Introdução
De acordo com o relatório mundial sobre drogas de 2019, cerca de 35 milhões de pessoas no mundo sofrem de transtornos por uso de drogas, e apenas uma em cada sete recebe tratamento (United Nations Office on Drugs and Crime, 2019).
Em Portugal, as substâncias lícitas (como tabaco e álcool) são as mais populares. Quanto às ilícitas, o estudo nacional (2016/2017) revela aumentos de consumo face aos dados de 2012, verificando-se que as prevalências de consumo de qualquer droga foram de 10% ao longo da vida, 5% nos últimos 12 meses e de 4% nos últimos 30 dias.
As substâncias ilícitas apresentam as maiores prevalências de consumo, com grande destaque da cannabis, tornando-a a droga ilícita mais consumida quer na população total quer na população jovem e jovem adulta (Balsa et al., 2018; Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências [SICAD], 2019). Assiste-se assim ao agravamento das prevalências de consumo recente, bem como ao uso mais intensivo destas substâncias. O consumo de substâncias psicoativas é um fenómeno global, cultural e historicamente determinado, de tal forma que as consequências deste consumo variam de acordo não só com o produto em si, mas igualmente com o contexto em que o consumo ocorre e com os sujeitos que o adotam. Consequentemente, os danos que derivam da utilização de substâncias psicoativas refletem as múltiplas combinações que estes fatores podem compor, diversificando os cenários em que decorre o uso de drogas, provocando consequências sociais e sanitárias de gravidade diversa (European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction [EMCDDA], 2017), que importa conhecer. Assim, este estudo tem como objetivos descrever o consumo de cannabis numa amostra de adultos portugueses, quantificar a distribuição dos utilizadores de cannabis pelos diferentes graus de risco e conhecer eventuais situações de policonsumo.
Enquadramento
Até à revolução de abril de 1974, a produção de álcool era uma fonte inegável de recursos. Os consumos de substâncias ilícitas tinham expressão na juventude, nomeadamente nos que combatiam na guerra colonial que decorria em África (Dias, 2007). Após a revolução, Portugal abre-se ao mundo, facilitando a circulação das substâncias psicotrópicas ilícitas, de tal forma que nos anos 80 o consumo de heroína suplanta o consumo de haxixe, que havia sido predominante na década anterior. Os conhecimentos e os recursos para lidar com esta situação eram escassos, de forma que o consumo de substâncias, particularmente de heroína, era nos anos 90 o expoente nas preocupações sociais dos portugueses (Cabral, 2017). Em 2001 (Lei nº 30/2000 da Assembleia da República [AR], 2000), a aquisição, posse e consumo de substâncias ilícitas foram descriminalizados. O consumo manteve-se como ato punível por lei, sem, todavia, ser alvo de processo crime, e adquiriu o estatuto de contraordenação social. Os utilizadores de substâncias ilícitas deixaram de ser considerados criminosos e passaram a ser abordados como indivíduos com uma problemática de saúde, merecedora de apoio especializado (Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência [OEDT], 2020). Após a descriminalização, a cannabis evidenciou maior incremento quanto ao uso ao longo da vida. O estabelecimento de uma relação causal entre este aumento e a descriminalização não é consensual na literatura (Hughes & Stevens, 2010). Em 2003 discutiu-se na Assembleia da República (Projecto de Lei n.º 116/IX da AR, 2003) a separação entre drogas duras e drogas leves. A expressão droga leve partia do pressuposto de que o grau de nocividade de determinadas drogas ilícitas, normalmente apelidadas de drogas leves (cannabis e derivados), não atingia níveis de perigosidade para o cidadão que as consome, nem qualquer consequência, fazendo todo o sentido que a decisão, de consumir ou não, passasse para a esfera individual inerente à liberdade de cada um. O seu contraponto, as drogas duras, eram predominantemente associadas à heroína e às consequências atribuídas ao seu uso. Tal classificação levou à noção que a cannabis e seus derivados é uma substância mais inócua para quem a consome. Esta noção de baixa perigosidade da substância, associada à flexibilidade no seu uso e experimentação, desvalorizava o real impacto do consumo de cannabis na vida dos seus utilizadores. Atualmente predominam as noções de consumo frequente e consumo ocasional, e sabe-se que estas formas de envolvimento com a substância terão um papel fundamental no surgimento de problemas relacionados com o uso da cannabis. Na verdade, o consumo frequente e de alto risco integra o indicador-chave do consumo problemático de drogas do OEDT (2022). Este padrão é definido como o consumo de drogas com uma frequência, pelo menos, quase diária durante, pelo menos, um mês nos últimos 12 meses, consumo que causa danos reais a quem consome ou que os coloca num elevado risco de sofrer danos (SICAD, 2017).
Relativamente às prevalências deste padrão de consumo (diário ou quase) em Portugal, em 2017, era de 2,6% da população geral, e 0,7% da população apresentava um consumo com risco moderado a elevado (SICAD, 2017). No entanto, estes valores duplicam se nos centrarmos nas faixas etárias mais jovens, que apresentam taxas de consumo moderado a elevado de 1,2%. Neves et al. (2019) destacaram a possibilidade de mensurar e avaliar o risco do uso de substâncias psicoativas através da aplicação do Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (ASSIST), pois revela scores norteadores para práticas interventivas.
Também Oliveira et al. (2021), utilizando o questionário ASSIST verificou que as substâncias mais utilizadas foram álcool, haxixe, tabaco, inalantes e cocaína/crack.
De acordo com o OEDT (2020), considera-se policonsumo de drogas o uso de mais de uma substância (lícita e/ou ilícita) ou de vários tipos de substâncias por um mesmo indivíduo em simultâneo ou de forma sequencial, termo que adotaremos neste artigo. Reconhece-se que o policonsumo é de mais fácil deteção nos contextos provedores de cuidados de saúde, e que poderá ser subavaliado quando se considera apenas a droga principal ou de eleição (EMCDDA, 2017). Recentemente, os resultados do Inquérito Online Europeu sobre Drogas - Padrões de Consumo Portugal 2021 (Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, 2022), no qual participaram 3188 consumidores de cannabis, revelaram que: 71% dos consumidores são do sexo masculino; 48% têm de 18-24 anos, 31% de 25-34 anos, 13% de 35-44 anos, 6% de 45-54 anos, 2% de 55-64 anos (n = 3175); e 36% com ensino superior completo (+18% a frequentar). Para além disso, verificou-se que 95% dos consumidores de cannabis legal são consumidores de cannabis ilegal. Apenas 38 consumiram exclusivamente cannabis legal (1%).
Questões de investigação
Quais são os modelos do consumo de cannabis? Qual é a distribuição dos utilizadores de cannabis pelos diferentes graus de risco? Quais são os padrões de eventuais associações entre consumos de substâncias?
Metodologia
Foi realizado um estudo metodológico, quantitativo, descritivo, correlacional, transversal, recorrendo a uma amostragem não probabilística. Foram critérios de inclusão ter mais de 18 anos, nacionalidade portuguesa, saber ler e escrever e ter acesso à internet. Para a recolha de dados foi administrado um questionário sociodemográfico constituído por vários itens e uma questão relativa à auto-perceção de existência ou não de problemas com o consumo (Humeniuk et al., 2008). Recorreu-se ainda à administração do ASSIST (World Health Organization [WHO], 2010), instrumento que permite determinar o risco de consumo para cada substância (tabaco, álcool, cannabis, cocaína, estimulantes, sedativos, alucinogénios, inalantes, opióides e outras drogas), de acordo com três categorias possíveis (baixo, moderado ou alto risco). A pontuação é obtida através do somatório dos valores registados para cada substância, que permitem determinar os níveis de risco. Quanto maior for o score obtido para cada substância, mais grave o nível de risco de consumo. A determinação do score de risco, em termos práticos ou clínicos, permite uma orientação da intervenção específica para cada caso (Humeniuk et al., 2008). Foram considerados os pontos de corte propostos pela Organização Mundial de Saúde para os consumos de substâncias (0 a 3 = baixo risco, 4 a 26 = consumo nocivo, e 27 ou mais = provável dependência), com exceção do álcool que apresenta pontos de corte distintos. Uma vez que o ASSIST é um instrumento de livre acesso não foi necessário solicitar autorização aos autores. O projeto foi submetido à Comissão de Ética da Universidade Fernando Pessoa e a recolha de dados realizada através da plataforma Google Docs entre fevereiro e abril de 2020. A divulgação foi feita através do e-mail e redes sociais, salvaguardando a voluntariedade da participação, confidencialidade e anonimato. Dada a possibilidade de o preenchimento do questionário suscitar nos respondentes reflexão e surgimento de dúvidas sobre a temática, foram indicados no final do questionário os contactos da Linha Vida SOS Droga. Para o tratamento de dados recorreu-se ao software IBM SPSS Statistics. Foram utilizados testes de estatística descritiva, inferencial e correlacional. Para a análise descritiva recorreu-se ao estudo de frequências e de algumas medidas de tendência central. A análise inferencial foi sustentada nos testes de Mann-Whiney e Kruskal-Wallis para averiguar diferenças entre grupos. A análise correlacional recorreu à correlação de Spearman (amostras não paramétricas). Algumas variáveis implicaram não utilizar algumas categorias ou proceder à sua aglutinação, no sentido de resolver as situações-problema dos testes que impõem condições para a sua aplicabilidade. Optando pela administração online, analisou-se a consistência interna do ASSIST na amostra, tendo sido encontrado um valor que caracteriza uma alta confiabilidade (α = 0,92).
Resultados
A Tabela 1 representa os dados sociodemográficos da totalidade da amostra (N = 1312) e dos consumidores de cannabis, distinguindo os que consumiram pelo menos uma vez na vida (n = 423), e os consumidores nos últimos 3 meses (n = 118). A amostra é constituída predominantemente por indivíduos do sexo feminino (76,1%), maioritariamente com idades compreendidas entre os 18 e os 27 (34,9%). Os participantes distribuem-se similarmente nas categorias Solteiros e Casados/União de facto (respetivamente 44,9% e 47,5%), habitando na região norte do país (74,5%), com habilitações superiores (70,3%) e profissionalmente ativos (76,7%).
Total da amostra (N = 1312) | Consumidores de cannabis | |||||
Alguma vez na vida (n = 423) | Nos últimos três meses (n = 118) | |||||
f | % | f | % | f | % | |
Sexo | ||||||
Feminino | 998 | 76,1 | 296 | 70,0 | 67 | 56,8 |
Masculino | 313 | 23,8 | 126 | 29,8 | 51 | 43,2 |
Não responde | 1 | 0,1 | 1 | 0,2 | 0 | 0,0 |
Idade | ||||||
[18 - 27] | 457 | 34,9 | 179 | 42,3 | 71 | 60,2 |
[28 - 37] | 284 | 21,6 | 107 | 25,3 | 19 | 16,1 |
[38 - 47] | 307 | 23,4 | 98 | 23,2 | 23 | 19,5 |
[48 - 57] | 148 | 11,3 | 26 | 6,1 | 4 | 3,4 |
[58 - 67] | 80 | 6,1 | 9 | 2,1 | 1 | 0,8 |
[68 - 83] | 32 | 2,4 | 2 | 0,5 | 0 | 0,0 |
Não responde | 4 | 0,3 | 2 | 0,5 | 0 | 0,0 |
Estado Civil | ||||||
Casado ou União de facto | 589 | 44,9 | 150 | 35,5 | 17 | 14,4 |
Separado ou Divorciado | 78 | 5,9 | 21 | 5,0 | 3 | 2,6 |
Solteiro | 622 | 47,5 | 251 | 59,3 | 97 | 82,2 |
Viúvo | 20 | 1,5 | 1 | 0,2 | 1 | 0,8 |
Não responde | 3 | 0,2 | 0 | 0,0 | 0 | 0,0 |
Residência (NUTS II) | ||||||
Alentejo | 10 | 0,8 | 6 | 1,4 | 0 | 0,0 |
Algarve | 8 | 0,6 | 3 | 0,7 | 0 | 0,0 |
Área Metropolitana de Lisboa | 113 | 8,6 | 44 | 10,4 | 7 | 5,9 |
Centro | 177 | 13,4 | 63 | 14,9 | 18 | 15,3 |
Fora de Portugal | 10 | 0,8 | 5 | 1,0 | 0 | 0,0 |
Norte | 977 | 74,5 | 295 | 70,0 | 93 | 78,8 |
Região Autónoma da Madeira | 3 | 0,2 | 1 | 0,2 | 0 | 0,0 |
Região Autónoma dos Açores | 6 | 0,5 | 3 | 0,7 | 0 | 0,0 |
Não responde | 8 | 0,6 | 3 | 0,7 | 0 | 0,0 |
Habilitações Literárias | ||||||
Menos de 4 anos de escolaridade | 23 | 1,8 | 1 | 0,3 | 1 | 0,8 |
6 Anos de escolaridade | 9 | 0,6 | 1 | 0,3 | 0 | 0,0 |
9.º Ano | 28 | 2,1 | 7 | 1,6 | 1 | 0,8 |
12.º Ano (secundário ou equivalente) | 328 | 25,0 | 118 | 27,9 | 48 | 40,8 |
Ensino Superior | 922 | 70,3 | 296 | 69,9 | 68 | 57,6 |
Não responde | 2 | 0,2 | 0 | 0,0 | 0 | 0,0 |
Situação Profissional | ||||||
No ativo | 1009 | 76,7 | 324 | 76,6 | 80 | 67,8 |
Reformado | 78 | 5,9 | 4 | 0,9 | 0 | 0,0 |
Desempregado | 199 | 15,2 | 86 | 20,3 | 33 | 28,0 |
Não responde | 26 | 2,0 | 9 | 2,1 | 5 | 4,2 |
Face aos consumos relatados, encontramos nos 1312 participantes referência ao consumo pelo menos uma vez na vida predominantemente de álcool (86,5%, n = 1135), tabaco (63,8%; n = 837) e cannabis (33,0%; n = 423). A análise desta última focou-se nos consumidores que pelo menos uma vez na vida fizeram uso desta substância (n = 423). Após a análise comparada das variáveis sociodemográficas, esta subamostra evidencia diferenças significativas face às variáveis Sexo (p = 0,001), Idade (p < 0,05), Estado Civil (p < 0,05) e NUT de residência (p = 0,022).
Dentro deste grupo (n = 423), 72,1% não fez qualquer consumo (ocasional ou recorrente) nos últimos três meses, 74% não sentiu forte desejo ou vontade de consumir, 96% não teve problemas de saúde, sociais, legais ou financeiros causados pelo consumo e 93,1% não deixou de fazer, em consequência do consumo de cannabis, o que dele era esperado. Na mesma linha, 85,1% nunca viu o seu consumo ser alvo de preocupação por parte de amigos, familiares ou outros, e 87,5% nunca tentaram reduzir ou parar o consumo. A partir do score total, analisaram-se ainda os níveis de risco (baixo, consumo nocivo, e provável dependência). A maioria (73,8%) apresenta um consumo de baixo risco, 25,8% tem um padrão de consumo nocivo e 0,5% regista provável dependência.
O grupo dos consumidores de cannabis nos três meses anteriores é composto por 118 indivíduos, revelando diferenças significativas quanto às variáveis sexo (p < 0,05), idade (p < 0,05), habilitações literárias (p < 0,05) e situação profissional (p = 0,005).
Para a sua análise mais detalhada optou-se por agregar as opções 1 a 3 vezes por mês, 1 a 4 vezes por semana e 5 a 7 vezes por semana, originando a categoria Consumo recorrente e considerou-se a opção 1 a 2 vezes nos últimos três meses como consumo ocasional. Resultaram dois subgrupos de 59 elementos cada, que apresentaram diferenças significativas entre a variável idade e os consumidores ocasionais mais novos (p = 0,032). Na análise das diferenças entre consumidores ocasionais e recorrentes, os resultados revelam que são estes que, em média, registam um maior impacto nas suas áreas de vida e relacionamentos. Salientam-se os resultados relativos à diminuição de comportamentos esperados por terceiros (p = 0,009), bem como na questão sobre as preocupações pelos consumos por parte de familiares e amigos (p < 0,05). É o grupo dos consumidores recorrentes que sente com mais frequência um forte desejo ou vontade de consumir, interferindo assim com a frequência de consumos nos últimos três meses (p < 0,05). Verificou-se uma correlação positiva (r s = 0,431; p = 0,000) entre a frequência de consumo de cannabis e o nível de risco de consumo, ou seja, à medida que o consumo de cannabis aumenta, aumenta a probabilidade de consumo em níveis problemáticos. A análise dos níveis de risco para o uso da cannabis associados à frequência de consumo nos últimos três meses mostra a existência de níveis de consumo nocivo, quer em participantes que não consumiram nos últimos três meses (n = 25; 8,2%), como em participantes que o fizeram apenas uma ou duas vezes neste período (n = 32; 54,2%).
A questão com que frequência sentiu um forte desejo ou vontade de consumir? (dimensão clínica do craving) evidencia que, no grupo que já consumiu pelo menos uma vez na vida, 8,5% dos participantes terão experienciado esta necessidade num registo ocasional, mensal ou semanal. Nos consumidores ocasionais, este desejo é assinalado por 44,1% dos inquiridos, e nos consumidores recorrentes por 84,7%.
Os consumidores recentes representam 54,2% dos consumidores ocasionais com níveis de consumo nocivo. Quanto à autoperceção do prejuízo provocado pela cannabis, 94,9% dos consumidores ocasionais referem nunca ter tido problemas associados ao consumo, valor que desce para 89,8% nos consumidores recorrentes.
Face à dimensão das expectativas dos outros, os consumidores recorrentes registam menor frequência na opção nunca deixaram de fazer o que esperavam de si devido ao consumo do que os consumidores ocasionais (76,3% e 93,2%, respetivamente). Quanto à preocupação de terceiros face ao consumo de cannabis, 14,7% referem que a mesma existiu nos últimos três meses ou ainda antes. No grupo sem consumos recentes, 7,9% de participantes indicam esta preocupação no passado, e 1,0% que ainda nos últimos três meses percebeu este cuidado. Mesmo os participantes que não consumiram nos últimos três meses assinalam preocupação por parte de outros significativos face ao seu potencial consumo. Quanto aos consumidores ocasionais, 15,2% evidenciaram preocupação por parte de outros significativos, mas não recentemente. Comparativamente, 44,0% dos consumidores regulares registaram esta preocupação (13,6% nos últimos três meses). Cerca de 87,5% referiram nunca ter tentado reduzir ou parar sem sucesso o consumo de cannabis. Entre os 305 respondentes que não consumiram nos últimos três meses, 4,3% tentaram reduzir ou parar sem sucesso num período prévio. Consumidores regulares e ocasionais distinguem-se pela maior frequência de ensaios e de insucessos (42,8% versus 17,2% dos ocasionais). Na realidade, quanto mais frequente é o consumo, maior a probabilidade de experimentarem problemas e de sentirem dificuldades na paragem.
Os consumidores recentes distinguem-se positiva e significativamente dos consumidores de cannabis pelo menos uma vez na vida na frequência com que sentiram um forte desejo ou vontade de consumir (p < 0,05), na frequência em que o consumo de cannabis originou problemas de saúde, sociais, legais ou financeiros (p = 0,015), na interferência do consumo no que normalmente era esperado deles (p < 0,05), na ocorrência de alguma preocupação pelo seu consumo de cannabis evidenciada por terceiros (p < 0,05) e na frequência com que alguma tentaram, sem sucesso, reduzir ou parar o consumo de cannabis (p < 0,05). Em suma, 92,4% dos consumidores recentes reconhece com menor frequência a existência de condições de prejuízo associadas ao consumo, quando comparado com os participantes apenas com consumo pelo menos uma vez na vida (97,4%). No estudo do eventual policonsumo dos usuários de cannabis, ressalva-se a utilização de cannabis e de pelo menos uma substância lícita como o álcool ou tabaco (97,5%; n = 115). A utilização de cannabis, álcool e tabaco registou-se em 74,5% (n = 118) das respostas, 18,6% (n = 22) consumiam cannabis e álcool, e 4,2% (n = 5) usaram cannabis e tabaco. A utilização de cannabis e de pelo menos outra substância ilícita verificou-se em 20,3% do grupo (n = 24). Predomina o uso de cannabis associado a uma outra substância (11,9%; n = 14), mas registou-se uso concomitante com duas outras substâncias ilícitas (1,7%; n = 2), com três (5,1%; n = 6) e com quatro outras (1,7%; n = 6). Na análise de consumos combinados (substâncias lícitas e ilícitas) verificou-se que, em todos os casos que houve policonsumo de substâncias ilícitas, ocorreu igualmente consumo de substâncias lícitas (em 23 dos casos cannabis, álcool e tabaco e num dos casos, cannabis e álcool). As frequências de consumo associado entre cannabis e álcool está presente, nos últimos três meses, em 94,1% (n = 111) dos respondentes. A associação entre o tabaco e cannabis existe em 78,8% (n = 93) dos participantes, e a junção de cannabis com cocaína verifica-se em 11,9% (n = 14). Para os estimulantes, as frequências de consumo simultâneo com a cannabis é de 10,2% (n = 12). Já no consumo de inalantes, a frequência baixa para os 4,2% (n = 5), idêntica para o consumo de hipnóticos/sedativos (4,2%; n = 5). O consumo de alucinogénios foi referido por 5,1% (n = 6) dos utilizadores recentes de cannabis. Apenas um participante (0,8%) registou uso de opiáceos no mesmo período em que consumiu cannabis. A análise da correlação de Spearman entre os scores totais obtidos para cada uma das substâncias contempladas no ASSIST veio assinalar associações positivas (e com significado estatístico) entre a cannabis e a maior parte das restantes substâncias. As correlações são positivas, estatisticamente significativas para a cannabis e o álcool (r s = 0, 287; p = 0,002), para o tabaco (r s = 0,396, p = 0,000), estimulantes (r s = 0,521; p = 0,002). São significativas para a cocaína (rs = 0,367; p = 0,042), inalantes (r s = 0,597; p = 0,024), e hipnóticos/sedativos (r s = 0,594; p = 0,015).
Já no que respeita à correlação entre os níveis de risco apresentados pela amostra de consumidores recentes de cannabis, apenas se encontrou correlação estatisticamente significativa (r s = 0,397; p = 0,000) com os níveis de risco associados ao tabaco.
Discussão
O presente estudo centrou-se na substância ilícita que foi mais consumida na amostra recolhida, a cannabis, não só pelo peso que os estudos epidemiológicos atuais lhe conferem (SICAD, 2017) mas também pela discussão social e política que tem suscitado. Destacam-se as temáticas que pressupõem a banalização do consumo por desvalorização dos danos associados, a consideração de benefícios para a saúde (uso medicinal/terapêutico) e legalização para estes fins, e as perspetivas clínicas que sublinham a emergência de quadros de dependência que se têm verificado em faixas de consumidores mais jovens e que conflituam com a representação desta substância como sendo de uso recreativo e inócuo (Projecto de Lei n.º 116/IX da AR, 2003).
A par com outros estudos, nomeadamente de carácter mais epidemiológico (Balsa, 2018; SICAD, 2022), a amostra global confirma a preponderância das drogas lícitas sobre as ilícitas nas frequências dos consumos. O consumo de álcool ao longo da vida (86,5%), é semelhante aos valores da realidade nacional (85,3%). O consumo de tabaco é nitidamente mais prevalente na presente amostra (63,8%) do que na população geral nacional (48,8%; SICAD, 2017). Nas substâncias ilícitas, a cannabis foi usada pelo menos uma vez na vida por um terço da amostra (33,0%), valor bastante superior ao da população portuguesa (9,7%), conforme os dados mais recentes do SICAD, em 2022. Nas frequências relativas ao consumo de mulheres com a população geral mantêm-se, com 29,6% de mulheres da amostra deste estudo a consumirem ao longo da vida, contrariamente a 6,6% de consumo feminino na população geral (Balsa, 2018). Estas diferenças reafirmam-se para a cocaína, heroína e alucinogénios. Uma possível explicação para esta discrepância pode residir na forma de administração do questionário, já que vários estudos demonstram que questionários online aumentam a probabilidade de respostas não distorcidas pela desejabilidade social em temas menos normativos ou socialmente criticados, e que o anonimato concedido por esta administração, intrinsecamente voluntária, facilita a participação dos sujeitos (Gnambs & Kaspar, 2015). No grupo de consumidores de cannabis pelo menos uma vez na vida (n = 423), a associação de consequências negativas ao consumo não é relevante e a grande maioria referiu nunca ter tentado reduzir ou parar sem sucesso o consumo de cannabis, o que é consonante com a frequência reduzida de preocupação acerca da sua utilização de cannabis. Todavia, através do ASSIST foi possível concluir que 25,8% tem um padrão de consumo nocivo e 0,5% regista provável dependência, sendo estes resultados concordantes com os dados estatístico relativos à população geral (SICAD, 2022), que mostram que 0,4% da população geral está em risco elevado de dependência de cannabis. Apesar de a maioria destes consumidores de cannabis não o ter feito nos últimos três meses, dos 27,9% que o fizeram, metade são consumidores frequentes, enquadrando-se, deste modo, na definição operacional de consumidores de risco (EMCDDA, 2012). Os resultados também sinalizam que quanto mais vezes se consome cannabis, mais problemas derivados desse consumo surgem (r s = 0,431; p = 0,000), e maior é a probabilidade de se sentir dificuldades na paragem do consumo, sugerindo que a inocuidade percebida pelo senso comum, associada à noção da cannabis como uma droga leve, poderá não se verificar na prática. Para além disso, a frequência de consumidores recentes de cannabis (últimos três meses) mostra uma elevada taxa de continuidade de consumo desta substância, que é o mesmo que dizer que, depois de experimentarem pela primeira vez cannabis, há uma forte possibilidade de continuarem os consumos, estando por isso mais expostos ao risco de experimentarem problemas relacionados com esta prática. Por outro lado, os dados sinalizam uma discrepância entre a autoperceção dos problemas decorrentes do consumo frequente de cannabis e a perceção dos outros sobre esse consumo, uma vez que os participantes que consomem frequentemente cannabis apenas se distinguem dos consumidores ocasionais relativamente à preocupação dos familiares ou amigos sobre o seu consumo (p < 0,05) e na diminuição de comportamentos esperados por terceiros (p = 0,009). Também a maioria dos consumidores, tanto ocasionais (94,9%) como recorrentes (89,8%), referem nunca ter experimentado problemas derivados do seu consumo de cannabis. Esta baixa perceção das consequências decorrentes do consumo poderá derivar da acomodação dos utilizadores de cannabis aos discursos sociais que se têm vindo a instalar, não só sobre a baixa perigosidade da substância, mas também na ideia de que o seu consumo não provoca dependência (Projecto de Lei n.º 116/IX da AR, 2003).
Contudo, a avaliação do craving, através da variável frequência de forte vontade ou desejo de consumir a substância, já deixa dúvidas quanto à interpretação deste sintoma. Por um lado, pode sugerir uma desvalorização deste sinal interpretando a vontade de consumir ou o desejo intenso como inerente à modificação gratificante do seu funcionamento causado pela substância sem grande base para preocupação. Por outro lado, pode sugerir a consciência de que se trata de um desejo incontrolável e por isso problemático, induzindo preocupação e promovendo a abstinência, no sentido de adquirirem controlo sobre os seus comportamentos, o que justificaria, por exemplo, a existência de participantes com um nível de risco de consumo nocivo, mesmo não tendo consumido recentemente, e de participantes que referiram ter mensalmente ou semanalmente um forte desejo de consumir, mas que já não consomem há, pelo menos, três meses. Também se verificou, quanto ao craving, que são os consumidores recorrentes que evidenciam com maior frequência este sintoma, o que poderá ser interpretado como uma resposta fisiológica de necessidade de consumo, sem que se cumpram todos os requisitos de dependência. Se se entender o craving como um sintoma central dos problemas relacionados com o uso de substâncias, tal como sugerido na classificação DSM-5 (American Psychological Association, 2014), o conceito de dependência é substituído pelo de problema de uso severo da substância aproximando-se da abordagem que percebe os consumos num contínuo de envolvimento e gravidade. Assim, a existência deste sintoma pode indicar que se está perante participantes já com problemas relacionados com o uso de cannabis e, portanto, de pessoas que poderiam beneficiar de intervenção. Na associação do consumo de cannabis com outras substâncias, verifica-se que no grupo de consumidores recentes o uso exclusivo de cannabis é uma exceção. Há uma frequência muito elevada de associação ao uso de substâncias lícitas (álcool e tabaco), que pode ser indicadora da aproximação da cannabis, em termos das representações quanto aos riscos de consumos, às substâncias lícitas de uso normalizado e mais frequente na população. No entanto, apesar de terem menos relevo, também existem ligações entre o consumo de cannabis e outras substâncias ilícitas. Os scores que permitem aceder aos diferentes níveis de risco encontram-se correlacionados entre as diferentes substâncias, ou seja, à medida que se agrava o nível de risco associado ao consumo de cannabis também se agravam os níveis de risco de consumo das outras substâncias, principalmente quanto ao álcool, tabaco, estimulantes, cocaína, inalantes e hipnóticos/sedativos, indicando, uma vez mais, que o seu uso não é desligado do de outras substâncias, o que pela combinação de consumos é quase sempre um fator de incremento do risco de consequências nefastas em termos físicos, psicológicos e sociais.
Conclusão
A história da abordagem política, social e científica do uso problemático de substâncias tem mostrado a constante necessidade de atualizar estratégias de compreensão e de intervenção neste fenómeno. Se a distinção entre drogas leves e drogas duras ou pesadas pode ter feito sentido no passado, hoje, resultado de mudanças nas substâncias, nas motivações para o uso, nas intenções dos mercados, entre outros fatores, parece não ser funcional. A construção social do fenómeno da cannabis e dos seus derivados como substâncias que não induzem dependência, que não têm impacto na esfera social dos indivíduos e que estão em patamares diferentes das outras substâncias por serem isentas de risco para a saúde anteciparam o plano inovador que culminou com a descriminalização do consumo, entre outras aquisições importantes em 2003. Todavia, os dados recolhidos alertam para a desvalorização e banalização dos consumos da cannabis pelos seus utilizadores, num registo ainda muito fechado à consideração do potencial nocivo que pode assumir e que já emerge no discurso científico que se refere ao consumo de cannabis frequente/de alto risco. A intervenção nas atribuições predominantemente positivas a uma substância com potencial aditivo deve manter-se na agenda da prevenção universal, seletiva e indicada.