Introdução
Em 2017, a Federação Internacional de Diabetes (IDF) estimou que o número de pessoas com diabetes mellitus (DM) de 20 a 79 anos é de 424,9 milhões e em 2045 estimam-se 628,6 milhões de pessoas com DM. A maioria dos casos ocorre em países em desenvolvimento, levando a cerca de 80% das mortes atribuíveis à doença. Nesses países, o perfil etário mais afetado é entre 35 e 64 anos (IDF, 2017).
Segundo a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), o Brasil ocupa a quarta posição entre os países com maior número de pessoas diabéticas do mundo. O número de diabéticos cresceu 61,8% em 2016. No Distrito Federal obteve-se um índice de 8,6% de prevalência. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a prevalência de DM na população idosa no Brasil é de 16,1% (Ministério da Saúde [MS], 2017).
Com a evolução da DM, principalmente do tipo 2, surgem complicações que podem ser associadas a uma maior morbimortalidade. Dentre elas, destacam-se a retinopatia, nefropatia, neuropatia, doença coronária doença cerebrovascular e doença arterial periférica (Diretrizes da SBD [DSBD], 2019).
A neuropatia diabética (ND) é definida como um quadro variado de sinais e sintomas dependentes da sua localização em fibras nervosas sensoriais, motoras e/ou autónomas. Pode estar presente em dois a cada três diabéticos tipo 2 (DSBD, 2019). No mundo, a ND afeta aproximadamente 50% dos diabéticos, porém, muitas vezes o diagnóstico é tardio, podendo contribuir para formação de úlceras, sendo responsável por 70% das amputações de membros (Santos et al., 2015).
Face a este cenário, o presente estudo foi realizado com o propósito de identificar os principais fatores associados à ND em idosos, considerando a elevada prevalência desta complicação nos diabéticos. Diante do exposto, este estudo objetivou avaliar os fatores preditivos da ND em idosos atendidos na atenção primária.
Enquadramento
Geralmente, a ND pode variar de assintomática até fisicamente incapacitante. Os sintomas neuropáticos variam de positivos dolorosos graves, tais como sensações de queimadura ou ardência, dores lancinantes e agudas, sensações desconfortáveis de temperatura, parestesia e hiperestesia, a sintomas leves e negativos, como a diminuição da sensação dolorosa, fadiga e dormência, que alternam durante o dia e são extremamente desconfortáveis e dolorosos à noite (IDF, 2017; DSBD, 2019).
Neste contexto, pacientes com ND podem apresentar lesão neuronal, alterações de neurónios sensoriais e dos nervos periféricos, sendo relatada a dor, principalmente em pacientes com DM tipo 2. Assim, na avaliação clínica, é importante observar deformidades neuropáticas, como os dedos em garra ou em forma de martelo, com proeminências dos metatarsos, seguidos de acentuação em arco (Brinati et al., 2017; DSBD, 2019).
Alguns estudos foram realizados no sentido de investigar a neuropatia periférica no idoso com DM tipo 2 (Bai et al., 2017; Brinati et al., 2017; Lima et al., 2018). A exemplo, um estudo realizado com pacientes atendidos na atenção primária no Brasil detectou que o local de dor mais referido pelos pacientes diabéticos foram os pés, com características de neuropatia. Além disso, pacientes com ND apresentaram maior número de queixas clínicas relacionadas com a sensibilidade dolorosa, principalmente em relação ao formigueiro, à alfinetada/agulhada e à dormência(Aguiar et al., 2018).
A hemoglobina glicada (HbA1c) é um importante parâmetro de controlo metabólico destes pacientes, pois reflete os níveis glicémicos nos últimos 2 a 3 meses. Um estudo demonstrou uma correlação negativa entre HbA1c e qualidade de vida, pois quanto maior o valor de HbA1c, menor o score de qualidade de vida do paciente (Lima et al., 2018).
Ainda, é relevante mencionar os distúrbios psíquicos, pois para pacientes com DM, a dor crónica neuropática pode levar também à deterioração de fatores que alteram a sua qualidade de vida (Lima et al., 2018). A gravidade de sintomas depressivos é maior nos indivíduos portadores de ND, pois a depressão moderada a grave foi observada em pacientes com ND (Khan et al., 2019).
Diante de ferramentas disponíveis e face à complexidade do tema, é necessário que a equipa de saúde esteja capacitada para identificar a ND com enfoque na prevenção e controlo. Uma abordagem educativa para o paciente, com realização do exame periódico dos pés e uso de escalas validadas, podem identificar precocemente intercorrências e complicações inoportunas, evitando assim o agravamento do estágio da ND.
Além disso, a existência de poucas publicações brasileiras na temática da ND e a necessidade de somar conhecimentos referentes às características neuropáticas são pontos importantes para a construção da prática de enfermagem reflexiva, necessária também a todos os outros profissionais da equipa multiprofissional, que podem contribuir para o atendimento integral e de pessoas que convivem com essa complicação da DM. Ressalta-se que conhecer os fatores envolvidos no contexto da ND podem direcionar as ações dos profissionais de saúde, a fim de qualificar a assistência prestada ao paciente, principalmente na atenção primária.
Por fim, são válidos os instrumentos de pesquisa no Brasil referente a este assunto. Porém, ainda se torna precário frente à grande incidência de ND no Brasil, sendo necessária, portanto, uma investigação no contexto da atenção primária para um rastreamento precoce da evolução da doença e das suas complicações. Assim, a avaliação deve ocorrer principalmente na atenção primária em saúde (APS), uma vez que é considerado o nível de atenção no qual os pacientes têm maior possibilidade de serem envolvidos em ações de prevenção e promoção da saúde.
Questão de investigação
Quais os fatores preditivos da neuropatia diabética em idosos atendidos na atenção primária?
Metodologia
Trata-se de um estudo quantitativo e transversal realizado com 111 idosos diabéticos de uma unidade básica de saúde (UBS) do Distrito Federal, Brasil. A população do estudo foram idosos registados no livro de registo do Grupo de Diabéticos da UBS. Foram considerados os seguintes critérios de inclusão: ter idade mínima de 60 anos e ter o diagnóstico médico de DM tipo 2 no mínimo há 6 meses. O critério de exclusão adotado foi: pacientes que não apresentavam condições físicas e mentais para comunicarem verbalmente e realizarem as avaliações.
A amostra foi calculada considerando um erro amostral de 5% e intervalo de confiança de 95%, resultando em 115 idosos. A seleção da amostra ocorreu de forma aleatória (sorteio) e o número do processo de cada idoso registado na UBS foi utilizado para o sorteio. Foram excluídos três idosos que não completaram as avaliações (dois indivíduos não realizaram a avaliação da ND e um não respondeu ao instrumento de depressão), finalizando a amostra com 111 idosos diabéticos.
A colheita de dados ocorreu no período de junho a agosto de 2019. Os idosos sorteados foram convidados a participarem na investigação no momento da reunião do grupo na UBS. Após o convite, os idosos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e foram agendados para a colheita de dados realizada na UBS.
A colheita de dados ocorreu em sala privativa na UBS. Os avaliadores eram estudantes e professores do curso de graduação em enfermagem e farmácia, que foram previamente treinados pelos professores para realizarem as avaliações. A colheita de dados ocorreu em apenas um dia e seguiu cinco etapas.
Na primeira etapa o idoso compareceu na UBS em jejum e foi submetido a colheita de sangue que foi realizada por punção venosa, preferencialmente na fossa antecubital. Os níveis plasmáticos de triglicerídeos, lipoproteína de baixa intensidade (LDL), lipoproteína de alta densidade (HDL), colesterol total, glicemia e HbA1c foram analisados no Laboratório de Análises Clínicas da Universidade de Brasília (UnB). O ponto de corte dos parâmetros bioquímicos foram: colesterol sérico total ≥190 mmol/L, HDL <40 mmol/L, LDL ≥130 mmol/L, triglicerídeos ≥150 mmol/L, glicemia de jejum ≥100 mg/dl e HbA1c (%) ≥7,0 (DSBD, 2019; Faludi et al., 2019).
Na segunda etapa, as variáveis antropométricas de massa corporal e estatura foram obtidas e determinou-se o Índice de Massa Corporal (IMC) que foi classificado como normal (< 27 kg/m2) e sobrepeso/obesidade (≥ 27 kg/m2; Lipschitz, 1994).
Em seguida, na terceira etapa, um instrumento estruturado foi aplicado por meio de entrevista para determinar as variáveis sociodemográficas (sexo, idade, renda, estado civil, escolaridade e aposentadoria), hábitos de vida autorrelatados (hábitos tabágicoso, alcoólicos,, exercício físico e sono), clínicas (tempo de DM e número de medicamentos) e outras comorbidades.
Na quarta etapa o idoso respondeu ao Inventário de Depressão de Beck (BDI), que possui 21 itens que descrevem manifestações comportamentais cognitivas, afetivas e somáticas da depressão, com pontuação total de 0 a 63 pontos, sendo categorizada como: sem depressão (≤ 9 pontos) e com depressão (10 a 63 pontos; Gomes-Oliveira et al., 2012).
Por fim, na quinta etapa foi realizada a avaliação da ND, sendo considerada a presença de ND quando os idosos apresentem score maior ou igual a 12 na escala Leeds Assessment of Neuropathic Symptoms and Signs (LANSS), que explora aspetos qualitativos e sensitivos. A pontuação da escala varia entre 0 a 24 pontos (Schestatsky et al., 2011). A intensidade de dor nos pés e gémeos foi avaliada por meio da Escala Numérica Visual (ENV; de 0 a 10 pontos) e categorizada em ausente (0), leve (1 a 3 pontos), moderada (4 a 6 pontos) e intensa (7 a 10 pontos; Melzack & Katz, 1994).
Os dados foram analisados no software IBM SPSS Statistics, versão 20.0. Inicialmente foi realizada a análise estatística descritiva, com cálculo de frequências simples e relativas. Para verificar diferenças entre proporções foi utilizado qui-quadrado. Para identificação das variáveis preditores da ND em idosos foi desenvolvido um modelo de regressão logística binária. O método stepwise foi utilizado para inserção das variáveis no modelo e a seleção das variáveis independentes ocorreu considerando o tamanho amostral e um nível mínimo de significância de p < 0,20. Foi calculada a odds ratio (OR), com nível de significância de 5% e o intervalo de confiança de 95% para estimar a força da associação entre as variáveis independentes e a ND. O nível de ajuste do modelo foi verificado por meio do teste do Hosmer e Lemeshow.
Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES/DF) com parecer nº 1.355.211 e CAAE 50367215.5.0000.5553. Esta investigação faz parte do projeto Abordagem das condições crônicas não transmissíveis na atenção primária do grupo de pesquisa Saúde, Cuidado e Envelhecimento da Universidade de Brasília. Todos os procedimentos seguiram os princípios do Conselho Nacional de Pesquisa, de acordo com a legislação em vigor no Brasil (Resolução nº 46/2012) e com a Declaração de Helsínquia.
Resultados
A prevalência de ND encontrada foi de 29,7%. A maioria dos idosos era do sexo feminino, com idade entre 65 e 69 anos, com até 5 anos de estudos, renda mensal menor ou igual a um salário mínimo, casados e aposentados (Tabela 1).
LANSS | |||||||
Com neuropatia (n = 33) | Sem neuropatia (n = 78) | ||||||
N | % | N | % | OR (IC 95%) | Valor p | ||
Sexo | Feminino | 23 | 69,7 | 62 | 79,5 | 0,70 (0,38-1,28) | 0,192 |
Masculino | 10 | 30,3 | 16 | 20,5 | 1 | - | |
Idade (anos) | 60 a 64 | 14 | 42,4 | 21 | 26,9 | 2,07 (0,75-5,69) | 0,153 |
65 a 69 | 10 | 30,3 | 29 | 37,2 | 1,07 (0,37-3,03) | 0,894 | |
≥70 | 9 | 27,3 | 28 | 35,9 | 1 | - | |
Escolaridade | Analfabeto | 5 | 15,2 | 9 | 11,5 | 1 | - |
Ensino fundamental | 21 | 63,6 | 55 | 70,5 | 0,68 (0,20-2,28) | 0,539 | |
Ensino médio | 7 | 21,2 | 14 | 17,9 | 0,90 (0,21-3,72) | 0,884 | |
Renda mensal | ≤1 SM | 22 | 66,7 | 41 | 52,6 | 1,52 (0,82-2,82) | 0,170 |
≥2 SM | 11 | 33,3 | 37 | 47,4 | 1 | ||
Estado civil | Solteiro | 6 | 18,2 | 12 | 15,4 | 0,86 (0,33-2,23) | 0,768 |
Casado | 17 | 51,5 | 33 | 42,3 | 0,88 (0,23-2,90) | 0,763 | |
Divorciado | 5 | 15,2 | 8 | 10,3 | 1 | - | |
Viúvo | 5 | 15,2 | 25 | 32,1 | 0,32 (0,07-1,39) | 0,120 | |
Aposentado | sim | 23 | 69,7 | 56 | 71,8 | 0,93 (0,50-1,72) | 0,497 |
não | 10 | 30,3 | 22 | 28,2 | 1 |
Nota. LANSS = Leeds Assessment of Neuropathic Symptoms and Signs; OR = odds ratio; IC = intervalo de confiança; SM = salário mínimo - R$954,00.
Na Figura 1 apresenta-se a intensidade de dor e tempo de DM dos pacientes com ND. A presença de dor nos pés e gémeos foi relatada por 82,9% dos idosos, sendo que 73,2% a referiram como intensa. A intensidade de dor nos pés e gémeos foi significativamente associada à ND em idosos (p = 0,001). Idosos com dor intensa nos pés e gémeos apresentaram um risco de 2,53 vezes maior de apresentar ND (IC 95% = 1,85-6,96).
O tempo de diagnóstico da DM apresentou associação com a ND (p = 0,026), pois aqueles com mais de 10 anos de diagnóstico da doença apresentaram um risco de 2,58 vezes maior de desenvolverem a ND (IC 95% =1,10-6,06).
Na avaliação dos fatores bioquímicos, clínicos e hábitos de vida dos idosos com DM observou-se que 46,8% apresentaram hemoglobina glicada (HbA1c) ≥7%, 77,5% com glicemia em jejum ≥100mmol/L, 58,5% com triglicerídeos ≥150mmol/L, 42,3% com colesterol ≥190mmol/L, 26,1% com LDL ≥130mmol/L, 21,6% com HDL <40mmol/L, 73,0% com IMC ≥27, 60,4% com depressão, 8,1% com hábitos tabágicos, 6,3% com hábitos alcoólicos, 40,5% sedentários, 42,3% com dificuldade para dormir, 84,7% com HAS e 63,0% faziam uso de mais de quatro medicamentos diariamente (Tabela 2).
Dentre esses fatores, aqueles que aumentaram o risco de ND foram: hemoglobina glicada ≥7,0% (OR = 1,86; p < 0,001), glicemia em jejum ≥ 100 mmol/L (OR = 1,52; p = 0,001), triglicerídeos ≥ 150 mmol/L (OR = 1,88; p = 0,038), depressão (OR = 6,56; p < 0,001) e sedentarismo (OR = 1,85; p < 0,001; Tabela 2).
LANSS | |||||||||
Com neuropatia (n = 33) | Sem neuropatia (n = 78) | ||||||||
n | % | n | % | OR (IC 95%) | Valor p*** | ||||
HbA1c (%) | < 7,0 | 6 | 18,2 | 53 | 67,9 | 1 | |||
≥7,0 | 27 | 81,8 | 25 | 32,1 | 1,86 (1,39-2,51) | <0,001 | |||
Glicemia em jejum (mmol/L) | < 100 | 1 | 3,0 | 24 | 30,8 | 1 | |||
≥ 100 | 32 | 97,0 | 54 | 69,2 | 1,52 (1,27-1,83) | 0,001 | |||
Triglicerideos (mmol/L) | < 150 | 9 | 27,3 | 37 | 47,4 | 1 | |||
≥ 150 | 24 | 72,7 | 41 | 52,6 | 1,88 (1,06-3,67) | 0,038 | |||
Colesterol total (mmol/L) | < 190 | 22 | 66,7 | 42 | 53,8 | 1,46 (0,79-2,72) | 0,149 | ||
≥190 | 11 | 33,3 | 36 | 46,2 | 1 | ||||
LDL (mmol/L) | < 130 | 26 | 78,8 | 56 | 71,8 | 1,31 (0,64-2,69) | 0,302 | ||
≥ 130 | 7 | 21,2 | 22 | 28,2 | 1 | ||||
HDL (mmol/L) | < 40 | 7 | 21,2 | 17 | 21,8 | 1 | |||
≥40 | 26 | 78,8 | 61 | 78,2 | 0,97 (0,48-1,96) | 0,580 | |||
IMC* (kg/m2) | < 27 | 6 | 18,2 | 24 | 30,8 | 1 | |||
≥27 | 27 | 81,8 | 54 | 69,2 | 1,20 (0,94-1,52) | 0,128 | |||
Depressão** | Sim | 30 | 90,9 | 37 | 47,4 | 6,56 (2,13-20,21) | 0,000 | ||
Não | 3 | 9,1 | 41 | 52,6 | 1 | ||||
Tabagismo | Sim | 2 | 6,1 | 7 | 9,0 | 1 | |||
Não | 31 | 93,9 | 71 | 91,0 | 0,73 (0,20-2,57) | 0,465 | |||
Etilista | Sim | 1 | 3,0 | 6 | 7,7 | 1 | |||
Não | 32 | 97,0 | 72 | 92,3 | 0,46 (0,07-2,91) | 0,327 | |||
Sedentarismo | Sim | 24 | 72,7 | 21 | 26,9 | 1,85 (1,33-2,56) | <0,001 | ||
Não | 9 | 27,3 | 57 | 73,1 | 1 | ||||
Dificuldade para dormir | Sim | 17 | 51,5 | 30 | 38,5 | 0,69 (0,39-1,22) | 0,144 | ||
Não | 16 | 48,5 | 48 | 61,5 | 1 | ||||
Hipertensão Arterial | Sim | 29 | 87,9 | 65 | 83,3 | 1,31 (0,52-3,25) | 0,385 | ||
Não | 4 | 12,1 | 13 | 16,7 | 1 | ||||
Número de medicamentos (uso diário) | < 4 | 12 | 36,4 | 29 | 37,2 | 1 | |||
≥4 | 21 | 63,6 | 49 | 62,8 | 0,97 (0,53-1,76) | 0,556 | |||
Nota. LANSS = Leeds Assessment of Neuropathic Symptoms and Signs; OR = Odds ratio; HbA1c = hemoglobina glicada; LDL = Lipoproteína de baixa densidade; HDL = Lipoproteína de alta densidade; * IMC = Índice de Massa Corporal; ** BDI = Inventário de Depressão de Beck; *** Teste qui-quadrado.
Para a análise de regressão logística binária foram selecionadas seis variáveis para verificar a associação com ND, de acordo com o tamanho amostral. Sendo assim, foram incluídos no modelo: hemoglobina glicada, tempo de DM, dor intensa nos pés, triglicerídeos, depressão, e sedentarismo. Permaneceram associadas à ND, aumentando significativamente o risco: depressão, hemoglobina glicada elevada e sedentarismo (Tabela 3).
Valor p | OR | IC 95% | ||
Inferior | Superior | |||
HbA1c ≥7,0 % | 0,001 | 9,948 | 2,714 | 36,460 |
Tempo de DM ≥ 10 anos | 0,998 | 1,002 | 0,263 | 3,821 |
Triglicerídeos ≥ 150 mmol/L | 0,076 | 3,256 | 0,885 | 11,981 |
Dor intensa nos pés e/ou gémeos | 0,057 | 3,682 | 0,964 | 14,071 |
Sedentarismo | 0,002 | 7,904 | 2,190 | 28,524 |
Depressão | 0,001 | 14,812 | 3,105 | 70,644 |
Nota. OR = Odds ratio; IC = Intervalo de confiança; HbA1c = hemoglobina glicada; DM = diabetes mellitus. Qualidade do ajuste (teste de Hosmer e Lemeshow): p = 0,811.
Discussão
A prevalência de ND em idosos encontrada neste estudo foi aproximadamente um terço da amostra analisada. Este achado foi similar ao observado no estudo de Brinati et al. (2017). Outros estudos encontraram valores inferiores (Garoushi et al., 2019; Mejias & Ramphul, 2018). Esta diferença de prevalência da ND observada nos estudos pode ser relacionada com o método diagnóstico e o tempo de diabetes, pois idosos com diabetes há mais tempo tendem a apresentar ND e alguns métodos de investigação diagnóstica podem diagnosticar uma maior prevalência.
Referente ao perfil sociodemográfico dos idosos deste estudo, evidenciou-se uma maioria de mulheres, casadas e com idade entre 60 a 64 anos. Este perfil está de acordo com a realidade nacional (Aguiar et al., 2018; Lima et al., 2018) e internacional (Bai et al., 2017; Khan et al., 2019). As variáveis sociodemográficas são importantes devido ao perfil dos pacientes e sua capacidade de entender e adotar medidas face aos cuidados com a ND, uma vez que pessoas com baixa escolaridade podem apresentar dificuldades na execução de cuidados e no reconhecimento de sinais de complicações.
Em relação aos dados bioquímicos dos participantes, a variável hemoglobina glicada, triglicerídeos e glicemia foram relacionadas com a ND. Estas variáveis têm sido associadas à ND, tanto na literatura nacional (Gomes et al., 2018) como em estudos internacionais (Bai et al., 2017; D’Amato et al., 2016; Garoushi et al., 2019; Khan et al., 2019). Somado a estas alterações bioquímicas, um perfil glicémico inadequado tem sido positivamente correlacionado com a ND (DSBD, 2019).
As alterações presentes no descontrolo metabólico da DM somadas às alterações dislipidémicas, são observadas como fatores que contribuem para o processo inflamatório e que podem influenciar no desenvolvimento da ND, assim como no agravamento da dor neuropática. A SBD descreve que o controlo da glicemia pode contribuir também com melhoria do perfil lipídico, em especial de pacientes que apresentam aumento dos níveis de triglicerídeos. Além disso, existe um risco de duas a quatro vezes de doenças cardiovasculares nos pacientes com DM tipo 2, quando comparado aos não diabéticos, sendo a dislipidemia um dos fatores de risco mais importantes (DSBD, 2019).
É muito importante o controlo destes achados bioquímicos, pois a amostra avaliada neste estudo apresentou um IMC elevado, sendo necessário ter um bom controlo do peso e manutenção do estado de saúde com vista a controlar a ND e as suas complicações.
Outra característica importante da ND presente neste estudo foi a presença da dor em pés e/ou gémeos quase na totalidade dos indivíduos avaliados e ainda quase metade a descreveu como dor intensa. A dor nos membros inferiores é uma das características da ND e foi reforçada pelo uso da escala LANSS, que também caracteriza a neuropatia. Sabe-se que a dor é descrita como um sintoma complexo e subjetivo, causando gradativamente limitação do funcionamento físico, psíquico e social (DSBD, 2019).
Neste contexto, os idosos deste estudo com dor intensa apresentaram um maior risco de desenvolver a ND. Outro estudo também evidenciou uma dor intensa nos indivíduos com ND (Lima et al., 2018). É importante ressaltar que a dor de origem neuropática apresenta mecanismos neurofisiológicos diferentes, que estão diretamente relacionados a um maior tempo de DM, uma vez que os pacientes permanecem em estado inflamatório persistente, o que desencadeia lesões permanentes no sistema sensorial (Pop-Busui et al., 2016; DSBD, 2019).
Após a análise de regressão logística, foram identificados como principais fatores preditivos para ND: a depressão, hemoglobina glicada e sedentarismo. A variável que apresentou maior risco para a ND foi a presença de depressão. Na literatura já é conhecido que a depressão é uma condição presente na DM, duas vezes mais prevalente nas mulheres e três vezes nos diabéticos (Lima et al., 2018). Resultados de um estudo internacional constataram que dos 42,4% com ND, a maioria tinha depressão (Bai et al., 2017). Outros estudos internacionais também identificaram elevada prevalência de depressão em pacientes com ND (D’Amato et al., 2016; Khan et al., 2019).
Um estudo realizado no Brasil identificou os principais fatores preditivos para sintomas depressivos. Foram avaliados 121 participantes, sendo que 53,8% tinham ND, 59,5% relataram dor intensa e 66,9% tinham depressão. Os fatores preditivos para depressão foram uma pior qualidade de vida, presença de dor intensa, obesidade e descontrolo glicémico (Lima et al., 2018).
É importante enfatizar que indivíduos com depressão têm maiores dificuldades em se adaptar e seguir um esquema terapêutico, uma vez que os pacientes com DM geralmente utilizam vários medicamentos no tratamento da doença. Além disso, é notório que o idoso pode apresentar um maior tempo de DM e outras patologias, que podem potencializar o quadro depressivo (Khan et al., 2019; DSBD, 2019).
Outro fator preditivo observado foi a hemoglobina glicada alterada. Entre os fatores bioquímicos analisados neste estudo observou-se que a maioria dos idosos apresentou descontrolo metabólico. Após ajuste da análise de regressão, somente a HbA1c permaneceu associada a um maior risco de ND. O elevado número de idosos com HbA1c ≥7,0% encontrado neste estudo pode ser explicado por hábitos de vida inadequados, assim como diagnóstico tardio, tratamento ineficaz e até mesmo falta de adesão ao tratamento, facto observado nesta amostra de idosos. No Brasil, um estudo identificou uma média de HbA1c de 9,92% entre 120 participantes com ND, numa Unidade de Saúde da Família de Belém, Pará (Gomes et al., 2018).
Estudos internacionais também evidenciaram maiores valores de HbA1c nos pacientes com ND (Bai et al., 2017; D’Amato et al., 2016; Lima et al., 2018). Cabe ressaltar que a HbA1c reflete a concentração dos níveis de glicose entre 2 a 3 meses. Este achado evidencia que os pacientes com ND deste estudo não têm um bom controlo glicémico, apresentando, portanto, um tratamento não efetivo para a DM. O descontrolo glicémico expresso pelos valores da HbA1c tem relação direta com processos inflamatórios, em especial nos gânglios neurais (DSBD, 2019).
Por fim, um fator preditivo para ND em idosos observado neste estudo foi o sedentarismo. Quando se analisa o estilo de vida e os hábitos alimentares, a curva de IMC dos pacientes com DM está relacionada a uma vida sedentária com predisposição para obesidade. A obesidade tem sido apontada como um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de DM tipo 2. Estima-se que 60% a 90% dos portadores da DM tipo 2 sejam obesos e a incidência é maior após os 40 anos (DSBD, 2019).
É importante ressaltar que o exercício físico aumenta a ação da insulina por meio de efeitos de curto prazo, principalmente via transporte de glicose independente de insulina, além do maior gasto de energia, que auxilia a reverter a DM tipo 2 associada à obesidade. A atividade física regula e produz benefícios para a saúde com melhorias na aptidão cardiovascular, que incluem controlo glicémico melhorado, sinalização de insulina e lipídios no sangue, bem como redução da inflamação de baixo grau, melhora da função vascular e perda de peso (Kirwan et al., 2017).
Se confirmada a ND por meio dos exames clínicos, devem-se evitar exercícios que suportem o peso corporal. Com isso, aconselham-se exercícios como natação/hidroginástica, bicicleta, exercícios de braços e cadeiras, entre outros, desde que não exijam sustentação do peso do corpo, como a caminhada prolongada (DSBD, 2019).
As pessoas diagnosticadas com DM são forçadas a conviver com muitos desafios no dia-a-dia, e um dos principais é mudar seu estilo de vida, começando com a mudança alimentar. É necessário impor barreiras na alimentação, ter atenção ao valor calórico dos alimentos, fazer uso de medicamentos, realizar automonitorização do nível de glicose, que exige a perfuração no próprio dedo, e ter atenção a possíveis lesões, pois dificulta a cicatrização (DSBD, 2019).
Uma limitação deste estudo foi o desenho transversal, o qual não permite o estabelecimento de relações de causa e efeito. Além disso, a variável sedentarismo foi autorreferida, podendo ser considerada uma limitação. De qualquer modo, o artigo traz contribuições relevantes para a enfermagem, pois os resultados deste estudo podem favorecer a assistência na atenção primária, possibilitando uma atuação mais efetiva dos profissionais de saúde.
Conclusão
Um elevado número de idosos queixou-se de dor intensa nos pés e gémeos, sendo que foi significativamente associada à ND, pois aumentou o risco de apresentar ND. Os fatores preditivos para ND foram: hemoglobina glicada elevada, sedentarismo e depressão.
Neste contexto, destaca-se a importância da avaliação dos pés de maneira minuciosa, bem como os profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros, envolverem os pacientes em atividades educativas, visando a promoção do autocuidado e detecção precoce da ND. Novos estudos com delineamentos longitudinais são necessários nesta temática, a fim de contribuir com evidências sobre os fatores relacionados com a ND em idosos, que permitam, portanto, o planeamento de intervenções precoces e efetivas na prevenção da ND na atenção primária.