Introdução
O ensino da enfermagem implica um processo de aprendizagem interativo baseado em experiências e atitudes que promovem o desenvolvimento e a melhoria dos conhecimentos e das competências. Este processo é determinante na implementação eficaz de uma prática de enfermagem cada vez mais complexa, diferenciada e exigente. Embora os programas curriculares em enfermagem tenham progredido nos últimos anos, algumas áreas de conhecimento ainda se encontram pouco definidas e precisam ser mais aprofundadas. A formação na resposta a situações de catástrofe é uma das áreas de enfermagem que ainda apresenta fragilidades e é frequentemente excluída da maioria dos programas curriculares de enfermagem em Portugal.
A formação em preparação e gestão de situações de catástrofe é extremamente necessária e deve ser considerada uma questão multidimensional (Achora & Kamanyire, 2016). A licenciatura em enfermagem deve promover o conhecimento e a preparação dos estudantes, tendo em conta os valores e princípios fundamentais dos cuidados de enfermagem nesta área. É de realçar que, em situação de catástrofe, os enfermeiros estão em contacto direto com as vítimas, encontrando-se intrinsecamente relacionados com a gestão das suas necessidades físicas, psicológicas, sociais e espirituais nestes cenários complexos e adversos (World Health Organization [WHO] & International Council of Nurses [ICN], 2009).
A Estratégia Internacional de Redução do Risco de Catástrofes das Nações Unidas de 2009 - Terminologia sobre redução de risco de catástrofes (United Nations International Strategy for Disaster Reduction - Terminology on Disaster Risk Reduction, 2009, p. 9) define “uma catástrofe como uma perturbação séria do funcionamento de uma comunidade ou sociedade, causando perdas humanas, materiais, económicas e ambientais expressivas que excedem a capacidade da comunidade ou sociedade de fazer frente à situação com os seus próprios recursos”. Embora existam várias definições de catástrofe, todas elas se referem ao conceito de destruição generalizada do ambiente e da economia e à perda de vidas humanas excedendo a capacidade de resposta de qualquer indivíduo ou comunidade com os seus próprios recursos (WHO & ICN, 2009). O presente estudo analisa o contributo das escolas de enfermagem no desenvolvimento dos conhecimentos e das competências dos estudantes da preparação para situações de catástrofe e os obstáculos que se colocam à integração deste tópico nos programas curriculares do curso de licenciatura em enfermagem.
Enquadramento
Ao longo do tempo, Portugal enfrentou várias situações de catástrofe, na sua maioria provocadas por causas naturais, desde os terramotos de Lisboa de 26 de janeiro de 1531 e 1 de novembro de 1755 (que destruiu a cidade e causou a perda de mais de cem mil vidas) a fenómenos hidrológicos, incêndios florestais e conflitos armados que causaram danos materiais tremendos e a perda de muitas vidas humanas. Para uma adequada preparação e gestão de situações de catástrofe é necessário existir formação adequada nesta área. Os conhecimentos e competências dos estudantes de enfermagem baseiam-se no pensamento crítico e na experiência clínica. Como futuros enfermeiros, devem ser detentores de um raciocínio lógico que lhes permita aprofundar os conhecimentos e liderar estrategicamente. No entanto, não é possível replicar uma situação de catástrofe, o que impossibilita a aprendizagem ativa e prática, o planeamento de cuidados de saúde, a definição de prioridades e o desenvolvimento de competências de decisão clínica. Estas competências promovem a capacidade de analisar e refletir criticamente face a situações de catástrofe e respetivas dimensões éticas, diagnósticas e terapêuticas. É possível, então, afirmar que o ensino preparação para situações de catástrofe não é uma tarefa fácil.
No entanto, a prática de enfermagem em situações de catástrofe baseada na intuição ou na rotina sem um enquadramento teórico é inaceitável e vai contra o processo evolutivo da enfermagem e as atuais tendências na área da enfermagem (Achora & Kamanyire, 2016). O Perfil de Competências de Enfermagem em Catástrofes (Framework of Disaster Nursing Competencies) da WHO e do ICN, publicada em 2009, salienta que, apesar da imprevisibilidade, incerteza, ambiguidade e adversidade que caracterizam os cenários de catástrofe, os enfermeiros devem adquirir competências que lhes permitam agir de forma responsável e eficiente nestas situações. No entanto, vários estudos sublinham que poucas escolas de enfermagem a nível mundial incluem conteúdos no domínio das catástrofes nos seus programas curriculares (Achora & Kamanyire, 2016; Rafferty-Semon et al., 2017).
No contexto português, a Ordem dos Enfermeiros define no seu Regulamento do Perfil de Competências do Enfermeiro de Cuidados Gerais que os enfermeiros têm competência para “responder eficazmente em situações de emergência ou catástrofe”, e demonstram “compreender os planos de emergência para situações de catástrofe” (Regulamento n. 190/2015 da Ordem dos Enfermeiros, 2015, pp. 10087-10090). No entanto, em Portugal, a maioria dos programas curriculares do curso de licenciatura em enfermagem carece de conteúdos neste domínio. Do mesmo modo, os requisitos quanto às competências de um enfermeiro de cuidados gerais nestas situações estão vagamente definidos.
As escolas de enfermagem portuguesas possuem autonomia pedagógica e científica (Lei n.º 62/2007 da Assembleia da República, 2007, artigo 11º) para definirem os seus programas curriculares e a responsabilidade final pela implementação e desenvolvimento de conhecimentos e competências em gestão de situações de catástrofe para que os estudantes de enfermagem sejam capacitados para intervir eficaz e eficientemente nestes casos (Siemon et al., 2019). Rafferty-Semon et al. (2017) sublinham que esta abordagem favorece a aquisição de competências para intervir em situações de catástrofe por parte dos estudantes de enfermagem e promove a investigação baseada em evidência neste domínio.
Questões de investigação
Qual é o contributo das escolas de enfermagem para o desenvolvimento dos conhecimentos e competências na preparação para situações de catástrofe dos estudantes de licenciatura?
Qual é a opinião dos participantes sobre a capacidade dos programas curriculares em enfermagem das suas escolas de proporcionarem aos estudantes de licenciatura os conhecimentos e competências necessários para intervirem de forma eficaz e eficiente em situações de catástrofe?
Que competências definidas pelo Projeto Tuning Educational Structures in Europe - Fase 1 (2003) são essenciais para que os enfermeiros possam atuar de forma competente em situações de catástrofe?
Quais são os obstáculos (académicos e/ou profissionais) que se colocam à integração de conteúdos no domínio das catástrofes nos programas curriculares de enfermagem?
Metodologia
O estudo foi realizado em 35 escolas de enfermagem em Portugal Continental e nos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Os dados foram recolhidos entre maio e novembro de 2017. Quanto ao desenho do estudo, trata-se de um estudo qualitativo baseado em raciocínio indutivo para uma rigorosa análise deste fenómeno. Usou-se a metodologia exploratória com o fim de se obter uma compreensão crítica da realidade social e não de uma mera descrição. Esta metodologia possibilitou a transformação de formas implícitas de conhecimento em formas explícitas capazes de determinar a verdade através do discurso e/ou do conhecimento analítico (Leavy, 2018). A triangulação metodológica foi aplicada especificamente para fundamentar os dados, analisando o fenómeno através de múltiplas perspetivas e aumentando o conhecimento dos autores sobre o tópico, permitindo assim o surgimento de múltiplos pontos de vista (Leavy, 2018).
Inicialmente, para compreender se os programas curriculares das escolas de enfermagem permitiam aos estudantes desenvolverem as competências necessárias para agirem de forma eficaz e eficiente em situações de catástrofe, analisou-se o conteúdo de todos os 40 programas curriculares de licenciatura em enfermagem a nível nacional, disponibilizados nas páginas oficiais das escolas na Internet (incluindo unidades curriculares obrigatórias e opcionais).
Dos 40 programas curriculares, 85% não incluíam a temática da preparação e gestão de catástrofes, 7,5% incluíam-na como obrigatória e 7,5% como opcional. Neste último caso, a matéria só é lecionada se houver um número mínimo de estudantes inscritos ou caso haja disponibilidade por parte de um professor de enfermagem com experiência nesta área. Assim, assume-se que a formação na área da catástrofe encontra-se ainda em desenvolvimento e possui uma visibilidade reduzida nos programas curriculares de licenciatura em enfermagem atualmente ministrados nas escolas de enfermagem portuguesas.
Importa mencionar que a designação atribuída a algumas unidades curriculares não permitiu compreender se abordavam o tema da preparação e gestão de catástrofes. Para verificar a sua inclusão/exclusão, o conteúdo dos programas curriculares foi confirmado durante as entrevistas semiestruturadas com os presidentes dos conselhos técnico-científicos ou coordenadores/diretores do curso de licenciatura em enfermagem de cada escola.
O guião da entrevista foi organizado em três partes distintas. A primeira parte pretendeu apresentar brevemente o autor principal e explicar o objetivo do estudo. A segunda parte consistiu na caracterização sociodemográfica dos participantes. Os participantes eram presidentes de conselhos técnico-científicos ou coordenadores/diretores dos cursos de licenciatura em enfermagem e enfermeiros com experiência na prestação de cuidados de saúde em situações de catástrofe. Os participantes foram convidados a responder a quatro perguntas abertas. A terceira parte consistiu num questionário do tipo Likert organizado em cinco categorias. As categorias tinham como objetivo avaliar as perceções dos participantes, tendo em conta as competências essenciais definidas pelo Projeto Tuning Educational Structures in Europe - Fase 1 (2003), sobre as competências essenciais para promover a intervenção eficaz e eficiente dos enfermeiros na preparação e gestão de catástrofes.
Os participantes foram selecionados com base em certas características pessoais tidas como fundamentais para reunir a informação necessária, nomeadamente a capacidade de refletir sobre o tópico em questão. Os participantes no estudo são responsáveis pela operacionalização dos objetivos de aprendizagem e pelo alinhamento dos programas curriculares com as competências essenciais da enfermagem.
Levou-se a cabo um grupo focal para determinar se as perspetivas dos presidentes dos conselhos técnico-científicos ou coordenadores/diretores dos cursos de licenciatura em enfermagem coincidiam ou não com as perceções dos enfermeiros com experiência em prestação de cuidados de saúde em situações de catástrofe. A experiência dos participantes em cenários de catástrofe permitiu uma reflexão mais profunda e uma melhor interiorização dos conhecimentos e competências que os estudantes de enfermagem, enquanto futuros enfermeiros de cuidados gerais, devem adquirir, tendo contribuído com pontos de vista inovadores. O programa de conversação em tempo real Skype, versão 5, foi utilizado para realizar várias entrevistas.
Ao longo de ambos os processos, foram redigidas notas, com base na checklist COREQ - COnsolidated criteria for REporting Qualitative research, de modo a compreender melhor o fenómeno em estudo. A maioria das entrevistas semiestruturadas teve uma duração média de 30 minutos e o grupo focal 120 minutos.
O programa IBM SPSS Statistics, versão 25, foi utilizado para realizar a análise descritiva das características sociodemográficas e profissionais dos participantes no estudo. Foi realizada uma análise de conteúdo com base nos dados recolhidos, possibilitando retirar inferências e interpretações válidas. A análise, validação e organização dos dados foram feitas com base na categorização (sistemas de codificação) e através da identificação das unidades de registo, tendo em conta os princípios de exaustividade e exclusividade, representatividade, homogeneidade e produtividade de Bardin (2010). Depois das entrevistas terem sido transcritas, as transcrições (codificadas com a letra “E” de entrevistado e seguidas do número referente à ordem em que foram realizadas) foram entregues aos participantes para correção e comentários adicionais. Solicitiou-se aos participantes que dessem o seu consentimento para o uso de citações. A Figura 1 apresenta o desenho do estudo utilizado para responder às questões de investigação.
Do grupo inicial de 40 escolas de Enfermagem, 35 participaram neste estudo, sendo que duas não manifestaram qualquer interesse em participar e três não deram uma resposta atempada ao convite. Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Universidade Católica Portuguesa. Os participantes foram informados sobre o objetivo do estudo e assegurados quanto ao anonimato dos dados recolhidos e ao seu direito de não responderem a qualquer pergunta ou de se retirarem do estudo em qualquer momento.
Resultados
A análise dos dados e as leituras preliminares possibilitaram identificar elementos comuns que foram agrupados em dois domínios gerais: Necessidades educativas dos enfermeiros no desenvolvimento de competências em situações de catástrofe e Fatores que influenciam o desenvolvimento das competências dos enfermeiros em situações de catástrofe.
Quanto ao primeiro domínio, o objetivo foi o de identificar indicadores das principais tendências nas declarações dos participantes relativamente à importância e necessidade de integrar formação na área das catástrofes nos programas curriculares de licenciatura em enfermagem, assim como estratégias para ampliar os conhecimentos dos estudantes nesta área e a importância de uma abordagem educativa transdisciplinar.
A análise do segundo domínio incidiu na importância de uma regulamentação mais objetiva das competências essenciais dos enfermeiros em situações de catástrofe, a estrutura de competências essenciais para assegurar a atuação competente dos estudantes, futuros enfermeiros de cuidados gerais, em cenários de catástrofe, outros obstáculos académicos e/ou profissionais à integração de conteúdos em matéria de catástrofes nos programas curriculares em enfermagem e a avaliação da maturidade cognitiva dos estudantes de licenciatura em enfermagem para interiorizar conhecimentos na preparação e gestão de catástrofes. A Tabela 1 apresenta as diferentes categorias que emergem de ambos os domínios.
Domínio | Categorias |
Necessidades educativas dos enfermeiros no desenvolvimento de competências no domínio das catástrofes | Importância e necessidade de integrar formação na área das catástrofes nos programas curriculares de licenciatura em enfermagem; Estratégias para ampliar os conhecimentos dos estudantes de licenciatura em preparação e gestão de situações de catástrofe; Importância de uma abordagem educativa transdisciplinar na preparação e gestão de catástrofes. |
Fatores que influenciam o desenvolvimento das competências dos enfermeiros no domínio das catástrofes | Regulamentação mais objetiva e abrangente das competências essenciais dos enfermeiros em situações de catástrofe; Estrutura de competências essenciais para assegurar a atuação competente dos enfermeiros em cenários de catástrofe; Maturidade cognitiva dos estudantes de licenciatura em enfermagem para interiorizar conhecimentos em preparação e gestão de catástrofes. |
Apesar de todas as categorias emergentes e de acordo com o objetivo inicial, o presente estudo debruça-se sobre duas categorias: Estratégias para ampliar o conhecimento dos estudantes de licenciatura sobre preparação e gestão de situações de catástrofe e Regulamentação mais objetiva e abrangente das competências essenciais dos enfermeiros em situações de catástrofe. Estas categorias apreendem a essência do fenómeno em estudo e podem ser consideradas eixos orientadores na resposta aos objetivos delineados para este estudo.
Relativamente às estratégias para ampliar o conhecimento dos estudantes de licenciatura sobre preparação e gestão de situações de catástrofe, os participantes referiram a importância de incluir este tópico nos programas curriculares em enfermagem, possibilitando assim o desenvolvimento dos conhecimentos e competências dos estudantes de licenciatura nesta área:
A educação no domínio da catástrofe é fundamental, uma vez que possibilita o desenvolvimento de conhecimento e permite ao estudante de enfermagem - futuro enfermeiro - familiarizar-se, refletir, mobilizar esse conhecimento em contexto e agir responsavelmente no seio de uma equipa multiprofissional em contextos complexos e inesperados como estes. (I6)
“A educação no domínio das catástrofes é extremamente importante, ... permite que os estudantes intervenham eficazmente” (I7); “[A educação no domínio das catástrofes] é fundamental, uma vez que permite definir os objetivos e a forma de organizar e programar os conteúdos pertinentes a abordar no domínio das catástrofes” (I1); “Esta é certamente uma questão emergente que precisa de ser abordada no ensino em enfermagem. Merece atenção, mas sem descurar os fundamentos e a essência do que significa ser enfermeiro” (I13); “…a formação no domínio das catástrofes é sem dúvida importante porque permite aos estudantes adquirirem os conhecimentos básicos e reconhecerem os limites das suas competências como enfermeiros” (I35).
A segunda categoria, Regulamentação mais objetiva e abrangente das competências essenciais dos enfermeiros em situações de catástrofe, permitiu a identificação do conteúdo estrutural a ser integrado nos programas curriculares em enfermagem: “é importante ter orientações sobre as competências e conhecimentos sobre gestão de catástrofes que devem ser integrados nos programas curriculares de licenciatura em enfermagem,” (I7);
A educação em matéria de catástrofes deve ser regulamentada para assegurar a padronização das competências e conhecimentos desenvolvidos pelas escolas de enfermagem. A ambiguidade dos conteúdos geralmente transmitidos e as consequentes diferenças na sua interpretação podem tornar-se obstáculos à integração deste tópico nos programas curriculares de licenciatura em enfermagem. (I16)
“É crucial incluir matéria sobre situações de catástrofe nos programas curriculares de licenciatura em enfermagem que permita ao enfermeiro agir mais eficientemente nestes cenários” (I20).
É de realçar que é muito fácil delinear conteúdos de aprendizagem nos contextos dos Cuidados Intensivos ou Cuidados Paliativos uma vez que os tópicos a serem ensinados, o que precisa de ser transmitido ao estudante, estão de alguma forma bem fundamentados e definidos. No domínio das situações de catástrofe, não é assim tão simples... o que dificulta a sua integração nos programas curriculares de licenciatura em enfermagem. (I35)
Discussão
Os participantes no estudo afirmam que o conhecimento científico é a base a partir da qual os enfermeiros desenvolvem a sua capacidade de decisão e afirmam o seu valor na resposta a uma situação de catástrofe.
Os pontos de vista dos participantes sugerem que os estudantes de enfermagem necessitam receber uma formação sólida, integrada e não fragmentada no domínio da catástrofe, que deverá clarificar o espaço de intervenção que a enfermagem oferece nesta área, evitando assim a confusão quanto à intervenção do enfermeiro e reconhecendo e valorizando o contributo único que a enfermagem tem no domínio da catástrofe. Entender a enfermagem como uma profissão autónoma implica a definição integral dos conhecimentos profissionais essenciais e criação, distinção e especificação do seu lugar entre as outras disciplinas. Enquanto profissão autónoma dotada do seu papel específico, nomeadamente no domínio da catástrofe, a enfermagem não será reconhecida nem valorizada se não definir o seu corpo de conhecimentos e competências, especificando os padrões da sua prática e contribuindo assim com o conjunto único das suas competências e filosofia de cuidados para o esforço coletivo nestes contextos.
No entanto, o desenvolvimento de conhecimentos específicos neste domínio não é linear. A preparação e gestão de situações de catástrofe, dado o seu carácter transdisciplinar, requer uma inter-relação mais profunda e ilimitada com as outras disciplinas, incitando ao estabelecimento de interconexões entre as diferentes ciências e os seus respetivos processos de abordagem e gestão. (Murray et al., 2019). Lourenço e Amaro (2018) sublinham que o conhecimento e a gestão da catástrofe são complexos e que os limites entre as disciplinas que intervêm nestas situações são ténues. Assim, torna-se necessário adotar um modelo educativo transdisciplinar abrangente na gestão de catástrofe que reúna múltiplas perspetivas e que permita uma compreensão mais profunda, harmonize os pontos de vista e conhecimentos das diferentes disciplinas e não se concentre apenas na colaboração entre estas. Murray et al. (2019) referem que é necessário agregar as múltiplas perspetivas de conhecimento sobre este fenómeno e criar meios inovadores para produzir soluções holísticas e transformadoras. Por outro lado, uma abordagem monodisciplinar será simplista e insuficiente para enfrentar as numerosas dificuldades provocadas por uma catástrofe.
Assim sendo, a formação dos estudantes de enfermagem no domínio da catástrofe exige uma abordagem mais ampla tendo em conta a sua complexidade e a diversidade das variáveis presentes. Neste sentido, as escolas de enfermagem devem oferecer diferentes perspetivas disciplinares nesta matéria que possam de forma clara e objetiva ajudar a compreender e reter informação, métodos operacionais distintos e conteúdos. Nesta continuidade, as escolas de enfermagem deverão definir o seu plano curricular, no domínio da catástrofe, em consonância com conhecimentos e competências necessários, numa lógica conceptual mais abrangente que privilegia a transdisciplinaridade. Por exemplo, antes do 11 de Setembro de 2001, poucas escolas de enfermagem nos Estados Unidos da América ofereciam educação específica em assistência em situações de catástrofe. Após este acontecimento, a maioria das escolas reconheceu a necessidade de integrar conteúdos neste domínio nos seus programas curriculares de licenciatura em enfermagem. O resultado foi que atualmente os profissionais de enfermagem se encontram mais bem preparados para responder em caso de catástrofe (Littleton-Kearney & Slepski-Nash, 2008).
Este exemplo reforça a importância de se desenvolverem colaborações formais entre as escolas de enfermagem e outros intervenientes na gestão de assistência em situações de catástrofe, permitindo assim que contribuam para a definição de melhores normas e conteúdos programáticos no domínio da catástrofe.
Em contrapartida, existe a necessidade de uma entidade reguladora mais objetiva. A Ordem dos Enfermeiros afirma que “a regulamentação do exercício profissional de Enfermagem é o garante do seu desenvolvimento, permitindo a salvaguarda dos direitos dos que exercem a profissão de enfermeiro e das normas específicas que regem a profissão, potenciando, assim, a prestação de cuidados de Enfermagem de qualidade aos cidadãos.” (Regulamento n.º 555/2017 da Ordem dos Enfermeiros, 2017, p. 23633).
No entanto, a definição das competências dos enfermeiros em matéria de catástrofe não foi um processo consensual em Portugal (Ordem dos Enfermeiros, 2011). No que respeita ao perfil de competências da prática de enfermagem (especificado no Regulamento do Exercício Profissional do Enfermeiro - REPE) na preparação para catástrofes, a Ordem dos Enfermeiros estabelece que o enfermeiro tem competência para “responder eficazmente em situações de emergência ou catástrofe”, e que estes demonstram “compreender os planos de emergência para situações de catástrofe” (Regulamento nº. 190/2015 da Ordem dos Enfermeiros, 2015, pp. 10087-10090). Porém, na prática, estas competências são demasiado amplas, impedindo os enfermeiros de diferenciar e definir os seus percursos disciplinares ou desenvolver trajetórias de investigação ao contrário de outras disciplinas nesta área.
Uma regulamentação mais inclusiva e objetiva das competências dos enfermeiros portugueses no domínio da catástrofe é essencial para definir melhores programas de ensino, influenciar o envolvimento das escolas e elaborar programas curriculares de enfermagem com vista ao desenvolvimento das competências necessárias, garantindo uma aprendizagem de qualidade e melhores avaliações de aprendizagem.
Segundo Nunes (2016, pp. 16-17), este processo é crucial para enquadrar as formas de atuação e, assim, alcançar autonomia científica e técnica na clínica, no ensino, na investigação, na gestão e na assessoria. Nunes refere também que a autonomia atinge um dos seus pontos mais elevados quando [os enfermeiros] têm a liberdade de tomar decisões voluntárias e vinculativas coerentes com a sua conduta - daí a necessidade de autonomia para o estabelecimento de normas de prática. Amendoeira et al. (2003, p. 39) afirmam também que “torna-se evidente a importância de conhecer os... domínios e estruturas que servem de horizontes, de expectativas e que exemplificam maneiras específicas de pensar o fenómeno que neste caso é a clarificação da estrutura da disciplina. Compreender esta estrutura é essencial para ‘ensinar’ e ‘aprender’ a enfermagem”.
Embora tenham reconhecido que as escolas de enfermagem possuem autonomia científica e pedagógica (Lei n.º 108/1988 da Assembleia da República, 1988), os participantes concluíram que a Ordem dos Enfermeiros deveria ser capaz de regular de forma mais objetiva as competências dos enfermeiros no domínio da catástrofe. A Ordem dos Enfermeiros deve regular a prática profissional da enfermagem e definir regras e níveis de competência, estabelecendo a base para que as escolas de enfermagem portuguesas, nomeadamente os docentes de enfermagem, pois em última instância são eles que elaboram os planos curriculares, desenvolvam um programa curricular baseado em competências que integre a preparação e gestão de catástrofes, em conformidade com as Competências Essenciais do Docente de Enfermagem (Nurse Educator Core Competencies) da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2016, p. 7) que afirmam que “as competências destinam-se a auxiliar a preparação educacional do enfermeiro; garantir qualidade educacional e responsabilidade; e, em última análise, contribuir para melhorar a prestação de cuidados de enfermagem e os resultados dos serviços de saúde”.
Identificam-se como limitações desta investigação a escolha de uma metodologia qualitativa e os constrangimentos inerentes à mesma. Embora os autores tenham procurado satisfazer todos os requisitos de rigor inerentes à investigação qualitativa, o nível de conhecimento dos mesmos sobre o tópico poderá inadvertidamente introduzir um viés de interpretação ou privilegiar um determinado aspeto dos dados recolhidos. A falta de interação humana nos grupos focais realizados online pode também constituir uma limitação do estudo, uma vez que a participação online impede a perceção de sinais não verbais e impede o contacto interpessoal. Por último, este estudo é pioneiro na temática da necessidade de integrar formação no domínio da catástrofe nos atuais programas curriculares de licenciatura em enfermagem em Portugal. Por este motivo, é necessário aprofundar a investigação a fim de compreender melhor outras barreiras subjacentes que possam existir.
Conclusão
As atuais práticas educativas de enfermagem portuguesas continuam a ser herméticas e rigidamente estruturadas. As escolas de enfermagem devem proporcionar aos estudantes uma educação mais diversificada, promovendo a inovação, potenciando o conhecimento em diferentes áreas e melhorando a qualidade da educação em enfermagem. O conteúdo no domínio da catástrofe, em particular, está praticamente ausente da maioria dos programas curriculares de licenciatura em enfermagem em Portugal. Não existem igualmente critérios específicos e objetivos relativamente às competências de enfermagem necessárias no domínio da catástrofe, que os estudantes de enfermagem devem desenvolver, e que permitem a definição mais clara e robusta das competências essenciais, e a sistematização dos procedimentos e conhecimentos nesta área.
Este conjunto de competências essenciais irá também melhorar a definição dos padrões educativos e de práticas de enfermagem em situações de catástrofe, influenciando assim a elaboração de programas curriculares em enfermagem e as avaliações e resultados da aprendizagem. Assim sendo, as escolas de enfermagem devem integrar conteúdos no domínio da catástrofe nos seus programas curriculares de licenciatura, capacitando os enfermeiros para intervirem eficaz e eficientemente nestes contextos. Devem ser disponibilizadas diretrizes para o desenvolvimento de programas curriculares, promovendo a colaboração intersectorial, harmonizando os cursos de enfermagem nesta área a nível nacional e desenvolvendo mecanismos de monitorização da implementação e sustentabilidade destes programas educativos.