Introdução
As teorias de enfermagem constituem o meio principal pelo qual é possível alcançar a progressão do corpo de conhecimento da enfermagem (Meleis, 2012), com aprofundamento no seu próprio saber. Estas, permitem a construção da identidade da profissão, de modo a favorecer o conhecimento da natureza da enfermagem e a desenvolver as especificidades científicas da área (Braga & Silva, 2011), atribuindo simbolismo representacional à realidade para descrever, explicar, prever ou prescrever fenómenos e as suas relações (Meleis, 2012).
O uso de teorias/modelos de enfermagem oferece estrutura e organização ao conhecimento de enfermagem (McEwen & Wills, 2009) e possibilita a diferenciação entre o enfermeiro e as demais categorias da enfermagem, proporcionando visibilidade ao processo de trabalho e autonomia na prestação do cuidado, em que a elaboração intelectual do processo de trabalho ganha espaço e reflexões cada vez mais importantes, com vista à necessidade de alcançar o status de ciência para a enfermagem (Braga & Silva, 2011; Schaurich & Crossetti, 2010).
A avaliação/análise de uma teoria e dos seus componentes consiste num elemento essencial ao melhor desenvolvimento da prática de enfermagem, sendo capaz de direcionar a estruturação de pesquisas, ensino, administração e a consulta de enfermagem, efetivando mudanças na prática clínica e levando o investigador a ser consumidor crítico de teorias e da prática baseada em evidências (Meleis, 2012). A utilização de teorias na prática promove o conhecimento de enfermagem como um guia das ações da profissão (Brandão et al., 2017).
Uma teoria é composta por elementos, sendo eles conceitos, pressupostos e proposições. Os conceitos consistem na estrutura interna da teoria, podem ser primitivos ou derivados e são descritos a partir da sua clareza, definição conceptual, propriedade observável e seus limites. Os pressupostos são afirmações/suposições base para determinar o ponto de vista do teórico, não são testáveis pela mesma teoria, mas levam a um conjunto de proposições a serem testadas. Já as proposições são afirmações descritivas das propriedades e dimensões de um conceito, podem ser declarações de ligação/conexão entre dois conceitos e fornecem à teoria a capacidade de descrição, explicação ou previsão (Meleis, 2012).
A teoria geral do autocuidado de Orem classifica-se como uma grande teoria, pois possui abrangência de estruturação que contempla as diversas áreas de interesse da enfermagem (Tomey & Alligood, 2002). Dorothea Orem desenvolveu a teoria geral do autocuidado em 1971 com uma visão filosófica de realismo moderado (Taylor, 2002), e o seu interesse por ela surgiu desde que se encarregou de produzir um currículo para a enfermagem prática do Department of Health, Education and Welfare, em Washington DC, em conjunto com alguns colegas. O primeiro livro publicado foi o Nursing: Concepts of Practice (Orem, 1971) e as versões subsequentes foram publicadas em 1980, 1985, 1991, 1995, 2001 e 2006. Embora a teórica não reconheça a influência directa de outra teoria sobre a teoria geral do autocuidado, ela menciona os exemplos de Abdellah, Nightingale, Rogers, Roy, e outros, na contribuição para a enfermagem (Taylor, 2002).
A teoria geral do autocuidado é composta por conceitos e pressupostos que direcionam a ação de enfermagem à promoção do autocuidado do indivíduo ou à assistência às condições em que este não dispõe de independência para execução do seu autocuidado (Fawcett, 2005). Três constructos teóricos complementam-se na composição da teoria geral do autocuidado, a favorecer que os aspetos relacionados tanto com o indivíduo como com o profissional de enfermagem sejam contemplados: a teoria do autocuidado, a teoria do déficit do autocuidado e a teoria dos sistemas de enfermagem (George, 2000).
O autocuidado, para Orem, consiste em ações deliberadas para suprir ou garantir a continuidade da vida, o crescimento e o desenvolvimento, bem como da manutenção da integridade humana (McEwen & Wills, 2009).
A escolha de uma teoria a ser analisada pode decorrer de um processo subjetivo, onde há preocupação com pressupostos congruentes e com o nível da experiência do autor, ou de um processo objetivo, através do uso de critérios bem definidos como: pessoais, mentoria, teórico, literatura de apoio, congruência sociopolítica e utilidade (Meleis, 2012). A teoria geral do autocuidado de Orem foi escolhida por método objetivo com o uso dos critérios literatura de apoio, baseando-se na extensa literatura disponível sobre a teoria, o que garante a significância da mesma, e utilidade, com base no fator de facilidade de entendimento e aplicabilidade.
Considerando que uma teoria tem capacidade para expandir a enfermagem enquanto ciência e disciplina, bem como a necessidade de ampliação do desenvolvimento de pesquisas teóricas na enfermagem, objetivou-se analisar a utilidade da teoria geral do autocuidado de Orem e descrever os elementos estruturais da mesma a partir do modelo de análise de teorias de Afaf Ibrahim Meleis.
Desenvolvimento
Trata-se de um estudo de natureza descritiva reflexiva, desenvolvido durante um doutoramento em enfermagem, utilizando o modelo de Análise de Teorias proposto por Meleis nos seus critérios de análise da utilidade e de descrição dos componentes estruturais da teoria geral de autocuidado de Orem.
O estudo foi desenvolvido durante os meses de agosto a novembro de 2018 e as etapas metodológicas foram iniciadas a partir da leitura dos seguintes referenciais: Nursing: Concepts of Practice (Orem, 1980, 1991, 1995) e a obra Theoretical nursing: development and progress (Meleis, 2012), onde Meleis propõe um modelo de avaliação de teorias com base em critérios específicos dentre os determinantes da análise teórica, a saber: descrição, análise, crítica, teste, e apoio.
A análise objetiva e crítica da teoria é tão complexa quanto a avaliação subjetiva, e por isso é necessário simplificar o processo de avaliação dividindo-a por componentes (Meleis, 2012). Assim, na primeira etapa, foram analisados os “Componentes estruturais” do critério de “Descrição” da teoria, onde se utilizou a análise interpretativa, procurando identificar e analisar pressupostos, conceitos e proposições da teoria geral do autocuidado de Orem.
Segundo o referencial metodológico, os conceitos podem ser analisados quanto à dimensão abstrato-concreto, grau de generalidade e quanto à dimensão variável/não-variável. Os pressupostos devem ser avaliados quanto a serem explícitos, quando são mencionados pelos autores das teorias, ou implícitos, quando são escritos precocemente, estão envolvidos na ideologia do teórico e não devem ser ignorados. As proposições podem ser analisadas enquanto proposições existentes, quando escrevem e afirmam a existência de um fenómeno; proposições com potencial de explicação/proposições relacionais, quando ligam conceitos e explicam relações (descrevem, direcionam, condicionam ou predizem); proposições reversíveis, quando possuem sentido de “vice-versa”, necessitando de serem testadas em ambas as condições; proposições deterministas, quando evidenciam que um fator específico leva sempre ao mesmo resultado; proposições estocásticas, quando se envolve um contexto de probabilidade; proposições sequenciais, quando se teorizam intervenções e as suas consequências; proposições coexistentes, quando se estabelece relação entre conceitos; proposições suficientes, quando um fator causal levará à mesma consequência independentemente de interferências; proposições condicionais/contingentes, quando um fator causal levará à mesma consequência somente a partir de um fator condicionante; proposições necessárias, quando um resultado depende de uma causa específica; ou proposições substituíveis, quando são possíveis dois meios diferentes para chegar a um mesmo resultado (Meleis, 2012).
Na segunda etapa do estudo, foi analisada a “Utilidade da teoria na prática” do critério de “Crítica da teoria” respondendo aos questionamentos propostos no método em relação à teoria geral do autocuidado de Orem: A teoria direciona para a prática? A teoria apresenta uma estrutura para a prescrição de enfermagem? A teoria contém noções ou ideias abstratas que não podem ser aplicadas na prática? O grau de abstração e o grau de entendimento influenciam a aplicabilidade da teoria? A teoria abrange todas as áreas da enfermagem? Ela deveria ser tão abrangente? Atualmente, a teoria é aplicada na prática? Ela tem viabilidade financeira? É uma teoria atual? Ela é relevante para a atual enfermagem? Como é que a teoria se ajusta ao processo de enfermagem? A teoria é compreensível para os profissionais de enfermagem? (Meleis, 2012).
A etapa de análise com base no critério “Descrição” da teoria proposta pelo modelo de análise de Meleis abrange componentes estruturais e funcionais. Os componentes estruturais, foco deste estudo, são os conceitos, pressupostos e proposições.
Na Tabela 1, estão expostos os conceitos do metaparadigma, os conceitos centrais e os termos teóricos com as suas respetivas análises.
Conceitos do metaparadigma | Definição | Análise |
---|---|---|
Pessoa | Ser humano, uma unidade complexa com características físicas, psíquicas e intelectuais integradas, cujo desenvolvimento se dá de maneira progressiva. As pessoas maduras e em amadurecimento desenvolvem capacidades para satisfazer as suas próprias necessidades de autocuidado | Derivado Concreto Geral Invariável |
Meio ambiente | Meio físico, químico, biológico, sócio-econômico-cultural e comunitário no qual a pessoa está inserida. As condições ambientais podem afetar positiva ou negativamente a vida, a saúde e o bem-estar e, consequentemente, o autocuidado | Derivado Abstrato Geral Variável |
Saúde | Estado de bem-estar ou integridade da estrutura e funcionamento humanos, considerando os aspectos físicos, psicológicos, interpessoais e sociais. Ainda, a saúde se baseia em sua promoção e manutenção, em cuidados preventivos, em tratamentos de doenças e em prevenções de complicações | Derivado Abstrato Geral Variável |
Enfermagem | Arte através da qual o enfermeiro, o profissional de enfermagem, presta assistência especializada a pessoas com deficiência de tal caráter. | Derivado Abstrato Geral Invariável |
Conceitos centrais | Definição | Análise |
Capacidade de autocuidado | Desenvolvimento, operabilidade e adequação, relacionados aos tipos de ações que podem ser realizadas pelos indivíduos, aos tipos de ações que eles realizam consciente e efetivamente, e à relação entre as ações que podem realizar e quais são requeridas. | Primitivo Concreto Variável |
Ações de autocuidado | Condutas aprendidas e executadas. Exprimem, também, a decisão da execução de atividades. | Primitivo Concreto Invariável |
Demanda de autocuidado terapêutico | Conjunto de ações necessárias para corresponder aos requisitos de autocuidado. | Primitivo Abstrato Geral Variável |
Déficit de autocuidado | Resultado negativo da relação entre a demanda de ações e a capacidade do indivíduo para executar o autocuidado terapêutico. | Primitivo Abstrato Variável |
Capacitação em enfermagem | Formação do enfermeiro para desenvolver habilidades especializadas em ajudar a superar deficiências e incapacidades na execução do autocuidado. | Derivado Abstrato Geral Variável |
Termos teóricos | Definição | Análise |
Autocuidado/ Cuidado de dependentes | Ação de pessoas maduras ou em amadurecimento que desenvolveram as capacidades para cuidar de si mesmas em suas situações ambientais. | Primitivo Abstrato Variável |
Agência de autocuidado/ Agência de cuidado de dependentes | São recursos humanos necessários para que as pessoas possam prestar assistência contínua a si mesma ou a pessoas socialmente dependentes delas. | Primitivo Concreto Variável |
Requisitos de autocuidado | Insights sobre ações que são conhecidas como necessárias para a regulação de aspectos do funcionamento e desenvolvimento humanos (meta/objetivo do cuidado). Universal: associam-se à manutenção e funcionalidade do indivíduo; Desenvolvimento: associam-se a condições e eventos que ocorrem em diferentes ciclos de vida; Desvio de saúde: escolhas diante de um problema. | Primitivo Abstrato Muito geral Variável |
Demanda de autocuidado terapêutico | Ações que podem e que devem ser implementadas para atingir os requisitos de autocuidado. | Primitivo Abstrato Variável |
Ação deliberada | Conduta adotada por indivíduo para um determinado fim. | Derivado Concreto Variável |
Produto de enfermagem | Podendo ser produto intelectual, a saber, um design de como os enfermeiros podem ajudar outra (s) pessoa (s) através da enfermagem, ou um sistema de cuidado/atenção. | Derivado Abstrato Geral Variável |
Sistema de enfermagem | Métodos de ajuda e apoio desenvolvidos por enfermeiros no intuito de corresponder às demandas de cuidado do indivíduo (George, 2000). | Primitivo Abstrato Variável |
A análise dos pressupostos da teoria geral do autocuidado de Orem evidencia-os como sendo explícitos e implícitos. A teoria geral do autocuidado apresenta explicitamente pressupostos para cada uma das três teorias que compõem o constructo teórico, entretanto alguns pressupostos foram reconhecidos como implícitos na teoria, são eles: momentaneamente, o indivíduo pode ser incapaz de engajar-se no seu autocuidado; o autocuidado é uma atividade que não tem de, necessariamente, ser só desenvolvida pelo próprio indivíduo; um indivíduo pode ser emancipado para exercer o autocuidado a partir de um sistema de apoio-educação (Orem, 1995).
Foram analisadas, ainda, as proposições das teorias que compõem a teoria geral do autocuidado de Orem, a teoria do autocuidado, do déficit de autocuidado e dos sistemas de enfermagem, conforme expõem as Tabelas 2, 3 e 4.
Teoria do autocuidado | ||
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Proposições | Análise | |
Os materiais continuamente fornecidos ou sustentados por meio do autocuidado ou do cuidado dependente são materiais essenciais para a vida, a saber, ar, água e alimentos. | Determinista | |
Condições que são fornecidas ou mantidas por meio do autocuidado ou do cuidado dependente estão relacionadas com: engajamento seguro em funções excretórias humanas; eliminação sanitária de excrementos humanos; cuidado higiênico pessoal; manutenção da temperatura corporal normal; proteção contra riscos ambientais e auto-impostos; e o que é necessário para desdobramentos e funcionamento físicos, cognitivos, emocionais, interpessoais e sociais. | Existente | |
A qualidade e quantidade dos materiais e as condições fornecidas ou mantidas por meio do autocuidado ou do cuidado dependente devem estar dentro de uma faixa que seja conhecida como compatível com o que é biologicamente requerido para a vida humana, para a integridade do desenvolvimento humano, bem como integridade da estrutura e funcionamento humanos. | Determinista e Contingente | |
O autocuidado ou o cuidado dependente realizado por pessoas com a intenção de fazer o bem para si ou para os outros pode ficar aquém das condições focais e dos objetivos buscados por causa de sua falta de conhecimento e habilidades ou outras limitações de ação. | Relacional e estocástica | |
O envolvimento no autocuidado ou no cuidado dependente envolve o desempenho das operações para estimar ou estabelecer o que pode e deve ser feito, para decidir o que será feito e as operações para produzir atendimento. | Relacional | |
O autocuidado ou o cuidado dependente é trabalho que exige tempo, dispêndio de energia, recursos financeiros e disposição continuada das pessoas para se engajarem nas operações de autocuidado ou dependentes. | Condicional | |
O autocuidado ou o cuidado dependente realizado ao longo do tempo pode ser entendido (intelectualizado) como um sistema de ação (sistema de autocuidado, sistema de cuidados dependentes) quando existe informação válida e confiável sobre as medidas de cuidado realizadas e a conexão ligações entre eles. | Condicional | |
As medidas de cuidado selecionadas e realizadas no autocuidado e no cuidado dependente são especificadas pelas tecnologias ou métodos selecionados para uso, a fim de atender aos requisitos conhecidos ou estimados de regulação da funcionalidade ou desenvolvimento (requisitos de autocuidado). | Determinista |
Teoria do déficit de autocuidado | ||
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Proposições | Análise | |
As pessoas que praticam o autocuidado têm capacidades especializadas para a ação. | Coexistente | |
A capacidade de o indivíduo se engajar no autocuidado é condicionada pela idade, pelo estado de desenvolvimento, pela orientação sociocultural e pela disponibilidade de recursos. | Condicional e Sequencial | |
As relações das habilidades individuais de autocuidado podem ser determinadas quando seus valores são conhecidos. | Necessária | |
A relação entre as habilidades de autocuidado e a demanda de autocuidado é estabelecida em termos de: igual a; maior que; e menor que. | Existente e determinista | |
A enfermagem é um serviço legítimo, tanto quando as habilidades de autocuidado são menores que a demanda de autocuidado (quando há um déficit na relação) como quando as habilidades de autocuidado são maiores ou iguais à demanda de autocuidado, uma vez que um futuro déficit na relação pode ocorrer (déficit esperado). | Reversível | |
As pessoas com déficits de autocuidado existentes ou esperados estão ou estarão em um estado de dependência social, o qual legitima a relação de enfermagem. | Relacional, contingente ou condicional | |
O déficit de autocuidado pode ser permanente ou transitório. | Existente | |
O déficit de autocuidado pode ser total ou parcialmente eliminado ou superado quando as pessoas com déficit possuem as capacidades humanas, as disposições e as concordâncias necessárias. | Estocástica | |
Os déficits de autocuidado, quando expressos pelas limitações das pessoas para o engajamento nas operações de autocuidado, orientam a seleção dos métodos de ajuda e o entendimento das funções do paciente no autocuidado. | Substituível |
Teoria dos sistemas de enfermagem | ||
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Proposições | Análise | |
Os destinatários dos cuidados de enfermagem são as pessoas cujo autocuidado é parcialmente ou totalmente inadequado para a satisfação dos seus requisitos de autocuidado. | Relacional Contingente | |
No projeto do sistema de enfermagem, o enfermeiro busca informações necessárias para os julgamentos da demanda de autocuidado terapêutico. | Determinista | |
A natureza compensatória dos sistemas de enfermagem é especificada pela necessidade imediata do paciente de satisfazer a sua demanda de autocuidado terapêutico, visto sua inabilidade para desenvolver as ações de autocuidado. | Determinista | |
As limitações de ações de autocuidado podem ser superadas por meio dos sistemas de enfermagem. | Substituível | |
A estrutura do sistema de enfermagem varia de acordo com a capacidade do paciente para o conhecimento e satisfação de sua demanda de autocuidado terapêutico para superar suas limitações. | Contingente | |
A estrutura, o conteúdo e os resultados dos sistemas de enfermagem variam de acordo com o poder de ação de enfermagem e a disposição do enfermeiro em exercer esse poder, a depender de fatores internos ou externos que facilitam ou impedem esse exercício. | Substituível | |
A integração dos sistemas de enfermagem varia de acordo com a capacidade do paciente em interagir e comunicar-se com o enfermeiro, bem como com a capacidade do enfermeiro em interagir e comunicar-se com o paciente. | Relacional Contingente |
A etapa de “Crítica” da teoria do modelo de Meleis é subdividida entre clareza, consistência, simplicidade/complexidade, tautologia/teleologia, diagrama, círculo de adesão, utilidade e componentes externos. Dentro da crítica da utilidade, fez-se um recorte para analisar criticamente a utilidade da teoria especificamente na prática.
Mesmo tratando-se de uma grande teoria, onde a aplicabilidade é mais abrangente, amplamente conceituada e contempla áreas mais gerais dentro da enfermagem enquanto disciplina (McEwen & Wills, 2009; Queirós et al., 2014), ela tem sido aplicada na prática de enfermagem dentre contextos diversos, desde contextos de assistência materno-infantil (Alencar et al., 2016) a contextos de assistência de enfermagem a idosos (Tomey & Aligood, 2002; Santos et al., 2018), bem como tem sido utilizada em contextos de adoecimento pelo diabetes mellitus, insuficiência renal, hemodiálise, transplante renal, oncologia, doenças psiquiátricas, controle da dor, stress de cuidadores, cuidados intensivos, saúde ocupacional (Taylor, 2002), em pessoas com estomia de eliminação intestinal (Carvalho et al., 2017), bem como no ensino e na pesquisa por meio de composições curriculares de universidades e escolas de enfermagem (McEwen & Wills, 2009).
Atualmente, a teoria é aplicada na prática assistencial, na administração em enfermagem, bem como na pesquisa. Percebe-se, correlata ao entendimento exposto na teoria, uma valorização atual do estímulo por meio de ações educativas e/ou respeito pelo indivíduo enquanto empoderado e independente para decisões e atitudes referentes à sua saúde, que posiciona o profissional como facilitador da reflexão crítica acerca do autocuidado (Barroso et al., 2010). Assim, desde a decisão por autocuidar-se até a impossibilidade desta por algum fator determinante (condições patológicas, falta de recursos, fatores ambientais, entre outros) demonstram a relevância da teoria para o contexto da enfermagem atual, permitindo considerá-la como uma teoria aplicável atualmente.
Uma teoria de enfermagem é estruturada contemplando os conceitos do meta paradigma da enfermagem, este constituído por quatro conceitos centrais, a saber: o ser humano, a saúde, o meio ambiente e a enfermagem (Fawcett, 2005). Estes conceitos foram adaptados pela teórica e ganharam definição na teoria geral do autocuidado a partir de um olhar específico (Orem, 1995). Em complementaridade, alguns outros conceitos centrais compõem a teoria geral do autocuidado: capacidade de autocuidado, ações de autocuidado, demanda de autocuidado terapêutico, déficit de autocuidado e capacitação em enfermagem. Quatro destes conceitos estão direcionados a quem necessita do cuidado de enfermagem e apenas um voltado para o enfermeiro (Braga & Silva, 2011). Alguns autores ainda reconhecem como termos teóricos da teoria os seguintes: autocuidado/cuidado de dependentes, agência de autocuidado/agência de cuidado de dependentes, requisitos de autocuidado (universais, de desenvolvimento, de desvio), demanda de autocuidado terapêutico, ação deliberada, produto de enfermagem, sistema da enfermagem (McEwen & Wills, 2009; Tomey & Aligood, 2002; Orem, 1995). Realizou-se a análise destes conceitos quanto ao caráter derivativo, de abstração, do grau de generalidade e de variação.
Orem identificou reivindicações filosóficas para sustentar seu trabalho sob a forma de hipóteses e premissas sobre seres humanos, enfermagem e autocuidado; e pressupostos que se destinam às teorias de autocuidado, déficit de autocuidado e sistema de enfermagem. Dentre as reivindicações filosóficas de Orem, têm-se proposições que se destacam, uma delas indica a valorização da capacidade dos indivíduos para cuidar de si e dos outros, sendo necessária a intervenção dos profissionais de saúde apenas quando surgem déficits de autocuidado reais ou potenciais (Fawcett, 2005). Esta é uma proposição relacional, segundo Meleis, pois explica uma relação de condição para a atuação do enfermeiro, podendo ser também uma proposição contingente ou condicional (Meleis, 2012). Além disso, espera-se que as pessoas sejam responsáveis por si mesmas e por procurar ajuda quando não for possível manter o autocuidado terapêutico ou o cuidado de dependentes (Fawcett, 2005), o que representa uma proposição substituível, pois é necessário buscar auxílio da enfermagem por meio dos sistemas de suporte quando incapaz de exercer o autocuidado, mas também quando não for possível o cuidado com um dependente (Meleis, 2012).
Com relação ao critério de abrangência da teoria sobre as diversas áreas da enfermagem, é necessário percebê-la para além dos contextos preventivos e de promoção da saúde, valorizando-a no contexto de ações de autocuidado de doentes (Taylor, 2002) e do indivíduo frente a contextos de enfrentamento, como por exemplo, da infecção pelo HIV/Aids (Santos et al., 2018; Trettene et al., 2017).
A teoria geral do autocuidado de Orem direciona a prática de enfermagem ao definir o constructo de requisitos de autocuidado, onde se faz alusão às atividades dirigidas à provisão do cuidado universal, de desenvolvimento e de desvio de saúde. Esses requisitos referem-se às ações necessárias ao provimento do autocuidado, que podem ser desenvolvidas tanto pelo próprio indivíduo quanto pelo enfermeiro (Orem, 1991). O momento em que a prática de enfermagem se manifesta para satisfazer as necessidades de autocuidado do indivíduo é contemplado pela teoria do déficit do autocuidado (Orem, 1995).
Além disso, o direcionamento que a teoria geral do autocuidado fornece à prescrição de enfermagem pode ser percebido na teoria dos sistemas de enfermagem, que sustenta o planeamento de enfermagem e consiste numa ferramenta da prestação do cuidado (Braga & Silva, 2011). Essa prática do enfermeiro em prol de levar o indivíduo à independência para o autocuidado pode ser baseada em ações educativas em saúde e também em substituição à ação do indivíduo, quando este não for capaz de prover o seu autocuidado.
O nível de abstração das ideias contidas na teoria permite a identificação de formas aplicáveis dos conceitos na prática. Entretanto, a compreensão dos conceitos da teoria geral do autocuidado requer uma apropriação contextual e individual destes, para que se possa contemplar o sentido amplo e inter-relacionado dos mesmos na aplicabilidade prática. Se isolados os conceitos, sem compreensão integrada, a aplicabilidade pode ser limitada pela superficialidade da compreensão da ideia de autocuidado, mantendo o vínculo deste apenas à ações desenvolvidas pelo indivíduo em prol de si mesmo e limitando todo o universo de cuidado desempenhado pelo enfermeiro nesta realidade.
Considerando que em todas as áreas de atuação da enfermagem é necessário o estímulo do envolvimento do indivíduo no seu autocuidado, desde quando se referindo a cuidados preventivos até quando a cuidados curativos, pode-se inferir que a teoria é abrangente o suficiente para se estender às mais diversas áreas assistenciais da enfermagem. Quanto à área de administração em enfermagem, sabe-se que o desde planeamento da assistência, incluindo o tempo que o enfermeiro precisa de destinar ao cuidado do indivíduo, o quantitativo de profissionais necessários em determinado serviço, o índice de segurança técnica e a organização do serviço enquanto espaço de assistência sofrem influência direta da capacidade e disponibilidade do indivíduo e dos seus familiares para o autocuidado (Gomes & Moya, 2015).
Os conceitos centrais da teoria do autocuidado remetem a um contexto de prevenção. Ao considerar as demandas de autocuidado para determinar o responsável pelos requisitos de autocuidado, o indivíduo pode estar inserido enquanto sujeito das suas ações preventivas e de enfrentamento onde o autocuidado for necessário. Sendo assim, a teoria considera que a enfermagem só deve ser acionada quando há déficit na relação entre a demanda de autocuidado e a capacidade do indivíduo para o autocuidado (Orem, 1995). Esse estabelecimento de prioridade de atuação do próprio indivíduo no seu autocuidado, o reconhecimento do potencial de ação da enfermagem por meio do sistema apoio-educação e parcialmente compensatório bem como o próprio caráter preventivo da teoria reduzem custos na sua aplicabilidade, sugerindo garantia de viabilidade financeira.
Estabelecendo uma relação entre a teoria e sua aplicabilidade ao processo de enfermagem, compreendem-se os diagnósticos/resultados de enfermagem como indicadores de déficits no autocuidado, que apontam para as demandas de autocuidado, definindo necessidades da intervenção de enfermagem por meio da teoria dos sistemas de enfermagem parcialmente compensatório, totalmente compensatório e apoio-educação.
A correlação dos conceitos e pressupostos da teoria ao processo de enfermagem já podia ser percebida em outro estudo, onde os diagnósticos/resultados de enfermagem foram identificados como indicadores de déficit no autocuidado (Santos et al., 2018), corroborando a capacidade da teoria do autocuidado em subsidiar e nortear a prática sistematizada do enfermeiro bem como a prescrição de enfermagem.
A teoria contém linguagem clara e compreensível para os profissionais de enfermagem, de modo que os seus conceitos e pressupostos voltados a orientar a prática de enfermagem demonstram serem compreendidos e executados face a diversos contextos.
Refletir criticamente a utilidade da teoria na prática com a clientela de mulheres idosas com vulnerabilidade relacionada com o HIV/Aids enfatizou a necessidade da prática se basear nas teorias de enfermagem, de modo a posicionar o enfermeiro como um profissional de atuação técnico-científica, mas também reflexiva e transformadora.
Conclusão
O modelo de análise apresentou-se como eficaz à avaliação da teoria geral do autocuidado, evidenciando que a mesma apresenta conceitos primitivos, abstratos, concretos, variáveis, derivados e gerais bem como pressupostos explícitos e implícitos e proposições deterministas, estocásticas, existentes, contingentes, relacionais, condicionais, coexistentes, sequenciais, necessárias, reversíveis e substituíveis, de acordo com a análise que propõe Meleis.
A orientação do processo de análise teórica por meio do modelo de Meleis permitiu a confirmação da utilidade da teoria geral do autocuidado de Orem na prática de enfermagem por meio do reconhecimento dos itens que validam a utilidade de uma teoria na prática segundo estabelece o referencial de análise de Meleis.
Assim, concluiu-se que a teoria direciona a prática, apresenta uma estrutura para a prescrição de enfermagem por meio da teoria dos sistemas de enfermagem e da contemplação do processo de enfermagem dentre os seus conceitos centrais, que ela ainda abrange diversas áreas da enfermagem enquanto profissão prática, de investigação e em administração. Identificou-se que a teoria pode ser considerada relevante atualmente, e que a mesma é aplicada na prática. Sugere-se viabilidade financeira para a teoria do autocuidado de Orem a partir do seu contexto preventivo e parcialmente compensatório e considera-se que a compreensão da teoria se faz eficaz a partir do aprofundamento em conceitos, pressupostos e proposições, fugindo da superficialidade do olhar ao termo autocuidado tão-somente.