Introdução
O trauma é um importante problema de saúde pública, responsável anualmente por 5,8 milhões de mortes em todo o mundo (Mock et al., 2009). Em Portugal, no ano de 2018, mais de 10% dos atendimentos nos serviços de urgência foram motivados por lesões provocadas por acidente e 3.137 pessoas acabaram por morrer (Instituto Nacional de Estatística [INE], 2020). As implicações decorrentes do trauma acarretam considerável impacto social e económico, isto porque, por cada morte, ocorrem dezenas de hospitalizações, centenas de consultas em serviços de urgência (SU) e milhares de consultas médicas (Parreira et al., 2017). Acresce ainda a elevada morbilidade destas pessoas e as sequelas resultantes destas situações.
É objetivo das equipas de assistência pré-hospitalar providenciar respostas de socorro, de elevada qualidade e rapidez, o que exige, naturalmente, recursos humanos com treino (Alarhayem et al., 2016) e com capacidade de decisão para implementarem medidas eficazes e efetivas.
Em 2007, no âmbito do Processo de Requalificação das Urgências, o Ministério da Saúde, criou um novo meio de assistência pré-hospitalar, as Ambulâncias de Suporte Imediato de Vida (ASIV), tripuladas por um enfermeiro, líder da equipa, e um técnico de emergência pré-hospitalar. O socorro prestado por estas equipas inclui as ocorrências pré-hospitalares para vítimas de acidente ou doença súbita, apoio diferenciado na prestação de cuidados no SU e no transporte inter-hospitalar de pessoas em situação crítica, oferecendo para o efeito uma resposta igualmente diferenciada (Despacho nº 5561, 2014).
Como elementos integrantes da equipa, os enfermeiros assumiram-se como um pilar basilar no cerne da emergência pré-hospitalar. Contudo, durante mais de 10 anos de existência, não existe nenhum estudo publicado sobre a efetividade da intervenção destes meios de socorro, além de, permanecer omisso nos relatórios oficiais que documentam a prestação de serviços do Sistema Nacional de Saúde.
Face ao exposto, este estudo tem como objetivo avaliar a eficácia da intervenção de enfermagem na estabilização da pessoa vítima de trauma, no contexto do socorro pré-hospitalar prestado pelos enfermeiros das ASIV em Portugal.
Enquadramento
O trauma é a principal causa de morte na faixa etária de 1 a 44 anos, sendo a maioria das vítimas do sexo masculino (American College of Surgeons [ACS], 2012; INE, 2020). Pode ser entendido como uma doença que envolve a troca de energia entre o meio ambiente e o corpo, resultando em lesões que acometem os diferentes órgãos e sistemas (Parreira et al., 2017). Aproximadamente 50% das mortes por trauma têm como causa o choque hemorrágico, que é potencialmente evitável (Brinck et al., 2016). O compromisso das funções vitais, como resultado da instalação do quadro de trauma, provoca uma insuficiência de fornecimento tecidual de oxigénio pelo convencional metabolismo aeróbio (D’Alessandro et al., 2017; Johnson et al., 2017). As alterações metabólicas, associadas à diminuição da perfusão de oxigénio, contribuem para uma falência fisiológica que conduz a vítima a um ciclo vicioso denominado de tríade letal: acidose metabólica, hipotermia e coagulopatia (Johnson et al., 2017).
A mortalidade verificada no contexto de trauma segue uma distribuição trimodal, isto é, com três picos fundamentais: o primeiro, ocorre nos primeiros segundos a minutos após o trauma, é resultado de lesões fatais e parece poder ser reduzido apenas com prevenção; o segundo acontece de minutos a várias horas após o trauma, resultante de lesões potencialmente fatais, quando não são oferecidos cuidados diferenciados; o terceiro pico sobrevém vários dias ou semanas após o trauma, e é o resultado de complicações multiorgânicas. Para evitar o segundo e terceiro picos, os cuidados de saúde assumem um nível de preponderância maior (Alvarez et al., 2016; ACS, 2012).
A literatura científica internacional referente ao contexto pré-hospitalar tende a relevar as intervenções desenvolvidas por outros técnicos ao invés dos enfermeiros, muitas vezes porque, em vários países, não são os enfermeiros que prestam esta assistência. Por outro lado, a própria enfermagem pré-hospitalar tende ainda a direcionar as suas práticas para a dicotomia saúde/doença e ações interdisciplinares (Mota, Cunha, Santos, Cunha, et al., 2019) contribuindo, em última instância, para a não afirmação e diferenciação de campos de intervenção valorizados pelas vítimas, famílias e sociedade.
Importa referir que, à semelhança de Portugal, muitos países, como a Suécia, Finlândia, Bélgica, Inglaterra, País de Gales, Espanha ou Holanda incluem nos serviços de emergência médica enfermeiros nos cuidados pré-hospitalares (Soren et al., 2015). Os enfermeiros que desempenham funções no pré-hospitalar assumem especial importância na avaliação da doença e das feridas das vítimas, no tratamento e na orientação para um nível ótimo de cuidados e com isso criam condições para a implementação de cuidados baseados nas necessidades individuais (Soren et al., 2015). A enfermagem pré-hospitalar é uma parte importante dos cuidados de emergência em muitas organizações de saúde em todo o mundo e os enfermeiros são responsáveis pela prestação de primeiros socorros, tratamentos e acompanhamento das vítimas antes da sua admissão no hospital. Exige-se aos enfermeiros do pré-hospitalar durante todo o processo assistencial, no local da ocorrência e na ambulância, a monitorização e a avaliação do estado global das pessoas, assim como, a prestação de tratamentos e cuidados de enfermagem adequados (Soren et al., 2015; Mota, Cunha, Santos, Cunha, et al., 2019). A avaliação da qualidade dos cuidados no socorro pré-hospitalar não deve, por isso, focar-se exclusivamente nas taxas de mortalidade e/ou morbilidade, devendo operacionalizar pressupostos que permitam adotar outras prioridades como a gestão da dor, do frio, do contexto adverso, do medo, da família e de todas as variáveis que comprometem todas as dimensões da saúde (Mota, Cunha, Santos, Cunha, et al., 2019). Em Portugal, as práticas e os resultados das intervenções de enfermagem pré-hospitalar no socorro às vítimas de trauma são ainda pouco estudados.
Questões de Investigação
Quais as características das vítimas de trauma em que os Enfermeiros das ASIV intervêm?
Qual o impacto das intervenções de enfermagem na reversão do quadro clínico das vítimas de trauma, assistidas em contexto pré-hospitalar pelos enfermeiros das ASIV?
Metodologia
Estudo observacional, prospetivo e descritivo-correlacional. Foram incluídas vítimas de trauma, socorridas em Portugal Continental no período de 1 de março de 2019 a 30 de abril de 2020, e Arquipélago dos Açores, no período de 1 de outubro de 2019 a 30 de abril de 2020, que satisfizessem os seguintes critérios de inclusão: vítimas de trauma com mais de 18 anos; socorridas pelos enfermeiros ASIV, sem interferência direta de outros profissionais; vítimas de trauma contuso ou penetrante. Os critérios de exclusão foram: vítimas de trauma que tenham apresentado em algum momento paragem cardiorrespiratória; vítimas de lesões provocadas por queimaduras ou intoxicações.
Os dados foram colhidos pelos enfermeiros que prestam cuidados nas ASIV das delegações Norte, Centro e Sul do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e nas ASIV do Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores (SRPCBA). Todos os enfermeiros participaram voluntariamente e assinaram o termo de consentimento informado.
Os enfermeiros participantes preencheram o Questionário Socioprofissional do Enfermeiro do Pré-hospitalar e aplicaram a Ficha Clínica da Vítima Socorrida no Pré-Hospitalar. O investigador principal realizou formação específica aos enfermeiros para o preenchimento da Ficha Clínica da Vítima Socorrida no Pré-Hospitalar, para uniformizar a colheita de dados reduzindo o risco de viés.
Para caracterizar as vítimas e a sua situação clínica, incluíram-se as seguintes variáveis: idade, sexo, localização do trauma, tipo e mecanismo de trauma, tempo de socorro e de transporte, intervenções administradas e índices de gravidade do trauma. Estes índices, que indicam o maior ou menor nível de gravidade das vítimas, foram avaliados antes e após as intervenções dos enfermeiros. Para este efeito, foram utilizadas a Revised Trauma Score (RTS), Shock Index (SI) e Mechanism, Glasgow coma scale, Age, and arterial Pressure (MGAP). A RTS é uma escala fisiológica que inclui a avaliação neurológica da vítima através da Escala de Coma de Glasgow; avaliação hemodinâmica do traumatizado obtida pela pressão arterial sistólica e frequência respiratória, cuja variação possível está compreendida entre 1 e 12. Scores mais elevados indicam maior probabilidade de sobrevivência (Champion et al., 1989; Gabbe et al., 2003). A SI é uma escala usada para o diagnóstico precoce de hipovolémia aguda. Scores mais elevados indicam maior gravidade (Cannon et al., 2009; Mutschler et al., 2013). De acordo com Mutschler e colaboradores (2013), o SI pode, ainda, ser estratificado em 4 classes: I - sem choque (SI <0,6); II - choque ligeiro (SI ≥0,6 e <1,0); III - choque moderado (SI ≥1,0 e <1,4); e IV - choque grave (≥1,4).Por fim, a MGAP incorpora a Escala de Coma de Glasgow, a pressão arterial sistólica, a idade e o mecanismo de trauma, cuja variação possível está compreendida entre 3 e 29. São definidos três grupos de níveis de gravidade: baixo (23-29 pontos), intermédio (18-22 pontos), e alto risco (<18 pontos; Sartorius et al., 2010).
As intervenções implementadas pelos enfermeiros comportam diferentes ações que foram agrupadas em sete grandes grupos: medidas de suporte de vida (aspiração da via aérea; subluxação da mandibula; extensão da cabeça; colocação de tubo orofaríngeo; ventilação manual; oxigenoterapia); medidas de suporte hemodinâmico (acesso intraósseo; colocação de um ou mais acessos venosos periféricos; administração de fluidoterapia); medidas de aquecimento (ativas e passivas); medidas farmacológicas (morfina; tramadol; midazolan; e paracetamol) e não farmacológicas (crioterapia; aplicação de calor; distração; imobilização; elevação das extremidades lesadas e possibilitada a presença de familiares e/ou amigos) para analgesia; tratamento de feridas; e técnicas de imobilização.
Para caracterizar demográfica e profissionalmente os enfermeiros que socorreram as vítimas (e colheram os dados), as variáveis em estudo foram: idade, sexo, tempo de serviço, tempo de serviço como enfermeiro do pré-hospitalar, habilitações académicas e profissionais.
O estudo insere-se no projeto Evidências para Não Arriscar MaisVidas: do pré-hospitalar ao serviço de urgência e à alta (MaisVidas), referência: PROJ/UniCISE/2017/0001 e obteve parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde do Centro Hospitalar Tondela-Viseu de 21 de maio de 2018. Obteve, ainda, parecer favorável do INEM, de 25 de janeiro de 2019, e do SRPCBA, de 16 de setembro de 2019.
O tratamento de dados, foi realizado com recurso ao software IBM SPSS Statistics, versão 23.0. Os dados foram explorados através de estatística descritiva (medidas de tendência central) e inferencial. Para a estatística inferencial utilizou-se o teste t para amostras emparelhadas para determinar se existia diferença no quadro clínico das vítimas de trauma nas escalas SI e RTS. O teste não paramétrico de Wilcoxon para amostras emparelhadas foi utilizado para determinar se existe diferença quanto ao nível de choque das vítimas, com recurso à SI estratificada. Considerou-se estatisticamente significativo um p < 0,05.
Resultados
A amostra do presente estudo inclui 606 vítimas de trauma (Tabela 1), maioritariamente do sexo masculino (66,3%; n = 402) e com uma média de idade de 53,3 anos (±19,6).
Relativamente ao tipo de trauma sofrido, verificou-se a predominância do trauma fechado (79,4%; n = 481), em detrimento do penetrante (15,7%; n = 95). Quanto ao mecanismo de trauma, os acidentes rodoviários foram os mais frequentes (40,8%; n = 247), seguidos pelas quedas (37,0%; n = 224). Importa realçar que estes dois mecanismos representaram quase 80% da totalidade dos traumas observados. As agressões resultaram maioritariamente em trauma penetrante (84,0%, n = 21), enquanto que as quedas, os acidentes rodoviários e os atropelamentos resultaram, na sua maioria, em trauma fechado (86,2%, n = 193; 88,3%, n = 218; e 81,8%, n = 36, respetivamente). A localização anatómica do trauma mais frequentemente observada foi o cranioencefálico (44,7%; n = 271), seguida dos membros inferiores (38,4%; n = 233). O número de localizações anatómicas do trauma variou entre uma (46,0%; n = 279) e mais de quatro (9,1%; n = 55).
Características | n (%) |
Idade Média (DP) Mínima Máxima | 53,3 (19,6) 18 96 |
Sexo Masculino Feminino | 402 (66,3) 204 (33,7) |
Tipo de trauma Fechado Penetrante Fechado e penetrante | 481 (79,4) 95 (15,7) 30 (5,0) |
Mecanismo de trauma Agressão Queda Acidente rodoviário Atropelamento Outros | 25 (4,1) 224 (37,0) 247 (40,8) 44 (7,3) 66 (10,9) |
Localização do trauma Cranioencefálico Pescoço Tórax Abdominal Pélvico Membros superiores Membros inferiores Vertebro medular | 271 (44,7) 99 (16,3) 206 (34,0) 102 (16,8) 84 (13,9) 200 (33,0) 233 (38,4) 133 (21,9) |
Número de diferentes localizações de trauma = 1 2 - 4 > 4 | 279 (46,0) 272 (44,9) 55 (9,1) |
Nota. DP = desvio-padrão
Na Tabela 2, pode verificar-se que desde a ativação das ASIV até à chegada ao local da ocorrência, o tempo médio foi de 18,4 minutos (±13,4). Na assistência prestada pelos enfermeiros no socorro pré-hospitalar, destacaram-se dois momentos: no local do incidente, onde o tempo médio despendido foi de 32,1 minutos (±15,6); e o transporte da vítima para a unidade de referência, cujo tempo médio foi de 37,8 minutos (±22,7).
Tempos em minutos | Média (DP) |
Tempo até ao local | 18,4 (13,4) |
Tempo no local | 32,1 (15,6) |
Tempo do local ao hospital | 37,8 (22,7) |
Tempo desde a chegada ao local até à chegada ao hospital | 69,8 (29,1) |
Tempo total da intervenção de socorro | 88,1 (34,8) |
Nota. DP = desvio-padrão
A catalogação das intervenções administradas pelos enfermeiros das ASIV (Tabela 3), revela que na maioria das vítimas houve necessidade de administrar intervenções de suporte hemodinâmico (88,9%; n = 539) e em 79,7% (n = 483) técnicas de imobilização. Para o controlo da dor, foram administradas diferentes intervenções, agrupadas em dois grupos fundamentais: medidas farmacológicas e não farmacológicas. De realçar que as medidas não-farmacológicas para analgesia foram administradas à maioria das vítimas (90,6%; n = 549).
Aplicação de Intervenções Clínicas | n (%) |
Medidas de suporte de vida | 220 (36,3) |
Medidas de suporte hemodinâmico | 539 (88,9) |
Medidas de aquecimento | 455 (75,1) |
Medidas farmacológicas para analgesia | 428 (70,6) |
Medidas não-farmacológicas para analgesia | 549 (90,6) |
Tratamento de feridas | 414 (68,3) |
Técnicas de imobilização | 483 (79,7) |
A gravidade do trauma, avaliado pela MGAP, revela que 20,0% (n = 121) das vítimas, na avaliação inicial, apresentava estado clínico desfavorável (Tabela 4).
Os resultados obtidos pela aplicação da RTS permitem concluir que houve uma evolução clínica favorável e estatisticamente significativa, das vítimas de trauma assistidas pelos enfermeiros das ASIV, entre o momento inicial e o final (DM = 0,04; IC95% = 0,02 - 0,07; p < 0,001). Esta melhoria é corroborada pelos achados clínicos avaliados pela aplicação do SI (DM = -0,02; IC95%= -0,03 - -0,01; p < 0,001).
Índices de gravidade do Trauma | Avaliação Inicial | Avaliação Final | p-value |
MGAP AI, n (%) < 18 18 - 22 > 23 | 11 (1,8) 110 (18,2) 485 (80,0) | N/A N/A N/A | N/A N/A N/A |
RTS, M (DP) | 7,70 (0,51) | 7,74 (0,42) | <0,001 |
Shock Index, M (DP) | 0,65 (0,18) | 0,63 (0,14) | <0,001 |
Nota. MGAP = Mechanism, Glasgow coma scale, Age, and Arterial Pressure;
RTS = Revised Trauma Score; M = média; DP = desvio-padrão; N/A = não aplicável
A evolução global das vítimas avaliada pelo SI estratificado (Figura 1) permite concluir que houve diminuição da percentagem de vítimas com choque moderado do momento inicial para o momento final (4,6%; n = 27 vs 1,5%; n = 9) e das vítimas com choque grave (0,3%; n = 3 vs 0,2%; n = 1), sendo estes resultados estatisticamente significativos (p < 0,05).
Discussão
O presente estudo é o primeiro realizado em Portugal a caracterizar a intervenção do enfermeiro no socorro pré-hospitalar à vítima de trauma. Os resultados obtidos indicam que a tomada de decisão dos enfermeiros, enquanto team leaders da equipa das ASIV, para as intervenções a adotar na assistência às vítimas de trauma foi eficaz para a estabilização hemodinâmica e clínica destas vítimas, o que se demonstrou através de evolução positiva das vítimas avaliadas pelas escalas de gravidade RTS e SI.
Em Portugal Continental, o INEM é responsável por coordenar o funcionamento do Sistema Integrado de Emergência Médica (SIEM), de forma a garantir à comunidade a prestação de cuidados de saúde necessários no contexto pré-hospitalar (Ministério da Saúde, 2017), atribuindo às ASIV as ocorrências com o nível máximo de prioridade. Infere-se, portanto, que a pertinência e mais valia dos enfermeiros neste contexto é de enorme destaque e de vital importância.
Durante o período em que decorreu o estudo, foram reportados pelos enfermeiros 606 situações de trauma na população acima dos 18 anos assistidas pelas equipas das ASIV. Estes resultados estão em consonância com os de outros autores que referem que o trauma é um evento com elevada incidência em adultos e adultos jovens (ACS, 2012). O impacto pessoal, social e económico desta realidade deve estimular as autoridades de saúde a apostar em estratégias que potenciem a prevenção das situações de trauma e a capacidade de assistência no socorro quando as situações de trauma ocorrem.
A maioria das vítimas de trauma necessita de resposta cirúrgica hospitalar, pelo que, não é expectável que no contexto pré-hospitalar se corrijam todas as causas que aumentam a probabilidade de morte. Um considerável número de pessoas tem morte imediata ou nos primeiros minutos, e a prevenção de acidentes é a única estratégia existente que permite corrigir este fenómeno (Alvarez et al., 2016). Por outro lado, um número considerável de vítimas necessita de suporte assistencial para evitar o segundo pico de mortalidade. Como já apontado, na maior parte dos casos o tratamento definitivo é cirúrgico e é exigido às equipas de socorro a capacidade de implementar medidas que permitam às vítimas ganhar tempo. Estas medidas visam estabilizar a vítima e diminuir o tempo que as separa do tratamento definitivo (Spahn et al., 2019). As intervenções dos enfermeiros das ASIV pretendem responder a diferentes necessidades, sejam elas de suporte de vida, de estabilização hemodinâmica, ou, por outro lado, relacionadas com a própria gestão da dor. Estas diferentes intervenções permitem identificar e controlar hemorragias externas e reconhecer sintomatologia relativa a hemorragias internas e com isso priorizar o rápido transporte para unidades cirúrgicas de referência. Permitem ainda promover o conforto às vítimas, num ambiente hostil, e promover uma abordagem ajustada à proteção da pessoa quanto a possíveis lesões impossíveis de diagnosticar no pré-hospitalar. O tratamento de feridas e a aplicação de medidas de imobilização são o resultado da necessidade de prevenir o agravamento clínico da pessoa no pós-socorro pré-hospitalar. Estas medidas, além de salvaguardarem a integridade e estrutura musculoesquelética, contribuem para a diminuição das infeções inerentes à cinemática dos eventos de trauma, por compromisso do tecido cutâneo, e à própria infeção associada aos cuidados de saúde.
Apesar da vital importância do papel das equipas de socorro para a sobrevivência das vítimas de trauma, não existem estudos nacionais que atestem a sua eficácia. Por outro lado, como internacionalmente as equipas de socorro, muitas vezes, são tripuladas por outros técnicos de saúde, o papel da enfermagem pré-hospitalar encontra-se profundamente oculto e omisso do ponto de vista da investigação. Também nesta área este estudo se revelou pioneiro. Pela primeira vez e através dos diferentes índices de gravidade do trauma (MGAP, RTS e SI) foi possível comprovar a eficácia da intervenção dos enfermeiros constatando-se uma melhoria estatisticamente significativa do estado das vítimas. Este achado clínico é documentado pelos resultados obtidos pela aplicação da RTS e do SI, verificando-se a melhoria clínica da condição hemodinâmica das vítimas [DM = 0,04 e 0,02 (p < 0,001), respetivamente]. Depois de estratificada a escala do SI (Mutschler et al., 2013), também se verificou uma redução de mais de 50% das vítimas classificadas nos dois níveis de maior severidade (choque moderado e grave). A obtenção desta melhoria clínica é o resultado da implementação, pelos enfermeiros, de complexas e diferentes medidas avançadas de suporte de vida.
As intervenções aplicadas pelos enfermeiros focam a estabilização fisiológica das vítimas, através de medidas de suporte de vida e de suporte hemodinâmico, mas também, vão ao encontro da essência da enfermagem, que tem na sua génese o cuidar, pela forte preocupação demonstrada na administração de medidas relacionadas com a promoção do conforto e na gestão e tratamento da dor (Mota, Cunha, Santos, Silva, et al., 2019). O presente estudo permitiu, ainda, concluir que os enfermeiros focam a sua prática em mais do que na mera administração de medidas farmacológicas para o alívio da dor e do desconforto, pois observou-se a implementação, na maioria das vítimas, de intervenções não-farmacológicas.
De acordo com os tempos médios obtidos podemos afirmar que a gestão do socorro no local da ocorrência revela a preocupação dos enfermeiros das ASIV em administrar intervenções no menor período de tempo possível, pois em média, o tempo de socorro no local de ocorrência da situação foi de 32,1 minutos (±15,6). É pertinente salientar que o tempo total do socorro é, em média, praticamente três vezes superior aquele despendido no local da ocorrência [88,1 minutos (±34,8)], certamente decorrente das distâncias geográficas a percorrer. A avaliação da qualidade do socorro merece, por isto, algumas reservas, já que a distância que separa as ASIV do local da ocorrência e a distância que separa o local da ocorrência das unidades hospitalares de referência podem influenciar o estado clínico da vítima, sem que as intervenções administradas possam, a esse nível, ter efeito/influência. O encurtamento destes tempos dependerá, por isso, mais do resultado de decisões políticas no que respeita à distribuição de meios e unidade prestadoras de cuidados de saúde diferenciados do que, apenas, da melhoria de intervenções clínicas.
Outro aspeto que este estudo documenta relaciona-se com a alta prevalência do politraumatismo, pois aproximadamente metade das vítimas apresenta mais do que uma única localização de trauma e 9,1% (n = 55) ostenta cinco ou mais. Nesse sentido, é necessário que a definição de protocolos de intervenção, do INEM, tenha em consideração diferentes abordagens para os modelos possíveis de lesões e que o seu modelo formativo atente igualmente esta realidade pois o atual é muito focado em intervenções de trauma com localização específicas o que, como verificámos, não se coaduna com a realidade da prática clínica.
Apesar de este estudo contribuir para o conhecimento efetivo das situações de trauma ocorridas em Portugal, socorridas pelas equipas das ASIV e de ser uma importante alavanca para o desenvolvimento da enfermagem pré-hospitalar, não é isento de limitações. Primeiro, independentemente do facto de se tratar de um estudo multicêntrico, com larga amostragem, apenas foram incluídas vítimas de trauma socorridas pelas equipas das ASIV, podendo não ser representativo da realidade portuguesa sobre o trauma. Segundo, os índices de gravidade de trauma foram operacionalizados para permitir a avaliação da eficácia das intervenções dos enfermeiros no socorro pré-hospitalar. Também a multiplicidade de lesões, associada à diferente apresentação clínica de cada vítima, dificulta a inferência dos dados. Esta heterogeneidade clínica condicionou as extrapolações dos diferentes modelos testados. No futuro, devem ser realizados desenhos de estudos mais robustos que acautelem estes dados e análises. Reconhece-se, no entanto, o contributo para o conhecimento da eficácia do socorro prestado pelas ASIV às vítimas de trauma, bem como para revelar pontos específicos para investigações futuras.
Conclusão
O trauma é um fenómeno altamente prevalente e impactante e que carece de uma resposta complexa devido à sua apresentação multiforme.
Os enfermeiros que integram as Ambulâncias Suporte Imediato de Vida, para assegurar a gestão do trauma, administram um vasto conjunto de medidas entre as quais, maioritariamente, se destacam o suporte hemodinâmico e o controlo não-farmacológico da dor. No seu conjunto, as intervenções administradas melhoraram todos os índices de gravidade das vítimas de trauma, desde o momento inicial de socorro até à chegada à unidade hospitalar de referência.
No que às implicações para a prática diz respeito, este estudo assume-se como fundamental na medida em que é o primeiro que retrata amplamente o panorama do socorro pré-hospitalar de trauma em Portugal, fornecendo dados relevantes para a otimização dos protocolos de intervenção, bem como dos modelos de formação vigentes, que se coadunem com a atual realidade.