Introdução
As evidências de erros na prestação de cuidados têm ampliado o desafio em garantir a segurança do doente dentro dos serviços de saúde, cabendo às instituições repensarem, junto dos profissionais, como está sendo realizado o registo de dados relacionados aos eventos adversos. Esta prática vem a viabilizar, dentre outras ações, as revisões de processos de prestação de cuidados e de gestão (Costa et al., 2018).
As atribuições dos membros da equipa de enfermagem torna-os essenciais na garantia da segurança do doente. Estudos desenvolvidos na Inglaterra, Estados Unidos e Coreia do Sul destacam a forte influência deste ambiente na qualidade e na segurança da prestação de cuidados na saúde (Dutra et al., 2019; Aiken et al., 2021).
Em todo o mundo ocorrem aproximadamente 421 milhões de internamentos hospitalares anuais, com registo de cerca de 42,7 milhões de eventos adversos (Couto et al., 2018; Jha et al., 2013). Os números são tão representativos que a ocorrência de eventos adversos, devido à prestação de cuidados inseguros, é provavelmente uma das 10 principais causas de morte e invalidez no mundo (World Health Organization [WHO], 2019). Um estudo desenvolvido num Hospital de Ensino da capital do Brasil detetou 4,34% de taxa de omissão de doses na administração de medicamentos em uma Unidade de Terapia Intensiva de Adulto (Castro et al., 2019).
Os cuidados de enfermagem são prestados nas 24h do dia e envolvem aspetos de responsabilização da equipa à medida que condições adquiridas pelo doente, não determinadas pelas condições clínicas, são capazes de ocasionar mortes, sequelas, sofrimento psíquico, além de ampliar os custos com a prestação dos cuidados. Mediante a relevância do exposto, os objetivos deste estudo foram identificar os cuidados de enfermagem omissos, as razões atribuídas pelos profissionais de enfermagem e verificar se as razões diferem entre as categorias profissionais.
Enquadramento
As evidências de erros na prestação de cuidados trazem a todas as instituições de saúde o grande desafio em manter a qualidade do cuidado e da segurança do doente. Os erros na prestação de cuidados podem manifestar-se de duas formas: erro de comissão, quando se executa de forma errada a ação planeada; e o erro de omissão, quando não se consegue executar a ação certa (Costa et al., 2018; WHO, 2019).
O fenómeno da prestação de cuidados de enfermagem atrasados ou omissos em parte, ou por completo, é um erro de omissão relatado pela primeira vez em 2006. As razões mais comuns pelos quais os cuidados de enfermagem regularmente não são prestados por completo são atribuídas aos recursos humanos, materiais e de comunicação (Kalisch et al., 2009).
O Instituto de Medicina (IOM) publicou no seu ‘Quality Chasm Series’ um conjunto de recomendações para transformar o ambiente de trabalho de enfermagem, que revela erros na prestação de cuidados por estes profissionais. Os erros podem estar associados à complexidade dos atendimentos e a diversas particularidades do cuidado, como a quantidade de atividades a serem realizadas, as horas de trabalho, os padrões de comunicação, o aumento de tecnologias e o quantitativo inadequado de mão de obra na enfermagem (Kalisch et al., 2009).
O cuidado omisso é um fenómeno real e frequente, portanto, acredita-se que a sua identificação pode servir para a adoção de melhorias da prática de cuidados, minimizando riscos para os resultados negativos aos doentes (Lima et al., 2020).
Nesta perspetiva, os dados de cuidados de enfermagem omissos reforçam a necessidade de compreender as razões. Vários fatores levam os profissionais a não conseguirem realizar todos os cuidados requeridos pelos doentes e essas razões estão voltadas a falhas de gestão e sistémicas, que devem ser analisadas e corrigidas em prol da segurança do doente (Lima et al., 2020).
Assim, mapear os cuidados de enfermagem omissos e as razões subjacentes à sua não realização, pode subsidiar estratégias, análises estruturais e ações direcionadas aos gestores, profissionais e usuários da saúde sobre a segurança do doente. Essas possibilidades permitem a descrição de variáveis capazes de promover a redução da ocorrência de cuidados de enfermagem omissos e o diagnóstico seguro do quanto as razões para omissão se correlacionam com o modelo de organização da prestação do cuidado nos serviços de saúde (Lima et al., 2020).
Questões de Investigação
Quais os cuidados de enfermagem mais omitidos pela equipa? Quais as razões atribuídas pelos profissionais de enfermagem para a omissão do cuidado? As razões de omissão diferem entre as categorias profissionais?
Metodologia
Estudo descritivo, transversal, realizado nos serviços de internamento do Hospital Universitário da Universidade Federal do Piauí (HU-UFPI), no período de novembro de 2016 a abril de 2017, Teresina, Piauí, Brasil.
A população do estudo foram todos os 199 profissionais de enfermagem, de ambos os sexos, a exercerem no setor de internamento do HU-UFPI, conforme o seguinte critério de inclusão: exercer atividades regulares na unidade no período da colheita de dados, de modo que foram excluídos os que estavam de atestado médico, férias e em licença ou folga/abono. As informações para exclusão foram adquiridas na gerência de enfermagem da instituição. Destes, 168 tinham ou respondiam aos critérios de inclusão, e por conveniência todos receberam o instrumento de colheita de dados autoaplicável.
Foi utilizado o instrumento MISSCARE-Brasil, adaptado trans culturalmente do MISSCARE Survey ‐ Patient em 2012 e validado em 2015 pela pesquisadora brasileira Lillian Dias Castilho Siqueira. O instrumento validado resultou numa seção de informações gerais para caracterização de aspetos socioeducacionais e de trabalho e contém 56 itens apresentados em duas partes: a parte A contém 28 itens referentes aos elementos dos cuidados de enfermagem não realizados, dispostos em escala do tipo Likert dividido em itens nunca é realizado, raramente é realizado, ocasionalmente não é realizado, realizado frequentemente, é sempre realizado; e a parte B tem 28 itens relacionados com as razões para a não prestação dos cuidados organizados em razão significante, razão moderada, razão pouco significante, não é uma razão para a não realização do cuidado.
A análise psicométrica, realizada no estudo de validação, identificou cinco fatores na parte B: comunicação (10 itens - 5, 7, 8, 11-16, 24); recursos materiais (4 itens - 6, 9, 10, 23); recursos laborais (8 itens - 1-4, 17, 19, 27, 28); dimensão ética (3 itens - 18, 20, 25); e estilo de gestão/liderança institucional (3 itens - 21, 22, 26).
Após leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), os participantes foram orientados ao preenchimento do instrumento fora do local/horário de trabalho e a sua devolução anónima, dentro de envelope fechado, para uma pasta específica da pesquisa, que ficou nos postos de trabalho.
Os dados do estudo foram inseridos em bancos de dados, com dupla entrada em folha do Microsoft Excel, a fim de validar para identificação de possíveis erros de digitação. Foram processados no software IBM SPSS Statistics, versão 21.0, e calculadas as estatísticas descritivas, como as medianas, as médias, o desvio padrão, os mínimos e os máximos, para as variáveis quantitativas, e as frequências, para as qualitativas.
As variáveis quantitativas foram calculadas por meio de medidas de posição (média e mediana) e medidas de dispersão (desvio-padrão). Para os cruzamentos envolvendo as variáveis pessoais e profissionais e os domínios do MISSCARE-BRASIL, que abordam as razões para a não realização do cuidado, foram aplicados os testes de Mann-Whitney, de acordo com a distribuição dos dados entre as categorias profissionais. Todas as análises foram realizadas ao nível de significância de 5% (p < 0,05).
O desenvolvimento do estudo atendeu às normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos e foi aprovado no comitê de ética em pesquisa com seres humanos da Universidade Federal do Piauí (Parecer de n° 1.777.929). Todos os participantes foram informados sobre a possibilidade de desistência e a manutenção da confidencialidade.
Resultados
O instrumento foi aplicado a enfermeiros e técnicos de enfermagem do serviço de internamento (n =168) com uma taxa de reposta de 68,4% (n =115), sendo 48 enfermeiros e 67 técnicos em enfermagem.
Os profissionais participantes apresentaram relativamente aos aspetos socioeducacionais uma média de idade de 34,9 (±6,2) anos, com mínima de 24,1 e máxima de 52,6 anos, sendo que a maioria se encontrava na faixa etária de 25 a 34 anos, 61 (53,0%). Predominaram profissionais do sexo feminino, 102 (88,6%), com pós-graduação, 60 (52,1%), cuja formação educacional mais elevada foi mestrado na área de Enfermagem, 3 (2,6%). A média do tempo de experiência dos profissionais de enfermagem em seu cargo/função por ano trabalhado foi de 8,3 (±5,1), com variação de 4 meses a 27,6 anos.
As frequências descritas na Tabela 1 foram adquiridas a partir das repostas relacionadas com os cuidados classificados em cinco pontos, desde nunca eram realizados a sempre eram realizados. Percebe-se que o “cuidado omitido” pode ser evidenciado pela soma das frequências de classificações negativas da escala relacionadas aos cuidados que nunca eram realizados, que raramente eram realizados e que ocasionalmente não eram realizados.
Item do MISSCARE BRASIL | nunca é realizado | raramente é realizado | ocasionalmente não é realizado | realizado frequentemente | sempre realizado |
1. Deambulação três vezes por dia ou conforme prescrito | 12 (10,4) | 31 (27,0) | 24 (20,9) | 39 (33,9) | 9 (7,8) |
2. Mudar o decúbito do paciente a cada duas horas | 0 (0,0) | 21 (18,3) | 29 (25,2) | 42 (36,5) | 23 (20,0) |
3. Alimentar o paciente ou administrar a dieta por sonda, no horário | 1 (0,9) | 2 (1,7) | 6 (5,2) | 36 (31,3) | 70 (60,9) |
4. Oferecer as refeições para os pacientes que se alimentam sozinhos | 14 (12,2) | 30 (26,1) | 17 (14,8) | 36 (31,3) | 18 (15,7) |
5. Administrar os medicamentos dentro de 30 minutos antes ou depois do horário prescrito | 3 (2,6) | 12 (10,4) | 14 (12,2) | 54 (47,0) | 32 (27,8) |
6. Avaliação dos sinais vitais conforme prescrito | 0 (0,0) | 0 (0,0) | 7 (6,1) | 30 (26,1) | 78 (67,8) |
7. Controle do balanço hídrico - entradas e saídas | 1 (0,9) | 23 (20,0) | 6 (5,2) | 41 (35,7) | 44 (38,3) |
8. Registo completo no prontuário do paciente, de todos os dados necessários | 0 (0,0) | 4 (3,5) | 22 (19,1) | 45 (39,1) | 44 (38,3) |
9. Orientações aos pacientes e familiares quanto às rotinas, procedimentos e cuidados prestados | 2 (1,7) | 5 (4,3) | 14 (12,2) | 52 (45,2) | 42 (36,5) |
10. Apoio emocional ao paciente e/ou família | 3 (2,6) | 13 (11,3) | 17 (14,8) | 45 (39,1) | 37 (32,2) |
11. Banho/higiene do paciente/medidas para prevenção de lesões de pele | 0 (0,0) | 3 (2,6) | 11 (9,6) | 38 (33,0) | 63 (54,8) |
12. Higiene oral | 3 (2,6) | 21 (18,3) | 21 (18,3) | 44 (38,3) | 26 (22,6) |
13. Higienização das suas mãos | 1 (0,9) | 1 (0,9) | 2 (1,7) | 28 (24,3) | 83 (72,2) |
14. Planejamento e ensino do paciente e/ou família para a alta hospitalar | 6 (5,2) | 17 (14,8) | 12 (10,4) | 39 (33,9) | 41 (35,7) |
15. Monitorar a glicémia capilar (glicosimetria/dextro) conforme prescrito | 0 (0,0) | 0 (0,0) | 3 (2,6) | 30 (26,1) | 82 (71,3) |
16. Avaliação das condições do paciente a cada turno, identificando as suas necessidades de cuidado | 0 (0,0) | 9 (7,8) | 9 (7,8) | 43 (37,4) | 54 (47,0) |
17. Reavaliação focada, de acordo com a condição do paciente | 1 (0,9) | 13 (11,3) | 11 (9,6) | 52 (45,2) | 38 (33,0) |
18. Cuidados com acesso venoso e infusão, de acordo com as normas da instituição | 0 (0,0) | 3 (2,6) | 7 (6,1) | 32 (27,8) | 73 (63,5) |
19. O atendimento à chamada do paciente é feito dentro de cinco minutos | 4 (3,5) | 21 (18,3) | 28 (24,3) | 37 (32,2) | 25 (21,7) |
20. As solicitações para administração de medicamentos prescritos S/N são atendidas em quinze minutos | 3 (2,6) | 16 (13,9) | 23 (20,0) | 41 (35,7) | 32 (27,8) |
21. Avaliação da efetividade dos medicamentos administrados | 1 (0,9) | 9 (7,8) | 9 (7,8) | 50 (43,5) | 46 (40,0) |
22. Participação em discussão da equipa interdisciplinar sobre a assistência ao paciente, se ocorrer | 9 (7,8) | 28 (24,3) | 27 (23,5) | 39 (33,9) | 12 (10,4) |
23. Higienizar o paciente prontamente após cada eliminação | 5 (4,3) | 15 (13,0) | 16 (13,9) | 44 (38,3) | 35 (30,4) |
24. Cuidados com lesões de pele/feridas | 7 (6,1) | 9 (7,8) | 7 (6,1) | 44 (38,3) | 48 (41,7) |
25. Aspiração de vias aéreas | 16 (13,9) | 13 (11,3) | 19 (16,5) | 25 (21,7) | 42 (36,5) |
26. Uso de medidas de prevenção para pacientes em risco de queda | 8 (7,0) | 9 (7,8) | 12 (10,4) | 43 (37,4) | 43 (37,4) |
27. Sentar o paciente fora do leito | 8 (7,0) | 19 (16,5) | 19 (16,5) | 53 (46,1) | 16 (13,9) |
28. Hidratar o paciente, quando adequado, oferecendo líquidos via oral ou administrando pela sonda | 10 (8,7) | 10 (8,7) | 9 (7,8) | 33 (28,7) | 53 (46,1) |
As frequências dos níveis de razão foram adquiridas a partir das repostas dos 28 itens da escala Likert de cinco pontos relacionados às razões para a não prestação dos cuidados, organizados de razão significante a não é uma razão.
A distribuição das frequências dos níveis de razão na Tabela 2 considerou como “razões para a omissão” as respostas atribuídas aos itens que consideraram ter uma razão significante ou uma razão moderada para a não realização do cuidado. As respostas foram agrupadas de modo a permitir a perceção das justificativas para omissão diante da estrutura penta fatorial do instrumento de colheita de dados.
Fator/domínios | Item n (parte B) | f (%) | Média (DP) |
Razões para a omissão | |||
1.Comunicação | 5. A distribuição de pacientes por profissional não é equilibrada | 89 (77,4) | 1,8 (1,01) |
7. A passagem de plantão do turno anterior ou das unidades que encaminham pacientes é inadequada | 67 (58,3) | 2,2 (1,03) | |
8. Outros profissionais da equipa não forneceram a assistência quando era necessário | 71 (61,7) | 2,2 (1,03) | |
11.Os membros da equipa não se ajudam entre si | 40 (34,8) | 2,9 (1,10) | |
12. Tensão/conflito ou problemas de comunicação com outros departamentos/setores de apoio | 63 (54,8) | 2,4 (1,01) | |
13. Tensão/conflito ou problemas de comunicação dentro da equipa de enfermagem | 45 (39,1) | 2,7 (1,08) | |
14. Tensão/conflito ou problemas de comunicação com a equipa médica | 70 (60,9) | 2,3 (1,09) | |
15. O auxiliar de enfermagem não comunicou que a assistência não foi realizada | 56 (48,7) | 2,5 (1,14) | |
16. O profissional responsável pelo cuidado estava fora da unidade/setor ou não estava disponível | 45 (39,1) | 2,8 (1,23) | |
24. Falta de padronização para realização de procedimentos/cuidados | 39 (33,9) | 2,8 (1,14) | |
2. Recursos materiais | 6. Os medicamentos não estavam disponíveis quando necessários | 91 (79,1) | 1,8 (0,86) |
9. Materiais/Equipamentos não estavam disponíveis quando necessário | 105 (91,3) | 1,4 (0,73) | |
10. Materiais/Equipamentos não funcionaram adequadamente quando necessário | 104 (90,4) | 1,5 (0,72) | |
23. A planta física da unidade/ setor é inadequada | 52 (45,2) | 2,6 (1,19) | |
3. Recursos laborais | 1. Número inadequado de pessoal | 99 (86,1) | 1,5 (0,90) |
2. Situações de urgência dos pacientes | 100 (87,0) | 1,6 (0,87) | |
3. Aumento inesperado do volume e/ou da gravidade dos pacientes da unidade | 104 (90,4) | 1,5 (0,77) | |
4. Número inadequado de pessoal para a assistência ou tarefas administrativas | 98 (85,2) | 1,5 (0,89) | |
17. Grande quantidade de admissões e altas | 71 (61,7) | 2,2 (1,12) | |
19. Número elevado de enfermeiros com pouca experiência profissional | 42 (36,5) | 3,0 (1,09) | |
27. Número elevado de profissionais que trabalham doentes ou com problemas de saúde | 66 (57,4) | 2,2 (1,14) | |
28. O profissional tem mais de um vínculo laboral, o que diminui o seu empenho/atenção/concentração para realizar a assistência | 32 (27,8) | 3,1 (0,96) | |
4. Ética | 18. O profissional não tem postura ética e não tem compromisso e envolvimento com o trabalho e/ou com a instituição | 42 (36,5) | 2,8 (1,23) |
20. O profissional que não realizou o cuidado não tem receio de punição/demissão devido à estabilidade no emprego | 39 (33,9) | 2,9 (1,19) | |
25. O profissional de enfermagem é negligente | 45 (39,1) | 2,8 (1,24) | |
5. Estilo de gerenciamento | 21. Falta de preparo dos enfermeiros para liderar, supervisionar e conduzir o trabalho em equipa | 48 (41,7) | 2,8 (1,15) |
22. Falta de educação em serviço sobre o cuidado a ser realizado | 62 (53,9) | 2,4 (1,14) | |
26. Falta de motivação para o trabalho | 52 (45,2) | 2,7 (1,19) |
Nota. f = Frequência; DP = Desvio-padrão.
Dos 28 itens apresentados na Tabela 2, extraímos aqui, em ordem decrescente das frequências apresentadas, as razões mais significativas para omissão do cuidado, com registos de razões para omissão por mais de 50% dos membros da equipa de enfermagem: “Recursos Materiais” - item 09 (91,3%) e item 10 (90,4%); “Recursos Laborais” - item 3 (90,4%), item 02 (87,0%), item 01 (86,1%) e item 04 (85,2%); “Comunicação” - item 05 (77,4%); “Recursos Laborais” - item 17 (61,7%); “Comunicação” - item 08 (61,7%), item 14 (60,9%) e item 07 (58,3%); “Recursos Laborais” - item 27 (57,4 %); “Comunicação” - item 12 (54,8%); “Estilo de gerenciamento” - item 22 (53,9%).
Ao comparar as razões para a não realização dos cuidados, considerando os domínios do MISSCARE-BRASIL com as variáveis profissionais, verificou-se que diferem quanto à formação profissional (Tabela 3). Não foi possível identificar significância estatística em nenhuma das comparações, no entanto, no domínio “ética”, os técnicos apresentaram maiores frequências nas razões para explicar os cuidados omitidos.
Fator/Domínios | Formação Profissional | Média | Desvio-padrão | Mediana | p-value |
Comunicação | Técnico | 2,42 | 0,72 | 2,40 | 0,275* |
Enfermeiro | 2,54 | 0,74 | 2,60 | ||
Recursos Materiais | Técnico | 1,85 | 0,68 | 1,80 | 0,595* |
Enfermeiro | 1,87 | 0,57 | 1,80 | ||
Recursos Laborais | Técnico | 2,04 | 0,54 | 2,00 | 0,551* |
Enfermeiro | 2,15 | 0,62 | 2,00 | ||
Ética | Técnico | 2,92 | 1,07 | 3,15 | 0,495* |
Enfermeiro | 2,74 | 1,08 | 2,70 | ||
Gerenciamento/Liderança Institucional | Técnico | 2,61 | 0,90 | 2,70 | 0,963* |
Enfermeiro | 2,63 | 0,81 | 2,70 |
*Teste de Mann-Whitney.
Discussão
Uma visão geral dos resultados demonstra a importância deles para a segurança do doente e alinhamento de estratégias de gestão e educativas capazes de direcionar as ações dos gestores e profissionais na redução da ocorrência de cuidados de enfermagem omissos (Moura et al., 2020).
As características da amostra estudada referente às variáveis sexo, tempo de experiência e nível educacional foram similares aos estudos que usaram MISSCARE a nível mundial. Estudos em 10 hospitais norte-americanos, por exemplo, evidenciaram que aproximadamente 90% dos participantes eram do sexo feminino e 51% possuíam o curso de bacharelado ou superior e 32% relataram mais de 10 anos de experiência (Kalisch et al., 2011).
Foi possível detetar várias razões que podem aumentar a ocorrência da omissão do cuidado nos serviços estudados, que são compatíveis com outros resultados internacionais. Um estudo realizado no sul da Austrália, identificou variáveis do MISSCARE como tendo efeitos preditores diretos sobre o motivo de omissão de cuidados de enfermagem, como: a alocação de recursos de enfermagem; a comunicação profissional de saúde; a intensidade da carga de trabalho; a previsibilidade da carga de trabalho; a satisfação dos enfermeiros com o seu trabalho atual; e a intenção de permanecerem trabalhando (Blackman et al., 2015). O presente estudo apresentou pelo menos três desses motivos.
Vale destacar que as principais razões para a omissão do cuidado que foram identificadas podem ser minimizadas pela organização da assistência e gestão do cuidado prestado, portanto, a organização na prestação de cuidados pode reduzir as omissões relatadas (Moura et al., 2020).
Dentre os 28 cuidados de enfermagem, a tríade dos mais omitidos atribuídos pelos participantes foram: deambulação três vezes por dia ou conforme prescrito; participação em discussão da equipa interdisciplinar sobre a assistência ao paciente; e oferecer as refeições para os pacientes que se alimentam sozinhos. Por outro lado, é importante destacar, como resultado positivo da aplicação do MISSCARE-Brasil, que intervenções referentes às avaliações clínicas contínuas, tais como a lavagem das mãos e a verificação dos sinais vitais e glicémia capilar, foram atribuídas pelos profissionais como “frequentemente” e “sempre” realizadas, de forma semelhante a outros estudos nesta perspetiva (Smith et al., 2018).
A deambulação, no entanto, foi o cuidado de enfermagem percebido pelos profissionais como o mais omitido, inclusive na maioria dos países em que se realizaram estudos na perspetiva do cuidado, como estudos realizados na Austrália, Islândia, Itália e Líbano (Palese et al., 2015; Kalisch, 2016).
Os membros da equipa de enfermagem têm frequentemente múltiplas solicitações no trabalho, o que requer a reorganização de prioridades na prestação de cuidados, gerando variações nas frequências individuais nas realizações do cuidado por completo, portanto, a omissão no cuidado relacionadas com a deambulação, embora possa colaborar num declínio funcional e ampliar o período de internamento, mediante complicações relacionadas à imobilidade, pode não ser vista como um cuidado prioritário pela enfermagem, por ser compartilhado por outros profissionais de saúde (Kalisch et al., 2011).
É importante destacar que a mobilização de doentes hospitalizados pode trazer benefícios relacionados à redução de dores, da fadiga, do risco de infeção e de complicações circulatórias, como trombose venosa, além de melhorar a qualidade de vida, a independência, o conforto e a satisfação do doente (Kalisch, 2016; Lima et al., 2020).
Outro ponto da tríade foi a participação em discussão da equipa interdisciplinar sobre a assistência ao paciente. A omissão das discussões multidisciplinares pode afetar a qualidade da assistência prestada ao doente, pois é capaz de suprimir as trocas de informações que poderiam influenciar nas condutas terapêuticas (Lima et al., 2020).
A omissão do cuidado referente à oferta de alimentos a doentes que se alimentam sozinhos, também pode não ser vista como um cuidado prioritário pela enfermagem, por ser compartilhado com familiares e outros profissionais de saúde, embora seja um cuidado colaborativo no cumprimento da dieta hospitalar.
Neste sentido, a análise do modelo de organização da prestação de cuidados de enfermagem vigente, ante a omissão de cuidado, pode reduzir a fragmentação do cuidado e o trabalho individualizado, ampliando a responsabilização e a racionalidade técnico-científica (Moura et al., 2020).
As estratégias, análises e ações para redução da omissão, partem principalmente da identificação das razões atribuídas por profissionais de enfermagem. Nesse estudo predominaram as razões relacionadas ao domínio “Recursos Materiais” com os relatos que Materiais/Equipamentos não estavam disponíveis quando necessário ou que não funcionaram adequadamente; “Recursos Laborais”, com o aumento inesperado do volume e/ou da gravidade dos pacientes da unidade e situações de urgência e “Comunicação”, com a distribuição desequilibrada de pacientes por profissionais.
Um estudo brasileiro demonstrou que a implementação do modelo de organização dos cuidados de enfermagem, nomeadamente “Enfermagem Primária”, possui um potencial preditor para a redução de, pelo menos, 78% na omissão de cuidados de enfermagem. Assim, avaliar e monitorizar a organização e gestão do cuidado de enfermagem influencia na prestação de cuidado de alta qualidade (Moura et al., 2020). Estratégias de gestão para redução dos quadros de omissão do cuidado podem ser a resposta, tendo em vista que os mesmos problemas de omissão foram identificados em diferentes culturas organizacionais no Brasil e internacionalmente (Kalisch et al., 2009; Kalisch, 2016).
Os resultados foram compatíveis, ainda, com os dados publicados pelo estudo sobre o tipo de cuidados de enfermagem perdidos e os seus motivos em 10 hospitais americanos de diferentes tamanhos e formas organizacionais, evidenciando que os recursos laborais inadequados foi o motivo mais citado para cuidados perdidos (93,1% em todos os 10 hospitais), seguido de recursos materiais (89,6%) e comunicação (81,7%; Kalischet al., 2011).
Quando os recursos humanos são limitados, os profissionais de enfermagem optam por prioridades na prestação de cuidados, decidindo por qual cuidado será prestado. Essa atitude pode trazer prejuízos e colocar em risco a saúde dos doentes (Valles et al., 2016).
As lacunas na prestação do cuidado identificadas neste estudo podem representar atenção quanto a aspetos da gestão do cuidado para obtenção de melhores resultados (Moura et al., 2020). A comunicação ineficaz, por exemplo, repercute num cuidado inseguro, podendo ser um fator contributivo para desfechos desfavoráveis do cuidado. A comunicação efetiva é, portanto, competência fundamental na execução de uma prestação de cuidados com qualidade (Moreira et al., 2019).
Os dados podem evidenciar ainda a necessidade de sistematizar o processo de passagem de turno, tornando a comunicação eficaz. Os profissionais de enfermagem reconhecem esta passagem como uma estratégia de gestão fundamental para a organização do processo de trabalho de enfermagem na atenção hospitalar (Silva et al., 2017).
As categorias da equipa de enfermagem apresentam diferentes práticas, linguagens e padrões de comunicações, sejam escritas ou verbais. Foi identificado assim que as razões para omissão apresentadas se diferem entre os enfermeiros e os técnicos em enfermagem. Os resultados mostraram que os enfermeiros relataram maiores frequências de razões para situações de omissão. As diferenças foram compatíveis com o estudo irlandês que visou comparar os relatórios de prestação de cuidados de enfermagem perdidos por enfermeiros e técnicos em hospitais de cuidados intensivos (Bragadóttir & Kalisch, 2018).
Pode atribuir-se este achado à formação profissional e as atribuições diversas dentro dos serviços. Aos enfermeiros, por exemplo, é legalmente atribuído a capacidade de gestão, de liderança e de visão ampla dos cuidados prestados por toda equipa, fato que modifica a perceção das razões da omissão do cuidado. Insistimos que a adoção de um modelo de organização da prestação de cuidados capaz de definir com clareza as linhas de responsabilidade, quanto ao cuidado adotado, pode favorecer resultados diferentes, porque a mudança organizacional pode alterar as perceções dentro do ambiente de prestação de cuidados (Moura et al., 2020).
As limitações metodológicas do estudo restringiram-se em não repetir a medida ao longo do tempo, dentro da instituição, e a perda de 31,6% de participantes na resposta ao instrumento, tendo em vista a medida negativa que as respostas representam muitos participantes alegaram, mesmo assegurado o anonimato, sentimento de insegurança diante da chefia por ter acesso ao estudo.
Conclusão
As razões relacionadas aos domínios “Recursos Materiais” e “Recursos Laborais” foram as que mais explicaram a frequência de cuidados de enfermagem omissos pelos participantes. Foi evidenciado, pela identificação dos cuidados omissos e as suas respetivas razões, similaridades em diversas instituições de saúde no Brasil e internacionalmente e, ainda, perceções e justificações diferenciadas para omissão do cuidado entre enfermeiros e técnicos em enfermagem.
A aplicação do instrumento revela lacunas que favorecem e possibilitam a gestão e a equipa de enfermagem implementarem estratégias para melhoria contínua dos cuidados, implicando em uma redução da omissão. Estudos futuros poderão verificar que formato de organização seria promissor para minimizar os cuidados de enfermagem omissos.