Introdução
A adoção de hábitos de saúde na infância tende a manter-se pela vida adulta (Georgiadis & Penny, 2017). A implementação de estratégias políticas e programas de promoção da saúde nos primeiros anos de vida é, nesta perspetiva, considerada fundamental, com ganhos em saúde e implicações que se prolongam a longo prazo e além do seu término (Brereton et al., 2018; Georgiadis & Penny, 2017).
Os determinantes de saúde podem potenciar (ou comprometer) a saúde da criança, num período onde as raízes da saúde e do desenvolvimento estão a ser estabelecidos. Ambientes e sistemas pouco saudáveis podem ter um impacto negativo na vida da criança, com consequências que podem ser irreversíveis (Georgiadis & Penny, 2017). Assim, a vigilância da saúde da criança integra não só a deteção precoce de doenças, mas também os determinantes de saúde (ex., ambiente, social, económico), o fortalecimento e o apoio à parentalidade, salvaguardando o bem-estar global da criança (Yakuwa et al., 2018).
A promoção da saúde na infância prevê o conhecimento do quotidiano e do ambiente que envolvem a criança, para acompanhar e intervir, de forma sensível e integrada, potenciando o crescimento e desenvolvimento infantil (Brereton et al., 2018). Estudos anteriores evidenciaram que a promoção da alimentação saudável tem resultados positivos no aumento do consumo de alimentos nutricionalmente interessantes em crianças (Hodder et al., 2018), a diminuição do comportamento sedentário e aumento da atividade física tem sido associado a melhor qualidade de vida e saúde cardiovascular (Wu et al., 2019). Contudo até ao momento, não se conhecem as melhores práticas de promoção da saúde, principalmente porque a vida da criança integra um grande número de protagonistas, como os pais, professores, escolas, profissionais de saúde, família alargada, entre outros, com expetativas diversificadas em relação à implementação de estratégias de promoção da saúde e as teorias ignoram, muitas vezes, os determinantes sociais de saúde (Langford et al., 2017). Conhecer as perspetivas destes protagonistas que fazem parte do quotidiano da criança, nomeadamente nos primeiros dois anos de vida, sobre o que constitui uma estratégia de intervenção adequada demonstra-se pertinente. Reforçado pelo conhecimento científico relativo às abordagens participativas, a investigação tende a orientar-se nos interesses que surgem da comunidade, em vez de serem unicamente resultado de uma pesquisa académica (Frerichs et al., 2016).
O presente estudo, inserido num projeto de investigação mais alargado, pretende colmatar este défice de investigação, tendo como principal objetivo conhecer as perceções de peritos e familiares, explorando, descrevendo e interpretando as áreas prioritárias de intervenção identificadas por estes atores, relacionadas com a promoção de estilos de vida saudáveis na primeira infância.
Enquadramento
Atualmente, é reconhecida a importância dos determinantes de saúde no desenvolvimento de comportamentos saudáveis (Sisson et al., 2017). Sabe-se que é na primeira infância que os benefícios de intervir são mais relevantes e onde os riscos da doença podem ser mais facilmente reduzidos (Richter et al., 2016). Os três primeiros anos de vida constituem uma janela de oportunidade na otimização do crescimento e desenvolvimento da criança, bem como na modelação da saúde futura, por exemplo na prevenção de doenças crónicas e na adoção de estilos de vida saudáveis (ex. alimentação, atividade física, sono; Brines et al., 2022). Sabe-se que em Portugal o consumo de alimentos considerados saudáveis, como a fruta e produtos hortícolas é reduzido, principalmente em crianças com menos de dez anos (Lopes et al., 2017). As crianças constituem, assim, um grupo de intervenção prioritário e justificam a maior dedicação e disponibilidade por parte dos profissionais de saúde, como os enfermeiros, na promoção da saúde infantil.
A adoção de hábitos de vida saudáveis pelas crianças pequenas advêm do cuidado recebido pelos pais, por outros membros da família, por outros cuidadores e pelos serviços comunitários, como serviços de saúde e escolar (Richter et al., 2016) e, no que se refere ao papel dos educadores, uma revisão sistemática recente demonstrou a eficácia de intervenções com vários componente na melhoria de hábitos saudáveis como, por exemplo, o aumento da ingestão de fruta e produtos hortícolas em crianças (Hodder et al., 2018). No entanto, a prevalência do excesso de peso e obesidade continua a assumir contornos preocupantes em Portugal e no mundo (Freitas et al., 2019; NCD Risk Factor Collaboration (NCD-RisC), 2021).
Ainda no seguimento da preocupação em fomentar a adoção de hábitos saudáveis por parte das crianças, especialistas em saúde pública demonstraram maior interesse em compreender como é que os vários comportamentos relacionados com o movimento (ex. sono, comportamento sedentário e atividade física) presentes no dia da criança interagem para influenciar a saúde (World Health Organization [WHO], 2019). Esta análise do movimento nas 24 horas deu origem ao desenvolvimento de diretrizes internacionais, nomeadamente no Canadá e Austrália, que abordam os comportamentos relacionados com a totalidade da atividade da criança ao longo do dia, ao invés de destacá-los de forma individual ou por um curto período de tempo (WHO, 2019).
De acordo com as recomendações para idades entre os 12 e os 24 meses, a atividade durante as 24 horas poderá contemplar entre 11 e 14 horas de sono (incluindo sestas), um mínimo de 3 horas de atividade física de intensidade variada (desde moderada a intensa ou vigorosa) e não ultrapassar os 60 minutos de tempo de exposição a ecrãs (de salvaguardar que este tempo de exposição não deve sequer existir em crianças com menos de um ano de idade). O tempo em comportamento sedentário apesar de idealmente reduzido, é considerado positivo quando versa atividades como ouvir histórias ou outras atividades de interação com o cuidador (WHO, 2019).
Conscientes da importância do envolvimento de familiares, cuidadores e profissionais na adoção de estilos de vida saudáveis nas crianças e, consequentemente, da promoção da saúde infantil, torna-se relevante explorar e descrever as áreas prioritárias de intervenção relacionadas com a promoção de estilos de vida saudáveis em crianças.
Questão de investigação
Qual a perceção de familiares e peritos quanto às áreas prioritárias de intervenção para promover estilos de vida saudáveis na primeira infância?
Metodologia
Foi desenvolvido um estudo qualitativo, do tipo exploratório e descritivo. Para a recolha de dados recorreu-se à técnica de grupos focais por proporcionar um processo que procura o sentido e a compreensão de fenómenos, mediante a condução de uma discussão de grupo de peritos com interesse no âmbito de um domínio específico (Krueger & Casey, 2015). Ao utilizar esta técnica pretendeu-se ampliar as perspetivas sobre o tema relativo à promoção da saúde da criança e aos determinantes dos estilos de vida saudáveis, com contributos diversificados provenientes de peritos do universo multidisciplinar. Esta técnica é considerada relevante por trazer riqueza à discussão, explorar o olhar das pessoas em relação à promoção da saúde em crianças e providenciar insights sobre a complexidade dos comportamentos e motivações relacionados com a saúde (Krueger & Casey, 2015).
Um perito detém uma experiência profissional que lhe proporciona um conhecimento profundo acerca de um dado domínio; sabendo quando, como, onde e porquê deve usar esse conhecimento (Nunes, 2010). A seleção dos peritos centrou-se nos objetivos do projeto. Estes peritos têm algo em comum entre si (envolvimento com a criança e o seu quotidiano) de uma maneira relevante para o projeto. Além disso procuramos que os interesses dos participantes, embora singulares, fossem de encontro aos objetivos propostos e as discussões fossem produtivas e relevantes para o tópico em análise. Assim, além da familiaridade com a temática, procuramos um ambiente facilitador da participação de todos (Morgan, 1997).
Os participantes foram identificados atendendo às variáveis “família, saúde e educação, digital”, tendo-se procedido à segmentação para identificar a composição e número dos grupos (Morgan, 1997).
Assim, assumiu-se que os elementos da área da saúde (enfermeiros e médicos) que integrariam a amostra deveriam ter reconhecimento pelos seus pares e pelo menos 10 anos de experiência no seu contexto profissional. A constituição da amostra de peritos foi intencional e teve em conta a diversidade de área disciplinar (ex. educação de infância, educação física, enfermagem, medicina, comunicação), tempo de exercício profissional (mínimo 10 anos), contexto do exercício profissional, idade e sexo. Considerou-se que os elementos da família seriam parte interessada e integrante da equipa, pelo que foram incluídos dois elementos de famílias com crianças pequenas.
Foram constituídos dois grupos de participantes, diferentes nas duas sessões de grupos focais, no sentido de obter maior riqueza e diversidade de dados. A composição de cada grupo obedeceu ao equilíbrio entre uniformidade e diversidade, segundo os critérios descritos.
Na primeira sessão participaram uma pediatra, um professor de educação física, uma educadora de infância e uma mãe. Na segunda sessão participaram dois enfermeiros de Cuidados de Saúde Primários (CSP), um pai de crianças pequenas e blogger sobre saúde da criança e da família, uma educadora de infância, uma tia de crianças pequenas (2 e 7 anos) e uma docente e investigadora na área de saúde da criança e família, conforme a Tabela 1.
Participante | Categoria/função | Idade (anos) | Sexo |
Sessão de Grupos Focais 1 | |||
PA1 | Pediatra | 37 | feminino |
PA2 | Professor de Educação Física | 34 | masculino |
PA3 | Educadora de Infância | 50 | feminino |
PA4 | Mãe | 41 | feminino |
Sessão de Grupos Focais 2 | |||
PB1 | Educadora de infância | 38 | feminino |
PB2 | Enfermeira de CSP* | 34 | feminino |
PB3 | Tia | 42 | feminino |
PB4 | Docente e investigadora do Ensino Superior, área de Enfermagem | 55 | feminino |
PB5 | Pai e blogger | 34 | masculino |
PB6 | Enfermeiro de CSP* | 37 | masculino |
Nota. CSP* = Cuidados de Saúde Primários.
As sessões decorreram a 7 e 20 de março de 2019 em instalações adequadas para o efeito e com a duração aproximada de 60 minutos. Iniciaram com o acolhimento e com uma atividade de quebra-gelo que facilitou a interação entre os diferentes participantes. Cada sessão contou com um moderador e um assistente, ambos docentes e investigadores do ensino superior, que esteve disponível para atender às necessidades inerentes ao funcionamento das sessões, ambos elementos da equipa de investigação.
Construiu-se um guião semiestruturado ou roteiro de tópicos com questões abertas sobre os estilos de vida das crianças, baseado na literatura (Hodder et al., 2018; Langford et al., 2017). As questões foram analisadas detalhadamente por três pessoas (i.e., mãe, enfermeiro e professor) que não integraram os grupos, de modo a garantir a compreensibilidade e adequação das questões identificadas. Apesar da estrutura base ser semelhante para as duas sessões, o guião não era rígido, permitindo que as questões sucedessem de forma natural e imprimindo maior dinâmica à interação dos participantes. Ocorreu alguma sobreposição entre os assuntos para proporcionar uma reflexão mais aprofundada sobre os mesmos.
As sessões foram gravadas em suporte de áudio, procedeu-se à transcrição integral das gravações por um investigador, tendo-se atribuído um código a cada participante, garantindo assim o anonimato. O registo da linguagem não verbal identificado pelo moderador e assistente nas sessões foi, complementarmente, inserido no texto transcrito. A complementaridade das transcrições com as notas do moderador e o assistente é considerado recomendável na análise dos dados (Bloor et al., 2001). A transcrição foi validada pelo moderador e assistente das sessões de grupos focais. Os dados foram analisados e categorizados de acordo com o método de análise de conteúdo de Bardin, sem categorias à priori, usando como recurso o programa NVivo 10 e por dois codificadores (investigadores do projeto) independentes.
O presente estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para Investigação em Ciências da Vida e da Saúde da Universidade do Minho (CE.CVS 133/2018).
Aos participantes da sessão foi pedido que assinassem um consentimento informado, onde estava explicado o estudo e solicitando a sua autorização para a gravação de áudio da sessão. Foram assegurados o anonimato e a confidencialidade dos dados. Após as sessões, os dados foram armazenados e utilizados somente pelos membros da equipa de investigação.
Resultados
Da análise das narrativas, as quais evidenciam interesse e sensibilidade para a temática proposta, emergiram duas categorias, “determinantes da alimentação”, com quatro subcategorias identificadas, sendo, a exposição aos alimentos, a acessibilidade fácil, onde se come (e as atividades associadas) e a transição familiar, e “determinantes do movimento (atividade física, comportamento sedentário e sono)”, tendo duas subcategorias: tempo de ecrã e a sincronia dos tempos da família.
Determinantes da alimentação
A categoria “determinantes da alimentação” inclui as condições (complexas e modificáveis) que podem influenciar a ingestão alimentar de forma interativa.
Os participantes identificaram a obesidade infantil como sendo “uma preocupação muito grande” (PA1). O ato de comer e a alimentação parecem constituir preocupações no seio familiar, principalmente quando a criança não pede para comer, ou não tem fome. Dos determinantes da alimentação, as vozes dos participantes identificaram a exposição aos alimentos, a acessibilidade fácil, onde se come (e as atividades associadas) e a transição familiar como relevantes para a alimentação.
A exposição a uma grande diversidade de alimentos parece contribuir para o seu consumo. Por um lado, a exposição a alimentos referidos como de qualidade, nomeadamente os legumes e produtos hortícolas, é destacada pelos participantes como reduzida, pelo que as crianças revelam resistência ao seu consumo. Na atualidade “os pais não lhes põem [às crianças] legumes” (PB2). Por outro lado, a exposição a alimentos nutricionalmente menos saudáveis, parece ser elevada. “Ainda outro dia vi uma mãe a dar um panique de chocolate” (PA1) ou “já vi [crianças pequenas a comerem] batatas fritas” (PA2) ou “sumo” (PA3). A acessibilidade “fácil” é entendida como promotora de escolhas pouco saudáveis a “oferta do fast-food, não necessariamente do McDonald´s e do BurgerKing, mas é da “coisa fácil”, frutinha de chupar”. Muitas famílias parecem fazer deste tipo de refeição um hábito, porque “é rápido, é só comer e elas [as crianças] gostam, então comem”.
O local onde se come (e a atividade presente além do ato de ingerir alimentos) é evidenciado como determinante da alimentação. O consumo de alimentos em frente a um ecrã é destacado como um inibidor do reconhecimento dos sinais de saciação. “Sim, esta coisa dos ecrãs, a obesidade vem por aí, porque eles depois nem tomam consciência que estão a comer e depois a saciedade não aparece”, tornando-se “um ato irrefletido, depois continua para vida toda, comem enquanto há comida e está à frente” (PA1).
A transição familiar para uma nova etapa, como por exemplo o nascimento de um filho, poderá constituir “um momento ótimo para eles [pais e família] mudarem a sua alimentação, quanto ao sal, quanto ao tipo de alimentos que consomem, e, portanto, acho que, nem que seja pela criança, acho que é um momento ótimo de mudança na alimentação da família” (PA1). Contudo, foi referido ser necessário que “eles [pais] consigam transferir efetivamente o conhecimento que têm sobre alimentação saudável . . . para o seu dia-a-dia”.
Determinantes do movimento
A categoria “determinantes do movimento” é definida pelas condições (complexas e modificáveis) que podem influenciar o movimento (atividade física, comportamento sedentário e sono) de forma interativa.
O sono, o comportamento sedentário e a atividade física são determinantes dos estilos de vida e contribuem para potenciar a saúde e bem-estar da criança. Na atualidade, as crianças parecem não dormir o número de horas adequado, como é referido por PA1 “tenho-me apercebido que os miúdos chegam à escola cansados (...) miúdos que se deitam muito tarde, pergunto o que estavam a fazer, estavam a ver televisão”.
O tempo de ecrã foi referido como inibidor do período de sono e de atividade física. As crianças vivem “agarradas aos telemóveis desde que chegam a casa até se deitarem. Alguns até levam telemóveis pró quarto, prá cama” (PA1). Também a televisão no quarto parece ser prevalente no seio das famílias da região “ainda existem famílias em que há uma televisão em cada quarto e que a televisão faz parte da família” (PB4). Um outro participante revela que “o recurso aos ecrãs é tentador, talvez pela diversidade e rapidez com que se adquire imagens diferentes, porque muda, muda, não conseguem nem veem nada até ao fim” (PA1). As crianças mesmo quando envolvidas em atividades, acabam por preferir recorrer ao tablet ou telemóvel. Por exemplo, “estão no parque, até vão andar um bocadinho no escorrega mas depois acabam por se sentar e estão ali com o tablet, com o iPhone, o que for, ali, no parque” (PB1).
A sincronia dos tempos da família é identificada como um determinante do movimento da criança. Os pais parecem incentivar o uso de ecrãs, talvez por ser confortável que as crianças se mantenham quietas, como é destacada na seguinte fala “eles [as crianças] estão sentados, os adultos estão a conversar e eles estão a olhar para o iPad. Porque assim não chateiam, porque assim não correm, não fazem birras, porque não questionam, torna tudo muito mais fácil” (PB3). Em consonância, responder às atividades do quotidiano (ex. vestir ou despir) inclui o uso de dispositivos móveis. Por exemplo, PA1 refere: “então toma lá o tablet enquanto eu visto, vê aqui a televisão enquanto a mãe veste as calcinhas, as cuequinhas, aperta as sapatilhas”. Um dos participantes referiu ainda que o ecrã é considerado um babysitter digital “o miúdo sai da escola e quer o telemóvel: hoje em dia, o telemóvel ou o tablet é um babysitting digital” (PB5), sendo necessário criar alternativas à tecnologia, responsabilidade que “cabe aos pais, não aos miúdos” (PB5). Esta exposição a ecrãs também predispõe a outro tipo de complicações como refere o PB6 “estão muito mais fechados, portanto em termos de luz natural o olho não é trabalhado, então vai haver mais incidência de miopia”. A hora de deitar é influenciada pelo sincronismo dos tempos profissionais e familiares, “muitas das vezes os pais, até por questões laborais, têm muito pouco tempo para estar com os filhos, deixam muitas das vezes, esticam muitas das vezes a hora para os deitar” (PB2). Contudo as implicações são diversas, “no dia a seguir é um ciclo vicioso, não é? Dormiram poucas horas, estão irritados, vão para a escola, choram porque vão para a escola” (PB2). As próprias sestas são deliberadamente inibidas, pois:
os pais muitas vezes não querem que eles durmam, porque depois chegam a casa e deparam-se com aquela rotina que não é a mesma, e eles depois não querem, querem que eles cheguem a casa, tomem banho, comam e deitam-se. (PB1)
Também o facto de a criança fazer sestas na creche, mas não em casa (especialmente ao fim de semana) foi realçado por PA3: “A criança que dorme perfeitamente sozinha duas horas, dorme no mínimo duas horas, vai muitas vezes às duas horas e meia de sono e em casa não dorme”, tendo PB1 reforçado:
as crianças dormem pouco e nota-se principalmente quando regressam do fim-de-semana . . . não dormem e chegam à segunda-feira, muitos até referem que elas [as crianças] não têm necessidade de dormir, quando nós sabemos que eles têm muita necessidade de dormir. (PB1)
Discussão
A presente investigação identificou duas categorias consideradas como prioritárias no âmbito da promoção da saúde, os determinantes da alimentação e os determinantes do movimento. Dos determinantes da alimentação, quatro subcategorias foram identificadas, como a exposição aos alimentos, a acessibilidade fácil, onde se come (e as atividades associadas) e a transição familiar. Os determinantes do movimento da criança incluem o tempo de ecrã e a sincronia dos tempos da família.
A exposição aos alimentos foi identificada neste estudo como um determinante da alimentação. Também estudos anteriores destacaram que a exposição e a administração de pequenas quantidades de vegetais, mesmo aqueles que as crianças inicialmente rejeitam, tem um impacto positivo no gosto e aceitação destes alimentos a longo prazo (Brines et al., 2022; Georgiadis & Penny, 2017). Além da exposição, a acessibilidade “fácil” de consumo, parece ser relevante para aumentar a ingestão de alimentos como a fruta e produtos hortícolas.
Relativamente à transição familiar, com o nascimento de um filho, apesar de ter sido apontado pelos intervenientes como um momento privilegiado para a adoção de estilos de vida saudáveis, um estudo anterior destacou a presença de um filho como sendo inibidor de um estilo de vida ativo (Carson et al., 2018).
Os pais e os educadores revelam conhecimento limitado sobre o impacto da alimentação na saúde e desenvolvimento das crianças (Brereton et al., 2018), pelo que poderá ser promissor incluir estes protagonistas na promoção de estilos de vida saudáveis (Aranceta-Bartrina & Pérez-Rodrigo, 2016). As consequências de hábitos alimentares pouco saudáveis são variadas (Brereton et al., 2018), podendo conduzir ao desenvolvimento de doenças como a obesidade, hipertensão ou patologia cardiovascular (Aranceta-Bartrina & Pérez-Rodrigo, 2016).
Quanto ao sono, os participantes consideraram que as crianças não dormem o número de horas suficiente, relacionado, em grande parte, com o uso excessivo de ecrãs. Também estudos anteriores associam o tempo reduzido de sono em crianças com o uso excessivo/indevido de televisão e outros tipos de ecrãs (WHO, 2019). Este número insuficiente de horas de sono poderá ter consequências como o aumento do risco de excesso de peso e obesidade e de uma regulação emocional e crescimento prejudicados (WHO, 2019). A prática de atividade física foi igualmente referida pelos participantes como sendo, de um modo geral, escassa entre as crianças. A prática de exercício físico ao ar livre é muitas vezes evitada por parte dos pais e a opção por atividades mais sedentárias como pintar, desenhar é, segundo os participantes, preferida comparativamente com a prática de exercícios ao ar livre. Revela-se fundamental para a saúde e desenvolvimento das crianças a atividade física de intensidade mais moderada a vigorosa, limitando o tempo de exposição a ecrãs e proporcionando tempo de sono suficiente (WHO, 2019).
Os determinantes do movimento parecem incluir os tempos de vida da família, onde se inclui a vida profissional e familiar. Os pais têm sido descritos como um “alvo” relevante em intervenções de promoção da saúde em crianças, devido à sua influência no suporte e gestão dos estilos de vida, como a alimentação e o movimento (Brereton et al., 2018).
O presente estudo apresenta limitações. Destacamos a realização de somente duas sessões de grupos focais. Contudo, consideramos que o número de sessões permitiu conhecer as áreas prioritárias identificadas pelos participantes em relação à promoção da saúde, atendendo aos determinantes da alimentação e movimento. Apesar de constituir uma estratégia mais arriscada, a realização de dois grupos focais, como refere Morgan (1997), é considerada adequada principalmente quando as circunstâncias em que se realiza o estudo o exigem, como o facto de ser impraticável realizar mais sessões no horizonte temporal previsto para o efeito. Em segundo lugar, evidenciamos a heterogeneidade dos participantes, permitindo explorar as perspetivas individuais de forma aprofundada. Em contraponto, a investigação apresenta forças que merecem ser destacadas. A experiência dos investigadores no desenvolvimento e implementação de grupos focais é considerada uma força. A existência de dois mediadores em cada sessão, permitiu atender à palavra, à linguagem não verbal e à dinâmica do grupo. Finalmente, destacamos a análise dos dados conduzida com recurso ao software NVivo 10 e a codificação feita por dois codificadores independentes.
Os programas tradicionais de promoção da saúde centram-se em intervenções únicas e nas doenças instaladas, em vez de impulsionar a promoção da saúde (ex. literacia em saúde, estilos de vida saudáveis) e no envolvimento democrático da criança e outros stakeholders no desenvolvimento de programas de intervenção. Em Portugal, e de acordo com o nosso melhor entendimento, não existem programas de intervenção dirigidos a crianças com menos de 3 anos de idade. Este estudo cria as bases para o desenvolvimento de programas de promoção da saúde futuros.
Conclusão
O objetivo traçado neste estudo foi concretizado. Os determinantes da alimentação e do movimento da criança são destacados para a definição de programas de promoção de estilos de vida saudáveis. Há uma evidente necessidade de envolvimento e empowerment de pais, cuidadores e profissionais nas estratégias de promoção de estilos de vida saudáveis em crianças. A exposição aos alimentos, a sua acessibilidade (fácil), como se come e as transições familiares, são potenciadores (ou inibidores) do consumo de alimentos nutricionalmente saudáveis. O tempo de ecrã e a sincronia dos tempos da família são destacados como áreas a atender na promoção do movimento em crianças.
As implicações deste estudo para a investigação são relevantes. Consideramos que estudos posteriores, de âmbito quantitativo, com abordagens integradas dirigida a pais devem ser considerados de modo a contribuir para desfechos em saúde da criança positivos. Consideramos que o desenvolvimento de estudos experimentais, com a implementação de programas de intervenção onde se promovam estilos de vida saudáveis, atendendo aos determinantes da alimentação e do movimento, codesenvolvidas com os stakeholders, pode ser útil para potenciar a saúde das crianças. Os estudos experimentais, ainda praticamente inexistentes no contexto nacional e implementados antes dos 3 anos de idade, podem reforçar a evidência neste domínio e responder a (novas) questões que ainda permanecem por esclarecer.
A investigação que se apresenta é uma oportunidade para se refletir sobre a teoria/prática particularmente na área da saúde e da educação. Nesta perspetiva, a formação dos (futuros) profissionais de saúde e educação deve enfatizar a relevância dos determinantes da alimentação e do movimento. Estes profissionais, nos diversos contextos da sua atuação, mas particularmente nas creches e cuidados de saúde primários privilegia de uma proximidade com as crianças e famílias e podem aproveitar todas as oportunidades para promover estilos de vida mais saudáveis.