As frequentes transformações sociais, culturais, políticas e económicas têm, ao longo das décadas, causado implicações diretas no campo da saúde, mediante a sua multidimensionalidade.
A Carta de Ottawa de 1986, oriunda do debate da Conferência de Alma Ata, em 1978, ampliou de forma contundente a compreensão sobre o campo da saúde abrindo formas de diálogo com todos os países sobre as possibilidades e necessidades de pensar e agir em saúde, a partir das reais necessidades dos indivíduos e comunidades. Esta carta, trouxe, de forma consistente e lúcida, um caminho mais efetivo e mais sustentável para os sistemas de saúde, com intensa demonstração das diferentes dimensões da saúde que submergem nos modos de viver das pessoas. Evidenciou-se, assim, que para termos resultados mais positivos, capazes de promover a qualidade de vida das populações, é necessário debruçarmo-nos sobre as questões relacionadas com os problemas sociais, económicos, culturais, étnicos, comportamentais e implmentar novas tecnologias alternativas para uma nova forma de saúde pública, com melhores resultados que ampliem a oferta da assistência e do cuidado.
Os sistemas nacionais de saúde (SNS) com cobertura estendida a todos os cidadãos são a opção mais humanizada e digna de acesso a saúde. Apresentam como princípio doutrinário a universalidade, a assistência integral e a equidade em saúde, tem como nível de primeiro contato da população a Atenção Primaria a Saúde (APS) com acesso aberto aos serviços e ações de promoção da saúde e de prevenção de doenças, tão essenciais ao bem-estar dos indivíduos na garantia de uma vida saudável e da capacidade de trabalho para o desenvolvimento econômico e social de um país.
A APS assume-se como uma organização assistencial à saúde de forma transversal, compartilhada, intersetorial, com responsabilidade no acesso, com qualidade e viabilidade de custo, fortalecimento da promoção da saúde, bem como garantida de assistência domiciliar. Aborda os problemas mais singulares de uma comunidade e oferece serviços de prevenção, tratamento, reabilitação e cura apropriados a cada exigência. Estabelece e racionaliza o uso de todos os recursos, tanto básicos como especializados e tecnológicos, sobretudo de processos direcionados para a promoção, manutenção e melhoria da saúde (Starfield, 2002).
Acerca das tecnologias em saúde (TS) a Organização Mundial Saúde (OMS) em 2021, publicou um documento denominado “WHO compendium of innovative health technologies for low-resource settings: COVID-19 and other health priorities” que trata dos novos conceitos sobre TS que inclui e reconhece novas tecnologias para a melhoria da qualidade saúde e de vidas das pessoas. Na referida bibliografia o termo health innovation é traduzido como sendo “inovação em saúde que visa desenvolver e fornecer novas e aprimoradas políticas de saúde, sistemas, produtos, tecnologias, serviços, e métodos para melhorar a vida das pessoas” (WHO, 2021, p. 9).
As TS compreendem um conjunto de técnicas, conhecimentos, bem como medicamentos, materiais, equipamentos e procedimentos, sistemas organizacionais, educacionais, de informações e de suporte, e programas e protocolos assistenciais, por meio dos quais a atenção e os cuidados com a saúde são prestados à população. Classificam-se em TS de produto ou TS de processo dependendo da ação a ser executada. Como tecnologias de processo temos o conhecimento técnico científico dos profissionais, a capacidade de escuta e a qualidade da conduta, orientações, aconselhamentos, acompanhamentos, informações, visitas domiciliares, correspondem as relações (produção de vínculo e das relações, autonomização, acolhimento, gestão de processos de trabalho); Já as TS de produtos, seriam as máquinas, instrumentos, equipamentos, exames, medicamentos e normas. Discutir a tecnologia não é discutir somente equipamentos, aparelhos, nem o moderno e o novo, mas discutir procedimentos eficazes de determinados saberes e das suas finalidades (Merhy, 2002).
Tão importante quanto um equipamento é a forma como abordamos as pessoas, os nossos pacientes, sujeitos com histórias e modos muito distintos de viver e compreender o processo saúde/doença, sobretudo pela determinação social da saúde que influencia diretamente no acesso desse indivíduo a uma série de bens, serviços e informações.
O facto de se implementarem equipas com médicos e enfermeiros não garante a melhoria das práticas de saúde, nem tão pouco a integralidade da assistência, ou seja, o modelo assistencial não é a garantia de sucesso por si só, mas sim uma possibilidade de melhoria da qualidade das ações sanitárias, desde que as diversas arestas comecem a ser aparadas. Cabe destacar que a utilização dos serviços de saúde representa o centro do funcionamento dos sistemas de saúde, e os profissionais em grande parte definem o tipo e a intensidade de recursos consumidos para resolver os problemas de saúde (Travassos & Martins, 2004).
As organizações de saúde operam dentro de campos de tensão como:
a produção de atos de saúde como trabalho vivo no qual predominam as tecnologias leves relacionais em detrimento das tecnologias duras equipamentos e saberes estruturados e é exatamente essa característica que abre grandes possibilidades para estratégias que possibilitam a construção de novos valores, compreensões e relações. (Merhy, 2016, p. 68)
As tecnologias em saúde dizem respeito a tudo o que é utilizado como instrumento para levar o cuidado a outras pessoas e, dessa forma, o próprio profissional pode ser considerado como uma tecnologia nas suas interações.
O trabalho vivo em ação, convida-nos a olhar para duas dimensões: uma, é a da atividade como construtora de produtos, da sua realização por meio da produção de bens, de diferentes tipos, e que está ligada à realização de uma finalidade para o produto (para que serve, que necessidade satisfaz, que valor de uso tem). A outra dimensão é a que se vincula ao produtor da ação, ao trabalhador e à sua relação com seu ato produtivo e aos produtos que realiza, bem como as suas relações com os outros trabalhadores e com os possíveis utilizadores dos seus produtos. Detalhar estas duas dimensões é fundamental para entendermos o que é o trabalho em saúde como prática social e prática técnica, como ato produtivo de coisas e de pessoas (Merhy, 2016).
Nesta perspetiva, é fundamental a distinção de TS de processo e de produto e o valor de cada uma nos atributos essenciais da atenção primária, no avanço dos modelos assistenciais e para o avanço dos SNS. Em vários países, em menor ou maior grau, os sistemas de saúde, ainda que inseridos em economias de mercado, foram fortemente influenciados por políticas públicas com perspetivas diversas, bem como pelo fortalecimento do papel dos seus profissionais e utilizadores que, juntos, exercem uma forte pressão pela incorporação de novas tecnologias. O desenvolvimento, a incorporação e a utilização de tecnologias nos sistemas de saúde, bem como a sua sustentabilidade, estão inseridos em contextos sociais e económicos, que derivam da contínua produção e consumo de bens e produtos. (Almeida, 2012; Paim, 2019).
Estratégias e análise de diferentes experiências favorecem as descobertas e a troca de tecnologias em saúde no sentido de fomentar a inovação tecnológica para o campo da saúde dos SNS e APS no que tange ao funcionamento, organização, qualidade dos serviços de saúde e qualidade de vida das populações.