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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serV no.7 Coimbra set. 2021  Epub 02-Dez-2021

https://doi.org/10.12707/rv20140 

Artigo de Investigação Histórica

Movimentos de profissionalização histórica: a relação entre as catástrofes sociais e a enfermagem moderna

Historical professionalization movements: the relationship between social disasters and modern nursing

Movimientos de profesionalización histórica: la relación entre las catástrofes sociales y la enfermería moderna

Paulo Alexandre Figueiredo dos Santos1  2 
http://orcid.org/0000-0001-7409-1011

Isabel Cristina Mascarenhas Rabiais3 
http://orcid.org/0000-0002-8342-1171

José Joaquim Penedos Amendoeira4 
http://orcid.org/0000-0002-4464-8517

Amélia Simões Figueiredo2 
http://orcid.org/0000-0003-2908-4052

Sílvia Maria Alves Caldeira Berenguer2 
http://orcid.org/0000-0002-9804-2297

Maria Cristina Queiroz Vaz Pereira5 
http://orcid.org/0000-0002-5715-8883

1 Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa, Lisboa, Portugal

2 Universidade Católica Portuguesa, Centro de Investigação Interdisciplinar em Saúde, Lisboa, Portugal

3 Universidade Católica Portuguesa, Instituto de Ciências da Saúde, Lisboa, Portugal

4 Instituto Politécnico de Santarém, Escola Superior de Saúde, Santarém, Portugal

5 Politécnico de Leiria, Escola Superior de Saúde, Leiria, Portugal


Resumo

Contexto:

É em contexto de catástrofes sociais que a afirmação socioprofissional do enfermeiro se constitui uma referência.

Objetivo:

Dimensionar a relação entre as catástrofes sociais e a relevância do trabalho realizado por determinadas enfermeiras, no final do século XIX, com contributo para a construção/evolução da enfermagem enquanto profissão.

Metodologia:

Embora as opções metodológicas na validação do caráter científico deste estudo histórico assentem na historiografia, os factos narrados e interpretados foram contextualizados em função da época histórica, permitindo o emergir de novos significados que possibilitem definir no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações inovadoras.

Resultados:

Foram várias as enfermeiras que contribuíram para a evolução da enfermagem enquanto ciência. Experienciaram a sua profissão em contextos com um denominador comum: os conflitos armados que se traduziram num cenário de catástrofe social, onde imperava a necessidade de cuidar do Outro.

Conclusão:

É inegável que os contextos de catástrofes sociais permitiram um campo de atuação que conferiu visibilidade à enfermagem moderna e possibilitou um caminho, traçado no sentido de construir a enfermagem enquanto disciplina.

Palavras-chave: história da enfermagem; enfermagem; enfermeiros; ciência; conflitos armados; catástrofes

Abstract

Background:

Nurses’ socio-professional affirmation becomes a reference in contexts of social disasters.

Objective:

To analyze the relationship between social disasters and the importance of the contribution of some nurses to designing/developing nursing as a profession at the end of the 19th century.

Methodology:

Although the methodological choices in the validation of the scientific nature of this historical study are based on historiography, the facts narrated and interpreted in this study were contextualized according to the historical period, which allowed the development of new meanings that define unities, totalities, series, and innovative relations within the documentary material itself.

Results:

Several nurses contributed to the development of nursing as a science. They practiced their profession in contexts with a common denominator: armed conflicts that translated into a scenario of social disaster, where the need to care for others was paramount.

Conclusion:

Contexts of social disasters unquestionably provided modern nursing with a field of action that brought it visibility and allowed its development as a discipline.

Keywords: history of nursing; nursing; nurses; science; armed conflicts; disasters

Resumen

Contexto:

En el contexto de las catástrofes sociales es donde la afirmación socioprofesional del enfermero constituye un referente.

Objetivo:

Dimensionar la relación entre las catástrofes sociales y la relevancia del trabajo realizado por determinadas enfermeras a finales del siglo XIX, que contribuyeron a la construcción/evolución de la enfermería como profesión.

Metodología:

Aunque las opciones metodológicas para validar el carácter científico de este estudio histórico se basan en la historiografía, los hechos narrados e interpretados se contextualizaron según el período histórico, lo que permite que surjan nuevos significados que hacen posible definir, en el propio tejido documental, unidades, conjuntos, series, relaciones innovadoras.

Resultados:

Varias enfermeras contribuyeron a la evolución de la enfermería como ciencia. Vivieron su profesión en contextos con un denominador común, conflictos armados que derivaron en un escenario de catástrofe social, donde primaba la necesidad de cuidar al Otro.

Conclusión:

Es innegable que los contextos de las catástrofes sociales propiciaron un campo de acción que dio visibilidad a la enfermería moderna y habilitó un camino hacia la construcción de la enfermería como disciplina.

Palabras clave: historia de la enfermería; enfermería; enfermeras; ciencia; conflictos armados; catástrofes

Introdução

Traçando uma rápida retrospetiva histórica sobre personalidades que fizeram parte da história de enfermagem e da sua afirmação como profissão, pensa-se de imediato na figura de Florence Nightingale e na sua atuação durante a Guerra da Crimeia. No entanto, outras mulheres decididas em revolucionar a saúde foram igualmente decisivas na visibilidade e afirmação da enfermagem enquanto profissão em contextos de catástrofes sociais. Existe uma dispersão do conhecimento nesta área, pelo que se pretende com o presente artigo, evidenciar o contributo de diversas figuras para a afirmação socioprofissional da enfermagem. Por se tratar de um estudo histórico, as referências bibliográficas foram incluídas pela sua pertinência, tendo sido integrado um friso temporal mais abrangente.

Adota-se a definição de catástrofe social, definida por Rahman (2019) como qualquer evento coletivo derivado de atividades humanas de grupo, podendo ser acidental, em que o fator desencadeante é extrínseco à vontade do homem ou pelo contrário, provocada pelo homem (intrínseca) onde se incluem os atentados terroristas e os conflitos armados. Estes eventos têm sido contínuos no relacionamento entre diferentes civilizações (Bowden, 2019). No entanto, no passado, os conflitos armados, pelas suas características físicas, em que os soldados permaneciam em trincheiras lamacentas, severamente malnutridos, aliado à inexistência de antibióticos, aumentava exponencialmente a taxa de mortalidade entre os soldados feridos (Figuras 1 e 2). Por outro lado, a incipiente educação em higiene, a decadência dos cuidados de saúde evidenciados pela falta de recursos, precárias condições de higiene, conforto e cuidado do ambiente, indisciplina das pessoas que prestavam cuidados, assim como, preconceitos masculinos quanto à presença feminina em cenários desta natureza agravavam ainda mais a situação.

Figura 1: Hospital em Scutari, Guerra da Crimeia 

Figura 2: Guerra Civil Americana, Campo de soldados 

É nesse contexto, face à necessidade e ao desejo de manter as pessoas saudáveis, como também de proporcionar conforto, cuidado e proteção à pessoa doente, que a Enfermagem Moderna surge. Mulheres como Florence Nightingale, Mary Grant Seacole, Sally Louisa Tompkins, Clarissa Harlowe Barton, entre outras, perante contextos de catástrofes sociais, foram capazes de dar visibilidade à enfermagem, momentos considerados determinantes para a autonomia e desenvolvimento da profissão. As personalidades fortes, a visão e a habilidade prática para a organização destas enfermeiras, revelou-se crucial na assunção dos fundamentos, princípios técnicos, educacionais e da elevada ética que impulsionaram a profissão (Geovanini et al., 2019). Deste modo, trata-se de um estudo no âmbito da corrente da nova história de perfil narrativo/descritivo baseado na pesquisa e análise documental de várias fontes de dados. A questão de pesquisa que se assumiu como ponto de partida do presente estudo foi identificar qual a relação entre as catástrofes sociais e o trabalho realizado por algumas enfermeiras para a construção/evolução da enfermagem enquanto profissão e disciplina.

Nesta continuidade, define-se como objetivo dimensionar a relação entre as catástrofes sociais e a relevância do trabalho realizado por determinadas enfermeiras, no final do século XIX, com contributo para a construção/evolução da enfermagem enquanto profissão e disciplina.

Metodologia

Existem na literatura algumas correntes históricas com grande influência na Europa desde o século XIX até aos nossos dias. De entre várias, revemo-nos na Nova História. Esta corrente, lançada por seguidores da Escola dos Annales a partir da década de 1980, dirigida por Jacques Le Goff, é assim designada porque os objetos de estudo mudaram e a história dos grandes homens e das grandes sínteses dá lugar à história dos povos e das mentalidades, é difícil de delimitar uma vez que é rica no seu conteúdo. Partindo do princípio de que toda a atividade humana é considerada história, este autor introduziu uma nova forma de pensar e conceber a história, trabalhando novos objetos, novas abordagens, novas dimensões e novos documentos.

Nesta continuidade, consideramos para este estudo um conjunto variado de fontes de informação que integram documentos escritos disponíveis na literatura; acervos museológicos como fotografias e documentos de enfermagem (Pimenta, 2018). A história como ciência encontra-se em permanente construção, exigindo um trabalho que ultrapassa a mera interpretação, significados de textos ou ações históricas, na medida em que a sua interpretação deve possibilitar uma relação circular do todo e das partes. Só assim é possível obter uma interpretação dos dados analisados, o mais próximo da realidade, considerada crucial no quadro conceptual da história e consequentemente, para a história da enfermagem (Costa, 2017). Os factos têm de ser interpretados e contextualizados em função da época histórica em que aconteceram. Interpretar é ir além do que está narrado, é realizar conexões entre pontos comuns vivenciados em diferentes momentos históricos. As investigações dos factos históricos devem possibilitar o emergir de novos significados que permitam “definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações” inovadoras (Foucault, 2008, p. 7). Neste estudo, a história possibilitou-nos identificar elementos comuns à evolução da enfermagem: o poder como fator etiológico dos conflitos armados de onde resultaram catástrofes sociais com um número avultado de vítimas, em que a necessidade de cuidar das mesmas permitiu a afirmação socioprofissional da enfermagem como disciplina e identidade. A integração do corpus documental foi realizada de forma criteriosa atendendo ao contributo que cada documento forneceu para o estudo em causa.

Assim, utilizou-se o método histórico, também denominado de método crítico ou crítica histórica, que permite através de fontes primárias e outras evidências, analisar eventos passados relevantes para as sociedades humanas. Esta metodologia integra três etapas. A primeira etapa, a heurística, onde se procedeu à seleção de fontes primárias, constituídas por documentos originais (atas, legislação, diários, notícias, fotografias), acessíveis em repositórios de documentação online de diversos museus internacionais, que incidissem sobre o tema em estudo. No entanto, devido à dificuldade em aceder a alguns destes documentos, foram igualmente utilizadas fontes secundárias, assumindo que estas têm “um valor limitado pelas distorções que a informação sofre ao passar por diversos autores, contendo já a interpretação de quem as escreveu” (Ferreira et al., 2013, p. 156).

Na segunda etapa, crítica documental, processo de análise que compreende a crítica externa e interna, procedeu-se à análise de 22 documentos obtidos, possibilitando confirmar a autenticidade dos dados históricos e apurar a genuinidade dos mesmos (processo denominado de crítica externa), pois o caráter subjetivo de determinadas fontes de informação pode colocar em causa o rigor da investigação. É de salientar que, “quanto maior o desfasamento temporal entre o acontecimento e a recolha do relato, maior será o risco de erro, fazendo-se jus ao ditado «quem conta um conto, acrescenta um ponto»” (Ferreira et al., 2013, p. 157). Relativamente à crítica interna, procedeu-se à avaliação da credibilidade ou fidedignidade das fontes, o que permitiu determinar se o conteúdo dos dados transmitidos pela fonte é exato e não existem versões contraditórias.

Por último, procedeu-se à conceptualização da etapa hermenêutica, associada à interpretação dos dados, processo através da qual se estabelece a referência de um signo, “cujas significações . . . são compartilhadas . . . e age como uma linha condutora entre as mentes dos indivíduos e o mundo ao seu redor”, permitindo constituir novas abordagens e conhecimentos sobre os assuntos estudados (Miguel & Popadiuk, 2019, p. 461).

Para a apresentação dos resultados associamos assim a triangulação de todas estas fontes de dados descritas anteriormente, no sentido de aumentar a credibilidade do estudo. À figura da personagem histórica de referência, associamos a sua história pública e o contexto, nem sempre documentado na imagem.

Resultados e discussão

Apresentamos de seguida, por ordem cronológica, as diversas personalidades consideradas precursoras na consolidação das bases da era moderna da enfermagem, atendendo à proposta de análise histórica de Michel Foucault.

Florence Nightingale

Nascida a 12 de maio de 1820, em Florença, Itália, no seio de uma família tradicional e aristocrática inglesa do séc. XIX, Florence Nightingale abdicou de uma vida de conforto, para se tornar numa das personalidades mais marcantes do século XIX. Determinada em prosseguir a vocação de enfermeira, desde cedo, revelou aptidão pelas questões sociais. Contudo, a oposição da sua família, que consideravam a profissão de enfermeira pouco respeitável e digna para o seu estatuto social, levou a que em 1850, Florence viaje pela Europa e Norte de África, onde na Alemanha em Kaiserswerth, subúrbio de Dusseldorf, decide juntar-se às diaconisas, no sentido de adquirir formação para cuidar de doentes (HISTORY Channel, n.d.).

Entre 1851 e 1854, complementou a sua formação no Hospital de Dublin sob a administração das Irmãs da Misericórdia e as Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, adquirindo e consolidando conhecimentos, assim como procedendo à publicação de alguns trabalhos na área da saúde pública. Fruto desta experiência e saber adquirido, é nomeada Superintendente do Establishment for Gentlewomen During Temporary Illness, em Londres, até ao início da Guerra da Crimeia em 1854.

Do ponto de vista humanitário, esta guerra foi uma verdadeira catástrofe social, devido ao elevadíssimo número de mortos (em grande parte devido à alta incidência de doenças infectocontagiosas decorrente das deficientes condições sanitárias e à desorganização dos hospitais de campanha), facto que leva aos jornais da época tecerem duras críticas aos serviços médicos britânicos de apoio aos feridos de guerra hospitalizados, devido às elevadas taxas de mortalidade (HISTORY Channel, n.d.).

Neste contexto, o Secretário de Estado da Guerra, Sidney Herbert, solicita a presença de Florence nos hospitais militares da Turquia em Scutari, no sentido de organizar e coordenar o serviço de enfermagem. Florence aceita o pedido e parte com 38 voluntárias, entre religiosas e leigas. Fruto dos seus conhecimentos, preocupação e exigência com a qualidade dos cuidados de saúde, o meio ambiente e o bem-estar dos soldados feridos e doentes, diminui a taxa de mortalidade de 40% para 2% em apenas 6 meses (Figura 3), facto que lhe permite o reconhecimento e o respeito da parte dos políticos, da Rainha Vitória e do povo britânico. Porém, esta proeza não foi tarefa simples, pois para além da falta de recursos e ausência de condições de higiene, teve de enfrentar a hostilidade por parte dos médicos e demais oficiais militares; preconceitos do sexo masculino; indisciplina e falta de preparação das suas enfermeiras. Devido à sua dedicação, tornou se o anjo da guarda dos soldados feridos e doentes, que a imortalizaram com o apelido de a Dama da Lâmpada, porque, de lamparina na mão, Florence percorria as enfermarias, para atender as necessidades dos soldados doentes ou feridos, durante a noite (HISTORY Channel, n.d.).

Figura 3: Florence Nightingale 

É desta experiência em Scutari, num contexto hostil de guerra, que Florence obtém o saber prático que lhe permite fundar as bases necessárias para a reorganização dos serviços de enfermagem, assim como a reforma hospitalar da segunda metade do século XIX, permitindo à enfermagem o estatuto socioprofissional que lhe faltava como uma nova representação social.

Quando regressou da guerra da Crimeia, fundou a Nightingale Training School for Nurses no Hospital Saint Thomas em Londres, em 9 de julho de 1860, reconhecida mundialmente como a primeira escola de enfermagem, um marco histórico na afirmação da enfermagem como profissão. Florence Nightingale tornou-se assim, no símbolo da profissão, permitindo literacia e aprendizagem e influenciar as tomadas de decisão a vários níveis, no que se refere às políticas e aos cuidados de saúde (The National Archives Education Service, n.d.). Dedicou a sua vida à profissão de enfermeira, em que a narração da sua obra não cabe nos limites deste artigo. Faleceu a 13 de agosto de 1910, em Londres.

Mary Jane Seacole - A Nightingale Negra

Mary Jane Seacole, enfermeira, nascida em 1805, em Kingston, Jamaica, filha de mãe negra jamaicana e pai branco escocês, oficial do exército britânico, destacada pela sua dedicação pessoal, determinação e perseverança. O seu nome e dedicação à profissão de enfermeira permaneceu discreto por várias décadas, até que a enfermeira britânica Elsie Gordon, por mera casualidade, encontrou uma cópia da sua autobiografia numa livraria de livros usados.

Segundo a sua autobiografia Wonderful Adventures of Mrs. Seacole in Many Lands (1857), foi no decurso das epidemias de febre-amarela e de cólera que assolaram o país de Mary Seacole (Jamaica), que a mesma adquiriu as habilidades para prestar cuidados de enfermagem (Nittle, 2019).

Após o início da Guerra da Crimeia em 1853, decide viajar para Inglaterra e oferecer-se como voluntária para integrar as equipas médicas, com o intuito de cuidado aos feridos e doentes da guerra, porém, este pedido foi rejeitado, em virtude do preconceito existente na época, do direito às mulheres em exercer medicina. Mais tarde em 1854, inscreve-se como voluntária, para integrar o destacamento de enfermeiras, a ser enviado para o hospital Barrack em Scutari, liderado por Florence Nightingale, porém, também não foi aceite, apesar das cartas de recomendação dos governos da Jamaica e do Panamá. Este facto relacionou-se com preconceitos raciais da época. Inconformada, mas determinada a cuidar dos feridos e doentes da Guerra da Crimeia, resolveu com os seus próprios meios viajar para Scutari, onde fundou um hotel - British Hotel, perto de Balaclava (Figura 4), cujo objetivo era providenciar os cuidados de saúde necessários aos soldados feridos ou doentes devido à desnutrição e doenças infeciosas a que estavam expostos (Nittle, 2019).

Figura 4: Mary Seacole 

A bravura, caridade, dedicação e competência de Mary Seacole captou a atenção do jornalista britânico e correspondente do Times, William Howard Russell, que em 1857, numa das suas publicações escreveu: “A mais tenra e hábil mão sobre uma ferida ou parte quebrada não podia ser encontrada entre os melhores cirurgiões” (Anionwu, 2012, p. 248).

Embora tenha recebido alguma notoriedade no final da sua vida, Mary Seacole desvaneceu-se rapidamente da memória pública. No entanto, fruto da sua capacidade de trabalho e determinação durante a Guerra da Crimeia, é hoje considerada como uma das figuras precursoras na afirmação da enfermagem, enquanto profissão, assim como um símbolo de atitudes anti raciais e da injustiça social no Reino Unido durante o período vitoriano (Nittle, 2019).

Mary faleceu em 14 de maio de 1881 e foi sepultada no cemitério católico de St. Mary’s em Kensal Green. Entre as condecorações recebidas, destaca-se a Medalha de Guerra da Crimeia e da Legião de Honra Francesa.

Sally Louisa Tompkins - Angel of the Confederacy

A Guerra Civil Americana, também conhecida como a Guerra da Secessão (1860 a 1865), resultou no maior número de baixas militares na história dos Estados Unidos. De acordo com os factos históricos, mais de 600.000 mortos e parte do país foi destruído, situação que potenciou a afirmação da enfermagem como profissão nos Estados Unidos (Hassler & Weber, n.d.).

Sally Louisa Tompkins, filha mais nova do Coronel Christopher Tompkins e de Maria Booth Patterson, nasceu na região de Tidewater, no estado da Virgínia em 1833. Família muito devota a Deus, Sally estudou entre 1849-1850 em Norfolk Female Institute, uma escola episcopal (Backus, 2019).

Durante a Guerra Civil Americana, o Governo Confederado, de Richmond, Virgínia, devido à escassez de recursos humanos, pede assistência à comunidade civil para acolher e cuidar do elevado número de feridos e doentes provenientes da guerra (Figura 5), Sally Tompkins, acede ao pedido e fundou em 1861, conjuntamente com o Juiz Robertson, um hospital de campanha conhecido como o Robertson Hospital (Soodalter, 2019).

Figura 5: Capitan Sally Louisa Tompkins 

O estatuto de mulher com uma postura reivindicativa, com elevada capacidade organizativa e de gestão, assente numa aptidão apurada para a liderança, reconhecida a todos os níveis, proporcionaram-lhe as bases fundamentais para idealizar e implementar as reformas hospitalares. De acordo com publicações históricas, Sally Tompkins revolucionou a prática da enfermagem no cuidado e na prevenção nos Estados Unidos da América. Como enfermeira, cuidou de 1331 feridos e doentes, resultantes da guerra em más condições sanitárias, conseguindo a mais baixa taxa de mortalidade dos hospitais da época (resultado pela sua defesa incondicional da qualidade dos cuidados prestados, o bem-estar dos feridos e o meio ambiente; Soodalter, 2019).

Em reconhecimento pelos seus serviços e dedicação à causa do exército dos Estados da Confederação, por ordem do Presidente Jefferson Davis, é promovida a 9 de setembro de 1861 a capitã da Cavalaria e, simultaneamente, nomeada responsável pela gestão e coordenação de todos os hospitais de campanha, sob a alçada do exército dos Estados da Confederação.

Captain Sally ou Our Florence Nightingale of the Confederacy, como ficou conhecida, manteve em funcionamento o Robertson Hospital, até final da Guerra Civil Americana minimizando o sofrimento dos soldados feridos e doentes. No entanto, a guerra, a exigência do seu trabalho de caridade e generosidade, esgotaram por completo a fortuna da família. Em 1905, é acolhida pela Confederate Women’s Home em Richmond, Virgínia, onde permanece, até falecer em 1916. Sally Louisa Tompkins teve direito a um funeral com honras de estado e o seu nome encontra-se inscrito no Memorial Building of the United Daughters of the Confederacy (Soodalter, 2019).

Clarissa Harlowe Barton - The Angel of the Battlefield

Clarissa Harlowe Barton, professora, enfermeira e filantropa americana, é recordada por organizar de uma forma zelosa, devota e qualificada, assistência humanitária e cuidados de saúde aos soldados afetados pela Guerra Civil Americana, e concomitantemente fundar a Cruz Vermelha Americana (American Battlefield Trust, 2018).

Filha de Sarah Stone Barton e do Capitão Stephen Barton, membro da milícia local e político respeitado pela comunidade, nasce em 1821, em Oxford, Massachusetts. De muito jovem expressou o seu desejo de dedicar-se à enfermagem, no entanto, por oposição dos pais, formou-se em 1838 na área da educação.

Em 19 de abril de 1861, a insurreição da população em Baltimore contra as políticas anti esclavagistas de Abraham Lincoln, despoletou o primeiro banho de sangue da Guerra Civil Americana. Com um desejo ávido para servir os mais necessitados, Clarissa voluntariou-se como enfermeira para cuidar dos soldados feridos (Figura 6). Com um desejo em almejar a qualidade em cada gesto realizado, demonstrou os seus dotes como administradora. Contudo, à semelhança de Florence Nightingale ou de Sally Tompkins, via-se constantemente impedida pelas autoridades militares, que resistiam a cada mudança que sugeria. Pareciam ressentir-se pelo facto de a sua autoridade ser independente da dos serviços militares, de que fosse civil e, além disso, mulher.

Figura 6: Clarissa Barton 

No entanto, sobrepondo-se a estes obstáculos, Clarissa não desistiu e em agosto de 1862, é autorizada pelo Superintendente Daniel Rucker a cuidar dos feridos nas linhas de frente da guerra. Trabalhou incansavelmente para distribuir recursos de primeira necessidade, garantir que as condições de higiene dos hospitais de campanha (Chantilly, Harpers Ferry, South Mountain, Antietam, Fredericksburg, Charleston, Petersburg e Cold Harbor) e os cuidados de saúde fossem cumpridos, assim como, pelo bem-estar físico, psicológico e social dos soldados (Figura 6), produzindo uma transformação na estima pública e nas altas patentes militares (American Battlefield Trust, 2018).

Em 1864, pelo reconhecimento dos seus serviços prestados, foi nomeada pelo General da União, Benjamin Franklin Butler, responsável dos hospitais de campanha do Exército da União. Entre os soldados, como testemunho de gratidão era conhecida heroicamente como o Anjo do Campo de Batalha.

Em 1868, após a guerra, decide viajar para a Europa, e em 1869, em Genebra, na Suíça, integra a Cruz Vermelha Internacional. Durante os anos em que viveu na Europa, com os conhecimentos adquiridos durante a Guerra Civil Americana, auxilia Luísa de Mecklenburgo-Strelitz, Duquesa de Baden, da Prússia e a Cruz Vermelha (1870), durante a Guerra Franco-Prussiana, a organizar hospitais militares. Posteriormente, em 1871, a pedido do governo alemão, foi responsável pela distribuição de bens alimentares de primeira necessidade, aos pobres em Estrasburgo (HISTORY Channel, n.d.).

Dada a sua dedicação à causa, o Doutor Appia, Diretor da Cruz Vermelha na Suíça, estende um convite a Clarissa para fundar a Cruz Vermelha Americana (American Red Cross, n.d.).

Em 1881, Clarissa torna-se a primeira Presidente da Cruz Vermelha Americana onde, durante o seu mandato, participou e organizou inúmeras missões de auxílio humanitário e serviu como emissária da Cruz Vermelha em vários eventos internacionais. Publicou uma autobiografia em 1907, intitulada The Story of My Childhood e faleceu em sua casa, a 12 de abril de 1912, aos 90 anos de idade.

Damas Enfermeiras da Cruz Vermelha Portuguesa - Maria Antónia Ferreira Pinto Basto

Passando agora para o panorama nacional, em Portugal, muito antes do início da Primeira Grande Guerra, a formação de enfermeiras profissionais era já defendida, sobretudo por feministas que advogavam ser necessário retirar à Igreja Católica um pelouro que esta dominava há centenas de anos através de diversas ordens religiosas, denominadas As Irmãs de Caridade.

No entanto, é com a entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial (1916) que um grupo de enfermeiras, com o intuito de servirem a Cruzada das Mulheres Portuguesas (CMP) é formado por Sofia Quintino (médica e sócia fundadora do CMP) e Elzira Dantas Machado (esposa de Bernardino Machado, Presidente da República Portuguesa). O objetivo era juntar este grupo de enfermeiras ao Corpo Expedicionário Português na fronteira franco-belga, em Flandres (Monteiro, 2017), objetivo que de acordo com Maria Lúcia de Brito Moura, na sua obra Nas trincheiras da Flandres: com Deus ou sem Deus, eis a questão (2010), não foi alcançado de imediato, por decisão do governo, que receava o poder e a influência do movimento monárquico e católico. No entanto, devido à permanente pressão da CMP, junto do Ministro do Interior, foi autorizado em 1917, a integração de enfermeiras no Corpo Expedicionário Português (CEP) na zona de Ambleteuse, em França com o objetivo de responder ao apelo para servir a pátria (Monteiro, 2017). É incumbida Maria Antónia Ferreira Pinto Basto, pelos fortes laços da família com a Associação Feminina, ligada à aristocracia monárquica, que se tinha constituído com o objetivo de prestar auxílio aos militares portugueses.

Deste modo, em abril de 1917, sob a chefia de Maria Antónia, é enviado um comité de 26 Damas-Enfermeiras para Boulogne-sur-Mer, o Hospital da Cruz Vermelha em Ambleteuse. Tinham por missão juntarem-se às tropas britânicas que combatiam em França os países da Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália). Porém, como o hospital não estava concluído, Maria Antónia Ferreira Pinto Basto e o seu comité de Damas-Enfermeiras, ofereceram-se para prestarem serviço no Hospital da Base do CEP, junto à frente de batalha (Figura 7).

Figura 7: Maria Antónia Pinto Basto 

Ali, Maria Antónia confrontou-se com soldados gaseados, feridos, amputados e passou a lidar no seu quotidiano com a morte. Todavia, apesar das dificuldades, privações e provações, de acordo com Monteiro (2017), Maria Antónia foi exemplar no desempenho da profissão e supervisão da sua equipa de enfermeiras. Fruto da sua dedicação, empenho e competência, e elogiada pela sua educação e cultura, foi capaz de confortar soldados em sofrimento, em revolta perante a mutilação e carnificina vivida nas trincheiras. Segundo Monteiro (2017, p. 193), estas enfermeiras sob a chefia de Maria Antónia “foram modelares, merecendo a preferência e o elogio dos militares e civis ali tratados”.

No fim, algumas destas enfermeiras foram condecoradas. Maria Antónia Pinto Basto, por exemplo, foi homenageada com a medalha de Benemerência da Cruz Vermelha Portuguesa e o Ministério da Guerra a medalha da Vitória (Monteiro, 2017). Faleceu em 1930.

Conclusão

Florence Nightingale, como socialmente é a mais conhecida, teve uma importante participação na afirmação socioprofissional da enfermagem. A sua contribuição é inegável, no entanto outras enfermeiras dedicaram a sua vida para o cuidado do outro e para a profissionalização da enfermagem. Mary Seacole que apesar de ter vivido numa época racista e preconceituosa, soube desbravar as fronteiras do desconhecido e desafiar as implicações normativas de que cuidar era uma atividade menor, reservada às religiosas e a pessoas de categoria social inferior. Também Sally Louisa Tompkins e Clarissa Harlowe Barton no decurso da Guerra Civil Americana, foram determinantes na valorização e reconhecimento social da identidade da profissão de enfermagem.

É através da honestidade, sobriedade, devoção, humanização no cuidar, abnegação e perseverança na prática do cuidar do próximo, que fizeram com que estas enfermeiras fossem consideradas um modelo para a enfermagem moderna. Enfermeiras que em cenários de catástrofes sociais foram louvadas, admiradas e a sua coragem sublinhada. Depreende-se que foi nos momentos de maior vulnerabilidade e de caos social que surgiram as condições necessárias para se reinventar e evoluir. Como membros do maior grupo profissional na área da saúde, os enfermeiros podem ter um enorme impacto na resiliência dos serviços de saúde.

É inegável que os contextos de catástrofes sociais permitiram um campo de atuação que deu visibilidade à enfermagem moderna. A importância do cuidar para além do senso comum, fez emergir resultados mensuráveis que contribuíram para a melhoria dos cuidados e das condições de saúde a nível mundial, um caminho de reconhecimento, respeito e visibilidade, no sentido de construir a enfermagem enquanto disciplina, impondo-se como uma profissão que constrói uma história própria.

Referências bibliográficas

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13Como citar este artigo: Santos, P. A., Rabiais, I. C., Amendoeira, J. J., Figueiredo, A. S., Berenguer, S. M., & Pereira, M. C. (2021). Movimentos de profissionalização histórica: a relação entre as catástrofes sociais e a enfermagem moderna. Revista de Enfermagem Referência, 5(7), e20140. https://doi.org/10.12707/RV20140

Recebido: 23 de Agosto de 2020; Aceito: 09 de Fevereiro de 2021

Conceptualização: Santos, P. A., Rabiais, I. C., Amendoeira, J. J., Figueiredo, A. S., Berenguer, S. M., Pereira, M. C.

Tratamento de dados: Santos, P. A., Rabiais, I. C., Amendoeira, J. J.

Análise formal: Santos, P. A., Amendoeira, J. J.

Investigação: Santos, P. A., Rabiais, I. C., Amendoeira, J. J.

Metodologia: Santos, P. A., Figueiredo, A. S.

Administração do projeto: Santos, P. A., Amendoeira, J. J.

Supervisão: Rabiais, I. C., Amendoeira, J. J., Figueiredo, A. S., Berenguer, S. M., Pereira, M. C.

Validação: Rabiais, I. C., Amendoeira, J. J., Figueiredo, A. S., Berenguer, S. M., Pereira, M. C.

Visualização: Santos, P. A., Rabiais, I. C., Amendoeira, J. J., Figueiredo, A. S., Berenguer, S. M., Pereira, M. C.

Redação - rascunho original: Santos, P. A., Rabiais, I. C., Figueiredo, A. S., Berenguer, S. M., Pereira, M. C.

Redação - análise e edição: Santos, P. A., Rabiais, I. C., Amendoeira, J. J., Figueiredo, A. S., Berenguer, S. M.

Autor de correspondência Paulo Alexandre Figueiredo dos Santos E-mail: paulofigueiredosantos@gmail.com

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