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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.1 Coimbra dez. 2022  Epub 18-Nov-2022

https://doi.org/10.12707/rv21117 

Artigo Teórico/Ensaio

Desenvolvimento da liderança por enfermeiros: Ensaio teórico reflexivo à luz da organização de aprendizagem de Peter Senge

Developing nursing leadership: Theoretical essay based on Peter Senge’s concept of learning organization

Desarrollo del liderazgo por parte de los enfermeros: Ensayo teórico reflexivo según la organización de aprendizaje de Peter Senge

Ises Adriana Reis dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-5858-5537

Simone Coelho Amestoy1  2  3 
http://orcid.org/0000-0001-8310-2157

Gilberto Tadeu Reis da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-0595-0780

1 Universidade Federal da Bahia, Escola de Enfermagem, Programa de Pós-Graduação,Salvador, Bahia, Brasil

2 Universidade Federal de Pelotas, Escola de Enfermagem, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil

3 Universidade Federal do Vale de São Francisco, Escola de Enfermagem, Petrolina, Pernambuco, Brasil


Resumo

Enquadramento:

Este ensaio teórico apresenta uma reflexão sobre o uso dos preceitos teóricos de Peter Senge, com a organização de aprendizagem a partir das cinco disciplinas e da ecologia da liderança, como instrumentos para o desenvolvimento da liderança por enfermeiros em ambiente hospitalar.

Objetivo:

Refletir acerca dos conceitos da organização de aprendizagem de Peter Senge, a partir das disciplinas do pensamento sistémico, domínio pessoal, modelos mentais, visão compartilhada e aprendizagem em equipa, como um recurso para o desenvolvimento da liderança por enfermeiros.

Principais tópicos em análise:

Análise teórica-reflexiva dos conceitos, definições e aplicação da organização de aprendizagem com as cinco disciplinas e a ecologia da liderança na perspectiva de Peter Senge.

Conclusão:

O emprego da organização de aprendizagem de Peter Senge fomenta a reflexão acerca do desenvolvimento da liderança por enfermeiros, o que se coaduna com a necessidade de atuação de profissionais preparados nos serviços.

Palavras-chave: liderança; enfermagem; aprendizagem; papel do profissional de enfermagem; administração de serviços de saúde; organização

Abstract

Background:

This theoretical essay reflects on the use of Peter Senge’s concepts - learning organization, the five disciplines, and the ecology of leadership - as tools for developing nursing leadership in hospital settings.

Objective:

To reflect on Peter Senge’s concepts of learning organization and the disciplines of systems thinking, personal mastery, mental models, building shared vision, and team learning as resources for developing nursing leadership.

Main topics under analysis:

Theoretical analysis of the definitions and use of Peter Senge’s concepts of learning organization, the five disciplines, and the ecology of leadership.

Conclusion:

The use of Peter Senge’s concept of learning organization promotes the reflection on developing nursing leadership, which is consistent with the need for qualified professionals in health services.

Keywords: leadership; nursing; learning; nurse´s role; health services administration; organizations

Resumen

Marco contextual:

Este ensayo teórico presenta una reflexión sobre el uso de los preceptos teóricos de Peter Senge, con la organización de aprendizaje a partir de las cinco disciplinas y la ecología del liderazgo como instrumentos para el desarrollo del liderazgo de los enfermeros en un entorno hospitalario.

Objetivo:

Reflexionar sobre los conceptos de la organización de aprendizaje de Peter Senge, a partir de las disciplinas del pensamiento sistémico, el dominio personal, los modelos mentales, la visión compartida y el aprendizaje en equipo, como recurso para el desarrollo del liderazgo de los enfermeros.

Principales temas en análisis:

Análisis teórico-reflexivo de los conceptos, las definiciones y la aplicación de la organización de aprendizaje con las cinco disciplinas y la ecología del liderazgo desde la perspectiva de Peter Senge.

Conclusión:

El empleo de la organización de aprendizaje de Peter Senge favorece la reflexión sobre el desarrollo del liderazgo por parte de los enfermeros, lo que está en consonancia con la necesidad de contar con profesionales preparados en los servicios.

Palabras clave: liderazgo; enfermería; aprendizaje; papel del profesional de enfermería; administración de los servicios de salud; organización

Introdução

A pandemia gerada pelo vírus SARS-CoV-2 impôs mundialmente uma grave situação de saúde pública, a qual se estende desde março de 2020. Neste contexto de crise, destacou-se a atuação dos profissionais de saúde, em especial a do enfermeiro, como um dos protagonistas da linha da frente no combate ao vírus. Este facto, proporcionou o reconhecimento circunstancial da profissão, mas também a luta histórica pela sua valorização e reconhecimento (Cassiani & Neto, 2018; Viegas, 2020).

Neste sentido, o desenvolvimento da liderança por enfermeiros mostra-se ainda mais relevante e permeia todos os cenários de atuação, na procura por profissionais que apresentem atributos condizentes com a prática, ou seja, comprometidos e resolutos. Percebe-se, no entanto, que esse perfil deve ser construído desde a graduação, aprimorado e aperfeiçoado no decorrer da formação, ao ingressar no mercado de trabalho. Desta forma, torna-se possível agregar as experiências vivenciadas durante o exercício laboral, capacitar-se e estar qualificado para o desempenho das suas competências e atribuições (Dyess et al., 2016; Frota et al., 2020; Santos et al., 2021).

Do mesmo modo, importa realçar o compromisso conjunto das instituições de ensino superior e das organizações de saúde, no sentido de incentivar e fortalecer o desenvolvimento de competências entre enfermeiros (Cassiani & Neto, 2018; Mendes, 2015; Santos et al., 2021).

O advento da globalização favoreceu a aproximação entre as pessoas e as suas culturas, fomentando práticas dialógicas, a socialização de conhecimentos, experiências e redes de relacionamentos. Com isto, houve declínio das hierarquias tradicionais de administração e abertura de espaços e incentivos para a aprendizagem, inovação e adaptação constante (Senge, 2018). Estas influências do macroambiente interferem diretamente nos serviços de saúde e, por conseguinte, na condução das ações a eles relacionadas.

Desta forma, ao olhar para o ambiente hospitalar, enquanto uma organização complexa e laborativa, torna-se imprescindível a criação de espaços de aprendizagens que ajudem os profissionais inseridos neste contexto, sobretudo no que se refere à influência da cultura organizacional. Neste sentido, a utilização da organização de aprendizagem permite que os sistemas hospitalares e os seus colaboradores possam adotar, desenvolver e adaptar soluções baseadas em evidências efetivas e eficazes nos serviços (Lyman et al., 2018).

Assim, a aplicação de abordagens facilitadoras para o desenvolvimento de enfermeiros-líderes no contexto hospitalar emerge como recurso de integração do conhecimento, pautado num modelo de transformação do sistema (Santos et al., 2021), a exemplo da obra “learning organization”. Neste estudo, especificamente, citar-se-á a “organização de aprendizagem”, fundamentada nas cinco disciplinas da organização que aprende de Peter Senge (2018).

Este aporte teórico, embora proveninente da área administrativa, tem vindo a ser adotado na área da saúde e enfermagem, procurando provocar a ressignificação das ações. Trata-se de um convite à mudança de mentalidade e comportamento, descrita por Senge (2018) como “Metanoia”, o qual, para entender o seu significado, afirma ser necessário apreender a essência da aprendizagem.

Para o autor, a “organização de aprendizagem” possui a capacidade de mudar os sistemas que estão subjacentes à organização, para criar comportamentos e eventos diferentes. Este conceito representa uma fonte de vantagem competitiva do futuro (Senge, 2018). A obra traz um pensamento profundo sobre cinco disciplinas como abordagens teóricas e metodológicas para o desenvolvimento das capacidades centrais da aprendizagem em grupo, a partir das aspirações (domínio de si mesmo; visão compartilhada com o grupo); conversas reflexivas (modelos mentais e o diálogo); e entendimento das complexidades (pensamento sistémico).

Na saúde e na enfermagem, no que concerne ao uso dos preceitos teóricos de Senge (2018) para o desenvolvimento de competências, especificamente a liderança do enfermeiro, pode-se afirmar que esta se baseia no princípio de que a adoção de uma postura de liderança não significa assumir um cargo, mas sim exercer uma das competências de gestão do enfermeiro considerada essencial para a adequação e melhoria dos serviços oferecidos à população (Amestoy et al., 2017; Santos et al., 2021).

Deste modo, cabe mencionar que a liderança, neste contexto, é a capacidade de o enfermeiro, enquanto líder, influenciar a sua equipa para o alcance de objetivos compartilhados, com o intuito de promover saúde e bem-estar aos utentes dos serviços de saúde, famílias e comunidades. Trata-se de uma competência considerada imprescindível e que precisa de ser desenvolvida mediante estratégias que promovam a sua aprendizagem constante.

Na enfermagem, a aplicação da organização de aprendizagem e atuação da liderança convergem para o mesmo objetivo, dadas as características do líder de influenciar e motivar a equipa. Neste processo, destacam-se a comunicação efetiva, as conversas reflexivas e ideias compartilhadas, como ferramentas de aproximação, envolvimento e a sua valorização entre o grupo nos processos de mudanças da organização (Lyman et al., 2018, 2019, 2020).

Estes elementos são considerados essenciais para minimizar a rotatividade e insatisfação dos profissionais, bem como para garantir o cumprimento dos objetivos propostos, o que, por sua vez, contribui para a prestação de cuidados com qualidade e segurança. Tendo em conta o acima exposto, este ensaio teórico reflexivo tem por objetivo refletir acerca dos conceitos da “organização de aprendizagem de Peter Senge”, a partir das cinco disciplinas da organização que aprende, como um recurso para o desenvolvimento da liderança por enfermeiros.

Desenvolvimento

As disciplinas definidas por Senge (2018), constituem teorias e técnicas voltadas para a transformação das atitudes. São conhecidas como “disciplinas avançadas”, que necessitam de estudo e domínio para a obtenção do propósito de se praticar, repercutido na melhoria para aquisição de determinadas habilidades ou competências.

Para entendimento dessas disciplinas da organização de aprendizagem, serão discutidas, nas próximas secções, as cinco disciplinas da organização de aprendizagem e a ecologia da liderança da organização de aprendizagem.

As cinco disciplinas da organização de aprendizagem

A organização de aprendizagem, de acordo com Senge (2018), refere-se ao aprimoramento contínuo dos conhecimentos, habilidades e atitudes em prol do alcance de propósitos comuns. Para tanto, é vital que as pessoas inseridas nesse cenário estejam dispostas e comprometidas a trabalhar em equipa, para, então, apreenderem em todos os níveis da organização. Outro facto descrito pelo autor é a necessidade de saber reconhecer e distinguir as organizações que aprendem daquelas caracteristicamente controladoras e autoritárias (Santos et al., 2021).

Atualmente, a organização de aprendizagem de Peter Senge (2018) é reconhecida como uma nova visão para a gestão de organizações eficazes (Lyman et al., 2018; Senge, 2018). Essa capacidade de aprendizagem caracteriza-se pela junção de indivíduos e equipas na procura da melhoria da qualidade dos serviços. As ações são compartilhadas e discutidas com o grupo, no intuito de obter resultados efetivos em relação aos cuidados prestados.

São cinco as disciplinas descritas: domínio pessoal, modelos mentais, visão compartilhada, aprendizagem em equipa e pensamento sistémico.

Na proposição de Senge (2018), o domínio pessoal corresponde às pessoas que apresentam elevado nível de competência, proficiência e responsabilidade, bem como comprometimento e empreendedorismo individual. Tais características são consideradas chaves-motriz para o fortalecimento da organização, por estimularem o crescimento dos seus profissionais (Senge, 2018).

Na enfermagem, o domínio pessoal refere-se à escolha individual, associada a uma análise criteriosa entre o real e o almejado, que suscita a prática e o aperfeiçoamento das competências e habilidades. Por outras palavras, trata-se da visão pessoal implementando a tensão criativa capaz de gerar a energia dinâmica necessária para obter êxito no futuro.

Neste sentido, a atuação do líder reflete a necessidade de conhecer as suas capacidades, fragilidades e limitações, a fim de melhorar a sua performance nos serviços e nas relações com a equipa e demais profissionais. Remete à otimização da inteligência emocional para a tomada de decisão e resolução de conflitos, à dialogicidade e ao conhecimento dos serviços e da sua equipa.

O contraste das diferentes perceções de cada indivíduo pela capacidade individual de se aperceber de determinada situação sob as mais variadas perspetivas, evidencia os modelos mentais. Estes correspondem aos conceitos que emergem como soluções de melhoria nas organizações, mas deixam de ser praticadas por influência das preconcepções pessoais (Senge, 2018).

Nos serviços, os modelos mentais podem ser obstáculos criados a partir dos pensamentos arraigados, que impossibilitam ou limitam a elaboração e implementação das mudanças, refletidos negativamente pela forma de pensar e agir. Podem, ainda, traduzir generalizações simples ou teorias complexas, filtros que moldam as formas de compreender e ver o mundo, neste caso, o contexto no qual se está inserido (Yaghoubi et al., 2010). Para o enfermeiro-líder, tais pensamentos ou comportamentos podem gerar insegurança e prejudicar ou limitar as suas ações na organização e para com a equipa, sendo necessário, portanto, aperfeiçoar o domínio pessoal.

As perceções e sentidos pessoais referem-se à visão compartilhada, que traz na sua essência a similaridade com o conceito amplamente divulgado sobre liderança, por remeter para a capacidade do indivíduo de compartilhar ideias para alcançar objetivos comuns, mediante o estímulo ao engajamento do grupo. Representa, então, o alicerce para a expansão da organização que aprende pela adesão ao comprometimento genuíno, em vez da mera obediência (Senge, 2018; Yaghoubi et al., 2010).

O uso da visão compartilhada pelo enfermeiro propicia a transformação do cenário e, para tal, o estímulo do líder ao engajamento e colaboração do grupo é primordial. Com estas ferramentas, este pode motivar os membros da equipa para o alcance de propósitos comuns, integrando-os nos serviços e compartilhando as ações.

Outra disciplina, aprendizagem em equipa, apoia-se na visão compartilhada e no domínio pessoal e contempla a repercussão dos resultados esperados pelos membros da equipa. Tal disciplina necessita de ser reconhecida e apreendida por todos para o desempenho das suas ações, pois, de acordo com Senge (2018), não adianta nada, a aprendizagem em uma organização alcançar as pessoas individualmente, uma vez que não assegura que essas ações sejam propagadas pelo todo, ou seja, ecoem coletivamente.

O autor ainda menciona três dimensões críticas. Pensar reflexivamente sobre os assuntos complexos, o que demanda lançar mão do potencial de várias mentes; adotar ações inovadoras e coordenadas, a fim de assegurar a confiança sistematizada, de modo que cada membro atue de forma a complementar as ações dos outros; e reconhecer o papel dos membros da equipa em outras equipas, na promoção da aprendizagem constante, estimulando a disseminação das práticas e habilidades para o alcance amplo de todas as equipas (Senge, 2018).

Na enfermagem, o líder necessita de identificar quais são as necessidades locais, para então capacitar os seus colaboradores. Dessa forma, ele atua como um facilitador na construção e compartilhamento do conhecimento do grupo, reconhecendo e valorizando as suas experiências.

A última disciplina, pensamento sistémico, é definida por Senge (2018) como a quinta disciplina e constitui o cerne dos demais elementos, os quais se inter-relacionam e estabelecem conexões entre si. É também apresentada como uma “disciplina gerencial e de liderança” (Senge, 2018, p. 9), por entender o seu significado a partir do elo de integração entre todas as outras disciplinas de forma a fundir-se entre si “num corpo coerente de teoria e práticas” potencializando-as (Senge, 2018, p. 46). Trata-se de um conjunto de conhecimentos e ferramentas que apresenta na sua estrutura, meios de solucionar problemas complexos, mediante um pensamento claro e coerente, isto é, contribui para a elucidação de paradigmas (Santos et al., 2021; Senge, 2018). Ademais, parte do princípio de considerar as pessoas como participantes ativos na construção das suas realidades.

Na compreensão de que “fazer o óbvio não produz o resultado esperado e desejado”, entende-se que a adoção efetiva do pensamento sistémico vem da necessidade de perceber a existência de dois tipos de dificuldades (Senge, 2018, p. 131). A primeira delas, a complexidade de detalhe, encontra-se permeada por múltiplas variações, ditas como círculos viciosos, e a segunda, complexidade dinâmica, é representada pelas situações de causa e efeito, tidas como mais hábeis na intervenção, visto que os seus impactos não são percebidos claramente ao longo do tempo (Senge, 2018).

Senge (2018) esclarece que a prática de dar crédito à complexidade de detalhes resulta no insucesso das organizações, gerando o círculo vicioso. Segundo ele, é imprescindível reconhecer a inter-relação existente entre as causas do problema, para então procurar a solução por meio da complexidade dinâmica, quer dizer, na ocorrência de situações inesperadas, há a necessidade de antever as ações, por meio do planeamento, preparando-as de maneira sistemática e analítica para atender uma necessidade maior, do que meramente “apagar fogo”, ou seja, de buscar soluções momentâneas, aquelas que são resolvidas durante o surgimento dos problemas, mas, que tornam a aparecer posteriormente.

O enfermeiro-líder com pensamento sistémico precisa de assimilar o todo para entender as complexidades e reconhecer a inter-relação das estruturas. Isso permite que identifique as prioridades dos serviços, bem como as suas necessidades e conexões.

Diante do exposto, compreende-se que a aplicação desses conceitos pode ser exemplificada no contexto da gestão de enfermagem, pelo propósito de prestar uma assistência adequada e efetiva ao indivíduo. Todavia, para que isso ocorra, há diversos processos que comunicam entre si durante a operacionalização do cuidado.

A ecologia da liderança da organização de aprendizagem

Na perspetiva de Senge (2018), a organização de aprendizagem com as cinco disciplinas aborda o novo papel do líder e, para tal, apresenta a “ecologia da liderança”. Caracterizada como uma liderança inovadora, que estimula os seus membros, tanto individual como coletivamente, para enfrentarem os desafios que surgem. Para tal, tem-se mostrado capaz de provocar mudanças de comportamento (Senge, 2018). O entendimento da ecologia da liderança fornecerá subsídios aos enfermeiros para desenvolvê-la e aplicá-la de forma mais assertiva na sua prática profissional.

A liderança possui diversos conceitos, os quais abarcam a capacidade individual ou coletiva de influenciar pessoas para o alcance de objetivos comuns, bem como a partilha de conhecimentos e o incentivo de ações voltadas para a melhoria da qualidade dos cuidados e da força de trabalho (Amestoy et al., 2017; Boamah et al., 2018; Smith, 2015). De acordo com Lyman e colaboradores (2019), a liderança envolve a implementação, execução, orientação, facilitação e sustentação de melhorias e aprendizagem numa organização.

Para Senge (2018), a liderança exercida numa organização que aprende é desafiante por incitar a transformação nos diversos cenários de atuação. Segundo o autor, no passado, a liderança era associada a uma sabedoria em decorrência do poder, mas, na contemporaneidade, tem sido relacionada a condutas autoritárias, impositivas de comando e controlo. Esta perspetiva reforça o desconhecimento das pessoas sobre a liderança em face da ausência de ações condizentes com a prática da organização de aprendizagem, ou seja, que estejam engajadas com as mudanças que desejam alcançar.

No entanto, o distanciamento do conceito da organização de aprendizagem, retrata uma das limitações das organizações, reforçando a percepção arraigada de que apenas as pessoas nos cargos de gestão são responsáveis pelas mudanças. Isso também é acentuado pelas relações de poder, em virtude do pensamento fragmentado de empoderamento, o qual reitera que para liderar é preciso delegar, controlar e chefiar, gerando assim a insatisfação, descontentamento e desmotivação de um coletivo (Cardiff et al., 2018).

Senge (2018, p. 489) afirma que tais pressuposições “significam uma confusão trágica e profunda”, ao considerar que outras pessoas não são capazes de exercer a liderança, tampouco de provocar o acontecimento das mudanças. Em virtude do reconhecimento dessa confusão, o autor conjeturou a existência de uma “ecologia da liderança”, suscitando a inter-relação dessas lideranças, o seu grau de importância e contribuições para a operacionalização das ações dentro da organização de aprendizagem. Ainda segundo ele, o desempenho de uma está intimamente relacionado com o de outras, sendo descritas como: liderança local na linha de frente; liderança de rede; e liderança executiva.

Na enfermagem, alguns estilos de liderança assemelham-se aos modelos supracitados, a exemplo da liderança transformacional e liderança autêntica.

O autor reconhece os profissionais que atuam na Liderança local na linha da frente como agentes autónomos, responsáveis pelas mudanças na organização e pelos resultados alcançados. Essas mudanças são fruto de diversas ações para integração de práticas inovadoras à rotina dos serviços, na testagem da eficiência das ferramentas de pensamentos sistémicos associada aos modelos mentais, a fim de intensificar o diálogo na construção de visões compartilhadas (Senge, 2018).

Senge (2018, p. 487) ainda complementa que “sem os líderes locais na linha de frente, as novas ideias, por mais instigantes que sejam, não são traduzidas em ação e as intenções relativas às iniciativas oriundas do topo podem facilmente ser obstruídas”.

Nesse aspecto, há uma similitude das ações promovidas pelos líderes locais na linha de frente com a liderança transformacional, pelo facto de o líder apresentar comportamentos e atributos motivacionais, inovadores e de empreendedorismo, além de promover uma relação horizontalizada. Dessa forma, ele incentiva o empoderamento e a participação da equipa nos seus resultados (Boamah et al., 2018; Ferreira et al., 2018).

Já a liderança de rede tem os líderes como agentes multiplicadores e conectores que contribuem com a propagação e disseminação das ações e experiências exitosas. Trabalham em parceria com os líderes locais nas linhas da frente e na criação das habilidades específicas, incorporando as práticas inovadoras (Senge, 2018).

Semelhante à liderança de rede, um novo modelo comportamental/participativo tem vindo a ser discutido no cenário da saúde e enfermagem: a liderança autêntica. Esta, é tida como essencial para a construção de cenários de trabalho e empoderamento profissional, por refletir na melhoria do clima organizacional e estimular a oferta de serviços com qualidade (Laschinger & Fida, 2015).

O terceiro exemplo que compõe a “ecologia da liderança” citado por Senge (2018) é a liderança executiva, que trata da gestão organizacional, responsável pelo ambiente laboral como um todo. Contempla o desenvolvimento, planeamento e implementação dos modelos de trabalho, mediante a criação de missão, visão e valor. Os líderes executivos traçam as mudanças e os propósitos que a organização pretende alcançar, mas não são, obrigatoriamente, os autores dessas ideias, embora as executem no intuito de assegurar a cultura da organização (Senge, 2018).

A atuação dos líderes executivos é considerada desafiadora e fundamental, sobretudo para amenizar possíveis barreiras contra as práticas inovadoras, principalmente no enfrentamento dos sistemas de medidas e de recompensas. Nesse sentido, a liderança executiva dá voz e razão aos conceitos e valores da organização, na efetivação das mudanças que pretende motivar num cenário que apresenta um sistema verticalizado de ações, no qual ainda predominam as relações de poder.

Alguns estudos na enfermagem retratam o líder executivo como um influenciador e facilitador do processo de trabalho, e evidenciam os seus atributos de comprometimento, confiança e comunicação como habilidades e atitudes relacionais de integração. O líder executivo é descrito como alguém que valoriza a participação e colaboração da equipa, na procura de resultados melhores e na transformação da organização (Silva et al., 2016).

Para Senge (2018, p. 488), “são exemplos vivos que precisam incorporar os valores e as aspirações da organização, se for para elas receberem algum crédito”. Reconhecido como aquele que exerce o “impacto simbólico da autoridade hierárquica”, este profissional é também apontado como “o mais importante para a mudança”.

Em suma, nota-se a necessidade de conhecer a estrutura organizacional e entender como se dão os processos de trabalho para a consecução dos serviços, uma vez que cada área se relaciona entre si e de maneira interdependente, conforme prevê a “ecologia da liderança” denominada por Senge (2018), como: liderança local na linha de frente; liderança de rede e liderança executiva. Estas, são representadas por lideranças que estão presentes nas diferentes áreas da organização e desempenham atribuições na elaboração/criação, suporte/apoio e validação das ações.

Outro ponto a ser destacado é a “nova visão da liderança nas organizações que aprendem”, também citada por Senge (2018, p. 489) como fundamental para a organização da aprendizagem. Neste modelo, os líderes enfrentam as dificuldades e desafios de desempenhar os papéis de “líder como designer, líder como professor e líder como navegador”.

Segundo Senge (2018), o líder como designer vislumbra a organização como um organismo vivo composto por órgãos e sistemas com funções específicas para atender às necessidades vitais do corpo, ou seja, “pode criar artefatos para as organizações (novas medidas, papéis formais ou processos)”, mas valoriza o uso desses artefatos pelas pessoas (Senge, 2018, p. 490).

O autor ressalta ainda que o líder como designer precisa de ter a capacidade de permitir a continuidade das mudanças realizadas pelas outras pessoas, adequando-as às suas realidades, sem controlo do andamento das ações. Segundo ele, o reconhecimento do líder como designer ocorre na “ausência de transtornos”, sinalizando que tal ação não é bem-vista numa “cultura organizacional”, na qual os “líderes são heróis” (Senge, 2018, p. 500).

No que se refere à aprendizagem, Senge (2018) menciona o líder como professor, um mediador simbólico da aprendizagem, na criação de espaços de conhecimentos e como agente facilitador do desenvolvimento. Na organização, o seu trabalho começa na ausência de uma habilidade específica, considerada indispensável, e reforça que antes de se ser um professor, é ser aprendiz.

O líder como navegador ou guia, é referido pelo autor como aquele que fornece e apresenta dois paradoxos. O primeiro, da “certeza e compromisso”, ou seja, ele tem convicção dos seus objetivos e resultados, porém ausência da certeza, o que facilmente conduz à interpretação de que não há um objetivo maior e, assim, é identificado como um “líder limitado” (Senge, 2018, p. 508). O segundo paradoxo é o da “conservação e mudança”, indicando que a liderança resulta em transformação (Senge, 2018, p. 508). Os líderes que atuam individual e coletivamente reorientam as ações e dispõem de um atributo inovador, mas, dependendo da situação, podem ser considerados um pilar na manutenção de algo (Senge, 2018).

Assim como na nova visão da liderança na organização que aprende de Senge (2018), observa-se, na enfermagem, a existência desta sobreposição de estilos/tipos de liderança e/ou características do líder, dos mais clássicos aos contemporâneos. No entanto, o reconhecimento e o entendimento dessa competência ainda são limitados, bem como a compreensão de que não há apenas um estilo de liderança a ser desempenhado pelos profissionais durante o exercício das atividades laborais, dada a complexidade dos serviços (Amestoy et al., 2017a, 2017b; Ferreira et al., 2018; Santos et al., 2021).

Conclusão

Este ensaio teórico procurou refletir alguns conceitos da “organização de aprendizagem de Peter Senge”, a partir das cinco disciplinas da organização que aprende, como um recurso para o desenvolvimento da liderança por enfermeiros.

O autor alerta para a necessidade de transformação de pensamentos, mediante a metanóia, e assinala que a promoção de mudanças depende da adoção de uma postura de compromissos das pessoas inseridas nesse contexto. Desse modo, Senge cita as cinco disciplinas, o domínio pessoal, os modelos mentais, a visão compartilhada, a aprendizagem em equipa e o pensamento sistémico, como uma abordagem metodológica para o aprimoramento, aperfeiçoamento e qualificação dos profissionais para o desempenho das atividades laborais.

Do mesmo modo, apresenta a liderança local na linha de frente, a liderança de rede e a liderança executiva, definidas como “ecologia da liderança”, as quais se inter-relacionam e são necessárias para o funcionamento da organização. Também foram abordados por este autor os diversos papéis do líder (designer, professor, navegador).

Assim, considerando a importância da temática, este ensaio teórico e reflexivo procurou despertar nos profissionais de enfermagem o interesse em desenvolver a liderança, como um instrumento de empoderamento e fortalecimento da profissão, e como um incentivo para a melhoria dos serviços.

Apoiados na organização de aprendizagem de Peter Senge, os enfermeiros, ao conhecer a disciplina do domínio pessoal, podem aprimorar e/ou aperfeiçoar as suas competências e habilidades (técnicas e relacionais), a fim de as potencializar e melhorar a performance nos serviços e nas relações de trabalho. Podem, também, abandonar os seus modelos mentais, com os julgamentos pré-concebidos que limitam ou impedem as mudanças necessárias para a organização e ou para com a equipa. Por outro lado, podem estimular a visão compartilhada, com o engajamento, integração e participação do grupo nos serviços para o alcance dos propósitos comuns e reconhecer, valorizar e estimular a aprendizagem em equipa como uma ferramenta de propagação das ações inovadoras e coordenadas do trabalho conjunto. E, por fim com o auxílio do pensamento sistémico, compreender a inter-relação das estruturas para entender as suas complexidades.

Nesse sentido, o presente estudo tem como implicações para a área da saúde e da enfermagem: fomentar o progresso do conhecimento científico como meio para fortalecer os cuidados prestados à população, e as relações com as equipas (técnicos e auxiliares e multiprofissional). Na prática, estes são ganhos fundamentais, pois otimizam a competência da liderança por enfermeiros, com o apoio e valorização da organização.

Em suma, recomenda-se aplicar os conceitos da organização de aprendizagem de Peter Senge para o desenvolvimento da liderança por enfermeiros, em virtude das constantes mudanças no mercado de trabalho e da complexidade dos serviços. Atualmente, é premente a atuação de profissionais preparados para o enfrentamento das mais diversas situações, o que exige conhecer e entender os estilos e tipos de liderança.

Referências bibliográficas

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6Como citar este artigo: Santos, I. A., Amestoy, S. C., & Silva, G. T. (2022). Desenvolvimento da liderança por enfermeiros: Ensaio teórico reflexivo à luz da organização de aprendizagem de Peter Senge. Revista de Enfermagem Referência, 6(1), e21117. https://doi.org/10.12707/RV21117

Recebido: 20 de Setembro de 2021; Aceito: 21 de Abril de 2022

Autor de correspondência Ises Adriana Reis dos Santos E-mail: ises.adriana.reis@gmail.com

Conceptualização: Santos, I. A., Amestoy, S. C., Silva, G. R.

Tratamento de dados: Santos, I. A., Amestoy, S. C., Silva, G. R.

Metodologia: Santos, I. A., Amestoy, S. C., Silva, G. R.

Redação - rascunho original: Santos, I. A.,

Redação - revisão e edição: Santos, I. A., Amestoy, S. C., Silva, G. R.

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