Introdução
As mudanças nos estilos de vida, verificadas ao longo dos últimos anos, condicionam o desenvolvimento de diferentes necessidades em saúde, decorrentes do crescente envelhecimento da população e do progressivo aumento das doenças crónicas e incapacitantes (Carrasco et al., 2015; Etkind et al., 2017; Harding et al., 2016; Silva et al., 2018).
Estima-se que, nos países desenvolvidos, 69 a 82% das pessoas que morrem detêm necessidades em cuidados paliativos (CP; Murtagh et al., 2014). Em Portugal, tal assume particular relevância dado o evidente crescimento do índice de envelhecimento populacional, que se estima vir a ser mais do dobro até 2080, sendo considerado um dos países mais envelhecidos da Europa (Instituto Nacional de Estatística, 2017). Concomitantemente, as doenças graves limitantes e ameaçadoras de vida e o sofrimento que acarretam, representam uma ameaça para a qualidade de vida das pessoas e da sociedade, para além de constituírem uma parcela significativa dos gastos em saúde. Um estudo recente sobre a prevalência e projeção da evolução destas doenças estima que, em 2060, 47% da população global, equivalente a 48 milhões de pessoas, morrerá anualmente de doenças indutoras de sofrimento, especialmente nos países de médio-baixo rendimento per capita, com aumento significativo do sofrimento nas pessoas com mais de 70 anos, mas também em jovens e crianças (Sleeman et al., 2019).
Os CP emergem por isso à escala mundial, como resposta integrada às necessidades das pessoas e famílias em situação de sofrimento, decorrentes de processos de doença limitante da vida, procurando a melhoria da qualidade de vida e do bem-estar. O conhecimento dos profissionais de saúde em CP é determinante do acesso a cuidados centrados na pessoa com necessidades paliativas e na sua família (Kmetec et al., 2020).
Neste contexto, desconhecendo-se o atual nível de conhecimento dos profissionais de saúde em CP a nível nacional e, especificamente, no hospital em análise, definiu-se como objetivo geral do estudo: caracterizar o nível de conhecimento em CP dos profissionais de saúde, num hospital central universitário português. Como objetivos específicos pretende-se: determinar a relação entre o nível de conhecimentos em CP e variáveis como a idade, o tempo de exercício profissional, a formação específica em CP e a perceção dos profissionais sobre as suas competências e os seus conhecimentos na área.
Enquadramento
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os CP centram-se no controlo de sintomas físicos, psicossociais e espirituais, visando a prevenção e alívio do sofrimento, através da identificação precoce, avaliação e tratamento adequado (Sepúlveda et al., 2002). Numa visão mais abrangente e atual, a International Association for Hospice and Palliative Care (2019) realça o carácter holístico dos CP, prestados a pessoas de todas as idades com sofrimento intenso, decorrente de doença grave (aguda ou crónica, causadora de incapacidade). Estes assumem-se, por isso, como uma filosofia e modelo de cuidados holísticos, integrados num sistema estruturado e organizado de prestação de cuidados de saúde (Bernardo et al., 2016).
A abordagem multidimensional, integral e abrangente, promove o alívio do sofrimento, nomeadamente da dor e outros sintomas disruptivos, considerando as necessidades físicas, emocionais, sociais e espirituais, bem como os valores, preferências e objetivos da pessoa doente e família. Assim, consubstancia-se em quatro pilares fundamentais de intervenção: controlo sintomático; comunicação adequada; apoio à família, enquanto prestadora e recetora de cuidados; e trabalho em equipa. Neste contexto, os CP afirmam a vida e encaram a morte como um processo natural, não a antecipando nem atrasando, promovendo também suporte familiar e apoio personalizado no luto, de forma a facilitar o processo de transição. Neste contexto, torna-se crucial fomentar a equidade no acesso e a qualidade dos CP, enquanto direito humano, de modo ajustado às necessidades e preferências da pessoa doente e família (Bernardo et al., 2016; Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2017; Gómez-Batiste & Connor, 2017).
A formação e o conhecimento dos profissionais de saúde encerram-se como um dos fatores críticos para o sucesso nesta área. As mais recentes orientações apontam para a necessidade de educação de todos os profissionais de saúde sobre os princípios e práticas dos CP desde a sua formação inicial. A formação avançada e especializada é, ainda, recomendada para os profissionais que desenvolvem a sua prática em contextos diferenciados de CP. Em alguns países, nomeadamente em Portugal, existe já enquadramento legal para os níveis de diferenciação formativa dos profissionais de saúde, de acordo com a sua área de intervenção (Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2017; Gamondi et al., 2013; Monterosso et al., 2016). Contudo, o investimento em CP nos planos curriculares, da formação pré e pós-graduada, conducentes ao exercício de profissões na área da saúde, a nível global e, especificamente, em Portugal, é ainda incipiente (Carrasco et al., 2015; Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2017; Gómez-Batiste & Connor, 2017). A importância da educação em CP (básica, intermédia e avançada) é reconhecida como fundamental para o desenvolvimento do conhecimento e aquisição de competências (Paal et al., 2019).
Estudos anteriores têm identificado, em diferentes contextos, lacunas de conhecimento a nível multidisciplinar por ausência de formação, nomeadamente ao nível pré-graduado, constituindo-se esta ausência como uma das principais barreiras ao desenvolvimento efetivo dos CP (Centeno et al., 2017; Chover-Sierra et al., 2017; Smets et al., 2018). À data, em Portugal são inexistentes os estudos publicados sobre o conhecimento em CP dos profissionais que prestam cuidados de saúde diferenciados, assim como o tipo de formação que os habilita para tal.
Questão de investigação
Qual é o nível de conhecimento em CP dos profissionais de saúde num hospital central universitário português?
Que relação existe entre o nível de conhecimentos em CP e variáveis como a idade, o tempo de exercício profissional, a formação específica em CP e a perceção dos profissionais sobre as suas competências e o seus conhecimentos na área?
Metodologia
O estudo, quantitativo, de tipo descritivo-correlacional e transversal, teve como população alvo os profissionais de saúde (assistentes sociais, enfermeiros, médicos e psicólogos) de um hospital central universitário português. O tamanho da amostra foi calculado com recurso ao software Raosoft®, estimando-se necessária uma amostra de 352 profissionais. Como critérios de inclusão definiu-se todos os profissionais dos quatro grupos supramencionados a desempenhar funções no hospital, à data da recolha de dados, que aceitem participar no estudo. Como critério de exclusão considerou-se outros grupos profissionais. A recolha de dados desenvolveu-se entre 23 de outubro e 18 de novembro de 2019.
O instrumento de recolha de dados foi construído especificamente para o estudo, num projeto de colaboração com o Observatório Português dos Cuidados Paliativos. O inquérito foi submetido a um painel de peritos, evidenciando-se unanimidade de opinião quanto à adequação, no que se refere ao objetivo principal (avaliação de conhecimentos específicos em CP), critérios e forma de apresentação. O instrumento, de autopreenchimento, é composto por duas partes: a primeira, constituída por questões de carácter sociodemográfico, profissional e de avaliação da autoperceção dos profissionais sobre o seu nível de conhecimentos e competências específicas em CP (classificado numa escala de tipo Likert de 10 pontos, correspondendo o score (0) a nenhum(a) e o score (10) a máximo(a); enquanto a segunda inclui um questionário de avaliação de conhecimentos específicos em CP (QACCP), composto por 60 afirmações, classificadas em “verdadeiro”, “falso” ou “desconheço”. Posteriormente, os dados foram recodificados em função da resposta, em correta ou incorreta (inclui a opção desconheço). O QACCP integrou afirmações que visam avaliar o conhecimento associado à filosofia (12 itens) e aos quatro pilares dos CP, designadamente o controlo de sintomas (27 itens), o trabalho em equipa (11 itens), a comunicação (5 itens) e o apoio à família (5 itens).
O instrumento foi disponibilizado sob a forma de questionário eletrónico, sendo enviado convite para participação no estudo a todos os profissionais dos grupos selecionados, pela Direção Clínica e Direção de Enfermagem do centro hospitalar, via email.
A análise de dados desenvolveu-se com recurso ao software Statistical Package for the Social Sciences (versão 22.0, SPSS an IBM Company, Chicago, IL), recorrendo-se, para analisar a associação (intensidade e direção) entre as variáveis, à correlação de Pearson e Spearman. Na análise foi considerada a significância estatística para p ≤ 0,05.
Os princípios éticos associados à investigação foram cumpridos, sendo a participação dos profissionais voluntária, observando-se a obtenção de consentimento informado livre e esclarecido, e a garantia de anonimado e confidencialidade. O estudo foi aprovado pelo Conselho de Administração da instituição e pela Comissão de Ética da Universidade Católica Portuguesa (Parecer n.º 42, mandato 2018-2021).
Resultados
O estudo integrou 401 profissionais, com idades compreendidas entre os 25 e os 64 anos, com uma variação 3 a 42 anos de exercício profissional. De acordo com a Tabela 1, a maioria dos profissionais são enfermeiros (85,54%) e desempenham funções essencialmente nas áreas médicas e cirúrgicas. Apenas 26,18% da amostra refere ter formação específica em CP, sendo que 16,96% refere experiência profissional em CP.
Nota. x_ = Média; DP = Desvio-padrão; n = Frequência absoluta; % = Frequência relativa; (a) n = 395; CP = cuidados paliativos.
No que respeita à autoperceção dos profissionais, 75% refere um nível de conhecimentos específicos (x- = 4,60; DP = 1,79) e de competências para a prestação de CP (x- = 4,70; DP = 2,15) inferior a seis pontos, numa escala tipo Likert de dez pontos.
Da análise do nível de conhecimentos específicos em CP, os resultados evidenciam, em média, 80,53% de respostas corretas no que respeita à dimensão filosofia dos CP. Porém, destaca-se uma percentagem média de respostas corretas inferior no que concerne aos pilares dos CP, designadamente: no controlo de sintomas - 64,80%; no apoio à família - 74,56%; na comunicação - 77,56%; e no trabalho em equipa - 79,66%.
Da análise da Tabela 2, identificam-se correlações negativas, significativas, entre a idade e as dimensões controlo de sintomas e apoio à família, tal como entre estas duas dimensões e o tempo de exercício profissional. Assim, o aumento da idade e do tempo de exercício profissional está relacionado com menor nível de conhecimentos dos profissionais de saúde, no que concerne ao controlo de sintomas e apoio à família. Por outro lado, destaca-se a relação positiva, significativa, entre a experiência profissional na prestação de CP (em anos) e o nível de conhecimentos dos profissionais, nomeadamente nas dimensões filosofia dos CP, controlo de sintomas, apoio à família e trabalho em equipa, ou seja, quanto maior o tempo de experiência dos profissionais de saúde em CP, maior o seu conhecimento específico nesta área.
Em paralelo, e como esperado, evidencia-se que quanto maior o nível de formação específica em CP, maior o conhecimento dos profissionais, em todas as dimensões analisadas, identificando-se uma relação positiva, significativa.
No que concerne à autoperceção dos profissionais acerca do seu nível de conhecimentos e de competências para a prestação de CP, os resultados indicam também uma relação positiva entre estas variáveis e as diferentes dimensões do conhecimento em análise. Neste contexto, quanto maior a autoperceção dos profissionais acerca do seu nível de conhecimentos e competências, maior o nível de conhecimentos específicos demonstrados nesta área.
Filosofia CP | Controlo Sintomas | Apoio Família | Comunicação | Trabalho Equipa | |
Idade (a) | -0,001 | -0,166** | -0,175** | -0,025 | -0,096 |
Tempo exercício profissional (a) | 0,011 | -0,141* | -0,159** | -0,025 | -0,066 |
Tempo experiência em CP (a)(c) | 0,202** | 0,259** | 0,161** | 0,094 | 0,154* |
Nível formação específica em CP (b) | 0,319** | 0,405** | 0,248** | 0,140* | 0,238** |
Autoperceção dos profissionais (a) | |||||
Nível conhecimentos em CP (a) | ,244** | 0,356** | 0,242** | 0,108* | 0,220** |
Competências para prestar CP (a) | 0,191** | 0,352** | 0,212** | 0,109* | 0,217** |
Nota. CP = Cuidados paliativos.
Discussão
O estudo destaca um elevado nível de conhecimento dos profissionais de saúde de um hospital central universitário português sobre a filosofia dos CP, não obstante níveis inferiores de conhecimentos específicos sobre os seus pilares. O controlo de sintomas evidencia-se como a área com maiores lacunas de conhecimento dos profissionais, o que, de algum modo, era expectável, pela maior especificidade associada.
Dos resultados, evidencia-se a relação negativa entre o conhecimento específico dos profissionais, no âmbito do controlo de sintomas e do apoio à família, e as variáveis idade e tempo de exercício profissional. Este facto poder-se-á dever ao caracter relativamente recente dos CP, com parca expressão nos cursos de formação pré-graduada, de modo global. Pese embora a tendencial evolução positiva da introdução de unidades curriculares específicas de CP nos cursos de formação pré-graduada, a nível nacional, em 2018, de acordo com o relatório do Observatório Português dos Cuidados Paliativos, de 148 planos de estudos (nas áreas de enfermagem, medicina, psicologia, serviço social, nutrição, gerontologia, terapia ocupacional e fisioterapia), somente 13,5% detinham uma unidade curricular dedicada a esta área, nos cursos de enfermagem e medicina, o que reforça a necessidade urgente deste investimento específico (Pereira et al., 2018). Neste enquadramento, particularmente os profissionais mais velhos e com maior tempo de exercício profissional poderão não ter frequentado qualquer formação nesta área específica, o que condiciona o seu conhecimento. Por outro lado, este resultado pode expressar a cultura mais recente de integração dos CP nos cuidados gerais disponibilizados à população que recorre ao hospital (Gamondi et al., 2013; Paal et al., 2019).
Em paralelo, como esperado, os resultados do estudo indicam uma relação positiva entre o nível de formação em CP e o nível de conhecimentos identificado, sendo que apenas 26,18% dos profissionais refere deter formação específica, traduzindo o investimento quase incipiente nesta área, não obstante as recomendações nacionais e internacionais da necessidade de formação de nível básico para todos os profissionais de saúde (Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2017). Em oposição, num estudo com 2275 profissionais, de seis países europeus, a maioria detinha formação em CP, tal como no contexto de um hospital universitário espanhol (64,2% dos enfermeiros
com formação na área; Chover-Sierra et al., 2017). Estes dados reforçam a necessidade de intervenção urgente na formação dos profissionais, a nível nacional, dado que o parco investimento na área, bem como na investigação e na certificação de competências é, frequentemente, identificado como um fator impeditivo do adequado desenvolvimento dos CP (Centeno et al., 2017; Chover-Sierra et al., 2017; Smets et al., 2018).
No que concerne à experiência profissional em CP, evidencia-se também a sua relação positiva, significativa, pese embora baixa, com os conhecimentos específicos sobre a filosofia, o controlo de sintomas, o apoio à família e o trabalho em equipa. Estes resultados são expectáveis e concordantes com outros estudos, que apontam maior nível de conhecimentos entre os profissionais com experiência em CP, sendo que o reduzido tempo de experiência profissional na área, na generalidade dos respondentes, poderá ser um dos fatores condicionantes da baixa correlação identificada (Chover-Sierra et al., 2017; Smets et al., 2018).
Da análise dos resultados, destaca-se, ainda, a relação positiva entre o nível efetivo de conhecimentos e a autoperceção dos profissionais sobre os seus conhecimentos e as competências para a prestação de CP. Os profissionais evidenciam, assim, capacidade crítica para identificar as limitações de conhecimentos e competências, o que poderá, em muito, decorrer do sentimento de incapacidade de resposta às necessidades identificadas nos diferentes contextos de prestação de cuidados.
Este estudo revela-se um importante contributo, pioneiro na investigação nesta área, dado que a caracterização dos níveis de conhecimentos em CP dos profissionais de saúde, a nível nacional, é parca. Esta caracterização dos níveis de conhecimentos em CP dos profissionais num hospital central português revela níveis de conhecimentos elevados sobre a filosofia dos CP, apontando, porém, para a necessidade de maior investimento formativo específico ao nível do controlo de sintomas e apoio à família, particularmente nos profissionais com maior tempo de exercício profissional, cujo percurso formativo não contemplou formação específica nesta área.
Não obstante os resultados obtidos, reconhece-se a limitação associada ao facto de se ter utilizado um instrumento novo para a avaliação de conhecimentos, pelo que os resultados devem ser analisados com parcimónia, condicionando também a interpretação e comparação com outros estudos, nomeadamente a nível nacional e internacional. Identificam-se, ainda, como potenciais limitações o processo de amostragem, não probabilística, e as características dos respondentes, nomeadamente o facto da amostra poder ser composta maioritariamente por profissionais com particular interesse nesta área, o que poderá não traduzir fielmente o nível de conhecimentos em CP da população da instituição.
Conclusão
O estudo promove uma análise global dos conhecimentos dos profissionais de saúde, de um hospital central universitário português, em CP. Os resultados evidenciam um nível razoavelmente elevado de conhecimentos, particularmente no que concerne à filosofia dos CP. Destaca-se a relação negativa entre o conhecimento sobre controlo de sintomas e apoio à família com o tempo de exercício profissional (p < 0,001) e, ainda, entre o conhecimento efetivo e a autoperceção dos profissionais sobre os conhecimentos e competências que consideram deter nesta área.
Não obstante estes resultados, evidenciam-se lacunas no conhecimento específico, particularmente ao nível do controlo sintomático, o que torna determinante o desenvolvimento de estratégias promotoras da literacia em CP entre os profissionais de saúde, sobretudo entre os que detêm carreiras profissionais mais longas. Neste enquadramento, é crucial o desenvolvimento de um programa formativo institucional, sistematizado, que fomente a literacia em CP. Este constitui-se como um desafio para os sistemas e políticas de saúde de modo global, mas também para os próprios profissionais, pela responsabilidade ética e social na promoção da melhoria contínua do acesso e da qualidade dos cuidados de saúde.