sistema de saúde ou dos componentes curriculares, aproximar os docentes da IES aos enfermeiros supervisores à luz das particularidades do envolvimento mútuo, torna-se uma ação estratégica para decisões conjuntas face aos problemas (Hita et al., 2018). Assim, da forma que esta comunidade se apresenta, o seu desenvolvimento tem grande potencial de elevar uma experiência de discussão a uma atitude protagonista, no sentido de os membros colaborarem entre si e ampliarem o olhar crítico sobre as demandas do exercício docente. Deste compartilhamento pela comunidade, resoluções mais efetivas, mais elaboradas são construídas, sendo este, provavelmente, um dos principais avanços desta experiência.
À medida que os indivíduos elaboram projetos e neles se envolvem coletivamente, eles acabam por se adaptarem aos colegas. Juntas, as pessoas aprendem a colaborar, produzindo novas formas de trabalho e novos conhecimentos. Estas práticas, se consolidadas com uma população que possua adesão ao tema de discussão da comunidade, seja ele qual for, tem grande potencial de construção de um empreendimento coletivo. Desta perspectiva, Wenger (2011) concluiu que o termo comunidade de prática é o mais apropriado para descrever a relação estabelecida neste coletivo de indivíduos. Assim, Wenger (2011) definiu o termo de objetivo comum, empreendimento conjunto, como dimensão que auxilia a compreensão do contexto, pois é uma construção conjunta entre os indivíduos interessados, sobre um determinado tema, determinado conhecimento. É possível negociar compromissos, a partir da escolha do que será ou não ignorado, do que será ou não será feito. E tal dimensão não deve ser tratada como uma simples meta, dado que surge em virtude de um processo coletivo de negociação, oriundo do compromisso mútuo entre os membros.
Neste sentido, mediante a estruturação de ações que fossem mais efetivas e reais ao cenário de discussão, os participantes evidenciaram a necessidade de definição de papéis, no que toca à função do docente de enfermagem, proveniente da IES. Num estudo realizado sobre as dificuldades na integração entre a academia e serviço de saúde, percebeu-se que um dos motivos que leva a uma confusão de papéis ocorre pela sobrecarga de trabalho do enfermeiro da equipa, delegando funções aos enfermeiros docentes que, a priori, são da responsabilidade do enfermeiro da unidade, incompatíveis com o objetivo central de atuação do enfermeiro docente (Sales et al., 2015).
De certa forma, esta situação fragiliza o planeamento do docente de enfermagem, devido à sua utilização como mão de obra, oriunda da insuficiência de funcionários que deem conta das necessidades das unidades de saúde, sugerindo, portanto, a necessidade de esclarecimento acerca da especificidade da função do enfermeiro docente em local assistencial.
Por outro lado, os enfermeiros docentes consideram que em razão de terem a mesma formação, na área de enfermagem, com os enfermeiros supervisores, o convívio diário leva à troca positiva de conhecimentos, considerado via de mão dupla, em que ora auxilia no desenvolvimento do serviço, ora no ensino discente.
Como ação prévia à inicialização do ensino em serviço, os enfermeiros docentes sugerem a preparação e troca de informações com os enfermeiros supervisores, não apenas para firmar processos organizativos, mas numa perspectiva de se preparar para o conteúdo, possivelmente pela complexidade de atuação do enfermeiro da Estratégia de Saúde da Família, o qual tem atribuição específica de assistência integral aos indivíduos e famílias em todas as fases de desenvolvimento humano, desde a infância à terceira idade; realizando consultas de enfermagem; supervisão do trabalho dos agentes comunitários de saúde e equipa; com atribuições de gestão das unidades de saúde (Ministério da Saúde, 2017).
E, é neste processo que a terceira dimensão da comunidade de prática toma forma, considerando-se o repertório compartilhado, uma vez que neste estão integradas formas de comportamento que o grupo adquiriu ao longo do processo de integração, construído de forma verbalizada, por meio de olhares, de gestos, de símbolos, de características incorporadas. Para Wenger (2011), ao passo que os membros interagem e reflexionam mediante um tema que os aproxima, esta atuação conjunta cria recursos para negociar significados, e desta forma, o repertório de uma comunidade pode incluir rotinas, palavras, instrumentos, conceitos adotados ou produzidos no seu decurso, conteúdos, e que, desta forma, passam a fazer parte da prática dos membros.
Para Shulman (2005), o conhecimento de conteúdo é essencial ao ser professor. Trata-se de conhecimento referente à bibliografia e estudos acumulados, abordando ideias e habilidades que são importantes numa área em específico, exigindo-se do professor, aprofundar os seus conhecimentos na dimensão do que ensina. Shing et al. (2015), descrevem que o conhecimento de conteúdo de Lee Shulman é sobre o que se está a ensinar, associado ao conhecimento pedagógico de conteúdo do autor, tratar-se-ia de como ensiná-lo. Backes et al. (2017) dão ênfase a esse conhecimento, enfatizando que dominá-lo é ampliar possibilidades de intervenções docentes.
Possivelmente, em virtude da atuação na APS ser uma atividade multiprofissional (Ministério da Saúde, 2017), os docentes reconhecem que a relação com outros profissionais das equipas também tem impacto na aprendizagem discente. Esta situação sugere a necessidade de fomento curricular na formação inicial, a outras profissões da área da saúde, para além da enfermagem, que inclua aspectos didático-pedagógicos e movimentos de sensibilização sobre a função de formação dos recursos humanos nos serviços do SUS.
Sendo assim, a aprendizagem para a APS dar-se-ia numa dimensão que vai desde o aspecto micro, singular do exercício de enfermagem, ao aspecto macro, envolvendo outros componentes do trabalho em equipa interdisciplinar. Para Rostelatto e Dallacosta (2018), os discentes, ao realizarem estágio curricular supervisionado, sentem necessidade de serem cuidados e, nesse sentido, é necessária a troca entre a equipa, a fim de que o aluno se sinta parte integrante do grupo para exercer as suas atividades com mais desenvoltura. Nesse mesmo estudo, evidenciou-se que mesmo situações consideradas positivas ou negativas, vivenciadas pelos discentes junto à equipa, contribuem para a aprendizagem, uma vez que refletem as dificuldades enfrentadas no quotidiano de trabalho. Portanto, é possível compreender as experiências práticas no mundo do trabalho, principalmente no ensino em enfermagem, como potenciais influenciadoras do futuro da profissão e na consolidação da esfera da APS (Brehmer & Ramos, 2017).
Os enfermeiros supervisores também compartilham com essa leitura dos docentes de enfermagem, pois relatam que a maneira como se comporta a equipa é exemplo para a formação do futuro profissional.
Para dar conta do processo de ensino-aprendizagem no que diz respeito à APS, os docentes revelam atitudes, como assumir todas as atividades programadas ao enfermeiro da equipa, sem esquecer do momento formativo em que o discente promove sinergia entre as atividades educacionais elegidas, aos objetivos curriculares. Tal formalização presente no currículo é necessária e, de facto, proporciona ao docente esquemas de significados e regras de atuação que o levem à prática docente com algumas garantias mínimas (Moya et al., 2018). No entanto, por mais que as expressões encontradas nos achados do estudo levem à compreensão de que por estar em etapa avançada curricularmente, os discentes estariam aptos a exercerem todos os tipos de atividades que concernem ao enfermeiro, é preciso atentar-se ao equívoco de redução de outras questões constituintes desse processo, dado que a missão de ensino exige uma integração do conhecimento pedagógico do conteúdo, com aspetos para além do currículo e que envolva também o conhecimento dos alunos e outras esferas (Herold, 2019).
Quando se trata dos enfermeiros supervisores, percebe-se entre os participantes a consciência sobre a influência que as suas ações e escolhas exercem no desenvolvimento do ensino no âmbito do serviço.
Um estudo realizado na Universidade de Lisboa com 168 estudantes de enfermagem, o qual analisou o efeito da função do enfermeiro supervisor na formação do profissional, observou-se que os estudantes têm expectativas sobre este, resumidas em auxiliarem no desempenho do trabalho emocional, na visão holística sobre o ser humano, na interação afetiva, com função de suporte nas ações e respostas do estudante (Diogo et al., 2016).
Quando tais atitudes provenientes do enfermeiro supervisor ocorrem, os discentes conseguem desenvolver competências fulcrais na capacidade de gerir emocionalmente as situações presentes no exercício da enfermagem (Diogo et al., 2016).
Muito embora a atuação direta sobre o ensino-aprendizagem discente ocorra junto dos enfermeiros supervisores, mediada pelos enfermeiros docentes, são necessárias ações voltadas para os componentes que, mesmo indiretamente, tem influência sobre o espaço de ensino na APS. Neste cenário, são coadjuvantes a IES e a instituição de saúde.
Os seus papéis, na esfera política de organização e manutenção do estágio supervisionado, sugerem ações de arranjos dos detalhes, não menos importantes, mas que sem a devida atenção impactam profundamente o processo de ensino.
Num município próximo ao local de execução deste estudo, práticas de articulação de negociação, ocorridas antes do nível operacional do ensino na APS, têm sido realizadas mensalmente e apresentam-se positivas, no sentido de avaliarem os semestres anteriores para melhor planeamento do semestre seguinte. Percebeu-se que reuniões realizadas previamente, quando incluem a gestão institucional, levaram ao empoderamento da gestão, sendo assim, tais setores já discutem a escolha dos centros de saúde, dos orientadores e avaliam problemas e conflitos nas relações. Isso leva a construção de cronogramas compartilhados com os centros de saúde, sobre quais atividades irão ocorrer em conformidade com cada disciplina (Andrade et al., 2014).
Nesse sentido, o envolvimento de todos os atores que compõem essa esfera de ensino é importante para o desenvolvimento do sentimento de pertencer à organização do ensino no serviço da APS.
Atualmente, devido à inexistência de uma diretriz comum que oriente tais organizações prévias, é esperado que se revelem inconformidades no conjunto de espaços de efetivação deste ensino, firmando uma operacionalização individual de cada instituição.
Diante desta problemática e da proposição de ações que fomentem melhores arranjos, pretende-se que este estudo avance na indução de políticas e diretrizes que norteiem melhores práticas a nível de gestão, da inclusão do ensino no serviço da APS, com maior envolvimento intersetorial.
Como limitações do estudo, destaca-se a necessidade de incluir a perceção dos estudantes, acerca das ações necessárias ao ensino na APS.
Conclusão
Com o desenvolvimento da comunidade de prática e das suas dimensões de engajamento mútuo, repertório compartilhado e objetivo comum, percebeu-se a sugestão de ações por parte dos docentes de enfermagem: a necessidade de estabelecimento de papéis sobre a sua atuação na docência enquanto no espaço de ensino; preparação e troca antecipada de ideias entre enfermeiro docente e enfermeiro supervisor, no que diz respeito aos conteúdos e assuntos necessários ao ensino na APS, conforme as particularidades das unidades de saúde. Estes referiram que o trabalho da equipa também é um fator que reflete ao ensino do estudante de enfermagem; estabelecendo a tomada de decisão sobre a escolha das atividades educativas, tendo em conta o currículo do curso e a fase em que o discente está em determinado momento.
Os enfermeiros supervisores corroboram a questão da atuação da equipa na formação do profissional enfermeiro, reforçando a necessidade de serem exemplos para os discentes em enfermagem; além de reconhecerem a importância que possuem no estímulo aos discentes para participarem nas atividades junto deles, envolvendo também os professores, docentes das IES.
Relativamente às ações coletivas, ambos os intervenientes expressam a necessidade de antecipar o contacto da IES com a UBS antes de desenvolverem o processo de ensino, referindo que a sensibilização acerca das políticas de saúde e da importância desse espaço para a formação do SUS, deva ser sensibilizada junto da equipa e também, com a gestão da instituição de saúde. Tais colocações demonstraram uma certa compreensão de que a inserção do grupo vai além do processo de ensino-aprendizagem do aluno, pois contribuiria para o trabalho das unidades de saúde.
Os resultados deste estudo podem ser um indicativo para as políticas públicas de formação permanente de professores e enfermeiros supervisores, quanto à potencialidade de espaços semelhantes aos grupos desta comunidade de prática, dado o formato que a mesma apresenta para ser considerada de facto uma comunidade de prática. A partir do estudo, percebe-se a comunidade de prática como uma alternativa para o desenvolvimento profissional e para a antecipação de ações que efetivem qualitativamente o ensino na APS.