Introdução
A enfermagem de saúde familiar tem sido uma área de progresso da enfermagem, enquanto campo de atuação e saber específico, sendo hoje visível, no contexto dos cuidados de saúde primários, a responsabilidade exigida aos enfermeiros no acompanhamento das famílias ao longo do ciclo vital (Machado et al., 2021; Silva, 2016; Silva et al., 2020).
As políticas de saúde, nomeadamente a declaração de Munique (World Health Organization [WHO], 2000) e as Metas de Saúde para Todos na Região Europeia (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2003), reforçaram a necessidade de estabelecer programas e serviços de enfermagem comunitária centrados na família, sendo o enfermeiro de saúde familiar o pivot central nas equipas de saúde, para proporcionar, a um número limitado de famílias, um amplo leque de serviços, nomeadamente o aconselhamento sobre estilos de vida e apoio familiar.
Para além das políticas de saúde, o desenvolvimento teórico na área da enfermagem de saúde familiar, tem sido também notável, contudo, o mesmo não se verifica no desenvolvimento das práticas com as famílias, nomeadamente nos cuidados de saúde primários (Figueiredo, 2009; Shajani & Snell, 2019; Silva, 2016).
Este facto levanta questões orientadas para a formação, verificando-se, em Portugal, uma grande heterogeneidade nos conteúdos, na área da saúde familiar (Figueiredo, 2009) a nível dos planos de estudos dos cursos de graduação em enfermagem. Por outro lado, a falta de informação relativa aos modelos pedagógicos nesta área, pode constituir-se como fator facilitador ou dificultador da aquisição e desenvolvimento de competências dos estudantes, pelo que merece a melhor atenção (Silva, 2016; Silva et al., 2020).
As metodologias pedagógicas adotadas constituem um importante fator na aquisição e desenvolvimento dos estudantes de enfermagem, no sentido de um realinhamento da formação em enfermagem para que os enfermeiros passem de um paradigma centrado no indivíduo em que a família é tida como o contexto dos cuidados, para um paradigma centrado na família como foco e unidade de cuidados (Figueiredo, 2009, 2013; Silva, 2016; Silva et al., 2020).
Neste sentido, optou-se pelo desenvolvimento de uma scoping review que se alicerça num modelo de revisão que tem como objetivos fundamentais: mapear as evidências existentes subjacentes a esta área de investigação, procurar a identificação de lacunas na evidência existente, constituir um exercício preliminar que fundamente e informe o possível desenvolvimento de uma revisão sistemática da literatura. Permitindo assim identificar as principais características/fatores relacionados com o conceito em estudo (Peters et al., 2020).
Uma pesquisa preliminar realizada em março de 2021 na MEDLINE (via PubMed), Cochrane Database of Systematic Reviews, JBI Evidence Synthesis, PROSPERO, e Open Science Framework, não revelou qualquer tipo de revisões da literatura (publicadas ou a serem realizadas) neste âmbito temático específico.
Nesse sentido, decidiu-se realizar uma scoping review com o objetivo de mapear as metodologias pedagógicas utilizadas no ensino de enfermagem de saúde familiar.
Mais especificamente, esta revisão pretende dar resposta às seguintes questões: Quais as metodologias pedagógicas utilizadas no ensino de enfermagem de saúde familiar?; Em que nível de ensino são utilizadas as referidas metodologias pedagógicas?; Em que contexto são utilizadas as referidas metodologias pedagógicas?
Método de revisão
Distintos objetivos e questões de revisão, conduzem ao desenvolvimento de diferentes abordagens que são desenhadas para, de forma mais eficaz e rigorosa, sintetizar a evidência, as scoping reviews são uma das tipologias de abordagem (Peters et al., 2020).
Utilizando a mnemónica participants, concept e context (PCC), foram incluídos na scoping review estudos que: a) quanto ao tipo de participantes, abordassem estudantes de enfermagem de qualquer nível de ensino; b) quanto ao conceito, abordassem metodologias/estratégias pedagógicas; c) quanto ao contexto, realizados no âmbito da enfermagem de saúde familiar; d) quanto ao tipo de estudos, fossem qualitativos, quantitativos, revisões da literatura ou literatura cinzenta.
Foi realizado o registo do protocolo relativo à presente revisão na Open Science Framework (https://osf.io/ehvct/), encontrando-se o protocolo publicado (Silva et al., 2022).
Estratégia de pesquisa
A estratégia de pesquisa incluiu estudos publicados e não publicados, e foi constituída por três passos: 1) Pesquisa inicial limitada nas bases de dados MEDLINE (via PubMed) e CINAHL (via EBSCO), seguindo-se uma análise de palavras de texto nos títulos e resumos e dos termos de índice usados para descrever o artigo; 2) Segunda pesquisa usando todas as palavras-chave e termos de índice identificados, nas bases de dados MEDLINE (via PubMed), CINAHL Complete (via EBSCOhost), Cochrane Central Register of Controlled Trials,Cochrane Database of Systematic Reviews, SciELO, Scopus e MedicLatina. Adicionalmente, a pesquisa de literatura cinzenta foi realizada na OpenGrey; 3) Com vista à identificação de adicionais estudos, potencialmente relevantes, foram analisadas as referências bibliográficas de todos os artigos identificados bem como analisadas fontes sugeridas por peritos na área.
Foram considerados para inclusão nesta revisão estudos escritos em inglês, espanhol, francês e português, independentemente do ano de publicação.
Síntese e extração de dados
Com base nas informações fornecidas no título e resumo, foi analisada a relevância dos artigos para a presente scoping review. O texto completo de estudos que cumpriam os critérios de inclusão da revisão foi analisado. Sempre que os revisores tiveram dúvidas sobre a relevância de um estudo a partir do título e resumo, o artigo completo foi analisado.
Ambas as fases de análise foram realizadas de forma independente, por dois revisores.
Desacordos surgidos entre os revisores foram resolvidos através de discussão, ou com um terceiro revisor. Estudos identificados a partir de listas de referência foram avaliados quanto à relevância com base no seu título e resumo.
Também a extração de dados foi realizada por dois revisores de forma independente, com recurso a um instrumento desenvolvido pelos mesmos, alinhado com o objetivo e questões de revisão.
Desacordos entre os revisores foram resolvidos através de discussão, ou com um terceiro revisor.
Apresentação dos resultados
Tal como apresentado na Figura 1, foram identificados 69 estudos potencialmente relevantes. Destes, 10 foram excluídos por serem duplicados; dos restantes 59 estudos, 56 foram excluídos após análise do título e resumo; um dos restantes três artigos foi excluído por não cumprir todos os critérios de inclusão após leitura do texto completo. Finalmente, foram incluídos nesta revisão dois estudos.
Interpretação dos resultados
Tendo como objetivo mapear as metodologias pedagógicas utilizadas no ensino de enfermagem de saúde familiar, realizou-se a presente scoping review, tendo-se incluído dois estudos, publicados a partir de 2007, sendo que um foi realizado em Portugal por Silva et al. (2020), e o outro por Charron (2007), no Canadá.
Apesar de a pesquisa ter sido realizada sem limite temporal estabelecido, apenas foram incluídos estudos a partir de 2007, o que possivelmente se deve à orientação da OMS que nos anos 2000 e 2003, prevê a inclusão de conteúdos de saúde familiar nos planos de estudos dos cursos de graduação em enfermagem (OMS, 2003; WHO, 2000). A dificuldade de os enfermeiros desenvolverem práticas clínicas centradas na família, enquanto unidade de cuidados, é identificada por vários autores (Figueiredo, 2013; Santos, 2012; Silva, 2016; Silva, 2013), contudo, nem sempre o entendimento desta dificuldade parece atribuir-se às metodologias pedagógicas utilizadas na formação (Silva, 2016; Silva et al., 2020).
Neste contexto, a investigação relativa à adequação das metodologias pedagógicas nos processos de ensino-aprendizagem poderá vir a contribuir para uma melhor apropriação e transferibilidade dos saberes adquiridos para a prática.
Um dos estudos incluídos (Charron, 2007) é qualitativo e identificado, pelas autoras desta revisão, como estudo caso único. O desenho do estudo de Silva et al. (2020) é quantitativo, descritivo e transversal.
Relativamente às metodologias pedagógicas utilizadas no ensino de enfermagem de saúde familiar, no estudo de Charron (2007), foi utilizada a narração dialógica e no estudo de Silva et al. (2020), a metodologia foi o debriefing estruturado associado à simulação.
No estudo de Charron (2007), a narração dialógica é desenvolvida em três etapas. A primeira consistia na simulação realizada em contexto de laboratório, a segunda etapa em consulta em contexto real e a terceira etapa consistia na reflexão final com descrição de como decorreu a consulta, resultados da mesma e a forma como o estudante se sentiu no decorrer do processo reflexivo. Neste estudo, o objetivo da autora foi conhecer a relevância da aplicação dos princípios da comunicação terapêutica a partir da abordagem sistémica no apoio aos alunos.
No estudo Silva et al. (2020) o debriefing estruturado após simulação, foi realizado em contexto de aula prática laboratorial, com um grupo de 15 estudantes, onde três estudantes participaram numa simulação, num cenário próximo da realidade de uma unidade de cuidados de saúde familiar, e 12 estudantes observaram a prática simulada numa sala espelhada. Após a simulação, realizada por três estudantes, estes são questionados sobre como se sentiram e o que presenciaram, e se identificaram o objetivo do mesmo. Posteriormente, numa segunda etapa, foram questionados os observadores (12 estudantes) relativamente apenas aos aspetos positivos de intervenção realizada pelos colegas. Na terceira etapa foi realizada uma reflexão crítica, onde aos estudantes que realizaram a simulação, foi solicitado que identificassem o que poderiam ter feito melhor. Por último, na quarta etapa foi feita, pela docente, em conjunto com todos os estudantes, uma síntese dos aspetos principais a ter em conta, de forma a sistematizar os conteúdos necessários a transferir para a prática clínica e a reforçar os aspetos positivos do desempenho dos estudantes.
Os métodos pedagógicos utilizados (narração dialógica e debriefing estruturado após a simulação) tiveram em comum a utilização da discussão conjunta com os estudantes, tendo em vista o desenvolvimento do raciocínio clínico, através da aprendizagem crítica e reflexiva, bem como o reforço positivo no sentido de permitir ao estudante obter mais confiança. O estudante foi convidado a refletir na e sobre a ação, antes, durante e após a sua concretização, potenciando a consolidação de saberes e a sua mobilização para o agir clínico, através da reflexão sobre o que fizeram, quando fizeram, como fizeram, porque fizeram e como podiam melhorar. Destacam-se a valorização da componente afetiva nos dois estudos, pelo elogio do docente, bem como as componentes cognitivas (o que aprenderam) e comportamental (o que fizeram e o que melhorar).
Os objetivos do desenvolvimento da aprendizagem foram também semelhantes, onde a preocupação dos docentes era o desenvolvimento do pensamento sistémico dos estudantes, bem como a mudança na passagem de um paradigma centrado no indivíduo em que a família é um contexto, para um paradigma centrado na família como foco e unidade de cuidados (Charron, 2007; Silva et al., 2020).
Neste sentido, evidencia-se a importância dos modelos curriculares centrados no construtivismo, como uma forma de representar a realidade através de transações dialéticas, que impelem para a mudança dos significados. Nesta perspetiva, o estudante assume um papel ativo na sua própria aprendizagem e o docente como facilitador do desenvolvimento de competências, cognitivas, afetivas e comportamentais, do estudante, permitindo uma relação de proximidade e reciprocidade. O pensamento crítico, a autonomia, a criatividade e a capacidade de adaptação são os principais contributos da aprendizagem experiencial.
Os contextos nos quais se desenvolveram as práticas pedagógicas foram diferentes nos dois estudos. No estudo de Silva et al. (2020), a metodologia pedagógica foi implementada em contexto de aulas práticas laboratoriais, num centro de simulação de uma escola de enfermagem, onde se realizou a simulação com o debriefing estruturado, atendendo às componentes cognitiva, afetiva e psicossocial. O estudo de Charron (2007) foi desenvolvido em contexto de aula em laboratório, onde se desenvolveu a simulação e em ensino clínico, onde o estudante concretizou a prática em contexto real (com o contacto direto com as famílias com recurso a entrevistas) e novamente em contexto escolar onde se realizaram reuniões entre docente e estudante para construir guiões de consulta e realizar as reflexões sobre a aprendizagem (cognitivo), a concretização (comportamental) e o reforço (afetivo).
A diferença consiste também no facto de o estudo de Charron (2007) ter tido apenas um participante, e a prática pedagógica ter sido realizada entre docente e um estudante, no estudo de Silva et al. (2020), a prática pedagógica foi desenvolvida entre a docente e grupos de 15 estudantes.
Os dois estudos foram realizados ao nível da formação graduada em enfermagem.
Os resultados desta scoping review revelam a inexistência de estudos neste âmbito, pelo que emerge a necessidade do desenvolvimento de outros estudos que integrem as metodologias pedagógicas utilizadas no âmbito da formação em enfermagem considerando que, em cuidados de saúde primários, a família emerge como unidade de cuidados, tornando-se imperativo o desenvolvimento de competências que permitam a avaliação e intervenção familiar. As metodologias pedagógicas a utilizar deverão alicerçar-se no pensamento sistémico, permitindo, dessa forma, a compreensão de todos os fatores que inteiram o sistema familiar. Este fundamento será importante também, não só ao nível da formação graduada, como também pós-graduada em enfermagem de saúde familiar, assim como em contexto de trabalho, uma vez que, os percursos individuais, os processos formativos, e a articulação da formação com as situações particulares de trabalho, serão possíveis de concretizar pelos e com os atores para a produção de mudança (Silva, 2016). Os processos educativos deverão assim ser impulsionadores de experiências conducentes ao desenvolvimento de conhecimentos, aptidões e atitudes para a prestação profissional competente, através de uma pedagogia de aprendizagem autoconstruída e arquitetada nas necessidades dos estudantes.
Relativamente às limitações dos estudos incluídos, referir que apesar de não se realizar a avaliação da qualidade metodológica dos estudos incluídos, pois não é significativo para uma scoping review, algumas limitações devem ser referidas, por forma a providenciar informações para futuros estudos, sejam eles primários ou revisões sistemáticas. Estas limitações relacionam-se com o facto de não haver um grupo de controlo, bem como o recurso a uma amostra não probabilística (Silva et al., 2020).
As referidas limitações dificultam a avaliação rigorosa do impacto das metodologias implementadas no âmbito do desenvolvimento de competências dos estudantes de enfermagem e devem ser contempladas em futuros estudos, já que a evidência científica informa a prática.
No que concerne às limitações da presente scoping review, nesta revisão foram incluídos apenas artigos publicados em inglês, espanhol, francês e português. Portanto, artigos divulgados em distintos idiomas poderiam também ser relevantes para a revisão realizada. Adicionalmente, uma vez que numa scoping review não é objetivo avaliar a qualidade metodológica dos estudos incluídos, recomendações para a prática não são mencionadas. A especificidade da estratégia de pesquisa pode eventualmente ter restringido o número de estudos incluídos. Contudo, procurou-se contemplar os critérios chave da questão de revisão. Por último, a pesquisa em mais bases de dados e literatura cinzenta poderia permitir a identificação de mais estudos potencialmente relevantes.
Conclusão
O objetivo desta scoping review foi mapear as metodologias pedagógicas utilizadas no ensino de enfermagem de saúde familiar, em que nível de ensino e em que contexto as mesmas são utilizadas. Foram assim identificados dois estudos que diferiram entre si na estratégia metodológica (narração dialógica e debriefing estruturado), e no contexto (um dos estudos foi realizado unicamente em contexto de laboratório e outro, adicionalmente, em contexto real). Ambos os estudos foram implementados em estudantes da graduação de enfermagem.
Este mapeamento permite a identificação de lacunas que devem ser contempladas em futuros estudos primários.
No que concerne às implicações para a investigação, dada a importância amplamente descrita sobre as metodologias pedagógicas adotadas no âmbito da aquisição e desenvolvimento de competências dos estudantes de enfermagem, bem como a escassa evidência neste âmbito, mais estudos qualitativos e quantitativos precisam de ser realizados no âmbito das metodologias pedagógicas utilizadas no ensino de enfermagem de saúde familiar.
Sugere-se que futuros estudos identifiquem de forma clara a metodologia do estudo, bem como as limitações do mesmo e invistam igualmente na implementação de metodologias pedagógicas no âmbito da enfermagem de saúde familiar a estudantes de formação pós-graduada.