Introdução
O diagnóstico do transtorno do espectro autista (TEA) sinaliza a necessidade de adaptações no quotidiano da criança e da sua família. Entende-se quotidiano como a maneira de viver dos seres humanos expresso nas interações, crenças, valores, significados, símbolos e imagens que delineiam o seu processo de viver. Este quotidiano mostra-se como cena e é também cenário do viver e do conviver (Nitschke et al., 2017). Neste cenário, as intervenções assistidas por animais (IAA) surgem como uma possibilidade de cuidado e promoção da saúde da criança com TEA, a qual pode apresentar dificuldades de comunicação, interação social e de comportamento. Nesta condição, o animal parece estimular a criança através da construção de vínculos afetivos de maneira sensível que, por vezes, na relação com humanos, pode estar dificultada.
As modalidades das IAA são divididas em terapia, educação e atividades assistidas por animais, sendo que o principal fator que as distingue é o objetivo que se deseja alcançar em cada uma delas. Na última década, o interesse no desenvolvimento destas intervenções tem vindo a aumentar. A descrição de estudos com o objetivo de demonstrar os benefícios desta relação no quotidiano destas crianças e, por conseguinte, nas suas famílias, está a ser desenvolvida, a fim de possibilitar que esta prática possa ser reproduzida em diversos contextos (Haire, 2017; Smith & Dale, 2016; Yap et al., 2017).
O aumento do interesse em desenvolver as IAA e investigações na área não garante, por si só, a qualidade destas. Dentre as principais limitações para a realização das IAA relatadas nos estudos afins, cita-se a falta de conhecimentos específicos e da padronização das intervenções (Haire et al., 2015; Smith & Dale, 2016). Esta fragilidade dificulta a reprodução, e até mesmo a comparação dos estudos para a construção de evidências científicas na área.
A partir desta lacuna do conhecimento, o presente estudo visa desenvolver um modelo de programa de IAA aplicável às crianças com TEA (PIAAC-TEA).
Enquadramento
De acordo com os critérios do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-V), o TEA é classificado como um transtorno do neurodesenvolvimento referido por uma díade de sintomas: alterações de comunicação social quantitativa ou qualitativa e alterações do comportamento caracterizado como restrito e repetitivo. Tais características da criança com diagnóstico de TEA, orientam a família na busca por terapias que a estimulem e, ao mesmo tempo, as mantenham confortáveis, dentro do seu espectro. Nesse cenário, as IAA demonstram as suas potencialidades. As modalidades das IAA são divididas em terapia, educação e atividades assistidas por animais, sendo que o principal fator que as distingue é o objetivo e cada modalidade. A descrição de relatos e estudos com o objetivo de demonstrar os benefícios que esta relação pode acarretar no quotidiano destas crianças e, por conseguinte nas suas famílias, está a ser desenvolvida, a fim de possibilitar que esta prática possa ser reproduzida em diversos contextos (Haire, 2017; Smith & Dale, 2016; Yap et al., 2017). Ambiente adequado, equipa capacitada, animal treinado e certificado, cuidados com o bem-estar animal, conhecimento das necessidades da criança e do seu estado de saúde são algumas variáveis que permeiam estes cenários. Independentemente do tipo de intervenção a ser feita, as IAA exigem uma estrutura, planeamento e equipa preparada para tal (Yap et al., 2017).
Questão de investigação
Quais as contribuições teórico-conceituais do estado da arte e de pesquisas com dados primários para o desenvolvimento de um modelo de PIAAC-TEA?
Metodologia
Trata-se de um estudo metodológico para a construção de um programa de IAA, aplicável às crianças com TEA, baseado no modelo de intervenções complexas do Medical Research Council (Craig et al., 2008; Polit & Beck, 2011).
Estudos metodológicos tratam do desenvolvimento, avaliação e validação de instrumentos, técnicas ou métodos de pesquisa ou de prática, tendo como objetivo o desenvolvimento de um instrumento efetivo e fidedigno que possa ser utilizado por profissionais da área (Polit & Beck, 2011). Já as intervenções complexas são caracterizadas por um número significativo de componentes em interação, dificuldade subjacente aos comportamentos exigidos aos indivíduos que aplicam ou recebem a intervenção; número significativo de grupos ou níveis organizacionais alvos de interação; variabilidade ou dimensões de resultados; e grau de flexibilidade ou adaptação da intervenção (Craig et al., 2008).
O modelo de intervenções complexas modela-se a partir de quatro etapas, conforme a Figura 1.
Na etapa da identificação da evidência, realizou-se uma revisão integrativa, com os MeSH terms: autistic, autism; autistic disorder, Kanners syndrome, infantile autism, early infantile autism, autism spectrum disorder, animal assisted therapy, animal assisted therapies, animal facilitated therapy, animal facilitated therapies, pet therapy, pet therapies, pet facilitated therapy, pet facilitated therapies, animal assisted intervention, associados ao uso dos operadores booleanos AND e OR, nas bases de dados: Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online - MEDLINE (via PubMed), Web of Science (WOS), Scopus, SciELO, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Base de Dados de Enfermagem (BDENF).
Aplicaram-se os critérios de inclusão: estar disponível na íntegra, ser artigo de investigação e recorte temporal de 2015 a 2018. Foram selecionados 28 artigos para leitura na íntegra, incluindo, no final, três artigos (Becker et al., 2017; Germone et al., 2019; Guérin et al., 2017).
A fim de oferecer suporte acerca dos benefícios das IAA com crianças com TEA, selecionou-se uma revisão sistemática desenvolvida por peritos na área (Haire, 2017). Com o intuito de dar suporte conceitual à terapia assistida por animais, adota-se o conceito internacionalmente utilizada pela instituição Pet Partners (Pet Partners, 2019).
Para identificar e desenvolver a teoria, etapa 2, definida pelo desenvolvimento de uma compreensão teórica de evidências e teorias existentes, complementadas por uma investigação primária, utilizaram-se dados primários produzidos por um estudo de casos múltiplos holísticos, de cinco casos de crianças com TEA que realizam terapia assistida por animais, com parecer do Comité de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Parecer 2.815.017 em CAAE: 90845118.6.0000.0121). Estes dados emergiram através de entrevista com familiares, profissionais de saúde e educadores caninos, diários de campo da investigadora e análise fotográfica das sessões de IAA, sendo que todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Para manutenção do anonimato, as entrevistas foram codificadas pela letra E seguida de numeração ordinal. Já a análise fotográfica foi codificada com as letra AF, seguida de número ordinal que representa o caso a qual a imagem pertence.
O processo de modelagem, etapa 3, será constituído pelas seguintes fases: análise das informações das duas primeiras fases com modelagem da primeira versão do programa; aplicação da Versão 1 do programa em cenário real; questionário para participantes profissionais com aplicação de escala de likert.
Por fim, na etapa 4 será avaliada a eficácia, momento em que serão reunidos os resultados das etapas anteriores, realizada a avaliação por juízes experts e será apresentada a versão final do programa.
Resultados
A Etapa 1, na qual foi realizada a identificação das evidências para a construção do programa de intervenções, pautou-se numa revisão integrativa da literatura, uma revisão sistemática e a conceituação de IAA adotada pela Pet Partners. Já a Etapa 2, de identificação e desenvolvimento da teoria, foi construída a partir de dados primários de investigação qualitativa do tipo estudo de caso múltiplo holístico, conforme descritas na Tabela 1.
A revisão integrativa da literatura, utilizada aqui para atender a primeira etapa do método de criação de programas que envolve intervenções complexas (Craig et al., 2008) objetivou identificar a dinâmica utilizada para desenvolver uma sessão/programa de IAA com cães em crianças com TEA. No que diz respeito à seleção/certificação do animal, um estudo aponta que a escolha do animal com base na preferência da criança pode melhorar a sua interação e otimizar os resultados, além de diminuir o stress e ansiedade (Guérin et al., 2017). Deve ter em conta o custo, a facilidade da implementação e características da interação homem-animal. Os cães eram certificados por órgãos reconhecidos internacionalmente e preparados no dia da sessão: banho anterior à visita e uso de colete de identificação (Becker et al., 2017; Germone et al., 2019).
A periodicidade das sessões era semanal, durante 12 semanas. Os autores sugerem que o período das intervenções possa ser mais longo (Becker et al., 2017). Cada sessão seguiu as seguintes etapas: avaliação de habilidades anteriores, introdução à meta e atividade da sessão, modelagem e prática, e avaliação da habilidade alvo, sendo que cada uma delas era orientada por um objetivo anteriormente definido, fazendo parte de um módulo do programa (Becker et al., 2017). Cada sessão foi subdividida em momentos, a saber: momento de introdução, atividade de linguagem recetiva e atividade de conclusão. A duração da sessão foi de 10 a 15 minutos, com periodicidade quinzenal. A duração do programa não foi relatada (Germone et al., 2019).
Foi utilizada ainda, como evidência, uma revisão sistemática da literatura a qual procurou sintetizar as pesquisas que relatam resultados das IAA com a população autista. Os programas de IAA incluem geralmente um animal por participante, o número de profissionais nas IAA com cães é de 1:1, com tempo de contacto de cerca de 15 a 60 minutos, uma a duas vezes por semana durante 8 a 12 semanas, com tempo médio total de 10 horas por programa. O principal benefício da intervenção identificada neste estudo foi a melhoria nas interações sociais (Haire, 2017).
Esta revisão indica a necessidade de os programas utilizarem um manual que oriente a organização das IAA, porém, não sugere nenhum. Indica, ainda, que a prática não é padronizada e que, para isso, são necessários estudos que sigam a mesma padronização (Haire, 2017).
Por fim, com o intuito de ancorar conceitualmente as intervenções assistidas por animais, adotou-se a nomenclatura utilizada pela Pet Partners. A Pet Partners, instituição americana sem fins lucrativos tem vindo a desenvolver, desde 1970, estudos na área das IAA, termo esse que engloba a terapia assistida por animais, a educação assistida por animais e as atividades assistidas por animais (Pet Partners, 2019).
Enquanto a terapia assistida por animais é realizada em contextos de saúde e com objetivos voltados para a promoção e melhoria das condições de vida, a educação assistida por animais é realizada em contextos educacionais e com enfoque no desenvolvimento de competências educacionais (Pet Partners, 2019). As atividades assistidas por animais, por sua vez, têm caráter informal, geralmente de natureza lúdica. Os seus objetivos centram-se em gerar benefícios motivacionais e recreativos, produzindo bem-estar no público-alvo (Pet Partners, 2019).
Ambas as modalidades de IAA exigem que os profissionais possuam conhecimento teórico acerca da temática e treino direcionados para a prática. O cão necessita de ter passado por seleção e treino adequado e de uma avaliação específica por órgãos e/ou profissionais especializados.
Para identificar e desenvolver a teoria, Etapa 2, os autores sugerem o uso de evidências de fontes primárias, a fim de justificar a implementação e identificar as potencialidades da intervenção (Craig et al., 2008). Deste modo, baseámo-nos em investigação de natureza qualitativa, de estudo de casos múltiplos holísticos, com a análise de cinco casos de crianças diagnosticadas com TEA, que beneficiaram de programa de IAA.
Os benefícios identificados foram: o cão como um estimulante, tranquilizador, redutor de crises e estereotipias, melhoria no comportamento da criança, desenvolvimento da fala, desenvolvimento da expressão corporal, redução de estados de frustração e irritação, aumento do contacto visual, melhoria na perceção tátil, aumento do vínculo e interação social.
Os achados encontram-se expressos nas narrativas a seguir: “Ele vem mais calmo (da IAA), fica mais concentrado, não tem crise” (E2); “Ela teve um crescimento até de autoestima” (E3); “A questão da linguagem, a questão da afetividade, uma melhora sensacional” (E7); “Ele começou a falar, olhar pra gente, interagir, ser mais carinhoso, diminui as estereotipias” (E10); “Ele começou a se aproximar de pessoas” (AF1).
Com o intuito de identificar a dinâmica adotada na realização das sessões, identificaram-se as seguintes etapas: planeamento do programa, planeamento da sessão, implementação e avaliação dos resultados.
A primeira etapa do planeamento do programa deve ser a organização da equipa de trabalho, a qual tem de ser composta por, pelo menos, dois profissionais, um responsável pelo cão, aqui chamado tutor do cão, e outro responsável pela criança.
“Os profissionais desta equipe precisam ter conhecimento de como funciona o cachorro numa intervenção. É importante que os profissionais da saúde tenham conhecimentos básicos do que seria a IAA” (E11).
Ambos os profissionais da equipa precisam de ter um conhecimento mínimo acerca da dinâmica das IAA, assim como das especificidades de saúde do público atendido.
Após constituída a equipa, inicia-se a seleção e preparação do animal. A seleção do animal, neste caso, o cão, tem de estar de acordo com as especificidades do público-alvo das IAA. Sugere-se que esta etapa seja realizada com auxílio de um educador canino.
“Quando eu trabalho com uma criança do espectro do autismo, tem que selecionar um cão de grande porte. Não pode ser aquele cão mais ativo, tem que ser um cão bem passivo” (E4).
Após o treino do cão, sugere-se que seja feita uma avaliação, por órgão ou entidade específica, que forneça uma certificação ao animal. No Brasil sugere-se solicitar a certificação da Confederação Brasileira de Cinofilia (CBKC).
Após esse processo, tornam-se necessários alguns cuidados permanentes com o cão, que fica então sob a responsabilidade do seu tutor. Entende-se aqui por tutor do cão a pessoa que possui a guarda do animal e com a qual o animal vive.
O tutor do cão fica responsável por reforçar os comandos e treino ensinados pelo educador canino e, ainda, por procurar novos comandos e ensinar novas atividades. Deve manter uma ficha para controlo de saúde do animal e outra para os testes de comportamento realizados regularmente por um profissional veterinário e adestrador canino (Dotti, 2014).
No dia das sessões são necessários alguns cuidados de higiene do cão, que são da responsabilidade do tutor, a saber: escovação (banho seco) para remoção de excesso de pêlos e higienização das patas antes e depois da entrada em ambientes hospitalares ou serviços de saúde.
“No dia eu faço a escovação do cão antes de sair de casa, o banho é uma vez na semana e eu faço a higiene de banho seco” (E4).
Quanto à contraindicação para as IAA, os profissionais referem ser mínimas, por exemplo, crianças com alguma limitação física ou patologias associadas. Entretanto, se após avaliação do profissional de saúde, o mesmo julgar pertinente, a IAA pode ser indicada. “Eu acredito que seja indicação para todas as crianças, porque a melhora é em todos os aspetos” (E7).
Ademais, enfatiza-se a importância de preservar e garantir condições adequadas para que o animal não sofra nenhuma agressão.
Para que as sessões de IAA apresentem resultados significativos, sugere-se uma continuidade e periodicidade. Em relação à periodicidade, sugere-se semanal, com duração da sessão de cerca de 45 a 50 minutos. Já para os programas, indicados para terapia assistida por animais e educação assistida por animais, sugere-se uma duração mínima de 3 meses. “Três meses, mais ou menos. E são sessões semanais” (E4).
Em seguida faz-se o planeamento da sessão, momento em que se solicitam informações que irão subsidiar a construção do programa, de acordo com as necessidades do cliente. Sugerem-se, assim, as seguintes ações: entrevista com profissionais que mantêm ou mantiveram contacto com a criança, entrevista com familiares, definição dos objetivos e preparo de materiais necessários.
A entrevista com os familiares fornece informações acerca das condições da criança, do comportamento, das suas preferências e de gatilhos que podem originar uma crise. “Ele se distrai com outras coisas dentro da sala, principalmente se tiver um aparelho eletrônico” (E1).
A entrevista com os profissionais que acompanham a criança é necessária para conhecer as condições clínicas, e necessidades de cuidado. “Vai depender da idade da criança, do desenvolvimento que ela se encontra dentro do TEA, se ela tem uma deficiência intelectual” (E10).
Com as informações colhidas nas entrevistas, estipulam-se os objetivos, os quais devem ser pensados pelos profissionais de saúde (terapia assistida por animais) ou de educação (educação assistida por animais), a partir das necessidades identificadas.
Podem ser ainda trabalhadas necessidades que emergiram de questões evidenciadas pela família no seu quotidiano. “A gente já trabalhou com os cuidados de higiene, de escovar os dentes. De sair pra passear, o cuidado com o cão (E10); Eu pergunto diretamente o que ele quer trabalhar, se é na área da educação, me diz o alfabeto, se é psicólogo e ele quer tratar um problema no relacionamento familiar” (E11).
Ressalta-se que os objetivos das primeiras sessões de um programa de IAA podem ser apenas de aproximação, sensibilização e criação de vínculo e confiança da criança com o animal e os profissionais envolvidos.
Para uma boa execução da sessão de IAA são necessários materiais que servem para favorecer a interação da criança com o animal. Podem ser utilizados materiais como bolas, cones, fantoches, cordas, dados, brinquedos de preferência da criança, fantasias, coletes com velcro ou bolso para guardar fichas, entre outros. “Nossos cachorros usam coletes que os identificam, tem zipe ou velcro” (E11); “colete de bolso pra guardar objetos, letras, números, colete de motricidade, tem o colete que dá pra desenhar” (AF1).
No cenário de saúde podem ser utilizados simuladores de seringas, curativos, faixas e outros materiais, a fim de familiarizar a criança com os procedimentos necessários para a promoção e recuperação da sua saúde (Tooker, 2016).
No dia da implementação da sessão deve-se chegar ao local com antecedência, a fim de preparar o ambiente. Deve-se estar atento, durante toda a atividade, à interação da criança com o cão, a possíveis estímulos externos que possam causar-lhe desconforto. “Tem que ter bastante cuidado com a criança com TEA, porque tem o limite dela, ir devagarinho pra ir passando esse limite” (E4); “Eu preciso chegar primeiro, chego com meu cachorro, comprimento meus colegas de trabalho, organizamos o material para trabalhar” (E11).
Sugere-se realizar a sessão com momentos distintos, sempre respeitando o interesse e as preferências da criança, estando suscetível a mudanças de atividade.
No primeiro momento da sessão sugere-se uma aproximação e reconhecimento do ambiente pela criança. É o momento em que ela se habitua ao cenário da intervenção.
“Nós fomos criando as atividades para que ele se aproximasse do cão” (AF1).
“As primeiras atividades foram mais de interação mesmo, depois que nós começamos com as atividades de alfabetização” (AF2).
A duração da etapa de aproximação deve ser respeitada de acordo com a necessidade da criança. Em alguns casos pode durar apenas parte da sessão, a sessão toda ou, até mesmo, as primeiras sessões de um programa. Após a criança estar familiarizada com o cenário e com o animal, inicia-se o processo de interação.
A interação refere-se ao momento em que a criança receberá um maior estímulo do animal. Nesse momento, ela irá interagir com o cão de acordo com a atividade planeada e com os materiais desenvolvidos para o alcance do objetivo. “A gente começa a atividade a partir do objetivo que eu tenho e interagindo com o cão” (E10).
“Ele ia grudar as palavras na roupa de velcro do cachorro. Aqui foi uma sessão temática de festa Junina, tinha quentão, foguete, aí ele tinha que pescar os peixinhos, ai já trabalha coordenação motora” (AF1).
Também podem ser planeadas atividades ao ar livre, na rua, passeios, simulando situações do quotidiano e que facilitem o dia-a-dia da família e da criança com TEA.
“A (profissional) deu algumas frutas para ela encontrar e sentir a textura, tamanho, peso e depois ela tinha que escrever no caderno as frutas que ela conheceu. Fizemos um passeio numa lancheria onde ela teve que solicitar o pedido” (AF2).
Ainda na fase da interação, os profissionais precisam de estar atentos para identificar e evitar possíveis intercorrências que possam prejudicar o desenvolvimento da intervenção, sejam elas relacionadas com o bem-estar da criança ou do animal. “Se eu vejo que o cão não está bem, eu vou retirar ele e vou finalizar com outras atividades” (E4).
Para esta etapa, sugere-se que sejam disponibilizados cerca de 30 minutos.
A última etapa da sessão refere-se ao momento em que a criança estará a finalizar a sua atividade principal, incluindo-se assim uma atividade mais livre. “A sessão é dividida assim. Inicialmente livre, depois a atividade que foi planejada a partir dos objetivos, o que eu quero com essa criança, se é ler, enfim, depois o passeio” (E11).
Neste momento podem ser feitas atividades como: passeio em área externa, organização da sala e dos materiais utilizados solicitando-se a ajuda da criança, ou até mesmo uma conversa com a criança explicando que o animal precisa de descansar. Sugere-se, para esta etapa, os últimos 10 minutos da sessão.
No final das atividades faz-se necessária uma avaliação dos resultados e, para tanto, sugere-se o registo das atividades através de notas de campo. “A gente sempre faz uma mini avaliação. Hoje deu certo isso, não deu certo aquilo” (E10).
As notas de campo devem ser feitas logo após o término da sessão e devem conter informações acerca do curso da sessão, do alcance dos objetivos propostos, das intercorrências e possíveis mudanças de atividade durante a sessão, da interação da criança com o animal e das reações expressas pela criança. Em todos os tipos de IAA, devem ser registados relatórios e avaliação das visitas para que este material possa ser utilizado como fonte de informação e de comprovação do trabalho realizado (Dotti, 2014).
O registo escrito pode ser complementado com o registo fotográfico. Este permite evidenciar as reações e interações da criança, além de servir como ferramenta para que os pais/familiares possam acompanhar as atividades desenvolvidas. “Ela sempre me manda fotos e vídeos no final das sessões, que é muito bom pra gente ter ideia do que está acontecendo” (E14).
Para que se possa verificar a efetividade das IAA, é necessária a avaliação do programa das sessões desenvolvidas. Sugere-se que seja feita uma avaliação a cada 4 semanas. “As sessões acontecem uma vez por semana e a avaliação é a cada 4 a 6 sessões” (E11).
Na avaliação sugere-se identificar o alcance dos objetivos previamente definidos, a análise das possíveis intercorrências, a evolução ou involução da criança. A partir daí define-se o plano das próximas sessões do programa.
O processo de modelagem, terceira etapa da criação de programas, será realizado em três etapas. Na primeira etapa, a partir da análise das informações produzidas nos dois primeiros passos, foi construída a Versão 1 do programa PIAAC-TEA. A próxima etapa será o envio de projeto para obtenção de aprovação do Comité de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, para que possa ser realizada a aplicação desta versão em cenário real.
Nesta etapa, será aplicado um questionário com os profissionais envolvidos neste processo, a fim de identificar possíveis vieses e sugerir modificações, alterações pertinentes ao programa. No final, será delineada a segunda versão do PIAAC-TEA com as modificações necessárias.
Por fim, na etapa de avaliação da eficácia, serão reunidos os resultados das etapas anteriores, será feita a avaliação por juízes peritos e a versão do programa final será apresentada.
Discussão
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), a prevalência do TEA tem aumentado significativamente nos últimos 50 anos. Embora não haja estudos amplos em todo o mundo sobre esta prevalência, existe uma estimativa que uma em cada 160 crianças, vive com TEA (OPAS, Organização Mundial da Saúde, 2017). Nos Estados Unidos, onde há uma rede de vigilância que fornece estas informações, os dados apontam para uma para cada 45 crianças (Baio et al., 2018).
Vários são os motivos elencados para corroborar com este aumento de casos de TEA, porém, o que necessita de especial atenção são as possibilidades de cuidado terapêutico que possam oferecer a estas crianças e às suas famílias uma melhor qualidade de vida.
Neste cenário, uma proposta que vem sendo desenvolvida e aprimorada são as IAA. Esta modalidade de intervenção já demonstra resultados promissores na melhoria da qualidade de vida das crianças com TEA e das suas famílias. Os principais benefícios identificados são a melhoria nas aptidões sociais, diminuição de problemas comportamentais, aumento das interações sociais, diminuição do stress e ansiedade pré-procedimentos e aumento do contacto visual (Funahashi & Gruebler, 2014; Smith & Dale, 2016; Yap et al., 2017).
Porém, uma das limitações que estes mesmos estudos apontam é a necessidade de padronizarmos as IAA para que estas possam ser replicáveis e os seus benefícios melhor avaliados. A ausência de programas definidos e validados dificulta a operacionalização destas intervenções, podendo ainda interferir na sua qualidade.
A inexistência de modelos que orientem a realização das IAA com crianças com TEA dificulta a realização adequada destas atividades pelos profissionais da área.
O desenvolvimento e a posterior validação deste programa segue o modelo de intervenções complexas e está suportado em literatura científica internacional atualizada, recomendações internacionais específicas da área, bases de dados primárias recolhidas junto do público-alvo destas intervenções (Craig et al., 2008). Esta primeira versão do programa será aplicada em cenários reais a fim de identificar fragilidades e adequações que possam ser apropriadas. Para isso, serão aplicados questionários aos profissionais envolvidos na implementação do programa. Esta etapa culminará na segunda versão do PIAAC-TEA.
Em seguida, será solicitada avaliação por peritos da área da saúde que atuam, ou possuam experiência com crianças com TEA e com IAA. A opinião de peritos na área culminará com a versão final do programa.
A proposta, apesar de modular as premissas das IAA, deixa espaço, às singularidades de cada indivíduo, em especial quando se trata de crianças com TEA. Não se pretende aqui delimitar os contornos para a realização das intervenções, apenas delinear estratégias que mantenham a segurança tanto da criança recetora da intervenção, quanto da equipa que a está a desenvolver.
Conclusão
A construção do PIAAC-TEA, esteve ancorada no modelo de intervenções complexas, seguindo as diretrizes do Medical Research Council. Na sua primeira versão, consta um programa descrito e detalhado em que operacionaliza as etapas de um programa de IAA, desde o planeamento do programa, passando pelo planeamento da sessão, a implementação da intervenção e a sua posterior avaliação.
Este texto apresenta a primeira versão do programa, versão 1, construída após revisão de literatura e com base em conceitos internacionalmente aceites por entidades da área. Usaram-se ainda, como suporte teórico, dados primários recolhidos em famílias de crianças que vivem com TEA e realizam as IAA, assim como junto de profissionais que atuam na área de IAA.
A validade do PIAAC-TEA ainda precisa de ser aplicada em cenários reais e avaliada por peritos, para então culminar na versão final do instrumento. Após este processo, espera-se que o programa possa ser utilizado na prática clínica, sistematizando as IAA com crianças com TEA e fornecendo subsídios para que novas pesquisas na área sejam desenvolvidas, com rigor técnico e científico.