Introdução
O envelhecimento populacional acarreta o aparecimento de doenças crónicas e incapacitantes, nomeadamente a perturbação neurocognitiva (PNC). No mundo, existem cerca de 50 milhões de pessoas com PNC, sendo que a este número somam-se mais 10 milhões de novos diagnósticos a cada ano. De acordo com a World Health Organization (2018) cerca de 60 a 70% dos casos são diagnósticos de doença de Alzheimer. Segundo o relatório Dementia in Europe Yearbook 2019 em Portugal existem cerca de 194 mil pessoas com PNC, sendo já considerada a quarta causa de morte. Os custos associados ao aumento exponencial de casos da PNC em todo o mundo rondam os 700 mil milhões de euros com tratamentos médicos, apoio social e ajuda informal pela perda de rendimento e produtividade por parte dos cuidadores informais. Os objetivos deste estudo foram identificar as variáveis que influenciam o impacto da PNC na família e caracterizar os cuidadores de pessoas com PNC.
Enquadramento
Apesar de existir em Portugal uma política descentralizadora dos cuidados hospitalares, o acesso aos serviços sociais e de saúde ainda é um processo complexo, demorado e tardio. Devido ao aumento do índice de envelhecimento cerca de 55,3% das pessoas apresentam um agravamento no índice de dependência total (PORDATA, 2021). A idade associada ao nível de dependência obriga a necessidades específicas que são asseguradas pelos familiares cuidadores (Melo et al., 2021). Assim sendo, é urgente a definição de novas políticas de saúde e de servicos sociais com soluções acessíveis a todos os cidadãos.
Estima-se que o número de cuidadores informais ronde os 1,4 milhões de pessoas em Portugal que carecem de apoios a nível económico, social e emocional (Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, 2021). Em 2019 foi reconhecida a necessidade do Estatuto do Cuidador Informal que aborda não só a necessidade dos pacientes como dos cuidadores (Instituto da Segurança Social, 2021). Os cuidadores familiares são essenciais para os sistemas de saúde, uma vez que acompanham a pessoa doente ao longo do processo de cuidar. No entanto, decorrente da prestação dos cuidados diários, os cuidadores experienciam repercussões negativas, como a presença de sintomatologia depressiva, ansiedade e stress. O cuidado à pessoa com PNC é complexo, pois as famílias experienciam o isolamento social e sentimentos ambíguos levando ao comprometimento dos sistemas emocionais. O apoio psicoemocional e a aquisição de estratégias de coping mais adequadas são necessidades experienciadas pelos cuidadores para a resolução mais eficaz dos problemas (Melo et al., 2021).
As alterações na estrutura e na dinâmica familiar implicam que as famílias estejam limitadas para assegurar os cuidados de saúde adequados à pessoa dependente, refletindo-se no aumento da procura de apoio institucional. Os familiares verbalizam mudanças a diferentes níveis como alterações nas condições da casa onde habitam, a rotina diária, a vida pessoal e laboral. A forma como compreendem e lidam com a evolução da doença através da utilização de estratégias adaptadas a cada situação podem minimizar o impacto negativo decorrente do cuidar.
Perante os desafios da readaptação familiar que o aparecimento de uma PNC provoca, considera-se que os enfermeiros necessitam de aprofundar o conhecimento sobre os impactes/consequências na família, de forma a contribuírem para o desenvolvimento de uma prática baseada na evidência. O objetivo deste estudo foi identificar as variáveis que influenciam o impacto da PNC na família.
Questão de Investigação
Quais as variáveis que influenciam o impacto da PNC na família?
Quais as características sociodemográficas e clínicas dos cuidadores da pessoa com PNC?
Metodologia
A recolha de dados foi realizada entre os meses de março de 2019 a setembro de 2020 com a aplicação de questionários aos diferentes membros do agregado familiar e com apoio no preenchimento do profissional de saúde de referência e/ou investigador. Foram incluídas famílias que tinham a seu cargo uma pessoa com diagnóstico médico da PNC e residente no domicílio. Foram excluídas as famílias cujas pessoas portadoras da PNC residissem em estruturas residenciais ou lares para pessoas idosas. Nos diferentes centros de dia envolvidos o profissional de saúde de referência identificou as família que cumpriam os critérios de inclusão e que voluntariamente aceitaram participar no estudo. Considerou-se a autonomia e direito de recusa dos participantes, através da concretização do consentimento informado, livre e esclarecido onde constavam as seguintes informações: natureza do estudo, duração, metodologia, finalidade, e riscos associados, tendo sido validado pelo cuidador principal e investigadora. Foi esclarecido o direito de recusar a participar a qualquer momento, mediante o contacto telefónico ou por email para a investigadora. A amostra deste estudo foi não probabilística por conveniência constituída por 262 familiares de pessoas que coabitam diariamente com a pessoa com PNC. Foram solicitadas e concedidas as respetivas autorizações para a utilização dos instrumentos de avaliação utilizados neste estudo. Foram aplicados os seguintes instrumentos de avaliação: a) Pessoas com PNC - Questionário de dados sócio demográficos e clínicos; Mini-Exame do Estado Mental (MMSE) traduzido e adaptado para a população Portuguesa por Guerreiro e seus colaboradores (1994) utilizado para rastrear o funcionamento cognitivo; Escala de Lawton e Brody permite avaliar o nível de independência no que se refere às atividades instrumentais de vida diária (Araújo et al., 2008) e a Escala de Barthel pretende avaliar o nível de independência para a realização de dez atividades básicas de vida diária (Araújo et al., 2007); b) Familiares - Questionário de dados sócio demográficos e clínicos; Escala de APGAR familiar (versão Portuguesa de Agostinho & Rebelo, 1988); Escala de Satisfação do Suporte Social (ESSS) desenvolvido por Ribeiro (1999) com o intuito de avaliar a perceção do apoio social, com base em quatro domínios: satisfação com os amigos/amizades, Intimidade, satisfação com a família e atividades sociais e o Questionário de Avaliação Familiar do Impacto da PNC (QAFIT) desenvolvida por Silva e Sá (2020) com o objetivo de avaliar o impacto da PNC na família e ao c) Cuidador principal - Questionário de dados sócio demográficos e clínicos, Escala de Apgar familiar, ESSS, Escala de sobrecarga do cuidador de Zarit, versão adaptada e validada por Sequeira (2007) para avaliar a sobrecarga objetiva e subjetiva do cuidador informal e o QAFIT.
Foi garantida a confidencialidade e anonimato dos dados, com a respetiva codificação através de números sequenciais de todos os dados obtidos. Para o tratamento dos dados recolhidos neste estudo, recorreu-se à estatística descritiva e inferencial através do IBM SPSS software, versão 25.0. O estudo recebeu o parecer favorável da Comissão de ética de uma Instituição Hospitalar da área da Psiquiatria da região Norte (Parecer nº 08 CEASS).
Para o estudo das associações entre as diferentes variáveis, recorreu-se aos coeficientes correlação de Pearson e de Spearman (testes paramétricos e não paramétricos respetivamente) obedecendo à verificação dos pressupostos descritos. O nível de significância adotado foi p ≤ 0.05 (IC 95%).
Resultados
Verifica-se que 53,3% das pessoas com PNC são do género feminino, com idades compreendidas entre os 43 e os 95 anos (M = 75,4; DP = 10,21), 48,6% são casados (as), 47,6% com habilitações literárias ao nível do ensino básico e a maioria está já reformada (90,5%). No que se refere ao nível de dependência avaliado pelas Escalas de Barthel e de Lawton-Brody verificou-se que a maior parte das pessoas com PNC apresenta um nível de dependência grave/severa. No que respeita ao MMSE, verificou-se que a pontuação média obtida corresponde a 20,46 (DP = 4,78), significando prejuízo cognitivo em diversas áreas de funcionamento, sendo que 36,4% apresenta pontuações inferiores ou iguais a 15 pontos. Relativamente aos cuidadores da pessoa com PNC, a maioria são do género feminino (74%), casados (as) (76%), com escolaridade ao nível do ensino secundário (30,8%), reformados (as) (39,4%) e com idades compreendidas entre os 35 e os 89 anos (M = 60,52; DP = 13,76). As perturbações mentais, comportamentais ou do desenvolvimento neurológico, as doenças do sistema circulatório e as doenças do sistema músculo-esquelético ou tecido conjuntivo são as comorbilidades mais prevalentes. Quanto aos restantes familiares que coabitam com a pessoa com PNC, a maioria são do género feminino (62,7%), casados (as) (55,1%), com escolaridade ao nível do ensino superior (33,5%), trabalhadores por conta de outrem (73,2%) e com idades compreendidas entre os 18 e os 84 anos (M = 49,94; DP = 13,72). No que se refere à presença de comorbilidades relacionadas com a saúde, as perturbações mentais, comportamentais ou do desenvolvimento neurológico e as doenças do sistema circulatório são as doenças mais prevalentes neste grupo. Relativamente ao grau de funcionalidade da família, avaliado através do Apgar Familiar, verifica-se que 57,6% das famílias se considera altamente funcional e 42,4% com moderada disfunção.
De acordo com os resultados, é possível verificar que existem diferenças no QAFIT global entre os cuidadores do género feminino (M = 1,76; DP = 0,35) e os cuidadores do género masculino [M = 1,43; DP = 0,41; t(100) = 3,95; p < 0,001], sendo maior o impacto global nos cuidadores do género feminino. Na dimensão das relações familiares entre os cuidadores do género feminino (M = 1,54; DP = 0,69) e os participantes do género masculino (M = 1,20; DP = 0,62; t(100) = 2,19; p = 0,031), na dimensão emocional [género feminino M = 1,78; DP = 0,50 e género masculino M = 1,49; DP = 0,68; t(100) = 2,27; p = 0,026] e na dimensão da procura de suporte [género feminino M = 1,97; DP = 0,61 e género masculino M = 1,53; DP = 0,83; t(100) = 2,47; p = 0,019]. No que concerne à perceção de suporte social, existem diferenças entre os participantes do género feminino (M = 43,40; DP = 9,62) e os participantes do género masculino [M = 47,64; DP = 8,12; t(100) = -1,99; p = 0,049], sendo a perceção de suporte social superior nos cuidadores do género masculino. No que diz respeito ao Apgar familiar, existem diferenças estatisticamente significativas em função do género do familiar, ou seja, neste caso são os familiares do género feminino (M = 7,64; DP = 1,92) que apresentam pontuações mais elevadas no Apgar familiar comparativamente aos familiares do género masculino [M = 6,12; DP = 2,10; t(59) = 3,99; p = 0,001].
Verificou-se que existem diferenças estatisticamente significativas na dimensão da procura de suporte em função da escolaridade do cuidador, ou seja, a procura de suporte é superior quanto mais elevado for o grau de escolaridade. Comparam-se os níveis de ensino tendo em conta o número de participantes por cada nível de ensino (ensino secundário, especialização tecnológica e ensino superior) no que respeita às dimensões do impacto da prestação de cuidados, à perceção de suporte social e no funcionamento dos membros da família. Existem diferenças na dimensão económica no impacto da prestação de cuidados em função da escolaridade do familiar. Em particular, as diferenças encontram-se entre os familiares com escolaridade ao nível do ensino secundário e os familiares com ensino superior, sendo maior a perceção de impacto nesta dimensão nos familiares com estudos ao nível do ensino secundário. O mesmo se verifica no que se refere à perceção de suporte social.
Relativamente ao Apgar familiar, observam-se diferenças estatisticamente significativas entre os cuidadores ativos profissionalmente (M = 5,11; DP = 1,50) e os cuidadores reformados [M = 6,32; DP = 2,75; t(57) = -2,08; p = 0,038], sendo a perceção do funcionamento familiar superior nos cuidadores reformados.
Relativamente ao estado civil, foi possível verificar que apenas existem diferenças nas dimensões do impacto na procura de suporte entre os familiares solteiros (as) (M =1,90; DP = 0,69) e os familiares casados (as) [M = 1,53; DP = 0,69; t(129) = 2,87; p = 0,005], sendo o impacto da procura de suporte superior nos familiares solteiros(as).
Verifica-se que existem diferenças estatisticamente significativas no impacto da prestação de cuidados em função do grau de parentesco com a pessoa com PNC na dimensão das relações familiares. Em particular, as diferenças encontradas são entre o grupo dos/as filhos/as e o grupo dos participantes sem grau de parentesco, bem como entre este e o grupo da esposa/marido. Ainda, existem diferenças entre o grupo dos que não têm grau de parentesco e o grupo da nora/genro. Destaca-se que o maior impacto observado nesta dimensão da procura de suporte encontra-se no grupo dos participantes sem grau de parentesco.
Relativamente ao grau de dependência da pessoa cuidada existem diferenças na dimensão da procura de suporte, é maior o impacto nos cuidadores que cuidam de pessoas severamente dependentes (M = 2,03; DP = 0,60) comparativamente aos moderadamente dependentes [M = 1,69; DP = 0,78; t(75) = -2,15; p = 0,035)]. No cuidador existem diferenças nas dimensões QAFIT global e emocional em função do grau de dependência. As diferenças observadas no grupo dos cuidadores são entre os cuidadores de pessoas com total ou severamente dependentes e os cuidadores de pessoas ligeiramente dependentes.
Nos familiares existem diferenças nas dimensões do QAFIT em função do grau de dependência, em particular as diferenças no QAFIT total são entre os familiares de uma pessoa com PNC com total ou severa dependência, em que o impacto é superior comparativamente à pessoa cuidada com ligeira dependência. Na dimensão das relações familiares, as diferenças encontram-se entre o grau de dependência total ou severo e a ligeira dependência, sendo maior o impacto no familiar quando a pessoa apresenta dependência severa e na dimensão emocional o impacto da prestação de cuidados é superior quando a pessoa se encontra moderadamente dependente.
De acordo com os resultados da Tabela 1, existe associação positiva, moderada e estatisticamente significativa entre o impacto emocional percecionado pelo cuidador (avaliado pelo QAFIT) e a sua perceção de sobrecarga (r = 0,526; n = 102; p < 0,01), sugerindo que quanto maior o impacto emocional, maior será a sobrecarga. O mesmo se verifica nas dimensões económica e procura de suporte do QAFIT, ou seja, quanto maior o impacto económico percecionado pelo cuidador, maior a sua perceção de sobrecarga (r = 0,292; n = 102; p < 0,01), maior a necessidade de procura de suporte (r = 0,279; n = 102; p < 0,01). Encontrou-se associação positiva e estatisticamente significativa entre a sobrecarga e o QAFIT global, sugerindo que quanto maior o impacto da prestação de cuidados, maior a perceção de sobrecarga (r = 0,375; n = 102; p < 0,01). Relativamente ao Apgar Familiar, existe uma associação positiva, fraca e estatisticamente significativa com a procura de suporte, sugerindo que quanto maior o grau de funcionalidade da família, maior a necessidade de procura de suporte (r = 0,398; n = 102; p < 0,01). Todas as dimensões do QAFIT associam-se de forma moderada, positiva e estatisticamente significativa com o total do instrumento, sendo a correlação mais elevada entre a dimensão das relações familiares e o score global do QAFIT (r = 0,650; n = 102; p < 0,01).
Variáveis | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
QAFIT global | - | |||||||
Relações familiares | 0,650** | - | ||||||
Emocional | 0,623** | 0,052 | - | |||||
Económica | 0,446** | 0,073 | 0,007 | - | ||||
Procura de Suporte | 0,604** | 0,206* | 0,380** | 0,038 | - | |||
Suporte social | -0,173 | -0,127 | -0,103 | -0,148 | 0,007 | - | ||
Sobrecarga | 0,375** | -0,118 | 0,526** | 0,292** | 0,279** | -0,162 | - | |
Apgar familiar | 0,125 | -0,025 | 0,088 | -0,053 | 0,398** | 0,219 | -0,235 | - |
QAFIT global | Rel. Familiares | Emocional | Económica | Procura Sup. | Sup. social | Sobrecarga | Apgar familiar |
Nota. *p < 0,05; **p < 0,01.
Segundo os resultados da Tabela 2 existe associação positiva, fraca e estatisticamente significativa entre o impacto das relações familiares percecionado pelo familiar (avaliado pelo QAFIT) e a sua perceção de suporte social (r = 0,215; n = 104; p < 0,01), sugerindo que quanto maior o impacto das relações familiares, maior será a perceção de suporte social. O mesmo se verifica nas dimensões emocional e procura de suporte do QAFIT, ou seja, quanto maior o impacto emocional percecionado pelo familiar, maior a sua necessidade de procura de suporte (r = 0,220; n = 104; p < 0,01), bem como a maior necessidade de procura de suporte se associa a um maior impacto na dimensão económica (r = 0,315; n = 104; p < 0,01). Relativamente ao Apgar Familiar existe uma associação negativa, fraca e estatisticamente significativa com a dimensão do impacto emocional, sugerindo que quanto menor o grau de funcionalidade da família, maior será o impacto emocional (r = -0,10; n = 104; p < 0,05) e a procura de suporte (r = 0,184; n = 104; p < 0,05). Todas as dimensões do QAFIT se associam de forma moderada a forte, positiva e estatisticamente significativa com o total do instrumento, sendo a correlação mais elevada entre a dimensão emocional e o score global do QAFIT (r = 0,704; n = 104; p < 0,01). Existe uma associação positiva e estatisticamente significativa entre o Apgar familiar e o suporte social (r = 0,202; n = 104; p < 0,05) sugerindo que quanto melhor o funcionamento familiar melhor a perceção de suporte social.
Variáveis | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
QAFIT global | - | ||||||
Relações familiares | 0,570** | - | |||||
Emocional | 0,774** | 0,209* | - | ||||
Económica | 0,612** | 0,043 | 0,235** | - | |||
Procura de Suporte | 0,511** | -0,001 | 0,22** | 0,315** | - | ||
Suporte social | 0,070 | 0,215** | -0,035 | -0,032 | -0,018 | - | |
Apgar familiar | 0,11 | 0,268** | -0,10* | -0,089 | 0,184* | 0,202* | - |
QAFIT global | Rel. Familiares | Emocional | Económica | Procura Sup. | Sup. social | Apgar familiar |
Nota. *p < 0,05; **p < 0,01.
Para analisar as associações existentes entre as dimensões do QAFIT e o nível de dependência recorreu-se ao coeficiente de correlação de Spearman. De acordo com os resultados da Tabela 3, existe associação positiva, fraca e estatisticamente significativa entre o valor global do QAFIT e o nível de dependência (r = 0,23; n = 104; p < 0,05), sugerindo que quanto maior for o nível de dependência, maior será o impacto da prestação de cuidados no cuidador da pessoa com PNC. O mesmo se verifica relativamente ao familiar, ou seja, também existe uma associação positiva, fraca e estatisticamente significativa entre o valor global do QAFIT e o nível de dependência (r = 0,23; n = 104; p < 0,05), sugerindo que quanto maior for o nível de dependência, maior será o impacto da prestação de cuidados no familiar da pessoa com PNC. Nos familiares existe uma associação positiva, fraca a moderada e estatisticamente significativa entre a dimensão das relações familiares e o nível de dependência (r = 0,39; n = 104; p < 0,01) sugerindo que quanto maior o grau de disfuncionalidade da pessoa com PNC, maior será o impacto na dimensão das relações familiares dos familiares da pessoa com PNC.
Variáveis | Índice Barthel | Índice Lawton-Brody | MMSE |
---|---|---|---|
Cuidador | |||
QAFIT global | -0,06 | 0,23* | 0,07 |
Relações familiares | -0,16 | 0,17 | -0,05 |
Emocional | 0,17 | 0,76 | -0,007 |
Económica | -0,04 | 0,05 | 0,006 |
Procura de Suporte | 0,04 | 0,18 | -0,07 |
Índice Barthel | Índice Lawton-Brody | MMSE | |
Familiar | |||
QAFIT Global | 0,23* | 0,18 | -0,18 |
Relações familiares | 0,39** | 0,15 | 0,12 |
Emocional | 0,12 | 0,11 | -0,05 |
Económica | -0,02 | -0,02 | -0,15 |
Procura de Suporte | 0,01 | 0,21 | -0,06 |
Índice Barthel | Índice Lawton-Brody | MMSE |
Nota. *p < 0,05; **p < 0,01.
Discussão
Verificou-se que as pessoas com PNC apresentam uma média de idades de 75 anos, predominantemente são do género feminino (53,3%), casadas(os) (48,6%) e 47,6% com habilitações literárias ao nível do ensino básico e maioritariamente reformados (90,5%). Verifica-se que a maior parte das pessoas com PNC apresenta um nível de dependência grave/severa e prejuízo cognitivo em diversas áreas de funcionamento com uma pontuação média obtida de 20,461 no instrumento de rastreio do funcionamento cognitivo MMSE.
Relativamente aos cuidadores da pessoa com PNC, a maioria é do género feminino (74,0%), casados(as) (76,0%), com escolaridade ao nível do ensino secundário (30,8%), reformados(as) (39,4%) e com uma média de idades de idades 60 anos. No que se refere à presença de comorbilidades, as perturbações mentais, comportamentais ou do desenvolvimento neurológico, as doenças do sistema circulatório e as doenças do sistema músculo-esquelético ou tecido conjuntivo são as mais prevalentes. O perfil de cuidadores vai ao encontro do estudo publicado por Carvalho e seus colaboradores (2019) constituindo um dos fatores facilitadores para assumirem o papel de cuidadores. Os familiares que coabitam com a pessoa com PNC são do género feminino (62,7%), casados(as) (55,1%), com escolaridade ao nível do ensino superior (33,5%), trabalhadores por conta de outrem (73,2%) e com uma média de idades de idades 49,94 anos. No que se refere à presença de comorbilidades relacionadas com a saúde, as perturbações mentais, comportamentais ou do desenvolvimento neurológico e as doenças do sistema circulatório são as doenças mais prevalentes neste grupo.
Segundo o inquérito desenvolvido pelo Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais (2021) verifica-se a falta de apoios a nível económico, social e emocional. A maioria dos inquiridos, 85,5% mostram a necessidade de mais apoios financeiros, 71% quer mais apoio ao nível da prestação de cuidados, 68,5% pede apoio laboral, 64% apoio psicológico e 49% apoio legal. A dependência continuada de uma pessoa com PNC pode desencadear situações de stresse e desequilíbrio pessoal, familiar e a nível social experienciada de diferentes modos pelos cuidadores e restantes membros da família. É sobre o cuidador principal que incidem os cuidados diários, acompanhamento a consultas, tratamentos, mas também a gestão financeira, patrimonial, informação e das relações familiares. Do ponto de vista emocional, não é fácil para o cuidador delegar as funções que assumiu ao longo do processo de doença. É frequente encontrar-se cuidadores que não expõe os seus sentimentos, pensamentos, angústias e necessidades acabando por evitar o diálogo com a pessoa com PNC como forma de evitarem a realidade que estão a vivenciar assim como de pensarem no futuro. Segundo o estudo realizado por Mattos e Kovács (2020) verifica-se que a experiência em cuidar de um familiar permite valorizar os atos e gestos mais simples nas diferentes atividades do dia a dia. Os sentimentos de orgulho, procura do significado, maior proximidade na relação, promoção da autoestima funcionam como mediadores no processo de cuidar proporcionando a regulação sentimental e aceitação da situação. Neste estudo, o grau de funcionalidade da família, avaliado através do Apgar Familiar, permitiu identificar que 44,6% das famílias considera-se altamente funcional e 48,2% com moderada disfunção. Segundo os resultados obtidos verifica-se que quanto maior o grau de funcionalidade da família, maior é a necessidade de procura de suporte para os cuidadores. Contudo, para os restantes familiares verifica-se que quanto menor for o grau de funcionalidade da família, maior será o impacto emocional. A intervenção realizada junto dos cuidadores necessita de uma avaliação rigorosa das necessidades do doente e pessoais de cada membro da família. Neste sentido é importante dotar os cuidadores e os familiares de conhecimentos para compreender a evolução da doença e estratégias para lidar com os comportamentos desajustados com recurso às equipas multidisciplinares e aos recursos existentes na comunidade (Abreu, 2020).
Os recursos comunitários disponíveis são utilizados por um terço das famílias, mesmo quando o grau de dependência é elevado. Esta falta de procura proporciona maior isolamento das pessoas e maior sobrecarga física e emocional (Ordem dos Psicólogos Portugueses, 2020). O desconhecimento das respostas existentes é um fator apontado pelos cuidadores para a sua não utilização. Importa também refletir sobre a comunicação entre profissionais de saúde e as pessoas doentes e as suas famílias como aspeto fundamental, contudo, a comunicação intrafamiliar é um meio de suporte para a família que vivencia uma situação de doença. A comunicação intrafamiliar onde seja possível a partilha de objetivos, expectativas, a clarificação de pensamentos, emoções e sentimentos, a resolução de conflitos familiares é importante para a redução dos conflitos familiares. A nível social, a prestação de cuidados à pessoa com PNC proporciona o aumento dos conflitos familiares e diminuição do apoio e interação social (Ordem dos Psicólogos Portugueses, 2020). Os resultados evidenciam a importância da obtenção de suporte social ressaltando as estratégias de coping utilizadas como a resolução de problemas, seguida do suporte social. A estratégia menos utilizada relaciona-se com a aceitação da responsabilidade. Neste mesmo estudo, verificou-se que a estratégia menos utilizada foi a Procura de suporte espiritual. De acordo com o estudo realizado (Figueiredo et al., 2020) as estratégias mais utilizadas quando surge uma doença crónica são o reenquadramento, ou seja, a capacidade para redefinir os acontecimentos stressantes de forma a adotar uma visão mais positiva da situação e a reestruturar as suas funções e papéis; a avaliação passiva, ou seja a aceitação da família dos acontecimentos stressores e a obtenção de suporte social em que a capacidade de compromisso em obter o suporte de amigos, vizinhos ou família alargada. Segundo Carvalho et al. (2019) os cuidadores demonstram sentimentos de medo e incerteza perante a possibilidade de integração da pessoa com PNC numa instituição. É importante reforçar a aquisição de novas estratégias que capacitem o cuidador informal e que contribuam para a manutenção da pessoa doente na comunidade. Um nível adequado de literacia reflete-se nos resultados em saúde mais positivos, assim como a utilização mais adequada dos serviços/recursos de saúde existentes (Vaz, 2020), por conseguinte, níveis de literacia mais baixos estão associados a maior número de hospitalizações, fraca adesão ao regime terapêutico e até ao aumento da mortalidade (Vaz, 2020). Os recursos de informação, apoio social multidisciplinar e os conselhos facultados aos cuidadores a partir dos domicílios através do uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC) podem constituir um efeito positivo nos diferentes tipos de cuidadores. A existência de programas de apoio implementados com recurso às TIC tem resultados positivos a nível da acessibilidade, disponibilidade e custo-efetividade (Landeiro et al., 2017). O cuidado informal deve estar associado a dimensões gratificantes que permitam uma perceção mais positiva face à situação, assim como a aquisição de estratégias mais adaptativas e funcionais melhorando a relação com a pessoa cuidada.
Considera-se que este estudo deve ser aplicado a uma amostra maior de cuidadores e aos familiares que coabitam diariamente com a pessoa doente, de modo a compreender as consequências decorrentes do cuidar e para delinear as intervenções de enfermagem mais adequadas face às necessidades sentidas.
Conclusão
De acordo com os dados obtidos, foi possível compreender melhor a adaptação familiar face ao surgimento da PNC num dos elementos do agregado familiar.
O grau de funcionalidade da família, a dependência da pessoa cuidada, a escolaridade, género e o grau de parentesco parecem ter influência na adaptação das famílias. A procura de suporte social pelas pessoas com níveis de escolaridade mais elevados promove a melhoria do funcionamento da família e a diminuição das repercurssões a nível emocional. Contudo, quanto maior for a disfuncionalidade da pessoa com PNC, maior é o comprometimento das relações familiares. Os membros do agregado familiar adotam formas diferentes para lidar com as necessidades decorrentes do curso da doença. Para minimizar as repercurssões sentidas pelas famílias é fundamental definirem-se estratégias mais adequadas em conjunto com os profissionais de saúde. Desta forma contribuiu-se para a consciencialização da sociedade e dos decisores políticos para a importância que as famílias assumem na prestação de cuidados informais. É importante a realização de mais estudos que avaliem o perfil dos familiares cuidadores e que permitam caracterizar as repercurssões do processo de cuidar para os diferentes membros do agregado familiar.