Introdução
Na população idosa, as quedas constituem um problema de saúde pública comum, grave e crescente (Florence et al., 2018). Aproximadamente 30% dos idosos com 65 anos ou mais caem todos os anos, e essas quedas geralmente resultam em lesões graves, diminuição da mobilidade e perda de independência (Vieira et al., 2018).
Problemas com mobilidade, equilíbrio e perda de força muscular contribuem para a probabilidade de queda (Hicks et al., 2020). Além disso, as pessoas vivem mais anos, e com doenças crónicas, como doenças cardiovasculares, diabetes e artrite. Cerca de um terço dos idosos cairá pelo menos uma vez por ano e, desses, 5% sofrerão, consequentemente, fraturas, o que pode levar a uma incapacidade subsequente e até à perda da independência (Kim, 2020).
Para planear estratégias de intervenção que visem evitar ou prevenir quedas entre os idosos é necessário conhecer dados epidemiológicos acerca desta população, e onde esses acidentes mais ocorrem. O objetivo deste estudo é analisar as características epidemiológicas e a distribuição espacial dos atendimentos de idosos vítimas de quedas pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) de um município do Brasil.
Enquadramento
As quedas podem ser decorrentes de alterações intrínsecas, como as alterações sensório-motoras inerentes ao processo de envelhecimento (alterações visuais, parestesias, paresias, diminuição de flexibilidade e de mobilidade e declínio cognitivo), e alterações extrínsecas, associadas ao ambiente (buracos, escadas e terrenos irregulares; Christofoletti et al., 2006).
Os riscos de queda na população idosa são multifatoriais, envolvendo aspectos biológicos, comportamentais, ambientais e socioeconómicos (Hicks et al., 2020). Um indicador importante para a saúde do idoso é a fragilidade. Definida de forma variável, quase sempre inclui perda de reserva fisiológica e menor tolerância a eventos stressantes. A definição mais comum requer a presença de três ou mais de cincos indicadores: perda de peso, exaustão, fraqueza, lentidão e baixa atividade física (Albert, 2019).
Sociedades internacionais (europeias e americanas) definiram fragilidade como uma síndrome médica com múltiplas causas e contribuintes, caracterizada pela diminuição da força, da resistência e da função fisiológica, o que aumenta a vulnerabilidade do indivíduo e a sua propensão para o desenvolvimento de dependência e/ou morte (Morley et al., 2013).
A fragilidade é um fator de risco para muitos problemas de saúde da população idosa, incluindo quedas, declínio funcional e incapacidade, necessidade de cuidados de longo prazo e morte (Albert, 2019). Um estudo de meta-análise revelou que os idosos mais frágeis tinham maior probabilidade de sofrer quedas recorrentes, quando comparados com idosos mais saudáveis (Cheng & Chang, 2017). As doenças crónicas, assim como muitos dos medicamentos usados para tratá-las, podem aumentar o risco de queda (Florence et al., 2018). Uma pesquisa de revisão integrativa sobre o tema mostrou que, na maioria dos estudos analisados (79%), as mulheres idosas institucionalizadas apresentavam maior predisposição para quedas do que os idosos do sexo masculino. De entre os fatores associados às quedas, destacaram-se o uso de benzodiazepinas e o idoso ser portador de doenças crónicas, como hipertensão, diabetes, artrite, osteoporose (Florence et al., 2018).
Acrescentam-se os fatores externos, relacionados com o meio ambiente, tais como: qualidade do piso dos domicílios, iluminação e condições de acesso ao transporte público, entre outros que podem ampliar esse risco (Smith et al., 2017).
No Brasil, entre 1996 e 2012, foram registados no Sistema de Informações sobre Mortalidade 66.876 óbitos de idosos por quedas. Os internamentos com diagnóstico secundário associado às quedas perfizeram um total de 941.923. Para o mesmo período, tanto a mortalidade quanto os internamentos apresentaram tendência crescente (Abreu et al., 2018).
Com o aumento da longevidade, também ocorreu um crescimento na procura de serviços de saúde de emergência para os idosos que sofreram quedas. Esses serviços englobam desde o atendimento pré-hospitalar até ao internamento e o tratamento de casos graves. O serviço pré-hospitalar no Brasil é realizado pelo SAMU-192, implementado desde 2003.
Questões de investigação
Quais as características epidemiológicas dos idosos vítimas de quedas atendidos pelo SAMU?
Qual a distribuição espacial das ocorrências de idosos envolvidos em quedas atendidos pelo SAMU?
Metodologia
Trata-se de um estudo transversal, descritivo e correlacional com abordagem quantitativa, baseado em dados secundários do SAMU do município de Olinda, Pernambuco, Brasil. O município situa-se na região metropolitana do Recif. Possui uma extensão territorial de 41,681 Km² (98% urbana), 31 bairros e população estimada de 390.771 habitantes para o ano de 2017. O SAMU do município atende aproximadamente 600 ocorrências por mês, conta com 87 profissionais treinados (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e condutor-socorrista) e 10 ambulâncias.
Foram analisados os atendimentos de idosos (60 anos ou mais) devido a quedas, ocorridos no período de 2010 a 2017.
As ocorrências atendidas pelas unidades do SAMU são registadas num banco de dados e são georreferenciadas com aparelho de Global Positioning System (GPS). As ambulâncias são equipadas com GPS e os condutores são treinados para a sua utilização. A fonte de dados deste estudo é constituída pelo banco de dados dos atendimentos do SAMU. As variáveis estudadas foram colhidas diretamente do banco de dados (sexo, idade, local de ocorrência, dia da semana, mês e ano de ocorrência, destino do encaminhamento).
Inicialmente, foi realizada uma análise descritiva das variáveis estudadas (sexo, faixa etária, horário da ocorrência, dia da ocorrência, encaminhamento para unidade de saúde, tipo de queda) por meio de distribuição de frequências. Foi aplicado o teste Qui-Quadrado de Pearson, ou Exato de Fisher, quando necessário. O nível de significância assumido foi 5%. Os cálculos estatísticos foram realizados pelo programa Epi-info, versão 7.2.4.
O programa QGIS, versão 3.6.3, foi utilizado para o mapeamento e deteção de aglomerados espaciais com o estimador de densidade Kernel. Este é um método frequentemente usado para identificar padrões espaciais, que calcula a densidade de eventos em torno de cada ponto, interpolado pela distância do ponto a cada evento (Bonfim et al., 2018). Os dados geolocalizados foram analisados e compilados, assim, foi gerada uma nuvem de pontos contendo informações de cada evento. Esse resultado serviu de base para gerar os mapas de densidade de pontos. O estimador de densidade Kernel desenha uma vizinhança circular ao redor de cada ponto da amostra, correspondendo ao raio de influência, e então é aplicada uma função matemática de 1, na posição do ponto, a 0, na fronteira da vizinhança. O valor para a célula é a soma dos valores Kernel sobrepostos, e divididos pela área de cada raio de pesquisa. Para identificar áreas de concentração do evento, foi utilizada a classificação assim denominada. Áreas de baixa densidade foram representadas a verde, as intermédias a amarelo e as de alta densidade a vermelho.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário Oswaldo Cruz/Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco (CAAE 83723618.3.0000.5192).
Resultados
No período estudado, o SAMU atendeu um total de 1954 idosos, destes 1466 (75%) foram vítimas de quedas. A maior parte era do sexo feminino (n = 891; 60,7%). A idade variou de 60 a 107 anos, com média de 79 anos e desvio-padrão de 9,6 anos (n = 891; 60,7%; Tabela 1).
O principal local de ocorrências das quedas foi o domicílio, com 80,3% (n = 1178), apresentando diferença estatisticamente significativa (p < 0,05; Tabela 1).
Em relação aos dias da semana, observou-se concentração no período de segunda a quinta-feira. Quanto ao horário, 32,9% (n = 483) das quedas ocorreram no horário entre as 06h e as 11h59, seguindo-se o horário das 12h às 17h59 (n = 459; 31,3%). Em relação aos meses do ano, houve uma distribuição bastante homogénea e as maiores frequências foram registadas em julho (n = 85; 10,2%). As unidades de pronto atendimento (UPA) foram os locais para os quais foram conduzidas a maior parte das vítimas, num total de 41,4% (n = 603), seguindo-se os encaminhamentos para os hospitais da rede pública (24,2%; n = 353; Tabela 1).
Variáveis | Acima de 60 anos | Valor-p | ||
n | % | |||
Sexo | ||||
Masculino | 574 | 39,2 | <0,00001 | |
Feminino | 891 | 60,7 | ||
Ignorado | 1 | 0,1 | ||
Local de ocorrência | ||||
Domicílio | 1178 | 80,3 | <0,00001 | |
Via Pública | 245 | 16,8 | ||
Ignorado | 43 | 2,9 | ||
Dia | ||||
Segunda a quinta | 825 | 56,3 | <0,00001 | |
Sexta a domingo | 641 | 43,7 | ||
Horário | ||||
00:00 a 05:59 | 182 | 12,4 | <0,00001 | |
06:00 a 11:59 | 483 | 32,9 | ||
12:00 a 17:59 | 459 | 31,3 | ||
18:00 a 23:59 | 308 | 21,1 | ||
Ignorado | 34 | 2,3 | ||
Mês | ||||
Janeiro | 139 | 9,5 | 0,08169 | |
Fevereiro | 139 | 9,5 | ||
Março | 118 | 8 | ||
Abril | 107 | 7,2 | ||
Maio | 114 | 7,8 | ||
Junho | 114 | 7,8 | ||
Julho | 140 | 9,6 | ||
Agosto | 135 | 9,2 | ||
Setembro | 132 | 9 | ||
Outubro | 99 | 6,7 | ||
Novembro | 114 | 7,8 | ||
Dezembro | 114 | 7,8 | ||
Ignorado | 1 | 0,1 | ||
Encaminhamento | ||||
Unidade de Pronto Atendimento | 603 | 41,4 | <0,000001 | |
Rede Privada | 241 | 16,5 | ||
Policlínica | 10 | 0,7 | ||
Rede Pública de Hospitais | 353 | 24,2 | ||
Atendimento no local | 8 | 0,5 | ||
Outros | 243 | 16,7 |
Prevaleceram as quedas da própria altura como motivo do atendimento (Figura 1). As partes do corpo mais afetadas foram a cabeça, seguida dos membros inferiores (Figura 2).
As Figuras 3A e 3B apresentam o mapa com a estimativa de densidade Kernel com base nos 1446 atendimentos de idosos vítimas de quedas, dividido por dois quadriénios (2010-2013 e 2014-2017). Nesses dois períodos observam-se sete áreas de densidade.
Discussão
As características demográficas que prevaleceram entre os idosos vítimas de quedas foram o sexo feminino e a idade mais elevada. As quedas podem ter um impacto grave na vida dos idosos, além de, muitas vezes, a lesão necessitar de um longo período de tratamento (Padrón-Monedero et al., 2017). Estudos evidenciaram a predominância de quedas no sexo feminino, na faixa etária de 60 a 79 anos (Vieira et al., 2018). Já para Oliveira et al. (2019), o predomínio foi do sexo masculino nos idosos com 80 anos ou mais.
Um estudo que caracterizou os idosos vítimas de quedas em função das diferenças entre os sexos mostrou uma maior proporção das quedas nas mulheres com idade mais avançada, no domicílio e com predominância de quedas da própria altura. Para os homens a maior proporção foi em idosos mais jovens, com a presença de hálito etílico, ocorridas em via pública. Estas diferenças devem ser levadas em consideração no planeamento das ações preventivas (Meschial et al., 2014).
Quanto ao dia da semana e horário de ocorrência, destacam-se as quedas de segunda a quinta-feira, no período diurno, que podem estar relacionadas com a realização das tarefas quotidianas. Um estudo de revisão sobre a epidemiologia das quedas de idosos no Brasil também evidenciou que a maior frequência das quedas foi durante o dia (Leitão et al., 2018). Em relação aos dias da semana, o estudo com idosos vítimas de quedas atendidos por serviço pré-hospitalar também identificou maior ocorrência durante os dias úteis da semana (Meschial et al., 2014).
Num outro estudo com idosos vítimas de quedas atendidos num pronto-socorro, foi possível observar a maior frequência dos atendimentos no horário diurno e com distribuição homogénea entre os dias da semana (Tiensoli et al., 2019).
Predominaram as quedas da própria altura como motivo do atendimento. A cabeça foi a parte do corpo mais afetada, seguida pelos membros inferiores, apresentando resultados coincidentes com os encontrados noutro estudo (Carpenter et al., 2019). O mecanismo de lesão mais frequente em traumas de adultos decorre de quedas de pequena altura, particularmente em idosos mais velhos, o que pode acarretar consequências mais graves, como a fratura de quadril, e refletir-se na complexidade da assistência prestada nos hospitais e em serviços de reabilitação (Christofoletti et al., 2006).
A associação entre idade e mortalidade após fratura de quadril é um aspecto importante a ser avaliado nesta população, levando em conta indicadores específicos de fragilidade (desempenho de atividades diárias, atitudes saudáveis e variáveis relacionadas com a função e a nutrição), e com as comorbidades. Diante disto, é aconselhável implementar programas de saúde pública, tanto na comunidade quanto nos ambientes de atenção à saúde, que priorizem a prevenção e/ou atenuação da fragilidade, principalmente no grupo de 75 anos ou mais. Estes podem incluir o acompanhamento das comorbidades, o controlo de medicamentos, um padrão alimentar saudável e a prática de atividade física moderada (Padrón-Monedero et al., 2017).
A priorização destas iniciativas não deve excluir outras intervenções adicionais eficazes para a prevenção de quedas no grupo de 75 e mais anos e também nas faixas etárias mais jovens, principalmente no caso dos homens, sendo o principal local das quedas o domicílio, dados semelhantes aos encontrados por Leitão et al. (2018). Deve ser sublinhado que os fatores externos, tais como tapetes soltos, piso escorregadio, objetos no chão, a ausência de barras de apoio, interruptor distante da porta da casa-de-banho (Oliveira et al., 2019) são facilitadores das quedas no domicílio. Um estudo associou as quedas em casa a um aumento da mortalidade nos idosos com 75 anos ou mais, pelo facto de ter menos mobilidade e indicadores de maior fragilidade (Bath & Morgan, 1999).
Nesse sentido, os profissionais de saúde desempenham um papel fundamental na orientação de ações que reduzam o risco de queda, estimulando atividades físicas a fim de manter a estabilidade postural, prevenindo possíveis défices funcionais e riscos de o idoso vir a cair.
A distribuição espacial, pelo estimador de densidade Kernel, mostrou que, nos dois quadriénios, as áreas com maior densidade de quedas foram os bairros mais populosos do município estudado, áreas com forte comércio e trânsito intenso, assim como locais de feiras, cuja pavimentação não planeada na sua grande parte (becos e vielas) prejudica a circulação dos pedestres e aumenta o risco de quedas. A análise espacial permitiu a localização de áreas com maior concentração de quedas, possibilitando a elaboração de medidas preventivas que reduzam o risco destes acidentes.
De forma similar aos resultados deste estudo, uma pesquisa que analisou a dinâmica espaço-temporal das quedas entre pedestres idosos mostrou que estas ocorrem em áreas mais densamente povoadas e estão associadas às características específicas do ambiente construído. Um serviço de manutenção sistemática de acordo com a geografia local é sugerido para garantir a segurança do idoso (Ceccato & Willems, 2019).
Uma pesquisa que utilizou a análise espacial para investigar a distribuição geográfica de óbito de idosos vítimas de acidentes de trânsito aponta esta técnica como uma importante ferramenta para identificar áreas prioritárias para as ações da gestão pública que visem a prevenção de acidentes (Santos et al., 2016).
O estudo apresenta algumas limitações. Primeiro, a fonte de dados utilizada não abrange a totalidade das ocorrências, não incluindo os atendimentos realizados pelo resgate do corpo de bombeiros, nem as vítimas socorridas por terceiros e encaminhadas para os serviços de saúde. Os registos não permitiram a análise dos índices gravidade das quedas dos idosos, assim como avaliar as comorbidades, por não estarem presentes nos registos do banco de dados do serviço analisado. Também não foi possível identificar o desfecho após o atendimento pré-hospitalar.
Conclusão
A maior parte dos atendimentos realizados pelo SAMU foram de idosos com média de 79 anos de idade, do sexo feminino, no ambiente domiciliar, vítimas de queda da própria altura e com lesões em membros inferiores e cabeça. A análise espacial identificou áreas com maior densidade de atendimentos distribuídos em determinados bairros do município, indicando um padrão para ocorrência em ambos os períodos analisados.
Os resultados podem contribuir para ampliar o conhecimento sobre os fatores preditores de quedas em idosos no município, além de reforçar a necessidade dos profissionais de saúde estarem aptos a realizar uma avaliação inicial mais global dos pacientes, de modo a contemplar a interdisciplinaridade, levando em consideração não só os riscos físicos mas também os cognitivos e afetivos, a fim de evitar quedas que podem levar a internamento e óbito. Além de contribuir para o planeamento da reorganização dos espaços públicos e na revitalização das vias públicas, com prioridade para os pedestres, considerando especificamente, os pedestres idosos.