Introdução
A pandemia de coronavírus de 2019 (COVID-19) levou os sistemas de saúde à beira da rotura em todo o mundo (Huang et al., 2020; Lu et al., 2020; World Health Organization, 2020a), exigindo aos profissionais de saúde uma carga de trabalho e stress avassaladores (Lai et al., 2020; Li et al., 2020; Xiao et al., 2020).
A pandemia impôs vários desafios aos sistemas de saúde que, para garantir uma resposta adequada, tiveram de lidar com a escassez de profissionais de saúde (porque a procura condicionou a oferta), de equipamento de proteção individual (EPI) e de equipamento hospitalar, bem como adequar circuitos e reorganizar as próprias instituições, entre outras necessidades.
Apesar do crescimento do número de serviços dedicados e de todos os esforços desenvolvidos em prevenção e preparação, o aumento exponencial do número de doentes na segunda e terceira vagas testaram uma vez mais os limites de capacidade de resposta do sistema nacional de saúde, em particular, dos seus profissionais (Kaye et al., 2020). O número de casos confirmados cresce continuamente a nível mundial e já foram notificados mais de 102,1 milhões de casos e mais de 2,2 milhões de mortes até 2 de fevereiro de 2021 (World Health Organization, 2020b).
A gestão de pessoas em instituições de saúde tem enfrentado provações sem precedentes, exigindo substituições por infeção/ doença e subsequentes períodos de absentismo laboral, a criação de novos serviços, mobilidades e novas contratações de profissionais de saúde, trabalho suplementar, entre outros ajustes (American Hospital Association, 2020; Kaye et al., 2020; Santos et al., 2020). Todas estas dinâmicas têm importantes implicações para a gestão das pessoas e representam verdadeiros desafios económicos.
Como a evidência nesta área se mantém escassa, procurámos analisar os custos da primeira vaga da pandemia COVID-19 (de 1/3/2020 a 31/5/2020) com a gestão de recursos humanos num hospital universitário.
Enquadramento
Por todo o mundo, as instituições de saúde estão a enfrentar desafios económicos sem precedentes devido à pandemia da COVID-19 (American Hospital Association, 2020; Kaye et al., 2020; Pak et al., 2020). Um relatório, que se limitou ao estudo do impacto económico de 1 de março a 30 de junho de 2020, estimou a perda de 202,6 mil milhões de dólares em receitas para os hospitais e sistema de saúde americano, ou uma média de 50,7 mil milhões de dólares por mês (American Hospital Association, 2020). No caso de países de baixo e médio rendimento, foi estimado que estes custos poderiam atingir os 52 mil milhões de dólares (equivalente a 8,60 dólares por pessoa) a cada quatro semanas, para fornecer uma resposta eficaz de cuidados de saúde à COVID-19 (American Hospital Association, 2020).
Do ponto de vista económico global, o Banco Mundial projeta uma diminuição de quase 8% no crescimento global, com os países mais pobres a sentirem maior impacto. As Nações Unidas projetam que 2020 irá custar à economia global cerca de 2 triliões de dólares (Kaye et al., 2020).
Vários fatores contribuem para estes números. As receitas hospitalares e dos sistemas de saúde diminuíram drasticamente em resultado da pandemia da COVID-19, nomeadamente com o cancelamento da atividade não urgente (American Hospital Association, 2020). Estas perdas de receitas foram agudizadas com um aumento acentuado dos custos dos hospitais, associados ao maior número de internamentos (COVID-19) em enfermarias e/ou serviços de cuidados intensivos dedicados, cujos elevados custos de tratamento (American Hospital Association, 2020) recebem um financiamento inferior à despesa (Shin et al., 2021). Também os custos do apoio aos profissionais subiram exponencialmente, dos quais se podem salientar os custos de materiais, de rastreio e testes COVID-19, entre outros. Por fim, a falta de preparação e da necessidade acrescida de material específico para profissionais de saúde, como é caso dos EPI e outros equipamentos hospitalares, terá exposto várias deficiências dos sistemas de saúde em todo o mundo, impondo uma criação de novos planos essenciais de preparação para pandemias (Higginson et al., 2020; Kaye et al., 2020; Shukla et al., 2020).
Questão de investigação
Quais são os custos da primeira vaga da pandemia COVID-19 com a gestão de recursos humanos num hospital português?
Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo, unicêntrico, e retrospetivo, com análise de dados referentes ao período de 1 de março a 31 de maio de 2020, bem como ao período homólogo de 2019 (para determinação de diferenças). Consideraram-se as especificidades demográficas e de custos, utilizando diferentes fontes de dados, complementares, providenciadas pelo serviço de gestão de recursos humanos.
A população é composta por todos os profissionais de saúde referentes aos seguintes grupos profissionais: assistentes operacionais, enfermeiros, médicos, e técnicos de diagnóstico e terapêutica. Excluíram-se os restantes profissionais sobretudo para diminuir a complexidade da análise, mas também porque os grupos profissionais selecionados são, inequivocamente, os mais prevalentes, os mais afetados pela doença e por serem os diretamente implicados nos cuidados.
O estudo foi realizado num hospital terciário e universitário localizado na região centro de Portugal, com mais de 1700 camas e mais de 8000 profissionais de saúde, constituído por uma rede de unidades hospitalares (dois hospitais de adultos gerais, duas maternidades, um hospital pediátrico, e um hospital psiquiátrico), serviços e tecnologias estruturadas e integradas para fornecer um serviço humanizado, completo, fiável e transparente à sociedade.
Para a caracterização demográfica dos profissionais de saúde recorremos a variáveis contínuas que foram descritas como médias e desvios padrão e a variáveis categóricas descritas como frequências e percentagens (Marôco, 2014).
O estudo da análise de custos foi realizado em três áreas: i) custos por absentismo com salário pago e perda de produção, ii) custos por novas contratações e iii) custos por trabalho suplementar. Para cada uma destas áreas determinou-se a diferença entre 2020 e 2019 (março, abril e maio). Em relação ao absentismo foram considerados todos os motivos com exceção de férias, ausências oficiais, licenças sem vencimento, comissões gratuitas de serviço, estatutos de trabalhador-estudante, atividades sindicais e prestações de provas/ concursos. O custo resultante do valor do trabalho pago e não realizado por absentismo obteve-se através da fórmula: Custo absentismo = Número de dias úteis de ausência por grupo profissional * Custo médio do valor dia do profissional (obtido através do valor hora por cada grupo profissional). Devido às implicações financeiras, foram realizadas subanálises tendo em conta o vínculo contratual dos profissionais de saúde, ou seja, para os contratos individuais de trabalho (CIT) e contratos de trabalho em funções públicas (CTFP). Nos custos por novas contratações foi considerado o valor nominal de início de carreira por grupo profissional. Aplicou-se a seguinte fórmula: Custos por novos contratos = Número de profissionais contratados * Custo nominal mensal de início de carreira por grupo profissional (Salário + contribuição para o regime de segurança social). Os custos por trabalho suplementar representam os custos pagos de acordo com a legislação em vigor ajustado por grupo profissional. Assim, o impacto dos custos para o hospital corresponde à diferença de custos por absentismo por CTFP atribuído à respetiva perda de produção + diferença de custos por novos contratos e trabalho suplementar. Os salários em absentismo dos CIT não foram considerados por não serem suportados pelo centro hospitalar, mas pela Segurança Social.
Todos os dados foram exportados para diversas folhas de cálculo do Microsoft Excel 2016, para a realização dos cálculos dinâmicos acima referidos e as análises adicionais foram realizadas utilizando o software estatístico IBM SPSS Statistics, versão 23.0.
A aprovação ética foi concedida pela Comissão de Ética do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC-058-20).
Ainda que de uma forma imperfeita, dado o carater híbrido da análise realizada, este estudo seguiu o Consolidated Health Economic Evaluation Reporting Standards (CHEERS) Statement (Husereau et al., 2013).
Resultados
Foram incluídos, no total, dados referentes a 6994 profissionais de saúde do centro hospitalar selecionado. Excluíram-se órgãos de direção, dirigentes, farmacêuticos, técnicos superiores, informáticos e assistentes técnicos. As características demográficas da população são apresentadas na Tabela 1.
Nota. DP = desvio-padrão; CTFP = Contrato de Trabalho em Funções Públicas; CIT = Contrato Individual de Trabalho.
Os enfermeiros representam 42,9% da população total, seguidos pelos assistentes operacionais (25,5%), médicos (24,5%) e por último, pelos técnicos de diagnóstico e terapêutica (7,1%). O género predominante é o feminino (73,9%).
O CTFP é claramente mais prevalente nos médicos (72,8%) mas menos nos técnicos de diagnóstico e terapêutica (62,9%), e ainda menos nos enfermeiros (53,8%) e assistentes operacionais (48,4%).
O impacto financeiro da primeira vaga da pandemia COVID-19 na gestão das pessoas, nos 3 meses analisados, é apresentado na Tabela 2.
Nota. TDTs = Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica; CTFP = Contrato de Trabalho em Funções Públicas; CIT = Contrato Individual de Trabalho.
Relativamente ao valor do trabalho pago e não prestado por absentismo nestes três meses de 2020, em comparação com o período homólogo de 2019, os médicos foram os que apresentam a maior diferença de custo (4 110 824,96 €), seguidos pelos enfermeiros (1 473 195,36 €), assistentes operacionais (825 707,52 €), e técnicos de diagnóstico e terapêutica (432 556,80 €). Em termos globais, o impacto económico associado ao absentismo correspondeu a mais de seis milhões e meio de euros (6 842 284,64 €). Também podemos constatar que os enfermeiros são o único grupo profissional cujos custos associados ao absentismo são superiores para CIT quando comparados com os CTFP (824 439,84 € vs 648 755,52 €, respetivamente). O grupo profissional com maior absentismo registado foram os assistentes operacionais com um total de 33358 dias úteis de ausência.
Foram contratados mais 47 enfermeiros e 64 assistentes operacionais em comparação com o período homólogo, traduzindo uma diferença de custos de 363 540,03 €.
Em relação ao custo com o trabalho suplementar, os médicos são o grupo profissional com as maiores diferenças de custo (759 135,83 €), seguindo-se os enfermeiros (506 883,41 €), os assistentes operacionais (269 039,30 €) e, por último, os técnicos de diagnóstico e terapêutica (76 316,63 €). O total de incremento de custo com o trabalho suplementar foi de mais de um milhão e meio de euros (1 611 375,17 €).
Por fim, o impacto traduzido em custos no centro hospitalar, resultante da perda do valor dos salários pagos aos profissionais em CTFP sem que ocorresse a respetiva produção foi de 6 124 259,44€, o que, acrescido dos custos com novos contratos e trabalho suplementar, perfaz um impacto de custos global de quase nove milhões de euros (8 817 199,84€).
Discussão
Este é o primeiro estudo português e um dos poucos estudos internacionais que analisou os custos da primeira vaga da pandemia COVID-19 na gestão de recursos humanos, reportando a realidade específica de um centro hospitalar universitário.
No total, nos primeiros 3 meses da pandemia verificou-se um impacto global de quase nove milhões de euros (8 817 199,84 €) gastos a mais, em comparação com o período homólogo de 2019, que teve por base o pagamento de trabalho não realizado por absentismo, as novas contratações e o trabalho suplementar, com quatro grupos de profissionais de saúde.
Verificámos neste estudo que os médicos apresentaram o maior custo por absentismo e trabalho suplementar quando comparados com os restantes profissionais de saúde, o que é motivado pelo custo do valor/hora mais elevado. Os enfermeiros foram o único grupo profissional cujos custos associados ao absentismo são superiores nos CIT quando comparados com os CTFP. Este dado é relevante porque as ausências dos CIT são custeadas pela Segurança Social e não diretamente pelo hospital como acontece com os CTFP, o que permite limitar custos do ponto de vista microeconómico do centro hospitalar estudado. Neste período, apenas foram contratados novos enfermeiros e assistentes operacionais, mas após isso, sabe-se que também se realizaram novos contratos com os restantes grupos profissionais.
As Nações Unidas estimaram que a crise económica desencadeada pela pandemia da COVID-19 iria prejudicar as economias independentemente do nível de rendimento dos países, pois os dados do índice de produção industrial, ajustado sazonalmente, apontaram para que tanto os países de rendimento médio-baixo como os de rendimento médio superior seriam significativamente afetados pela COVID-19, de 22 a 24%, respetivamente, sendo os países de rendimento elevado afetados em 18% (United Nations, 2020).
Nesse sentido, é urgente promover potenciais intervenções que possam ajudar a mitigar o efeito da COVID-19 sobre os sistemas de saúde (Shaaban et al., 2020). Devem ser promovidas políticas financeiras de apoio, aumentar as probabilidades de cativar oportunidades financeiras potenciais, bem como a reorganização dos modelos assistenciais hospitalares e das prioridades de saúde pública e, por fim, a preparação de planos de contingência para futuras vagas de COVID-19 e/ou outras respostas pandémicas (Ehrenberg et al., 2021; Shaaban et al., 2020).
Os nossos resultados devem ser interpretados tendo em conta algumas limitações. Em primeiro lugar, as estimativas dos custos apenas foram baseadas no custo associado ao absentismo, novas contratações e trabalho suplementar, não considerando o impacto da perda da receita associada a produção não realizada. Por outras palavras, este estudo focou-se em custos e não no impacto económico como um todo. Apesar do financiamento hospitalar em duodécimos ocorrer com normalidade e terem sido feitos ajustamentos de contrato, haverá, pelo menos, impacto com cheques cirurgia e custos com produção adicional compensatória relevantes, que não se enquadram nos nossos objetivos. Ainda assim, a nossa análise permite-nos ter uma perspetiva financeira realista ainda que atenuada pelos efeitos da não inclusão destes dados. Em segundo lugar, o carácter unicêntrico não permite uma generalização dos seus resultados, embora espelhe o que provavelmente terá sido a experiência de muitos hospitais portugueses. Por último, apenas foram incluídos os quatro grupos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, assistentes hospitalares e técnicos de diagnóstico e terapêutica). Contudo, e embora não representem a totalidade da população hospitalar, estes grupos são os mais prevalentes (no nosso caso representam 87% da população total), e com impacto na prestação direta de cuidados de saúde e, consequentemente, com muito maior probabilidade de absentismo por infeção com o SARS-CoV-2 e efeitos correlacionados.
Conclusão
A gestão da primeira vaga da pandemia de COVID-19 apresentou um enorme impacto financeiro, com a quase triplicação dos custos com pessoal, ou seja, um acréscimo de quase nove milhões de euros nos primeiros 3 meses de crise. Como a pandemia da COVID-19 se continua a disseminar globalmente, para além do número crescente de casos e mortes, é expectável que o vírus tenha um efeito insidioso na economia mundial, em especial no setor da saúde.
Isso terá relevantes implicações para a prática, pois os hospitais e os profissionais de saúde são influenciados negativamente, o que pode levar a danos futuros para o sistema de saúde. Por este motivo, devem ser promovidas políticas financeiras de apoio, bem como a reorganização dos modelos assistenciais hospitalares e, por fim, a preparação de planos de contingência para futuras vagas de COVID-19 e/ou outras respostas pandémicas.
Dada a escassez de estudos sobre o presente tema recomendamos a realização de outros estudos de análise de custos para que se possam estabelecer comparações.