Introdução
Mundialmente, as infeções hospitalares (IH) têm sido associadas atualmente ao desenvolvimento de microrganismos resistentes, e resultados de estudos prévios demonstram que até 50% das IH nas unidades de terapia intensiva (UTI) possuem agentes etiológicos resistentes (Despotovic et al., 2020). Os doentes internados na UTI enquadram-se entre os mais suscetíveis ao desenvolvimento de IH, chegando a representar uma taxa de prevalência 10 vezes maior se comparada às médias de prevalência dos restantes doentes internados em outras unidades hospitalares. As IH aumentam as taxas de morbidade e mortalidade, o tempo de internamento e os custos relacionados com os serviços de saúde (Sabino et al., 2020).
A taxa de mortalidade por IH nas UTIs é de 70%, sendo muito maior que os valores apresentados por outras causas de mortalidade relacionadas com doentes críticos nessas unidades (Despotovic et al., 2020). As estratégias de prevenção das IH são fortemente suportadas por evidência científica. O uso das medidas de prevenção e as altas taxas de prevalência demonstram um grande desafio para os profissionais (Junior et al. 2020). Dentre essas medidas estão as práticas odontológicas, que têm como um dos focos principais a prevenção da pneumonia associada a ventilação mecânica (PAV), sendo a PAV uma das principais infeções que afetam doentes críticos (Klompas, 2019). A prevalência de PAV é de 9% a 27% em doentes entubados, e a taxa de mortalidade pode exceder 50% dos indivíduos em ventilação mecânica, com um aumento progressivo conforme aumenta o tempo de intubação (Galhardo et al., 2020; McCue & Palmer, 2019).
Assim, uma estratégia de prevenção de PAV é a prática de controlo do biofilme oral, por meio de higiene oral com anti-sépticos. O controlo do biofilme é um dos principais mecanismos para a redução da PAV, sendo a clorexidina o agente mais indicado (Galhardo et al., 2020), uma vez que é o anti-séptico oral de primeira escolha no controlo do biofilme dentário. A higiene oral com clorexidina de doentes ventilados mecanicamente está indicada, pelos benefícios demonstrados e pela sua relação com a redução da PAV (Guerra et al., 2019). No entanto, há a possibilidade de o tempo de ação deste fármaco se alterar em doentes internados na UTI.
Considerando a ausência de um protocolo definido sobre higienização oral em UTI, este estudo tem por objetivo avaliar o efeito da solução de clorexidina a 0,12% na redução de microrganismos na saliva de doentes internados em UTI.
Enquadramento
As intervenções das equipas multidisciplinares que atuam na avaliação, higiene oral e em procedimentos preventivos específicos por meio da utilização de anti-sépticos, constitui um importante cuidado com a saúde geral do paciente (Junior et al., 2020). A utilização de higiene oral com soluções anti-sépticas é uma das medidas odontológicas de prevenção das IH. A clorexidina é a substância mais indicada, em razão da sua ação efetiva no controlo do biofilme, por se tratar de um agente antimicrobiano de amplo espetro, além de apresentar substantividade que pode chegar a permanência de 12 horas na cavidade oral, pela sua libertação gradual por difusão (Galhardo et al., 2020). Com isso, doentes ventilados mecanicamente nas UTIs possuem taxas de mortalidade consideravelmente diminuídas quando a higiene oral é realizada com solução de clorexidina (Klompas, 2019). Contudo, sugere-se que o tempo de permanência dessa substância na cavidade oral de doentes internados e ventilados mecanicamente pode ser alterado devido a diversos fatores inerentes à situação crítica em que esses doentes se encontram (Rabello et al., 2018).
Dada a relevância do tema, a condição crítica de doentes internados em UTI representa um desafio para as diferentes profissões da área da saúde, e com isso torna-se relevante a utilização de protocolos baseados em evidência científica, com foco nas estratégias preventivas.
Questão de investigação
Qual o efeito da solução de clorexidina a 0,12% na redução de microrganismos na saliva em doentes internados em UTI?
Metodologia
Para este estudo coorte, realizado num hospital universitário no estado do Paraná (região sul do Brasil), foram incluídos voluntários internados na UTI e na clínica médica, divididos em 3 grupos (n = 15/grupo): controlo (Clínica Médica), UTI não-entubado e UTI entubado (Figura 1).
Os doentes internados na clínica médica (controlo) apresentavam condições para realizar a própria higiene oral (escovagem com pasta de dentes e bochecho com solução anti-séptica); este grupo foi definido como controlo, uma vez que possuem destreza motora para a realização das atividades diárias de forma independente. Os grupos UTI foram compostos por doentes entubados em ventilação mecânica (intubação orotraqueal) ou não-entubados (ventilação espontânea).
A investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética Institucional (CAAE: 44726615.9.0000.0105). Todos os participantes da clínica médica assinaram o termo de consentimento. Para os doentes da UTI (diferentes níveis de consciência), o termo foi assinado pelos responsáveis. A colheita de dados ocorreu no período de setembro a dezembro de 2015.
Para o cálculo amostral, foram utilizados os dados de um estudo piloto (não publicado) com cinco doentes internados na UTI, considerando a contagem de microrganismos em diferentes períodos. Com a média e desvio-padrão, obteve-se um tamanho de efeito de 0,88. Assim, foi possível estimar uma amostra de 37 voluntários para um poder de 87%. Considerando possíveis perdas no acompanhamento de voluntários, o tamanho amostral foi aumentado em 20%, com amostra final de 45 indivíduos (G*Power, versão 3.1.9.2).
Foram incluídos no estudo indivíduos com mais de 18 anos de idade e que estivessem internados há mais de 2 dias. Os critérios de exclusão foram: impossibilidade na abertura da boca, doentes da clínica médica com o autocuidado prejudicado (diagnóstico obtido por meio da avaliação da equipa de enfermagem), indivíduos com histórico de reação adversa à clorexidina ou a componentes da fórmula e doentes/responsáveis que não assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
A fim de caracterizar aspetos relacionados com a cavidade oral, foram considerados os seguintes parâmetros: condição das mucosas (analisada por meio de uma sequência sistemática para a deteção de alterações de cor, textura, superfície), contorno e tamanho (mucosa jugal, labial, palato duro e mole, gengiva, pilares amigdaliano, língua, assoalho da boca, e orofaringe visível); número de dentes; e higiene oral. A determinação da hipossalivação foi realizada através da análise do ressecamento das mucosas, com uma espátula de madeira, verificando a aderência no momento da sua remoção (mucosa jugal e dorso de língua), bem como através do próprio humedecimento da espátula após a remoção da cavidade oral (Das & Challacombe, 2016). Todas as avaliações clínicas foram realizadas com lanterna (luz LED branca), gaze e espátula de madeira. O protocolo para higiene oral foi realizado por um cirurgião-dentista, utilizando 5ml de solução de clorexidina 0,12%. As colheitas de saliva foram realizadas antes da higiene oral, imediatamente após a higienização, 30min., 3h, 12h, 24h e 36h após a higiene. Os parâmetros de avaliação oral foram reavaliados em cada segmento de tempo juntamente com a colheita da saliva. No intervalo entre os tempos experimentais, a higiene oral foi realizada normalmente com compressa de gaze humedecida com solução estéril de cloreto de sódio 0,9%, nos horários estabelecidos no protocolo do hospital (a cada 12h), visando evitar qualquer prejuízo da saúde geral do paciente durante o período de internamento. O grupo controlo realizou um bochecho com 5ml de clorexidina 0,12% por 1 minuto e prosseguiu com as escovagens habituais durante o período.
Foram realizadas colheitas de saliva da região lingual (dorso da língua) e da mucosa jugal, com auxílio de swab estéril. O swab com a amostra foi submerso em 3 ml de solução de salina tamponada com fosfato (PBS) estéril e armazenado para análise laboratorial microbiológica. A avaliação microbiológica foi realizada com a contagem total de microrganismos. Para isso, a solução de 3ml de PBS, contendo o swab utilizado na colheita, foi homogeneizada em agitador durante 60 segundos e diluída em 10-1, 10-2 e 10-3, e 100uL de cada solução, sendo posteriormente semeada em placa de cultura de Petri (20x100mm) contendo Agar Mueller Hinton. Posteriormente, as placas foram armazenadas em estufa, com temperatura constante (36,5oC) durante 24h para a contagem das unidades formadoras de colónias por mililitro (UFC/mL).
Para a análise das variáveis qualitativas: género, condição das mucosas (mucosa jugal, labial, palato duro e mole, gengiva, pilares amigdaliano, língua, assoalho oral, e orofaringe), hipossalivação (ressecamento da mucosa) e higiene oral; os doentes da UTI (não entubados e entubados) foram agrupados, sendo aplicado o teste Qui-quadrado. Para análise das variáveis quantitativas, a normalidade dos dados foi testada com teste de Kolmogorov-Smirnov. A contagem do número de UFC/ml na saliva não apresentou distribuição normal (p < 0,05), assim foi feita a transformação logarítmica dos dados. Desta forma, as variáveis quantitativas (idade, número de dentes e contagem de UFC) foram testadas com ANOVA e pós teste de Tukey. Para a comparação entre os diferentes períodos de análise dentro do mesmo grupo foi realizada ANOVA para medidas repetidas e pós teste de Tukey. O nível de significância foi de 5% (IBM SPSS Statistics, versão 21.0).
Resultados
Durante a investigação foram acompanhados todos os doentes. Apenas dois do grupo UTI entubado foram realocados para o grupo UTI não-entubado, uma vez que os mesmos foram extubados 2 horas após o início do estudo.
As características dos grupos são apresentadas na Figura 2. Os voluntários da clínica médica (controlo) apresentaram diferença significativa (p < 0,05) com relação à idade, em comparação com os doentes da UTI, sendo que os doentes na UTI apresentaram as maiores médias de idade. O grupo UTI entubado apresentou menor número de dentes em comparação ao controlo (p = 0,035). A hipossalivação foi observada com maior frequência nos doentes da UTI (p = 0,002).
A Figura 3 mostra a contagem salivar de microrganismos (percentual de UFC) em diferentes momentos. Notou-se declínio na quantidade de microrganismos em todos os grupos após higiene oral com solução de clorexidina. O controlo apresentou diferença significativa com o grupo UTI entubado nos períodos imediato (p = 0,042) e após 30min (p = 0,030). No grupo controlo, a redução microbiológica foi mais acentuada do que nos doentes da UTI. A comparação nos diferentes momentos dentro do mesmo grupo, mostrou redução significativa (p < 0,05) dos microrganismos em até 3 horas após o uso de clorexidina no grupo controlo e UTI não-entubados. No grupo UTI entubado, a diminuição no número de microrganismos foi significativa (p < 0,05) até 12 horas após higiene oral.
Discussão
Os resultados do estudo revelaram uma diminuição na contagem de bactérias até 12 horas após higiene oral, com solução de clorexidina 0,12% nos doentes entubados na UTI. Este resultado mostra que 62% dos microrganismos foram eliminados nas primeiras 12 horas após higiene oral dos doentes entubados. Todos os grupos do estudo apresentaram diminuição, imediatamente após a higiene oral, demonstrando o efeito antimicrobiano da solução de clorexidina 0,12% associado à ação mecânica. Os voluntários internados na clínica médica, que apresentavam destreza motora para realizar a própria higiene oral e os doentes da UTI não-entubados, apresentaram diminuição na quantidade de bactérias por 3 horas após higiene oral. Esse facto representa uma diminuição de 70% das bactérias bucais. Nesses dois grupos, após 12 horas, o número de microrganismos apresentava-se ainda reduzido, em 12% e 58%, respetivamente.
A clorexidina é utilizada amplamente na redução microbiológica da cavidade oral, e a sua influência na prevenção da PAV em doentes hospitalizados é relatada em diferentes pesquisas (Camargo et al., 2019; Deschepper et al., 2018; Meidani et al., 2018; Rabello et al., 2018; Vidal et al., 2017; Zand et al., 2017). Neste contexto, existe uma lacuna, ainda não esclarecida, relacionada com o tempo de redução dos microrganismos após higienização da cavidade oral com solução de clorexidina 0,12%, principalmente em doentes com tubo orotraqueal. Variações nos estudos, investigações em diferentes populações, concentrações, preparações da clorexidina e frequência de higienização, dificultam a comparação entre as diferentes conclusões (Galhardo et al., 2020; McCue & Palmer, 2019; Rabello et al., 2018; Zand et al., 2017). A literatura revela estudos em que a clorexidina não promoveu redução da contagem total de bactérias na cavidade oral após higienização em doentes ventilados mecanicamente (Vidal et al., 2017; Scannapieco et al., 2009). Os motivos para as divergências com os resultados deste estudo envolvem diferenças na metodologia de recolha do material (Scannapieco et al., 2009).
O mecanismo sugerido para a redução microbiológica em tempo mais curto nos doentes da Clínica Médica e UTI não-entubados, em comparação com os doentes UTI entubados, é suportado por estudos prévios. Primeiro, a literatura relata que os dentes são considerados um importante reservatório para microrganismos (Camargo et al., 2019; Vidal et al., 2017). Na presente investigação, a maioria dos doentes UTI entubados não possuíam dentes. Consequentemente, o aumento da quantidade de bactérias aderidas aos dentes nos voluntários da Clínica Médica e nos da UTI não-entubados, pode ter influenciado a contagem de UFC. Os doentes da clínica médica, com capacidade motora para escovagem, a interação com outras substâncias, como alimentos e pasta de dentes, pode ter tido uma interação com a clorexidina, e assim ter diminuído o tempo de ação da solução antimicrobiana utilizada (Kolahi & Soolari, 2006). Outra possível razão para o tempo reduzido nos doentes da clínica médica e UTI não-entubados, deve-se ao fato de que apresentavam capacidade para conversar e mastigar, e esses fatores extrínsecos reduzem a substantividade da clorexidina, com eliminação mais rápida da substância (Tomás et al., 2010).
As características de idade e género demonstram que as maiores médias de idade foram observadas nos doentes internados na UTI, acompanhado pela prevalência do género masculino, convergindo com resultados da literatura (Deschepper et al., 2018; Meidani et al., 2018). Os voluntários da clínica médica apresentaram fluxo salivar normal, o que também influencia a eliminação da clorexidina na cavidade oral. Em contrapartida, nos doentes da UTI entubados, em que a substantividade da clorexidina foi de 12 horas, pode ser explicado pela alta prevalência do quadro de hipossalivação, somado ao facto da menor quantidade de dentes e redução da capacidade motora.
Com base nos resultados sobre o tempo de redução microbiológica após a higienização com clorexidina, devem ser considerados os aspetos relacionados com os custos e o impacto das estratégias, para melhorar a eficiência dos protocolos de higienização. A higiene oral com clorexidina reduz a PAV, diminuindo assim os custos com materiais, equipe de profissionais, medicamentos e estrutura. Desta forma, a implementação desta prática torna-se importante dentro do protocolos hospitalares. A UTI é a área que recebe e exige mais recursos financeiros em saúde, com uma estimativa de 20% dos gastos de todo o hospital (Kyeremanteng et al., 2018). Os cálculos de estudos europeus demonstram que o custo na UTI por dia é de €1.168 a €2.025, sendo que em 2016 o custo reportado, no Reino Unido, foi de £1,738. Constata-se que, na literatura, em 2015 o custo da ventilação mecânica por dia atingiu a média de £1.863. Mais especificamente, o custo com a PAV foi de £61 por paciente/dia (Saunders & Geogopoulos 2018). No hospital onde decorreu este estudo, o protocolo preconizado é higiene oral com clorexidina 0,12% quatro vezes/dia. Com base nos dados dos doentes entubados na UTI, evidenciaram-se 12 horas de substantividade de clorexidina, o que sugere que a higiene oral com clorexidina duas vezes ao dia é eficiente, com diminuição nos custos com o produto em 50% por dia, além da redução da PAV e, como consequência, redução em todos os custos relacionados com o paciente entubado.
Seguimos o protocolo padrão da unidade hospitalar para higiene oral e com o objetivo de evitar prejuízo na saúde geral do doente, durante o período experimental, apenas a primeira higiene oral foi realizada com clorexidina e as demais com gaze umedecida em solução estéril com cloreto de sódio. Esse método de higiene oral aplicada uma única vez, para investigar a quantidade de bactérias após higienização em intervalos de tempo, foi utilizado num estudo prévio (Scannapieco et al., 2009). A redução total de microrganismos foi verificada por meio da análise de UFC/ml, que é um método bem estabelecido para investigar a quantidade de bactérias (Zand et al., 2017). Assim, sugere-se que a redução do tempo entre as higienizações com clorexidina seja uma estratégia utilizada, desde que o procedimento seja realizado corretamente.
As principais limitações do estudo envolvem o desenho coorte num único centro, o que pode limitar as generalizações, bem como a dificuldade em compor um grupo controlo para comparação entre os doentes. Os voluntários da clínica médica, por serem capazes de realizar a própria higiene, estão relacionados com variáveis como diferentes técnicas de escovagem, utilização de diferentes marcas de produtos, por exemplo a pasta de dentes, que podem ter influência ou interação com a clorexidina e interferir nos resultados.
Um dos aspetos mais relevantes no tema do estudo é a redução das taxas de mortalidade e dos efeitos adversos. O uso da clorexidina pode causar alguns efeitos adversos como ulceração da mucosa oral, manchas nos dentes, língua, restaurações e alteração do paladar (Guerra et al., 2019; Zand et al., 2017). A possibilidade de diminuir em metade o número de vezes que é realizada a higiene oral com clorexidina nos doentes entubados, pode ser acompanhada também da diminuição dos efeitos adversos. Neste sentido, os resultados desta investigação permitem o desenvolvimento de futuras investigações e aumentam as perspetivas de otimização de estratégias de prevenção e redução das IH, principalmente a PAV, e consequentemente melhorar a qualidade da atenção à saúde no âmbito hospitalar.
Conclusão
Os resultados demonstraram que a higiene oral com clorexidina reduz em até 12 horas a quantidade de microrganismos presentes na cavidade oral de doentes entubados internados em UTI. Em doentes não-entubados na UTI e em voluntários da clínica médica, ocorre uma redução bacteriana, que se mantém por até 3 horas após uso da solução de clorexidina. Desta forma, é evidente que estes resultados podem contribuir para a elaboração eficiente de protocolos focados em doentes internados em UTI, com o uso da solução de clorexidina 0,12%, além de se tornar uma estratégia com consequente redução nos custos hospitalares e efeitos colaterais associados à substância.