Introdução
O objeto do presente estudo prende-se com a análise da indicação do uso do produto Lysol nos manuais de enfermagem. A delimitação temporal foi a década de 1920, justificada pelo período pós-gripe espanhola, pelo desenvolvimento do processo de profissionalização da enfermagem brasileira e pela ocorrência da implantação da enfermagem moderna, pelas enfermeiras norte-americanas na Reforma Sanitária, liderada por Carlos Chagas.
Outra delimitação foi a espacial. Esta, deteve-se no Distrito Federal, capital do Brasil, à época, no Rio de Janeiro.
Ressalta-se que em décadas anteriores à de 1920, elas foram marcadas por vários aspetos, a saber: culturais, sociais e sanitários, em especial, a Belle Èpoque de influência francesa, até que nos anos de 1910 houve a participação do Brasil na I Guerra Mundial como aliado aos Estados Unidos e a epidemia da gripe espanhola. Os factos, direta ou indiretamente, promoveram o desencadeamento de alguns acontecimentos que influenciaram na (re)configuração da cultura da saúde pública no país, como a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (criado em 2 de janeiro de 1920, pelo Decreto nº 3.987), tendo como cenário o Distrito Federal. Ainda como antecedentes, mas no campo da enfermagem, tivemos a criação da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (1890), atual Escola de Enfermagem Alfredo Pinto; Escola Prática de Enfermeiras da Cruz Vermelha Brasileira (1916), que abrigava o Curso de Enfermeiras Voluntárias (1914) e o Curso de Enfermeiras Profissionais (1916), e o Curso de Enfermeiras da Policlínica de Botafogo (1919). Por outro lado, outras instituições de ensino destinadas para este fim tiveram as suas iniciativas, porém, não foi possível a obtenção de dados suficientes que confirmassem o funcionamento por forma a poder citá-las (Porto & Amorim, 2010).
Nesta perspetiva, os indícios para a formação da cultura dos cuidados apontam para a as influências, a saber: a francesa na Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras e Escola Prática de Enfermeiras da Cruz Vermelha Brasileira, a norte-americana na Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1922 (Porto & Amorim, 2010).
Na pesquisa pela solução Lysol nos manuais de enfermagem e, consequentemente, nas peças publicitárias, considerada como produto de higiene, verifica-se que a mesma é com medicamentos e similares nos semanários da década de 1920 da autoria de Silva et al. (2015).
Para tanto, cita-se o autor Gonzáles (2011), pela abordagem cultural, ao utilizar um dos mecanismos de transmissão/comunicação das informações e o modo como elas devem ser analisadas e discutidas, pois cada sociedade tem a sua própria cultura, pluralidade e influências na formação dos cuidados de enfermagem, como efeitos socioculturais. Ademais, o autor afirma que um dos pilares básicos da cultura em todas e em cada uma das sociedades é o significado da saúde, enfermidade e realidade adotada aos limites conceituais. Isto implica que o conhecimento e a ação são as bases para a formação dos cuidados de enfermagem no processo saúde-doença, mas cabe considerar as necessidades vitais, ritos, crenças que giram em torno da formação da cultura.
Neste sentido, os manuais e as peças publicitárias, de facto, são fontes históricas com potencial para evidenciar a cultura dos cuidados ensinados às enfermeiras, mas, também, destinadas ao uso na sociedade. Os manuais foram entendidos como um dos elementos para a formação da cultura dos cuidados com base na antropologia para o entendimento cultural (Laraia, 2002).
A articulação conceitual de manual e cultura coadunam com a investigação, ao direcionar a influência de hábitos e costumes. Isto permite o entendimento da aprendizagem. Logo, trata-se uma das formas de transmissão/comunicação dos saberes para o processo de ensinamento na formação da enfermeira brasileira.
Para tanto, traçou-se como o objetivo discutir o conteúdo dos manuais de enfermagem sobre a citação do Lysol, articulando as peças publicitárias do produto num semanário veiculado na imprensa social ao mostrar a cultura dos cuidados à época.
Metodologia
O tipo de estudo segue a perspectiva da microhistória (Ginzburg, 1998). As fontes para a construção da pesquisa foram os manuais de enfermagem e peças publicitárias do produto Lysol oriundas de um semanário. Para tanto, utilizamos como critérios para a seleção dos manuais de enfermagem, aqueles de língua portuguesa e com publicação na década de 1920 e para identificar as peças publicitárias do Lysol optamos pela revista de publicação semanal.
A colheita de dados ocorreu no período de maio e junho de 2020. Para os manuais utilizamos o banco de dados SOPHIA da Biblioteca Central da UNIRIO, da sala Guilherme Figueiredo, para a busca dos manuais de enfermagem, e a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional para as peças publicitárias do Lysol veiculadas num semanário com delimitação temporal nos anos de 1920 a 1929.
Para os manuais selecionados foram estabelecidas leituras direcionadas para a administração e uso da medicação ou similares, e para as peças publicitárias, um instrumento de colheita, composto por: data, edição, página, síntese da mensagem publicitária e a figura da publicidade, para a análise e posterior discussão.
Mediante os resultados, procedeu-se à organização dos dados para a análise, que ocorreram à luz da literatura subjacente, tanto para os manuais, como para as peças publicitárias.
Destaca-se que os dados foram organizados em dois quadros representativos - manuais e peças publicitárias. Neles, foi possível visualizar o excerto do produto citado nas obras, bem como no semanário, as peças publicitárias e as suas respectivas em sínteses, ano de publicação e a frequência da ocorrência, que nesta investigação foram analisados e discutidos para compor as considerações finais.
Resultados e Discussão
Mediante os critérios estabelecidos, dois manuais foram selecionados, um de autoria de Adolpho Possollo e o outro de Getúlio dos Santos, e o semanário selecionado foi a Revista da Semana.
Adolpho Possollo foi médico, chefe do serviço de cirurgia do Ambulatório Rivadavia Corrêa, docente da Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, capitão médico do Departamento Policial do estado do Rio de Janeiro (1892-1893) e cirurgião efetivo da Associação de Empregados no Comércio do Rio de Janeiro (1903-1910).
A obra de Adolpho Possollo, intitulada Curso de Enfermeiros, teve a sua primeira edição em 1920 que seguiu até 1942, totalizando 7 (re)edições com conteúdo atualizados à época. A de 1920 foi composta por 147 páginas, com prefácio sobre o histórico das três primeiras instituições de ensinos em prol da profissionalização da enfermagem no Distrito Federal - Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (1890), Escola Prática de Enfermagem da Cruz Vermelha Brasileira (1916) e o Curso de Enfermeiras da Policlínica de Botafogo (1917), com 345 figuras, 10 secções/capítulos e obras publicadas pelo autor. Na leitura, o termo Lysol apresentou-se uma vez, conforme apresentado na Tabela 1, na seção/capítulo da obra, denominado “Curativos e Pequena Cirurgia”.
Como se pode identificar na Tabela 1, a indicação para o uso do produto era para a lavagem das mãos e cuidado em feridas. Logo, a via de administração era tópica pela sua natureza, o que, possivelmente, despertava pela imagem da embalagem, que a obra não disponibilizava. Inferimos que a não disponibilização dessa deve-se por motivos de indução à comercialização direta do produto, podendo passar de forma despercebida pelos leitores à época. Por outro lado, acredita-se que a citação dele, também, poderia ser de uso comum e de conhecimento cultural da sociedade.
Getúlio dos Santos (1881-1928), foi diretor da Escola Prática de Enfermeiras da Cruz Vermelha Brasileira, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com formação militar. Ademais, foi Secretário Geral e Diretor do Instituto Médico (Santos, 1928). A obra, intitulada “Livro do Enfermeiro e da Enfermeira - para uso dos que se destinam a profissão de enfermagem e das pessoas que cuidam de doentes” teve a sua primeira edição em 1916 e a terceira em 1928. A última edição foi composta por 376 páginas, com prefácio sobre as edições anteriores, com 151 figuras, 13 seções/capítulos e, ao final, uma apresentação de algumas expressões técnicas cirúrgicas e médicas recorrentes, preparações farmacêuticas mais comuns, índice dos capítulos, das figuras e uma errata. Na leitura não foi localizado o termo Lysol.
O semanário selecionado foi a Revista da Semana. Esta, foi criada em 1900 e circulou até 1959 composta por matérias repletas de imagens - fac-símiles - de eventos sociais, contos literários, publicidades, propagandas. Tratava-se, à época, de leitura leve indicada para mulheres.
Cabe destacar que a Revista da Semana, como o próprio nome induz era semanal, perfazendo por ano o total de 52 a 53 exemplares no valor de 1$200 réis a revista avulsa, o que à época correspondia, aproximadamente, à compra de uma dúzia de ovos.
Na busca das peças publicitárias, 11 foram identificadas sobre o produto Lysol em forma de sabonete a porção líquida, no período de 1921 a 1929, conforme apresentado na Tabela 2.
Como se pode identificar, 11 peças publicitárias foram encontradas, sendo uma na forma de sabão em barra, uma em creme de sabão e nove líquidas. Esta última destaca-se em publicidades mais elaboradas que as outras, com imagens de mulheres que depositamos na representação de se tratarem de enfermeiras pelos trajes - véu e touca -, mulheres do lar, algumas articuladas com a representação de crianças e de um possível médico, e uma com a figura de cão.
Em nove peças publicitárias, o layout da embalagem foi apresentado ao possível consumidor como uma forma de marcar identificação visual, como gatilho mental para o momento da compra. Contudo, não foi identificado nas publicidades o valor do produto. Por outro lado, acredita-se que publicar 52 peças, no decorrer de 10 anos, trata-se de um veículo de boa circulação na sociedade para o consumo do produto.
O contexto de circulação das peças publicitárias dos produtos Lysol ocorreram no período pós-pandémico da gripe espanhola, início da Reforma Sanitária, liderada por Carlos Chagas, no Distrito Federal, no combate, especialmente, da tuberculose.
A empresa de produção do Lysol era de origem Alemã, foi criada em 1889, introduzindo o produto no mercado como o primeiro desinfetante moderno. Em 1890, o produto começou a ser importado por uma empresa americana (Lehn & Fink), expandindo o seu consumo, passando a ser usado em hospitais e fábricas. Foi muito usado na Alemanha, em 1918, durante a pandemia da gripe espanhola, tornando-se um dos produtos mais populares e representativo no crescimento do comércio e marketing. Em 1922, após a primeira guerra mundial a empresa americana obteve o domínio do Lysol e passou a fabricá-lo. Ademais, a empresa britânica Reckitt Benckiser, em 1994, comprou a Lehn & Fink e inseriu o Lysol na sua empresa, permanecendo até aos dias atuais (Araujo, 2020).
Cabe destacar que os produtos eram indicados para desinfeção de ambientes, da pele e até mesmo para a higiene íntima da mulher para retirar os odores vaginais. Contudo, controverso na sua indicação por induzir a contraceção, o que não era dito. Isto, devido à junção de compostos químicos fenólicos em solução de sabão, feita a partir de hidróxido de potássio e óleo de linhaça, que possui propriedades desinfetantes e antissépticas (Araujo, 2020).
Articular a indicação do produto na obra de Adolpho Possollo com uma peça publicitária do Lysol implica depositar na imagem da enfermeira a credibilidade do produto para o consumidor, bem como a de outros profissionais de saúde.
A capitalização na imagem dos profissionais de saúde, à primeira vista, deve-se à indicação para desinfeção, mas é preciso aprofundar nos argumentos para melhor entender a engenharia mental aplicada às peças publicitárias. Isto conduz ao final da década de 1910, momento em que ocorreu a pandemia da gripe espanhola e quando os meios de comunicação, como jornais e semanários, exploraram os factos/acontecimentos para informar a sociedade sobre o que estava a acontecer nas ruas, instituições de saúde, políticas públicas, dentre outras possíveis de serem articuladas ao problema sanitário que o Distrito Federal passava.
Pensar nessa perspetiva, trazemos à luz da literatura outros estudos já realizados sobre o período, quando enfermeiros e médicos se dedicaram em prol do combate ao flagelo da gripe espanhola.
As propostas feitas pelos higienistas da época (Carlos Chagas e Oswaldo Cruz) para o combate da gripe eram negociadas por serem vistas como medidas agressivas, e tinham repercussões nos âmbitos sociais e políticos. Desta forma, aos poucos os higienistas ganharam notoriedade (Goulart, 2005).
Com as ações implementadas a passos lentos, o saneamento urbano ineficaz e políticas públicas de saúde frágeis, a gripe espanhola foi letal no Brasil, trazendo significados importantes nos cenários sociais, culturais e políticos (Neto & Porto, 2019).
Ao trazer à baila esses estudos, tem-se como intenção aproximar a mentalidade da sociedade à época, quando milhares de pessoas foram salvas, o que no imaginário social se remete para a imagem da enfermeira e de outros profissionais de saúde. Isto, na década de 1920, no Brasil, aponta para uma adesão à mentalidade de higiene com aplicação da Reforma Sanitária para a redução dos casos de tuberculose que eram epidémicos.
Conduzir o pensamento para a epidemia da tuberculose, no Distrito Federal, é lembrar que as enfermeiras, sejam da Cruz Vermelha Brasileira ou do Departamento Nacional de Saúde Pública, se empenharam na luta do combate contra a tuberculose.
Um estudo (Ayres, 2010) chama a atenção para as enfermeiras Visitadoras da Cruz Vermelha Brasileira (1919-1921), quando atuaram primeiro na epidemia da gripe espanhola e depois na Campanha Nacional de Combate à Tuberculose, sob a liderança do Dr. Amaury de Medeiros, Diretor do Hospital da Cruz Vermelha Brasileira. Estas visitavam os domicílios dos acometidos pela tuberculose em prol da consciência sanitária, bem como as enfermeiras formadas pela Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública. Neste espaço, elas exerciam diversas funções, desde a deteção precoce dos suspeitos de tuberculose, a assegurar o cumprimento das normas sanitárias de prevenção da doença, como a desinfeção do ambiente.
À época, especialmente início da década de 1920, a própria Revista da Semana ao anunciar a criação da Escola de Enfermeiras do Departamento de Saúde Pública, durante a formação das Visitadoras de Higiene, que anos mais tarde (1925) seriam substituídas pelas enfermeiras formadas pela instituição, relata em matéria que se tratava de uma nova era, ou seja, da higiene na capital do Brasil (Porto & Santos, 2008). Isto pode ser articulado com as festividades do Centenário de Independência do Brasil (1922), como vitrine de modernidade para o mundo.
Outro estudo que relata de maneira micro articulada com o contexto macro, trata-se da atuação das enfermeiras nos espaços privados e institucionais para o combate da tuberculose, ao destacar que o modelo de profissionalização do Departamento Nacional de Saúde Pública foi fundamentado na feminização do cuidado (Deslandes, 2012). Isto posto, reafirma a capitalização sobre a imagem da enfermeira nas peças publicitárias, sendo ela a detentora dos saberes do cuidado. Para Natalino e Arcioni (2019), a entrada da mulher no mercado de trabalho, na década de 1920, causou mudanças na publicidade devido ao seu poder aquisitivo. Logo, a mulher tornou-se público-alvo das campanhas, exercendo a dupla jornada de trabalho e cuidados com a casa e a família.
Pensar nesses argumentos históricos é conduzir a credibilidade da imagem da enfermeira como mensageira publicitária de garantia dos produtos Lysol para o consumo. Posto isto, entende-se como gatilho mental (in)consciente para a comercialização do produto com peças publicitárias associadas à obra de Adolpho Possollo. Esta, indicava para a lavagem das mãos e cuidados com as feridas, o que ratificava a mentalidade de que o produto era, de facto, destinado ao cuidado, higiene e saúde.
Este tipo de gatilho mental foi usado como estratégia, quando identificamos a técnica de atenção, interesse, desejo, ação (AIDA). Trata-se de uma técnica de comunicação criada por E. K. Strong, americano, do início do século XX, tendo por pressuposto chamar a atenção de uma pessoa, para se vender determinado produto, por exemplo, se torna necessário captar a sua atenção, interesse e desejo para se ter por efeito a ação (Rosa & Cunha, 1999). Ter esta lógica nas peças publicitárias tornava possivel de evidenciar ao leitor que o produto não era baseado em pseudoinformações, atualmente denominadas de fake news (Neto et al., 2020). Isto implicava, ao contrário do que muitos podem pensar, a referente circulação de notícias que prometiam um certo sucesso, bem como ocorreu durante a gripe espanhola, quando elas eram veiculadas na imprensa (Albuquerque, 2020).
Entender os mecanismos que operam os meios de comunicação é relevante para articulações, seja em tempos pandémicos ou pós-pandémicos. Tanto que, numa das peças publicitárias, a expressão “Lysol, em tempos de epidemia” e “As epidemias podem ser isoladas com este systema de limpeza” são significativas, além de outras que podemos articular com o contexto de modernidade da década de 1920, tais como: “Senhoras! uma necessidade moderna”.
Conclusão
Ao se compreender o conteúdo dos manuais de enfermagem com a citação do Lysol, articulado com as peças publicitárias, é possível verificar a construção da cultura dos cuidados que, por meio dos veículos de comunicação, cria costumes e comportamentos numa sociedade.
Além disso, a análise e a discussão realizada na investigação pode contribuir para a construção do conhecimento na área da enfermagem e saúde, especialmente por compreender áreas de saberes diferentes, bem como se pode entender o mecanismo no presente, como funcionavam as publicidades do produto Lysol. Este, tem vindo a ser publicitado nos anúncios televisivos em tempos de pandemia da COVID-19, época em que a higiene tem potencial de audiência e efeito de consumo. Contudo, a empresa adverte para o não uso administrado no corpo humano.
No entanto, uma das limitações do estudo pretende-se pela não realização da análise do traço dos desenhos, a sua disposição na página da Revista da Semana e diagramação, o que poderia trazer outras versões e interpretações na discussão.