Introdução
Ao ingressar no ensino superior, um estudante encontra-se numa transição de vida que comporta riscos e desafios, podendo ser considerado um momento de crise dada a necessidade de adaptação a novos contextos e a novos papéis, com deveres acrescidos a todos os níveis da sociedade. Para o estudante de enfermagem (EE) esta responsabilidade é acentuada pelo nível de complexidade do próprio curso e pelo impacto que tem no seu eu, causado pelos seus múltiplos sentimentos relacionados com o contacto e o impacto do seu cuidar no indivíduo, na disciplina de enfermagem e na sociedade em geral (Nogueira & Sequeira, 2017; Pryjmachuk et al., 2019). Ao prepararem-se para assumir maiores responsabilidades, quer a nível académico, quer numa perspetiva profissional futura, os EE encontram-se numa etapa determinante da formação da sua personalidade, podendo adotar e assimilar determinados estilos de vida que determinem menores riscos para a saúde na idade adulta (Nogueira & Sequeira, 2017; Soares et al., 2015).
Alguns estudos consultados sugerem que são vários os fatores de risco a que o EE está sujeito. Entre os mais mencionados estão os biomecânicos (repetição de movimentos, movimentação de cargas e/ou materiais pesados, posicionamento dos doentes, posturas inadequadas e a longa e intensa utilização do computador e outros dispositivos eletrónicos e muito tempo sentados), os psicossociais (insegurança, medo, gestão de tempo e de afetos), os socioeconómicos (gestão económica e/ou necessidade de conciliar atividade profissional com a de estudante) e ainda outros, tais como, o género, a existência de doença crónica e a necessidade de realizar uma carga horária imposta (nomeadamente em ensinos clínicos, com horário por turnos; Kitiş et al., 2017; Morais et al., 2019; Nunes et al., 2016). Tanto os eventos de vida associados à concretização de objetivos académicos, como os que estão relacionados com o desenvolvimento de competências pessoais (por exemplo: gestão do tempo, gestão económica, relações interpessoais) podem ser percecionados pelos EE como eventos stressores. A sua intensidade e o facto de se perpetuarem ao longo do tempo (mesmo que só de alguns deles) pode conduzir ao desenvolvimento de respostas desadaptativas ao stress, tais como a ansiedade, depressão e/ou de sintomatologia musculoesquelética (SME), de acordo com a forma como o indivíduo perceciona o stress e a sua capacidade para lidar com o mesmo (Ferreira et al., 2015; Firmino et al., 2018; Firmino et al., 2019; Kitiş et al., 2017; Oliveira et al., 2017). Para além da sua rotina académica elementar, os EE são igualmente confrontados logo desde o início do curso com a realização de estágios em ambiente de prática clínica, com o processo de desenvolvimento das competências necessárias para a profissão de enfermagem, com a necessidade de dar resposta à pressão imposta pelas avaliações (pressão que pode ter origem tanto nos próprios professores, como nos restantes profissionais de saúde) e, também, com a obrigação de ser bem sucedido em todas as unidades curriculares pelas suas precedências (Kitiş et al., 2017; Morais et al., 2019). Ora, todos estes fatores conjugados (ou mesmo só alguns deles) podem contribuir para o aparecimento de depressão, stress e ansiedade e/ou de SME e levar a um sofrimento emocional e à exaustão dos EE (Ferreira et al., 2015; Firmino et al., 2018; Firmino et al., 2019; Kitiş et al., 2017; Oliveira et al., 2017), o que terá impacto na diminuição do seu bem-estar e da sua qualidade de vida logo desde o início da formação académica, com consequências diretas na sua saúde. Para além do impacto na saúde, a presença desta sintomatologia pode também diminuir o seu desempenho académico ou, em casos mais extremos, levar mesmo ao abandono do curso (Kitiş et al., 2017). Com a realização deste estudo pretendeu-se identificar quais os fatores psicossociais associados à presença de SME nos EE.
Enquadramento
O bem-estar e os hábitos saudáveis são encarados na ótica da redução dos fatores de risco que diminuem a saúde dos indivíduos. Ultimamente, verifica-se que a prevalência destes fatores tem vindo a aumentar, em particular junto dos jovens adultos, tornando-se, por isso, uma questão de saúde pública que tem vindo a receber uma grande atenção por parte de investigadores (Galvão et al., 2017). Os estilos de vida são comportamentos ou hábitos através dos quais respondemos a várias situações que nos vão surgindo diariamente, através da aquisição de conhecimentos e por via de um processo de socialização, que vão ser reinterpretados ao longo do ciclo de vida e em diferentes situações sociais (Firmino et al., 2019; Galvão et al., 2017). São, também, caracterizados por padrões comportamentais identificáveis que podem ter efeitos na saúde, nomeadamente dos estudantes que frequentam o ensino superior, em geral, e dos EE, em particular, numa fase em que estão a consolidar atitudes e comportamentos. Como principais exemplos temos a ansiedade, o stress e a depressão, que se traduzem num estado emocional que inclui componentes psicológicos e fisiológicos e que apesar de contribuir para o normal desenvolvimento da experiência humana, está presente em, pelo menos, 12% da população universitária com uma prevalência na depressão de 43,1%, ansiedade de 54,2% e stress de 45,1% (Firmino et al., 2018; Nogueira & Sequeira, 2017).
Neste estudo, feito com uma população estudantil do curso de licenciatura em enfermagem, a depressão foi classificada como leve em 12,3% da amostra, moderada em 13,8%, severa em 7,5% e extremamente severa em 9,5%. A ansiedade foi leve em 18,2%, moderada em 12,3%, severa em 9,5% e extremamente severa em 14,2%. O stress foi classificado como leve em 14,2%, moderado em 11,5%, severo em 13% e extremamente severo em 6,3% (Firmino et al., 2019; Firmino et al., 2018). A SME, dado o seu carácter multifatorial, é uma preocupação nestes EE. Ela é descrita e relatada pelo indivíduo como sendo uma perceção física desagradável e dolorosa, que provoca uma sensação de peso, formigueiro, fadiga e tensão muscular (Firmino et al., 2019) e que combina vários riscos individuais, psicossociais, físicos e biomecânicos.
Esta sintomatologia não se desenvolve segundo uma causa específica, tem, antes, diferentes fatores que se inter-relacionam entre si, tais como carga de trabalho académico, privação de sono, movimentos minuciosos e repetitivos durante o ensino clínico, lidar constantemente com a morte, o que pode aumentar o nível de stress, ansiedade e depressão, que por sua vez, pode levar a uma diminuição da qualidade de vida dos EE, tanto a nível psicológico como físico (Kitiş et al., 2017). Torna-se necessário o estudo desses fatores e da forma como poderemos intervir para os minimizar, visto que não é possível erradicá-los. Conhecer os fatores psicossociais associados à SME nos EE revela-se importante pelo impacto na sua qualidade de vida, na adoção de posturas adequadas e de estratégias adaptativas que evitem o seu aparecimento e desenvolvimento durante a vida adulta. Os estudos que relacionam estes aspetos com os EE são escassos ou inexistentes, pelo que este estudo pretende de algum modo preencher esta lacuna.
Metodologia
O presente estudo, quantitativo, transversal, descritivo e correlacional, foi constituído por uma amostra de conveniência composta por 253 EE de quatro escolas de enfermagem (duas públicas e duas privadas, das regiões do grande Porto e de Lisboa e Vale do Tejo). Foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão: estar matriculado e frequentar regularmente as unidades curriculares do curso das escolas incluídas no estudo; participação voluntária no estudo e com resposta completa ao questionário enviado. Foram excluídos os estudantes em Erasmus, dada a previsível dificuldade de adaptação às especificidades técnicas da língua portuguesa relativamente a este tema.
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética de duas escolas superiores de enfermagem da região de Lisboa e Vale do Tejo (em fevereiro e junho de 2017).
O preenchimento do questionário foi feito através da ferramenta online Survey Monkey, que possibilitou o seu envio por email, através de um link, para as respetivas escolas, tendo sido posteriormente distribuídos para o email de cada estudante pelo coordenador de cada ano do curso. Foram garantidos os direitos dos intervenientes neste estudo e a confidencialidade das suas respostas.
A recolha de dados foi efetuada entre os meses de março e abril de 2018. Foi realizada através de questionário autopreenchido estruturado por quatro partes.
A 1.ª parte do questionário abordou os aspetos sociodemográficos (sexo, idade, estado civil, filhos); hábitos de vida e de saúde (alimentação, deslocação para a escola, consumo de bebidas alcoólicas e tabaco, utilização de dispositivos informáticos); e, também, perguntas relacionadas com o próprio curso (escolha do curso e/ou escola, mudança de residência, aulas e formação, material transportado).
Na 2.ª parte foi utilizado o Questionário Nórdico Músculo-esquelético (QNM) na versão traduzida e validada para a população portuguesa por Mesquita et al. (2010). O questionário português apresenta uma consistência interna de 0,86, através do coeficiente de fiabilidade de Kuder-Richardson (KR-20). É um questionário com 27 questões de autopreenchimento de resposta dicotómica acerca de sintomas musculoesqueléticos (Mesquita et al., 2010). É constituído por três questões principais relacionadas com as nove regiões anatómicas (pescoço, ombros, cotovelos, punhos/mãos, região torácica, região lombar, ancas/coxas, joelhos e tornozelos/pés); relacionado com problemas (tais como dor, desconforto ou dormência); atividades normais (trabalho, serviço doméstico, passatempos) nos 12 meses e a última questão relacionada com os últimos sete dias (Mesquita et al., 2010).
Na 3.ª parte foi utilizada a Escala de Ansiedade, Depressão e Stress (EADS-21) na versão portuguesa adaptada por Pais-Ribeiro et al. (2004). Trata-se de uma escala constituída por 21 questões, onde as três dimensões são medidas através de sete questões. Para cada frase existem quatro possibilidades de resposta (apresentadas numa escala tipo Likert) que são respondidas numa escala que varia entre 0 (não se aplicou nada a mim) e 3 (aplicou-se a mim a maior parte das vezes; Pais-Ribeiro et al., 2004). A versão portuguesa da escala apresenta alfas de Cronbach elevados para as três subescalas (ansiedade = 0,74; depressão = 0,85; e stress = 0,81), consideradas boas qualidades psicométricas e uma medida útil para a investigação (Pais-Ribeiro et al., 2004).
Na 4.ª parte foi utilizado o Questionário Estado de Saúde (SF-36), um questionário genérico de autopreenchimento, desenvolvido com o objetivo de avaliar a perceção do estado de saúde individual, tanto em pessoas saudáveis como doentes, sendo de breve e fácil aplicação, para além de muito conciso e com robustez psicométrica, traduzido e adaptado para a população portuguesa por Ferreira e Ferreira (2006). Contém 36 itens de resposta fechada, que permitem avaliar oito dimensões de saúde: Função Física; Desempenho Físico; Dor Corporal; Saúde Geral; Vitalidade; Função Social; Desempenho Emocional e Saúde Mental. Agrupa os itens em duas componentes: física e mental (Ferreira & Ferreira, 2006).
Com o objetivo de descrever os EE relativamente às diferentes características académicas, é apresentada a análise estatística descritiva baseada em frequências absolutas e percentagens. A variável dor musculosquelética (presença vs. ausência), foi operacionalizada através do questionário nórdico musculosquelético. Todo o participante que não referisse a presença de dor - independentemente da região anatómica - seria codificado com 0 (ausência); caso sim, seria codificado com 1 (presença). Examinou-se igualmente a associação da dor musculosquelética com os scores das outras variáveis via correlação ponto-bisserial.
Por fim, foi realizada uma regressão logística binária (dor músculoesquelética como variável dependente) com o método de seleção de variáveis forward LR, baseada na razão da verosimilhança. As potenciais variáveis preditoras foram previamente selecionadas através de análise univariada (teste-t para variáveis quantitativas e qui-quadrado para variáveis qualitativas com p < 0,10), antes da entrada para o modelo estatístico, tal como recomendado por Katz (2006). O score da subescala dor do SF-36 não foi incluído no modelo logístico como potencial preditor, visto avaliar o mesmo constructo que a variável dependente (dor musculosquelética). Foi utilizado o teste de Hosmer-Lemeshow para avaliar o ajustamento do modelo, o teste qui-quadrado de Wald para calcular a significância do preditor e o Odds Ratio (OR) ajustado (razão de possibilidades ou chances) para quantificar o contributo do preditor para a presença de dor musculosquelética (Tabachnick & Fidell, 2013). Como o ano da frequência universitária se apresenta associado à ansiedade, especialmente no primeiro ano do curso, visto ser um período crítico (Nogueira & Sequeira, 2017), foi avaliado o efeito moderador do ano de frequência universitária na relação entre ansiedade e dor através de análise de regressão logística hierárquica (RLH). Todos os fatores de inflação da variância (FIV) das variáveis preditoras foram inferiores a 10, indicando ausência de multicolinearidade. Antes de computar o termo produto, as variáveis preditoras (ansiedade e ano de frequência universitária) foram centradas para evitar a multicolinearidade (Rosa et al., 2015). O ano de frequência universitária foi tratado como uma variável quantitativa. A RLH foi executada, numa abordagem a dois passos (blocos), com 233 casos. O ajustamento dos dados a cada modelo (bloco) foi avaliado pelo valor do logaritmo da verosimilhança (-2LL) e os R2 de Nagelkerke. O -2LL de cada modelo foram comparados usando o teste da razão log-verossimilhança (Carvalho et al., 2018). Os efeitos condicionais da ansiedade em cada nível da moderadora na dor foram examinados, graficamente, considerando a média (DP = 0) e um desvio-padrão abaixo e acima da média da ansiedade (-1DP e +1DP), tal como para o ano de frequência universitária. Todos os procedimentos estatísticos foram realizados no software IBM SPSS Statistics, versão 25.0, para um nível de significância de 5%.
Resultados
Os 253 EE que responderam à totalidade do questionário têm idades compreendidas entre os 18 e os 44 anos, 85,80% são do género feminino e 14,42% do género masculino. À data deste estudo, a maioria dos estudantes era solteira (96,44%) e referiu não ter filhos (96,05%). Sobre a quantificação do tempo seguido em que trabalham com dispositivos informáticos, 46,64% afirmou utilizar entre 2 e 4 horas, 45,45% afirmou utilizar mais de 4 horas e só 18,97% referiu usar menos que 2 horas. No que concerne à média de horas em que permanecem sentados, a maioria respondeu mais de 4 horas (65,61%). No que respeita à EADS ansiedade, esta apresentou-se fortemente associada, de forma positiva, tanto com a EADS depressão r(233) = 0,66; p < 0,001, como com a EADS stress r(233) = 0,77; p < 0,001. No entanto, a EADS ansiedade apresentou uma relação positiva e fraca com a presença de dor (QNME) r pb (233) = 0,22; p = 0,001. A EADS ansiedade mostrou-se negativa e significativamente associada, de forma fraca, com o desempenho físico (SF-36) r(186)= -0,15; p < 0,048. A EADS depressão revelou uma associação significativa positiva e forte com a EADS stress r(233) = 0,72; p < 0,001 e fraca com a presença de dor (QNME) r pb(233) = 0,14; p = 0,027. Contudo, a EADS depressão mostrou-se significativamente associada, de forma fraca, com o desempenho físico (SF-36) r(186)= -0,15; p < 0,042. Relativamente à subescala EADS stress, revelou uma associação significativa, positiva e fraca tanto com a subescala de dor (SF-36) r(187) = 0,17; p < 0,017 como com a presença de dor (QNME) r pb(204) = 0,19; p = 0,003. Em relação à subescala de Desempenho Físico (SF-36), verificou-se uma associação significativa, positiva e forte com o Desempenho Emocional (SF-36) r(204) = 0,52; p < 0,001, moderada com a Saúde Mental (SF-36) r(204) = 0,46; p < 0,001 e Vitalidade r(165) = 0,35; p < 0,001, e fraca com a Função Social (SF-36) r(165) = 0,52; p < 0,001 e Saúde Geral (SF-36) r(164) = 0,52; p < 0,001. A respeito da subescala de Desempenho Emocional (SF-36), verificou-se uma associação significativa, positiva e forte com a subescala de Saúde Mental (SF-36) r(204) = 0,66; p < 0,001 e uma associação significativa, positiva e moderada com a Vitalidade r(165) = 0,46; p < 0,001, Função Social (SF-36) r(165) = 0,34 p < 0,001 e Saúde Geral (SF-36) r(164) = 0,33; p < 0,001.
No que concerne à subescala de Saúde Geral (SF-36), verificou-se uma associação significativa, positiva e moderada com a Saúde Mental r(165) = 0,46; p < 0,001 e Vitalidade (SF-36) r(165)= 0,38 p < 0,001 e uma associação significativa, positiva e fraca com a Função Social (SF-36) r(164) = 0,21; p = 0,015. Para a subescala Função Social (SF-36), os resultados revelaram uma associação significativa, positiva e fraca com a Saúde Mental (SF-36) r(204) = 0,27; p < 0,001 e com a Vitalidade (SF-36) r(165) = 0,19; p = 0,014. Já a subescala de Vitalidade revelou uma associação significativa, positiva e forte com a subescala de Saúde Mental (SF-36) r(165) = 0,68, p < 0,001. Não se verificaram outras associações estatisticamente significativas. A Tabela 1 apresenta os coeficientes de correlação bivariados entre as escalas e subescalas em estudo.
1 | 2 | 3 4 | 5 | 6 | 7 8 | 9 | 10 | 11 12 | 13 14 | |||||
AF Positiva (1) | - | |||||||||||||
AF Negativa (2) | -0,21** | - | ||||||||||||
EADS ansiedade(3) | 0,08 | -0,07 | - | |||||||||||
EADS depressão(4) | 0,07 | 0,03 | 0,66*** - | |||||||||||
EADS_stress (5) | 0,07 | -0,02 | 0,75*** 0,72*** | - | ||||||||||
SF-36 F. Física (6) | -0,03 | 0,03 | 0,05 | -0,05 | 0,04 | - | ||||||||
SF-36 D. Físico (7) | 0,00 | -0,10 | -0,15* | -0,15* | -0,07 | 0,01 | - | |||||||
SF-36 D. Emo. (8) | -0,07 | 0,04 | -0,08 | -0,07 | -0,06 | 0,00 | 0,52*** - | |||||||
SF-36 S. Geral (9) | -0,02 | -0,05 | -0,15 | -0,13 | -0,05 | -0,10 | 0,28*** 0,33*** | - | ||||||
SF-36 Dor (10) | 0,04 | 0,07 | 0,07 | 0,06 | 0,17* | 0,11 | 0,06 -0,01 | 0,06 | - | |||||
SF-36 F. Social (11) | 0,06 | 0,01 | 0,01 | -0,08 | -0,02 | -0,04 | 0,28*** 0,34*** 0,21* | -0,05 | - | |||||
SF-36 Vital. (12) | 0,12 | -0,09 | -0,11 | -0,13 | -0,02 | -0,06 | 0,35*** 0,46*** 0,38*** -0,06 | 0,19* - | ||||||
SF-36 S.Mental (13) | 0,01 | -0,04 | -0,10 | -0,13 | -0,07 | -0,09 | 0,46*** 0,66*** 0,41*** 0,03 | 0,27*** 0,68*** | - | |||||
QNME_Dor (14)a | -0,04 | 0,04 | 0,22** | 0,14* | 0,19** | 0,04 | 0,04 0,11 -0,05 0,14 | 0,02 0,01 | 0,06 - |
A análise univariada permitiu selecionar, ainda, três variáveis com potencial de capacidade preditora da presença de dor (sim vs. não): a EADS ansiedade, a EADS depressão e a EADS stress. As restantes variáveis (sociodemográficas e académicas) não reuniram as condições para entrada no modelo estatístico, isto é, p > 0,10. O método de seleção Forward LR revelou que apenas a EADS ansiedade teve capacidade de prever a presença de dor. A subescala de ansiedade EADS prevê significativamente a presença de dor (OR = 1,12, IC95% [1,05; 1,20] X2 Wald (1) = 10,80; p = 0,001), com a probabilidade de ter dor a aumentar 12% por cada unidade na subescala EADS ansiedade. No que diz respeito ao potencial efeito moderador do ano de curso na relação entre ansiedade e dor, no primeiro passo da RLH apenas com a ansiedade e o ano de frequência se previu significativamente a dor [X2 Wald (2) = 12,07; p = 0,002, -2LL = 307,32, explicando 6,8% da variância da dor (R 2 de Nagelkerke = 0,068)]. Seguidamente, o termo produto (interação) foi adicionado no segundo bloco, [X2 Wald (3) = 17,63, p < 0,001; -2LL = 301,76, explicando 9,7% da variância da dor (R 2 de Nagelkerke = 0,097)]. A estatística do teste G 2(1) = 5,56; p = 0,018, indicou uma interação significativa, evidenciando que o ano de frequência universitária modera a relação entre a ansiedade e a dor. A análise dos coeficientes (OR) dos efeitos simples revelou que, nos primeiros anos de frequência universitária, a ansiedade está associada a um aumento significativo das probabilidades da presença de dor (OR = 1,31; p = 0,004). No entanto, nos anos de frequência universitária intermédios, as probabilidades de ter dor diminuem (OR = 1,13; p = 0,006). Já no que respeita aos últimos anos de frequência universitária, a ansiedade não se mostrou significativamente associada à presença de dor (OR = 1,04; p = 0,343).
A Figura 1 mostra um efeito protetor do ano da frequência universitária na relação entre a ansiedade e a presença de dor, visto que a associação entre ansiedade e presença de dor diminui com o avançar do número de anos de frequência universitária.
Discussão
No presente estudo, que teve como objetivo perceber quais os fatores psicossociais associados à SME em EE, a ansiedade, o stress e a depressão foram encontradas como sendo variáveis associadas à presença de sintomatologia musculoesquelética. São conhecidos estudos que relacionam estas variáveis com o distanciamento familiar, a diminuição das atividades de lazer e a privação de sono (Firmino et al., 2019; Kitiş et al., 2017; Morais et al., 2019). A maior parte dos estudantes convive diariamente com as exigências decorrentes de frequentar o ensino superior (utilização de conhecimentos científicos e técnicos; contacto com profissionais especializados, quer na área da docência, quer na área da prática clínica; avaliações práticas e teóricas; utilização de ferramentas tecnológicas e informáticas) que podem conduzir, de facto, a um maior distanciamento familiar, diminuição das suas atividades sociais, falta de tempo para atividades de lazer, privação do sono, posturas inadequadas e não ergonómicas, tensão muscular, movimentos repetitivos e competição entre colegas (Firmino et al., 2019; Nunes et al., 2016). Outros estudos realizados referem igualmente a imprevisibilidade que o estudante terá de enfrentar como um outro fator causador de ansiedade e stress (porque podem estar implícitas escolhas e intervenções com ações de alto nível de competências técnicas e científicas, ou a garantia de continuação do seu estágio académico), colocando-o em situação de vulnerabilidade, levando à aquisição de posturas inadequadas, produtividade e ritmos excessivos de trabalho académico, realização do ensino clínico por turnos e repetibilidade de movimentos, sendo estes fatores associados à probabilidade de sofrimento psíquico e presença de dor (Firmino et al., 2019; Morais et al., 2019; Nunes et al., 2016). O quadro álgico associado às variáveis ansiedade, stress e depressão pode estar relacionado com a exposição dos EE a fatores psicossociais, à falta de tempo para realização de atividades de lazer ou de descanso (o que tem efeitos tanto a nível comportamental como psicológico), causando somatização dos sintomas físicos e tensão muscular, resultando em dor musculoesquelética, um dos fatores que estão presentes no desenvolvimento de SME (Firmino et al., 2019; Morais et al., 2019; Nunes et al., 2016). À luz da literatura consultada, a associação neste estudo entre os primeiros anos na universidade com a ansiedade e a sua relação com a dor é corroborada por outros estudos onde se refere que, em média, 25% dos alunos apresentaram sintomas depressivos graves e 54% dos alunos apresentaram transtornos psiquiátricos menores (Pinheiro et al., 2020; Wang et al., 2019). Esta associação pode dever-se ao facto de existir uma maior prevalência nos primeiros semestres, em que os níveis de ansiedade são mais elevados nos estudantes mais novos, relacionando-os com os períodos de ensino clínico, novas aprendizagens, a interação com os professores, mas que vão sendo ultrapassadas com a aquisição de conhecimentos e competências ao longo dos restantes anos do curso (Pinheiro et al., 2020; Wang et al., 2019).
Outros dados relevantes neste âmbito encontrados neste estudo, dizem respeito às associações entre o desempenho físico e o desempenho emocional, a saúde mental e a vitalidade. Estes resultados vão ao encontro de outros estudos onde, ao avaliar-se a qualidade de vida dos estudantes em enfermagem, também se constatou que o desempenho físico tem correlações fortes com vários domínios, porque engloba questões relacionadas com as atividades de vida diária, a vitalidade, a energia e a motivação (Ferreira et al., 2015; Firmino et al., 2018; Kitiş et al., 2017; Morais et al., 2019).
Em Portugal, o curso de licenciatura em enfermagem está atualmente no subsistema de ensino superior politécnico e integra instituições públicas e privadas. São ambientes estratégicos de educação, que devem desenvolver iniciativas logo desde o início do curso numa perspetiva de saúde positiva, com o objetivo principal de contribuir para o fortalecimento dos fatores individuais, sociais e culturais de cada estudante, aumentando o seu potencial de saúde. Estamos a formar futuros profissionais neste ramo, os quais irão, eles próprios, contribuir para a difusão dessas mesmas intervenções em diversas áreas sociais, pois faz parte das suas responsabilidades enquanto futuros enfermeiros (Ferreira et al., 2015; Firmino et al., 2018; Pryjmachuk, et al., 2019).
Como limitações, aponta-se que este estudo foi desenvolvido apenas junto de EE, não tendo sido possível perceber e comparar a existência de SME noutros estudantes da área da saúde e de diferentes graus de ensino. De modo a perceber a influência dos ensinos clínicos no aparecimento de SME, seria importante averiguar o número de horas de ensino clínico já realizadas pelos estudantes.
Conclusão
O objetivo do presente estudo foi procurar identificar os fatores psicossociais associados à presença de SME nos EE. Dos vários fatores psicossociais em estudo, ansiedade, depressão, stress e qualidade de vida, verificou-se que a dor se encontrava positivamente associada à ansiedade, depressão e ao stress. No entanto, apenas a ansiedade se revelou como preditora da dor. Para além destas relações, também outras relações, importantes para a compreensão desta problemática, surgiram neste estudo, nomeadamente as relações significativas entre o desempenho físico e o desempenho emocional, a saúde mental e a vitalidade, bem como as fortes associações entre a depressão, a ansiedade e o stress. O conhecimento sobre os multifatores associados à SME pode constituir-se como uma ferramenta estratégica para todos os intervenientes no processo de aprendizagem dos EE, parecendo evidente o papel que as escolas que ministram o curso de enfermagem devem ter no desenvolvimento de ações e de intervenções na SME, desenvolvendo abordagens estratégicas para lidar com os fatores multicausais e que contribuam para a antecipação desta problemática, quer seja através da inclusão de workshops e seminários (por serem considerados espaços de aprendizagem com base em experiências pessoais), quer seja através da sua inclusão em unidades curriculares de abordagens diferenciadas (dado o seu impacto a nível individual, como de grupo e, inclusive, para a sociedade em geral). Dada a escassez em Portugal de estudos nesta população, sugere-se um acompanhamento dos EE para melhor esclarecer os resultados aqui evidenciados, através de estudos com utilização de técnicas de biofeedback em laboratório ou de estudos prospetivos, randomizados e epidemiológicos, pelo cariz preocupante que esta temática tem. Sugere-se igualmente o desenvolvimento de um instrumento específico para investigação nesta população estudantil, que permita facilitar a comparação de dados e aplicar programas direcionados à prevenção da SME, recorrendo ao conhecimento dos docentes das várias especialidades existentes em enfermagem (por ex.: enfermagem no trabalho, reabilitação, saúde mental).