Introdução
As vicissitudes epidemiológicas têm levado a um crescimento progressivo da incidência de novos casos de cancro. Em consequência do envelhecimento populacional, mas sobretudo, dos avanços na deteção precoce e nos tratamentos mais eficazes e dirigidos, as taxas de sobrevivência ao cancro a 5 e a 10 anos têm aumentado. Só nos Estados Unidos da América, as projeções de prevalência dos sobreviventes de cancro passaram de um valor estimado de 16,9 milhões no início de 2019, para 22,1 milhões, em 2030 (American Cancer Society [ACS], 2019). Esta problemática ganha contornos de maior gravidade uma vez que os tratamentos em oncologia estão associados a alta toxicidade, cujas manifestações podem ocorrer em anos posteriores ao diagnóstico e, consequentemente, comprometer a saúde dos sobreviventes. Em consequência, a investigação tem evidenciado que as pessoas que tiveram cancro apresentam piores resultados de saúde, para além do risco de recidiva e da maior probabilidade de terem um novo cancro, quando comparadas com pessoas sem história de cancro e caraterísticas similares (ACS, 2019). Concomitantemente, os sobreviventes apresentam maior risco de desenvolverem dislipidemia, obesidade, diabetes, menopausa prematura, diminuição da massa óssea, hipertensão e hipotiroidismo (Edgington & Morgan, 2011). Além disso, parece existir evidências que demonstram que as pessoas que tiveram cancro continuam a apresentar comportamentos de saúde que põem a sua saúde em risco, tal como altos níveis de inatividade física, consumo de tabaco, excesso de peso e hábitos alimentares inadequados (Meraviglia et al., 2015). Estas condições reclamam uma abordagem profissional concertada que se estenda além do diagnóstico e do tratamento e que se foque em aspetos salutogénicos, como a educação e restauração da saúde. Não obstante, a evidência demonstra que a atuação dos enfermeiros em intervenções educacionais pode promover o conhecimento e as perceções dos sobreviventes, mudar a sua atitude face à doença, aumentar a autoeficácia e otimizar as suas crenças de saúde (Ebu et al., 2019). Embora o conhecimento sobre a doença e os comportamentos de promoção de saúde dos sobreviventes sejam estudados em Portugal, não é conhecida nenhuma intervenção educacional dirigida à promoção dos comportamentos de saúde nos sobreviventes de cancro, tornando esta problemática altamente relevante. Enquadrado num projeto de investigação mais alargado, que tem como objetivo o desenvolvimento de uma intervenção educacional em enfermagem para aumentar os comportamentos de promoção de saúde nos sobreviventes de cancro, este estudo visa explorar os aspetos a integrar numa intervenção educacional de promoção dos comportamentos de saúde nos sobreviventes de cancro, com recurso a um grupo de peritos.
Enquadramento
As doenças crónicas, como a doença oncológica, conferem ao sobrevivente várias mudanças, um processo de transição saúde-doença de elevada complexidade (Meleis, 2010). Decorrente do expressivo impacto dessas mudanças na pessoa, o termo sobrevivente, que retrata uma situação de exceção e de escape, começou a surgir na literatura de forma não universal. Recentemente, o conceito que reúne mais consenso é o de Feuerstein (2007), segundo o qual sobrevivente de cancro é aquele que terminou a fase ativa dos tratamentos, incluindo, no entanto, aqueles que necessitam de terapêutica prolongada após o fim dos mesmos, como a hormonoterapia. Nesta fase, os cuidados de saúde são mais intermitentes, marcados por consultas de follow-up, para vigilância e procura de recidiva, acabando por se negligenciar a gestão dos efeitos a longo prazo e ações de promoção da saúde (Hewitt et al., 2006; Sisler et al., 2016). Embora por os sobreviventes se encontrarem livres da doença, as suas necessidades não findam, os sobreviventes vivenciam um elevado leque de emoções e são relatadas elevadas carências, nomeadamente por falta de informação sobre efeitos secundários no pós tratamento e falta de ajuda e dificuldades em lidar com incerteza (Geller et al., 2014). Os sobreviventes necessitam de adequado apoio para manterem um papel ativo nas decisões que afetam a gestão da doença e a qualidade de vida após o cancro, e, por essa razão, os comportamentos de promoção da saúde após o cancro tornam-se um desafio para os profissionais de saúde. A promoção de saúde é a ciência de ajudar os indivíduos, famílias e comunidades a fazerem mudanças nos estilos de vida e comportamentos com o objetivo de alcançarem o seu pleno potencial de saúde, através de uma combinação de apoios educacionais e ecológicos para ações e condições de vida favoráveis à saúde (Pender et al., 2015). Os comportamentos de promoção da saúde são ações ou comportamentos adotados pelos indivíduos que contribuem para otimizar a saúde, aumentar o potencial funcional dos indivíduos e melhorar a qualidade de vida, e não apenas para prevenir doenças (Pender et al., 2015). No contexto global da promoção da saúde, os enfermeiros assumem destaque. Os enfermeiros são significativos para as pessoas, têm larga competência educacional, têm grande representação nos serviços de saúde e elevada proximidade com os pacientes, devido ao tempo que passam com eles e com as suas famílias. Contudo, existem evidências significativas que demonstram que os sobreviventes de cancro carecem de: a) fácil acesso a um acompanhamento profissional que antecipe as suas necessidades e que se foque na promoção da saúde; b) uma abordagem centrada no sobrevivente que inclua capacidade de resposta às necessidades dos pacientes; c) uma efetiva comunicação e partilha de informação entre sobreviventes e profissionais; e d) incentivo para a adoção de estilos de vida saudáveis que melhorem a sua qualidade de vida e bem-estar (Hewitt et. al, 2006). Neste contexto, a planificação de intervenções educacionais de enfermagem nos sobreviventes de cancro é claramente indispensável.
Questão de investigação
Quais são os aspetos centrais a considerar no desenvolvimento de uma intervenção educacional em enfermagem para promover os comportamentos de saúde nos sobreviventes de cancro?
Metodologia
Foi conduzido um estudo exploratório, com metodologia qualitativa, com recurso a um grupo focal para colheita e análise de dados, de acordo com as recomendações metodológicas propostas por Krueger e Casey (2014). A utilização do grupo focal teve por objetivo conhecer a visão de um grupo de peritos em relação ao tema mencionado na questão de investigação. Foram selecionados, de acordo com os critérios de inclusão, 14 participantes para a constituição do grupo de peritos (amostragem intencional não probabilística). Para a inclusão no grupo, os participantes teriam de ser detentores do título de enfermeiro especialista e apresentar pelo menos dois dos seguintes critérios: a) ter o grau académico de mestrado ou doutoramento; b) ser enfermeiro-chefe de um serviço que preste assistência a doentes oncológicos há pelo menos 5 anos; c) exercer atividade profissional com doentes oncológicos há, pelo menos, 10 anos; d) desempenhar atividade letiva no âmbito da promoção da saúde há, pelo menos, 5 anos; e) desempenhar atividade letiva no âmbito da gestão da doença há, pelo menos, 5 anos e/ou f) ter realizado pelo menos três trabalhos de investigação (com publicação científica) na área da promoção da saúde e/ou gestão da doença oncológica. Este estudo teve o parecer da Comissão de Ética (CE) CHUP/ICBAS, com a referência, 2020/CE/P009(P321/CETI/ICBAS). Foi garantida a confidencialidade aos participantes e todos os participantes estavam informados que podiam abandonar a investigação em qualquer momento. Todos os participantes consentiram participar no estudo e assinaram voluntariamente o consentimento informado. A recolha dos dados teve lugar na Escola Superior de Enfermagem do Porto numa sessão de grupo única de 180 minutos. Os procedimentos metodológicos deste estudo enquadram-se em cinco fases: 1) Planeamento; 2) Preparação; 3) Moderação; 4) Análise dos dados; e 5) Divulgação dos resultados (Krueger & Casey, 2014). Durante a Fase 1 - Planeamento, foram definidos os critérios de inclusão dos peritos e foi construído um plano/roteiro orientador da sessão que apoiasse o investigador na sua condução. O roteiro orientador da sessão consistiu num documento com nove questões, separadas em três áreas: I) Conteúdo da Intervenção Educacional; II) Critérios de inclusão e exclusão na Intervenção Educacional; e III) Operacionalização da Intervenção Educacional. As áreas selecionadas foram definidas tendo em conta os objetivos estabelecidos para a sessão: a) Identificar o conteúdo da intervenção educativa de enfermagem para promover comportamentos de saúde (questões 1-4); b) Definir os critérios de inclusão dos sobreviventes na intervenção educativa de enfermagem para promover comportamentos de saúde (questão 5); c) Definir a operacionalização da intervenção educativa de enfermagem para promover comportamentos de saúde (questão 6 a 9); As questões do grupo focal foram: (1) “Que áreas, relativas à promoção da saúde, devem ser consideradas no desenvolvimento de uma intervenção educacional em enfermagem nos sobreviventes de cancro?”; (2) “Que intervenções de enfermagem, relacionadas à promoção da saúde, devem ser consideradas no desenvolvimento de uma intervenção educacional em enfermagem nos sobreviventes de cancro?”; (3) “Que estratégias poderão ser utilizadas no desenvolvimento de uma intervenção educacional em enfermagem nos sobreviventes de cancro?”; (4) “Que objetivos definir para a intervenção educacional em enfermagem nos sobreviventes de cancro?”; (5) “Que características se deve ter em consideração para a inclusão dos sobreviventes de cancro no plano de intervenção?”; (6) “Quem deverá implementar a intervenção?”; (7) “Qual será o momento mais adequado para a implementação da intervenção educacional?”; (8) “Que abordagem será a mais adequada para a implementação da intervenção educacional de enfermagem?”; (9) “Como poderão ser preparados/treinados os enfermeiros que implementarão a intervenção?”. As questões foram sujeitas a um pré-teste. Após a sua construção foram aplicadas a um elemento externo à equipa de investigação, com as mesmas características dos peritos, para perceber a sua aplicabilidade e a necessidade de reformulação. A Fase 2 - Preparação compreendeu o recrutamento dos peritos, o encontro informal/receção dos mesmos, a comunicação dos objetivos e a organização logística. O contacto com os participantes ocorreu em três momentos antes da reunião de grupo focal. O Momento I / Convite decorreu 4 semanas antes da reunião do grupo focal. Nesse contacto, os peritos foram convidados a participar através de um email enviado pelo investigador principal. O Momento II / Confirmação ocorreu 2 semanas antes da realização do grupo focal, onde foi solicitada a confirmação de participação aos peritos. O Momento III / Validação ocorreu no dia anterior à realização do grupo focal, tendo todos os participantes sido contactados por telefone para validar a participação na reunião. Após a aceitação do convite, foi dado a conhecer aos participantes os pontos-chave da investigação já realizada e foram disponibilizadas as questões em debate para promover a reflexão prévia. Dos 14 convites realizados, nove participantes aceitaram e estiveram presentes. Cinco peritos declinaram o convite por motivos profissionais. O investigador principal recebeu os participantes, explicou os objetivos do estudo e encorajou a discussão de ideias, antes da sessão se iniciar. Além do investigador principal que liderou o grupo focal estiveram presentes dois colaboradores da equipa de investigação que monitorizaram, apoiaram e moderaram o grupo focal. Os participantes conheciam a equipa de investigadores, mas não conheciam a investigação traçada. A Fase 3 - Moderação ocorreu durante a realização da sessão. A sessão foi liderada/moderada pelo investigador principal e teve apoio instrumental dos dois colaboradores, que gravaram a sessão e observaram a dinâmica do grupo. Durante a Fase 4 - Análise dos dados, decorreu o processo de descodificação, interpretação e análise. A sessão do grupo focal conteve um método de gravação áudio. Desse modo, a primeira componente consistiu na transcrição integral da gravação da sessão. A transcrição integral da gravação foi complementada com pequenas notas recolhidas pelos colaboradores durante a sessão. Após a transcrição da gravação e a revisão do texto, iniciou-se o processo de análise dos dados que consistiu em examinar, categorizar, combinar os dados recolhidos com o objetivo principal do estudo. O processo de análise dos dados baseou-se em três etapas - codificação/indexação, armazenamento/recuperação e interpretação. Na Etapa I, o seu conteúdo foi dividido em categorias previamente definidas sustentada nas questões do guião (categorização apriorística), de modo a refletir sobre os temas presentes no guião e hipoteticamente sobre novos temas (codificação/indexação). Na Etapa II, iniciou-se a compilação dos extratos de texto subordinados às mesmas categorias, de forma a poderem ser comparados (armazenamento/recuperação). Durante esta fase não foi utilizado qualquer programa informático e o processo foi realizado manualmente. Por fim, a Etapa III foi suportada numa análise sistemática dos dados e respetiva apreciação (interpretação). A Fase 5 - Divulgação dos resultados, consistiu na composição de um relatório e apresentação dos resultados preliminares aos peritos. Na apresentação dos resultados serão utilizados excertos da transcrição da sessão como exemplos. Para proteção e confidencialidade dos dados serão utilizados códigos no momento de identificação dos peritos (P1 a P9).
Resultados
As características demográficas dos intervenientes no grupo focal são apresentadas na Figura 1. Os nove participantes eram maioritariamente doutorados (6; 67%), do sexo feminino (7; 78%), a exercer a sua atividade profissional no âmbito da docência (6; 67%). A idade e o tempo de exercício profissional surgem com base em classes definidas devido à heterogeneidade de dados. Nesse sentido, salienta-se a média de idades dos peritos (49,7 anos) e a média de tempo de exercício profissional (26,6 anos).
As primeiras quatro questões [1 a 4] do grupo focal centraram-se no conteúdo da intervenção. No que se refere às áreas de promoção de saúde foi consensual entre os participantes que áreas como a alimentação, o exercício físico, a autovigilância das alterações corporais, o controlo do peso e a evolução do status ponderal são áreas inequívocas na promoção da saúde [P1-P4]. Contudo, foi salientado que o enfermeiro “ao promover a saúde, promove-a por via de comportamentos saudáveis, mas também pelo evitamento de comportamentos de risco, como o consumo de substâncias aditivas, tal como o tabaco e o álcool” (P2). Tendo em conta as intervenções de enfermagem entendeu-se entre os peritos que estas requerem um foco no ensino/educação sobre as áreas de promoção de saúde (já descritas) e de autovigilância, mas também na formação sobre os “recursos de saúde e sociais existentes na comunidade, como associações e grupos de apoio, . . . e quando e como recorrer a esses recursos” (P4). Contudo, pareceu relevante durante a discussão que, apenas a informação é insuficiente para a mudança de comportamento. Nesse sentido, intensificou-se a importância das intervenções de enfermagem terem como foco a consciencialização e o envolvimento do sobrevivente em novos comportamentos de promoção de saúde, mas também, “de uma forma controlada e cuidada, na perceção do medo de recidiva e de reaparecimento da doença” (P4) e “nos significados da vida e do existir, sobretudo nas que contribuem para a perceção de bem-estar” (P2) e que podem afetar a adesão e manutenção desses comportamentos. Entre as estratégias a utilizar foi reforçada a ideia de que, “apesar de poder existir um plano educacional padrão, as intervenções devem ser individualizadas e adaptáveis a cada sobrevivente” (P8), evidenciando-se a diferença existente entre os sobreviventes, que “vivenciam processos patológicos diferentes, opções terapêuticas diferentes e que têm risco de recidiva também diferentes” (P4). Alertou-se, ainda, que as intervenções devem acompanhar a evolução tecnológica, por exemplo na “seleção dos materiais nas ostomias de eliminação e na adequação do vestuário” (P5) e na utilização de telefonemas durante a intervenção que permitam monitorizar o processo e manter as pessoas envolvidas e motivadas. Para um dos participantes, a estratégia terá de ser menos prescritiva e passa por implicar o sobrevivente: “os profissionais de saúde têm de deixar as pessoas implicar-se, isto é, deixar que as pessoas assumam a responsabilidade sobre as suas decisões, mediante os caminhos e opções que lhes são dadas” (P6). Essa estratégia passa por “deixar a pessoa selecionar as áreas de promoção de saúde que pretende melhorar/envolver-se” (P6). Nessa seleção de áreas que pretende melhorar urge a preferência de cada pessoa por determinados comportamentos de saúde e que deve ser tida em consideração. Entre as estratégias mais debatidas evidenciou-se a “negociação e contratualização” (P4), isto é “não obrigar o doente a caminhar 30 minutos por dia, mas estabelecer com o doente, mediante a sua vontade e capacidade, daqueles 30 minutos quantos consegue e se compromete a caminhar” (P4). Decorrente disso, surgiu em discussão o contrato de saúde entre o paciente e o profissional de saúde. Percebeu-se no grupo, que a utilização desta estratégia teria enormes benefícios, nomeadamente, compromisso, proximidade, motivação e coresponsabilização (P5 e P7), e a pessoa (o sobrevivente) sentir-se-ia “um parceiro do grupo de trabalho, o principal interessado no processo” (P5). Surgiu, ainda que de forma subtil, a necessidade de se poder incluir o familiar/cuidador como elemento no processo e facilitar a mudança de comportamento, e nesse sentido, assumiu-se entre os peritos que deverá ser o sobrevivente a decidir se quer ou não esse acompanhamento (P4 e P8). As opiniões manifestadas em torno dos objetivos da intervenção de enfermagem para a mudança de comportamento e para a adesão a novos comportamentos de saúde centrou-se em torno do: I) consciencializar a pessoa para a mudança; II) envolver a pessoa no processo de mudança; III) motivar a pessoa para a mudança; e IV) implicar a pessoa nas suas decisões sobre a mudança. Nesse sentido, foi destacada a importância de “consciencializar face à nova condição . . . e daquilo que pode vir a acontecer” (P6). Um dos peritos alertou que a chave-do-sucesso na intervenção de enfermagem é o envolver:
Não existirá sucesso sem envolvimento, para a teres envolvida, tens de a chamar, mostrar-lhe caminhos e fazer com que ela [a pessoa] tenha a perceção que o caminho escolhido, foi selecionado por ela. . . . se ela escolhe o percurso A, em detrimento de B, mesmo sendo mais complexo, como foi escolhido por ela, ela vai empenhar-se mais. (P6)
No que se refere à motivação, apesar de ser consensual entre o grupo a importância da motivação na mudança de comportamento, um dos peritos alertou que, existe “em geral pouca responsabilização das pessoas pela sua saúde e pelos seus comportamentos de saúde” (P2) e que a motivação, “energia que nos leva a agir, energia que é própria, intrínseca, . . . está dependente da perceção das razões [para a mudança]”(P2), e nesse cenário, dado que a mudança é sempre difícil, o enfermeiro vê a sua intervenção limitada à sensibilização da pessoa para a mudança. Essa sensibilização terá sucesso se ocorrer através de estratégias de suporte que apoiem a pessoa a encontrar razões internas para a mudança (exemplo: “eu dou muito valor à minha saúde, e, portanto, eu sou capaz de mudar” [P2]), em detrimento de razões externas (exemplo: “eu como sem sal, porque a minha mulher me obriga a comer, ou porque a minha mulher é que cozinha” [P2]). Acautelou-se no grupo que a motivação não é um processo dicotómico de sim ou não, está ou não está, é um aspeto contínuo e que vai aumentando gradualmente, onde o enfermeiro é um elemento ativo. A quinta questão visava aferir a opinião dos peritos sobre os critérios de inclusão. Nesse sentido, considerou-se relevante não considerar nenhum tipo de diagnóstico oncológico em específico, nem limitar o estudo a nenhuma faixa etária ou sexo: “se houver doentes com patologias diferentes ainda mais enriquecedor vai ser” (P2). Entendeu-se que apenas se devia excluir a participação a pessoas com limitações da capacidade cognitiva que as impeçam de perceber, assimilar e relacionar recomendações complexas, e com limitações da capacidade física que dificultem o envolvimento em comportamentos de promoção da atividade física. Com as últimas quatro questões [6 a 9] do grupo focal pretendeu-se auscultar a opinião dos peritos sobre operacionalização da intervenção. No que se refere à operacionalização da intervenção, surgiu em debate a necessidade de existir um envolvimento de todos os elementos e uma uniformização: “uniformização dos profissionais naquilo que transmitem aos doentes” (P7). Referente aos enfermeiros que estarão em melhor posição para a implementação da intervenção, pareceu unânime entre os peritos que os enfermeiros do serviço de hospital de dia, pela sua proximidade e contacto frequente com os sobreviventes durante a fase ativa da doença estarão em condições mais favoráveis. A opinião do grupo sobre o momento mais oportuno para a implementação da intervenção salienta que esta deve “iniciar-se no hospital, antes do fim dos tratamentos” (P5). Essa ideia reuniu algum consenso, nomeadamente na planificação dos “cuidados antecipatórios do processo transacional, para não deixar que os doentes [sobreviventes] percam a rede” (P3). Alertou-se que devem iniciar-se os primeiros contactos apenas quando
houver a certeza de que os doentes estão a ter os últimos tratamentos e não houver recidiva da doença . . . nessa fase o doente estará mais motivado . . . Quando os tratamentos acabam devem intensificar-se os contactos e a intervenção. (P7)
No que se refere à abordagem da intervenção educacional, foi referido que, apesar de esta intervenção ser planeada para ser realizada por enfermeiros e se enquadrar nos domínios da autonomia da intervenção de enfermagem, “a colaboração interprofissional é relevante . . . onde médicos e enfermeiros se reúnam e façam uma aferição de caminhos individuais” (P5). A seleção da abordagem, em grupo ou individual, também gerou alguma discussão, dado que “depende das preferências das pessoas” (P1). Um dos peritos destacou que no serviço onde exerce [oncologia] “existem contactos individuais com as pessoas que visam a saúde, durante a fase de tratamentos, mas as sessões em grupo são as que obtemos melhor feedback” (P7). Dois peritos salientaram que a opção de grupo na área da oncologia “parece apropriada, mas se der a possibilidade de os doentes poderem requerer sessões individuais ou com um familiar” (P2) e abordaram as suas vantagens: o grupo “permite a normalização da sua situação . . . e ajuda as pessoas a aprenderem com a experiência dos outros” (P3) e,
tal como na psicoterapia de grupo, tem muitas vantagens, nomeadamente, a universalidade, não estamos sós na nossa miséria, . . . ajuda a perceber como é que outros lidaram com situações similares, . . . existe a partilha de informação com pares que permite que eu me sinta útil para outras pessoas. (P2)
Relativo à preparação dos enfermeiros não se verificou muita discussão. A mesma pode ocorrer através de “uma reunião formativa com a equipa de enfermagem, onde poderão ser fornecidas determinadas recomendações/orientações, com base em evidência científica, e que depois serão implementadas pelo serviço em questão” (P8). Reforçou-se que, depois da formação da equipa, tem de existir um claro envolvimento, onde, “apesar das limitações de tempo . . ., ter-se-ão de definir caminhos . . ., as orientações têm de ser cumpridas . . . e a hierarquia tem de funcionar” (P5).
Discussão
Os resultados, resultante da opinião dos peritos, sugerem que a construção de uma intervenção de enfermagem de promoção dos comportamentos de saúde nos sobreviventes de cancro deve contemplar um leque variado de áreas de promoção de saúde, onde os enfermeiros atuem promovendo o envolvimento em comportamentos saudáveis, mas também evitando comportamentos de risco. Estudos prévios, que testaram a implementação de programas de promoção da saúde em pessoas com cancro, corroboram as opiniões reforçadas pelos peritos, e apresentam resultados positivos numa abordagem com múltiplas áreas de promoção de saúde (Eakin et. al 2015). Na discussão das áreas de promoção de saúde, os peritos, fruto da sua experiência com doentes oncológicos, abordaram a necessidade de intervenção de enfermagem na prevenção dos comportamentos de risco. De facto, a evidência reporta a prevalência de elevados comportamentos associados ao consumo do álcool, tabagismo, uso de drogas, inatividade física e excesso de peso nos sobreviventes de cancro (Tollosa et al., 2019). Porém, também sugere que os sobreviventes de cancro estão mais propensos a adotar comportamentos saudáveis em relação ao uso de tabaco, consumo de álcool e prática de atividade física do que pessoas sem história de doença (Frazelle & Friend, 2016; Park et al., 2015). Estes achados, contrários aos apresentados por Tollosa e colaboradores (2019), baseiam-se no facto da vivência de um cancro poder ter um impacto positivo na motivação dos indivíduos para adotarem comportamentos de saúde que minimizem riscos (Park et al., 2015). Tal como salientado por um dos peritos durante a discussão, o estudo de Seifert et al. (2012) destaca a motivação como um mecanismo chave para a mudança, extremamente relevante para o desenvolvimento e manutenção de novos comportamentos. Estes dados salientam que a motivação e a informação/conhecimento são aliados indispensáveis na promoção da saúde e poderão ser vistos como áreas de intervenção obrigatórias para os enfermeiros. No decorrer da discussão gerada pelos peritos, abordou-se múltiplas vezes aspetos relacionados com negociação e contratualização de cuidados, nomeadamente, através da conceção de um Plano Educacional Individualizado (PEI) para o sobrevivente e a possibilidade de incluir um contrato de saúde entre enfermeiro e o sobrevivente como uma estratégia útil à mudança de comportamento. A revisão de Bosch-Capblanch et al. (2007), que visava avaliar os efeitos dos contratos entre pacientes e profissionais de saúde na adesão dos pacientes às atividades de tratamento, prevenção e promoção da saúde, tendo demonstrado que os contratos paciente-profissional são utilizados de forma relevante na promoção de saúde, nomeadamente ao nível dos comportamentos aditivos (consumo de álcool, tabagismo e uso de opióides), controlo de peso, alimentação saudável, prática de atividade física e autovigilância da mama. No domínio da partilha, negociação e contratualização, a opinião apontada pelos peritos em torno de um PEI salienta a personalização de cuidados, realça uma abordagem que contemple as expectativas, interesses e capacidades dos sobreviventes, é coerente com as recomendações da ACS (2019) sobre as intervenções nos sobreviventes de cancro, que aponta que as mesmas devem ser personalizadas e adaptadas às capacidades de cada sobrevivente. Coerente com a perspetiva da tomada de decisão partilhada, emergiram sugestões de intervenções de enfermagem e que objetivem “consciencializar”, “envolver”, “motivar” e “implicar” o sobrevivente no processo de transição. De facto, o término dos tratamentos e o início da fase de sobrevivência é caracterizado por esforços que objetivam promover a saúde e configuram, inevitavelmente, uma transição. Na passagem à fase de sobrevivência, é expectável que a pessoa interiorize um novo conhecimento suscetível de alterar o seu comportamento, ou seja, se consciencialize sobre a sua experiência, se envolva nos processos inerentes à transição e, consequentemente, mude a definição de si no contexto social (Meleis, 2010). Deste modo, e tal como realçado pelos peritos, os desígnios da teoria das transições (Meleis, 2010) podem adquirir extrema relevância, sobretudo apoiando os enfermeiros a selecionar os tipos de ação mais úteis e os pontos de intervenção ideais para que os sobreviventes alcancem os objetivos desejados, no domínio da manutenção ou promoção da saúde. No que se relaciona com o timing intervenção de enfermagem, infere-se da opinião dos peritos que a preparação para a sobrevivência deve começar no final da fase ativa da doença, colidindo com o conceito de sobrevivente pelo qual se optou. No entanto, isto aponta para um processo, não se podendo estabelecer barreiras estanques entre as etapas, nomeadamente o fim dos tratamentos e o início da sobrevivência. Os peritos destacam que é na fase de sobrevivência que a intervenção e os contactos com os sobreviventes devem assumir maior destaque. De facto, Hewitt e colaboradores (2006) reforçam que um plano de sobrevivência deve iniciar-se no momento em que o tratamento primário termina, apesar de a transição da fase de tratamento para a sobrevivência nem sempre ser clara. Frazelle e Friend (2016) realçam que o período após a fase ativa da doença (início da sobrevivência) é considerado um teachable moment, e os sobreviventes encontram-se sensíveis a mudanças no estilo de vida, pelo que é na fase inicial da sobrevivência que surgem os maiores benefícios da intervenção. Outro dado relevante é que a literatura realça um pico de motivação nesta fase, sobre o qual os enfermeiros devem intervir: no final dos tratamentos, os sobreviventes estão felizes com o sucesso do tratamento, motivados para aprender mais sobre a sua doença, compartilhar a sua experiência com pares, tornar o curso do tratamento o mais tranquilo possível e procurar soluções para minimizar o risco de recorrência do cancro (Coward, 2006). Também nesta fase, os sobreviventes tendem a enfrentar várias dificuldades com o fim dos tratamentos que podem influenciar a intervenção dos enfermeiros: os sobreviventes relatam sentirem-se abandonados, sem intenção de se envolverem em mudanças no estilo de vida, experienciam incerteza sobre como implementar mudanças adaptativas e descrevem falta de apoio dos prestadores de cuidados de saúde (Corbett el al., 2018). Para a ACS (2019), esta perceção de solidão/abandono após o fim dos tratamentos resulta da diminuição da frequência de contactos com a equipa de saúde e traduz-se na oportunidade ideal à intervenção educacional dos enfermeiros, uma vez que os sobreviventes estão suscetíveis/vulneráveis. A discussão gerada apontou ainda que a inclusão de um membro da família durante a intervenção podia ser facilitadora da mudança de comportamento. Efetivamente, tal como sugerido pelos peritos, a envolvência da família na intervenção justifica-se com o facto de as relações familiares poderem ser um fator decisivo na adoção de comportamentos saudáveis durante a experiência de cancro (Cooley et al., 2013). Alguns estudos reconhecerem que a inclusão de familiares na intervenção pode ser dificultadora por existirem várias barreiras à comunicação ao longo da trajetória da doença e porque muitos sobreviventes têm dificuldade em discutir as suas preocupações relacionadas com o cancro com membros da família e considerarem mais útil discuti-las com pessoas com menor envolvimento pessoal/emocional (Coward, 2006). No entanto, uma grande parte da literatura indica benefícios e recomenda a inclusão do familiar na intervenção profissional (Frazelle & Friend, 2016), até porque o ambiente familiar que se cria pode apoiar ou minar a mudança comportamental do sobrevivente (Cooley et al., 2013). A análise global dos resultados permite perceber que a técnica utilizada permitiu a recolha de informação (qualitativa) e ampliou a compreensão sobre a matéria (promoção de comportamentos de saúde nos sobreviventes de cancro). Contudo, reconhece-se que esta investigação pode ser limitada por alguns aspetos. O grupo focal permitiu uma recolha de dados rápida, logo, mais imediatista, comparativamente com métodos mais estruturados de recolha de dados. A sessão concretizada possibilitou a interação dos peritos com a equipa de moderadores, que eram simultaneamente investigadores, com isso, pode ser questionado a presença de algum enviesamento. A transcrição e análises dos dados gerados foi bastante rigorosa e minuciosa, e por isso muito morosa. Constata-se, também, tal como esperado, que os dados recolhidos não podem nem devem ser generalizados, já que não é objetivo deste tipo de método e porque as opiniões dos peritos estavam intimamente dirigidas à planificação da intervenção educacional que se está a traçar. Por esse motivo, os resultados deste estudo tornam-se bastante proveitosos, tendo em conta os objetivos e o contexto da intervenção, quer pela experiência e contribuições dos peritos, quer pelas reflexões realizadas.
Conclusão
A promoção da saúde é indubitavelmente uma área de relevância inquestionável nas pessoas que tiveram cancro. Os tratamentos cada vez mais eficazes potenciam sobrevidas maiores, mas que precisam de ser perspetivadas num contexto onde o objetivo principal é viver com mais saúde. A dificuldade de definir, operacionalizar e implementar uma intervenção educacional em enfermagem abrangente e que dê resposta às necessidades em cuidados dos sobreviventes de cancro, está intimamente relacionada com a especificidade do sobrevivente de cancro e da cronicidade da doença oncológica. Este quadro clínico, engloba múltiplas situações, que são sujeitas a diversos tratamentos. Porém, a bibliografia e os peritos selecionados são unânimes em definir que a intervenção educacional de promoção de saúde nos sobreviventes de cancro deve implicar os próprios sobreviventes na construção do seu projeto de saúde. Trabalhar os recursos internos como a motivação, e os externos, como por exemplo a família, como catalisadores da mudança, poderão ser elementos centrais na mudança de comportamento. Entende-se, após a análise realizada, que a inclusão de um contrato de saúde entre o enfermeiro e o sobrevivente, poderá promover um ambiente de corresponsabilidade, onde o sobrevivente seria considerado uma parte integrante e ativa do seu projeto de saúde após o cancro e a tomada de decisão seria partilhada. A literatura e os peritos salientam a ideia de processo da doença oncológica, e realçam a oportunidade gerada pelo fim dos tratamentos para o início da intervenção, podendo os primeiros contactos iniciar-se no hospital, durante a fase final do tratamento e estenderem-se pelo período de sobrevivência. Esta perspetiva reforça a ideia de que os sistemas de saúde deverão antecipar as necessidades dos pacientes e não apenas reagir a elas. Para tal, foi discutida a importância da envolvência da equipa de enfermagem, da sua formação, da harmonização dos conhecimentos e técnicas de intervenção, mas também, salientada a responsabilidade da chefia e dos órgãos de decisão para fazer cumprir e supervisionar o plano de intervenção traçado pelos investigadores. Deste estudo, emerge ainda a necessidade de implementação de intervenções de promoção da saúde nos sobreviventes de cancro e que exprimam objetivamente os ganhos em saúde obtidos.