Introdução
Na população masculina, a incontinência urinária (IU) é uma das complicações mais comuns decorrentes da prostatectomia radical (PR; Abrams et al., 2017). Estima-se que em até um ano pós-cirurgia, 40% dos homens experimentam algum grau de IU (Hodges et al., 2020), o que exige avaliação e tratamento (Abrams et al., 2017).
Visto que a gravidade da IU é um importante preditor da qualidade de vida (QV; Bernardes et al., 2019), a International Continence Society (ICS) recomenda que medidas terapêuticas sejam avaliadas não somente por parâmetros clínicos (estudo urodinâmico, ultrassonografia e outros), mas também por meio de instrumentos de avaliação do impacto da IU na QV do paciente (Abrams et al., 2017).
Neste âmbito, questionários específicos buscam avaliar o impacto dos sintomas urinários na vida dos pacientes (Abrams et al., 2017) e, dentre estes, destaca-se o King’s Health Questionnaire (KHQ; Kelleher et al., 1997). Tal instrumento é abrangente, uma vez que investiga tanto a presença de sintomas de IU quanto o impacto destes nos aspectos individuais da QV (Kelleher et al., 1997).
Considerando a importância de se realizar análises que assegurem que um instrumento é válido e confiável para determinado público alvo (Souza et al., 2017) o presente estudo norteou-se pelo seguinte questionamento: “O KHQ é válido e confiável para avaliar o impacto da IU na QV de homens submetidos à PR?”. Dessa forma, objetivo deste estudo consistiu em analisar a validade e a confiabilidade do KHQ em homens prostatectomizados.
Enquadramento
A ICS define IU como qualquer perda involuntária de urina. Esta deve ser descrita num conjunto de fatores específicos, como: tipo, frequência, gravidade, fatores precipitantes, impacto social, efeitos na higiene e outros (Abrams et al., 2017). A IU também pode ser potencializada em homens com idade avançada, infecção do trato urinário, problemas de mobilidade e insuficiência funcional ou cognitiva (Abrams et al., 2017).
Assim, torna-se importante considerar a IU na sua dimensão multifatorial, visto o seu impacto na QV, no bem-estar físico e mental e na realização de atividades quotidianas (Bernardes et al., 2019). Além disso, muitas vezes, outros sintomas urinários também podem estar associados à IU, tais como fluxo fraco, hesitação e gotejamento pós-miccional (Abrams et al., 2017), o que pode comprometer ainda mais a QV.
Sabe-se que a população masculina pode apresentar diferentes níveis de perda urinária decorrentes do procedimento cirúrgico e que o problema pode impactar em isolamento social, bem como no desencadeamento de sentimentos como baixa autoestima, ansiedade e depressão (Abrams et al., 2017).
O KHQ foi originalmente construído e validado no idioma inglês em 1997 (Kelleher et al., 1997) com a finalidade de avaliar o impacto da IU na QV de mulheres. Estudos de validação do instrumento no contexto da população masculina foram conduzidos nos Estados Unidos (Margolis et al., 2011) e Taiwan (Huang et al., 2014), evidenciando adequada validade de conteúdo, construto, bem como aceitável confiabilidade. No Brasil, o KHQ foi validado na população feminina e demonstrou adequada confiabilidade e validade para este público (Tamanini et al., 2003). Contudo, não há publicação referente ao processo de validação do instrumento em homens brasileiros submetidos à PR.
Metodologia
Estudo metodológico com o intuito de verificar as propriedades psicométricas do KHQ em homens submetidos à PR por meio das análises de validade (validade estrutural, critério concorrente e construto convergente) e de confiabilidade (consistência interna dos itens) do instrumento de medida (Souza et al., 2017). As orientações metodológicas foram pautadas na lista de verificação Consensus-based Standards for the selection of the health Measurement Instruments (COSMIN - Normas Baseadas em Consenso para a Seleção de Instrumentos de Medição em Saúde; Mokkink et al., 2019).
Os dados foram colhidos no período de dezembro de 2016 a agosto de 2017, numa unidade de alta complexidade em oncologia vinculada ao Instituto Nacional do Câncer (INCA), Brasil.
A estimativa mínima da amostra (n = 152) foi obtida a partir dos critérios propostos para coeficiente de correlação entre duas variáveis. Considerou-se a correlação mínima entre os domínios do KHQ e o score total de outro instrumento de avaliação do impacto da IU na QV, o International Consultation on Incontinence Questionnaire-Short Form (ICIQ-SF; r = 0,09; Gotoh et al., 2009). Outros parâmetros foram: população finita de pacientes atendidos na instituição em intervalo de dois anos (n = 180), nível de significância de 5% e poder de teste de 95%.
Considerou-se como critérios de inclusão: idade acima de 18 anos; submetidos à PR e em acompanhamento pós-operatório há no mínimo 2 meses e máximo 2 anos; relato de qualquer perda involuntária de urina; capacidade auditiva e verbal autorrelatadas como preservadas; e capacidade cognitiva preservada (miniexame do estado mental). Excluiu-se aqueles em uso de cateter vesical e IU pré-operatória.
O KHQ é um instrumento de oito domínios com 16 itens destinados à avaliação da percepção do impacto da IU na QV. Os domínios percepção geral de saúde, impacto da IU, limitações de atividades diárias, limitações físicas e sociais, relacionamento pessoal, emoções, sono/disposição permitem scores de zero a 100 e quanto maior a pontuação, pior será a percepção da QV relacionada ao domínio específico. O instrumento contém, de forma independente, outras duas subescalas com a finalidade de avaliar a gravidade da IU (cinco itens) e a presença de sintomas urinários (11 itens). As escalas são do tipo likert graduadas em quatro opções de respostas (nem um pouco, um pouco, moderadamente, muito ou nunca, às vezes, frequentemente, o tempo todo), exceto os domínios percepção geral de saúde (muito boa, boa, regular, ruim, muito ruim) e relações pessoais (não aplicável, nem um pouco, um pouco, moderadamente e muito) com cinco opções de respostas (Tamanini et al., 2003).
Para avaliação da validade de critério concorrente, considerou-se o ICIQ-SF, o qual também avalia o impacto da IU na QV, traduzido e validado para o contexto brasileiro em uma amostra de homens e mulheres (Tamanini et al., 2004). No presente estudo, esse instrumento foi considerado critério padrão, uma vez que tem sido amplamente utilizado em pesquisas nacionais e internacionais (Abrams et al., 2017). Este é composto por quatro questões que avaliam frequência, gravidade e impacto da IU, além de oito itens relacionados às causas e situações de IU vivenciadas pelo paciente. O score total varia de zero a 21, sendo que quanto maior o score obtido, pior a QV (Tamanini et al., 2004).
Além da QV relacionada à IU, para avaliação da validade de construto convergente, considerou-se também as variáveis perda urinária em gramas avaliada pelo pad test de uma hora (Krhut et al., 2014), número de absorventes diários avaliada pelo pad used (Ângulo et al., 2018), e presença de IU de esforço e urgência.
O pad test de uma hora consiste no teste de pesagem de um absorvente peniano posicionado próximo ao meato uretral externo. Este absorvente é previamente pesado em uma balança e após o posicionamento, o paciente é orientado a ingerir 500 mililitros de água e aguardar em repouso durante 15 minutos. Em seguida, o mesmo é submetido a um protocolo que simula atividades de vida diária. Ao final do protocolo, o absorvente peniano é retirado e pesado novamente, permitindo a avaliação em três classificações: insignificante ou continente (quando o peso final do absorvente é de até um grama (g); perda leve (1,1 a 9,9 g); perda moderada (10 a 49,9 g); e perda severa (acima de 50 g; Krhut et al., 2014).
O pad used tem por objetivo quantificar o número de absorventes utilizados em 24 horas. Dessa forma, classifica-se a IU em leve (um a dois por dia), moderada (três a cinco absorventes por dia) e severa (mais de seis absorventes por dia). Homens que relataram utilizar nenhum absorvente são considerados continentes (Ângulo et al, 2018).
Quanto à IU de urgência essa foi considerada quando houve relato de vazamento involuntário de urina do orifício uretral associado ao relato de desejo súbito de esvaziar a bexiga (Abrams et al., 2017). A IU de esforço foi considerada quando houve o relato de perda involuntária de urina em decorrência de qualquer esforço físico (andar, sentar-se, tossir ou espirrar; Abrams et al., 2017).
O convite para participação foi realizado no dia do retorno médico. A colheita dos dados ocorreu por meio de entrevista individual, conduzida por uma das investigadoras, especialista em estomaterapia e aluna de mestrado. Os pacientes eram entrevistados antes da consulta médica, numa sala de enfermagem privativa. O tempo médio de cada entrevista foi 60 minutos, sendo primeiramente iniciado o pad test com o posicionamento do absorvente e ingestão do líquido e, durante o período de repouso (15 minutos), os demais instrumentos de avaliação (KHQ, ICIQ-SF, pad used, presença de IUU e IUE) foram aplicados. Ao finalizar as atividades do protocolo que simulam atividades de vida diária, cada paciente foi reconduzido para a sala de enfermagem, onde foi ofertado um saco plástico para desprezar o absorvente. Por fim, a pesquisadora utilizou uma balança de precisão para verificar o peso do absorvente.
Os dados foram processados e analisados no software IBM SPSS, versão 23.0 para Windows. Os resultados obtidos para as variáveis explanatórias (caracterização sociodemográfica e clínica) foram analisados a partir de estatística descritiva com medidas de tendência central (média ou mediana) e de variabilidade (desvio-padrão ou percentis 25 e 75 - p25 e p75) para as variáveis contínuas, e frequência relativa para as variáveis categóricas. O teste Kolmogorov Smirnov também foi aplicado para testar a normalidade das variáveis obtidas por meio dos domínios do KHQ, ICIQ-SF, pad test e pad used, sendo que todas estas variáveis apresentaram distribuição não normal.
A análise fatorial exploratória (AFE) foi realizada no programa Factor. A finalidade foi avaliar a validade estrutural da escala, por meio de uma matriz policórica com método de extração Robust Diagonally Weighted Least Squares (RDWLS). Previamente à AFE, foi determinada a adequação de amostragem pelo teste Kaiser-Meyer-Olkin (KMO), cuja pontuação necessária deve ser maior ou igual a 0,60. Também foi feito o teste de esfericidade de Bartlett, que verifica se a matriz de covariâncias é uma matriz identidade e averigua se não há correlações. O ideal é que o teste seja significativo e a hipótese nula seja refutada (Damásio, 2012).
A decisão do número de fatores a ser retido ocorreu por meio da análise paralela com permutação aleatória dos dados e rotação Robust Promin. A partir da matriz de correlação estimou-se as comunalidades e a carga fatorial. Recomenda-se permanecer na escala itens com cargas fatoriais iguais ou acima de 0,4 (Damásio, 2012).
A adequação do modelo foi avaliada por meio do teste qui-quadrado ((²) e dos índices de ajuste Root Mean Square Error of Aproximation (RMSEA), Comparative Fit Index (CFI) e Tucker-Lewis Index (TLI). O teste qui-quadrado verifica a probabilidade do modelo se ajustar aos dados e a análise baseia-se na razão entre a estatística do teste e o grau de liberdade ((²/g.l.), sendo o valor máximo para um ajuste adequado igual a três (Damásio, 2012). Valores de RMSEA devem ser menores que 0,08, e valores de CFI e TLI devem ser acima de 0,90 ou, preferencialmente, 0,95 (Damásio, 2012).
A validade de critério concorrente foi analisada comparando-se a consistência das mensurações em cada domínio do KHQ com o ICIQ-SF. Para determinar a validade de constructo convergente, os domínios do KHQ foram comparados aos resultados do pad test de uma hora (Krhut et al., como citado por Ângulo et al., 2018), IU de urgência e IU de esforço. A variável número de absorventes/dia foi processada como quantitativa discreta e as IU de urgência e IU de esforço como categóricas nominais (sim ou não).
Dessa forma, o coeficiente de Spearman foi empregado para avaliar a correlação entre os domínios do KHQ com o ICIQ-SF, pad test e número de absorventes/dia. O teste Mann-Whitney foi utilizado para comparar os domínios do KHQ com as IU de urgência e IU de esforço. As forças das correlações foram analisadas considerando coeficientes de correlação < 0,4 (correlação de fraca magnitude), > 0,4 a < 0,7 (de moderada magnitude) e > 0,7 (de forte magnitude; Schober et al., 2018).
A consistência interna dos itens do KHQ foi obtida pelos estimadores coeficiente alfa de Cronbach e omega de McDonald. Valores entre 0,7 a 0,9 indicam alta confiabilidade (Viladrich et al., 2017). Os domínios Percepção geral de saúde e Impacto da IU são compostos de itens únicos e, portanto, não tiveram a consistência interna calculada. Para todas as análises foi considerado um nível de significância de 5%.
O presente estudo foi aprovado pela comissão de ética da instituição proponente, sob parecer nº 1.866.160/2016, e seguiu os princípios estabelecidos pelo Conselho Nacional de Saúde brasileiro. Dessa forma, explicou-se os objetivos e etapas do estudo para os voluntários, e aqueles que concordaram em participar, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).
Resultados
Participaram no estudo 152 homens prostatectomizados com média de idade de 66,8 (desvio-padrão: 7,8) anos. A mediana dos anos completos de estudo foi igual a quatro (p25 = 2; p75 = 4). Já a mediana da renda per capita foi de 937 (p25 = 937; p75 = 1405) reais. No que se refere à situação profissional, 78,9% estavam em situação inativa (aposentado ou desempregado) e 80,3% informaram ter uma companheira.
Quanto às características clínicas, houve predomínio de cirurgias aberta (97,4%). Quanto ao tempo pós-cirurgia, 68 (44,7%) participantes tinham entre 2 e 6 meses de pós-operatório, 40 (26,3%) de 6 meses a 1 ano e 44 (28,9%) entre 1 e 2 anos. Portanto, a mediana do tempo pós-cirurgia foi de 209,5 (p25 = 99; p75 = 402) dias que corresponde a aproximadamente 7 meses. No que tange às comorbidades, 61,2% relataram diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica (HAS) e 61,8% apresentaram score Gleason maior que sete. Quanto aos dados relacionados à IU, 13,2% e 56,6% dos participantes relataram a presença de IU de urgência e IU de esforço, respectivamente. A média do número de absorventes em 24 horas foi de 0,9 (desvio-padrão:1,6). Já os dados de perda urinária em grama referentes ao pad test indicaram que 81 (53,3%) dos participantes foram classificados como continentes, 52 (34,2%) IU leve, 16 (10,5%) IU moderada e apenas três (2,0%) com IU severa. A mediana da perda urinária em gramas foi igual 0,95 (p25 = 0,4; p75 = 2,2).
No que tange às propriedades psicométricas, o domínio Relações pessoais, composto por três itens (5a - o seu problema de bexiga afeta o relacionamento com sua parceira?; 5b- seu problema de bexiga afeta sua vida sexual e 5c - seu problema de bexiga afeta sua vida familiar), apresentou expressivo número de missing (n = 122/80,3%) e, portanto, não foi considerado para análise.
O teste de esfericidade de Bartlett ((² (78) =1679,0; p < 0,001) e KMO (0,885) sugeriram interpretabilidade da matriz de correlação, o que justificou a AFE. A análise paralela mostrou que a escala se adequa a uma estrutura bidimensional, uma vez que dois fatores tiveram a variância explicada dos dados (empírico) superiores à variância explicada dos dados aleatórios (simulados). A variância explicada pelos dois fatores foi 66,9%. Cargas fatoriais foram superiores a 0,40 em todos os itens, exceto para o item 1, cujo valor foi de 0,339 (Tabela 1).
Domínios e Itens do KHQ | Cargas fatoriais | |||
Fator 1 | Fator 2 | h2 | ||
Percepção geral de saúde | ||||
1 Como você avaliaria sua saúde hoje? | 0,339 | 0,136 | ||
Impacto da incontinência urinária | ||||
2 Quanto você acha que seu problema de bexiga atrapalha sua vida? | 0,499 | 0,478 | ||
Limitações de atividades diárias | ||||
3.a Quanto o seu problema de bexiga afeta seus afazeres domésticos como limpar a casa, cozinhar, etc.? | 0,750 | 0,608 | ||
3.b Quanto o seu problema de bexiga afeta seu trabalho ou suas atividades diárias fora de casa? | 0,798 | 0,702 | ||
Limitações físicas e sociais | ||||
4.a Seu problema de bexiga afeta suas atividades físicas como andar, correr, praticar esportes, fazer ginástica, etc.? | 0,898 | 0,639 | ||
4.b Seu problema de bexiga afeta suas viagens? | 0,737 | 0,632 | ||
4.c Seu problema de bexiga limita sua vida social? | 0,843 | 0,757 | ||
4.d Seu problema de bexiga limita seu encontro ou visita a amigos? | 0,846 | 0,709 | ||
Emoções | ||||
6.a Seu problema de bexiga faz com que você se sinta deprimida (o)? | 0,856 | 0,758 | ||
6.b Seu problema de bexiga faz com que você se sinta ansiosa (o) ou nervosa (o)? | 0,809 | 0,606 | ||
6.c Seu problema de bexiga faz você sentir-se mal consigo mesma (o)? | 0,937 | 0,786 | ||
Sono e disposição | ||||
7.a Seu problema de bexiga afeta seu sono? | 0,556 | 0,453 | ||
7.b Você se sente esgotada (o) ou cansada (o)? | 0,739 | 0,568 | ||
Variância explicada dos dados | 51,39 | 15,57 | ||
Variância aleatória | 16,64 | 14,08 |
Nota. h2 = Comunalidades. Apresenta-se as cargas fatoriais com os valores de correlação item-fator acima de 0,30 (Damásio, 2012).
A estrutura fatorial do modelo teórico bidimensional apresentou índices de ajuste adequados ((²=1135,35, gl=78, (²/g.l=0,97; RMSEA=0,058; CFI=0,97; TLI = 0,96).
Quanto aos resultados de validade de critério concorrente, constatou-se que todos os domínios do KHQ, exceto Percepção geral de saúde, apresentaram correlação positiva estatisticamente significativa de moderada a forte magnitude com o ICIQ-SF. Visto que ambos os instrumentos avaliam o mesmo desfecho, os resultados indicam que quanto maior o impacto da IU na QV avaliada pelos domínios do KHQ, maior também é o impacto da IU na QV obtida pelo ICIQ-SF (Tabela 2).
Nota. PGS = percepção geral de saúde; II = impacto da incontinência; LAD = limitações de atividades diárias; LF = limitações físicas; LS =limitações sociais; E = emoções; S/D = sono/disposição; MG = medidas de gravidade; ICIQ-SF = International Consultation on Incontinence Questionnaire - Short Form.
Na análise da validade de construto convergente, foram identificadas correlações positivas estatisticamente significativas de fraca a moderada magnitude entre a gravidade da IU avaliada pelo pad test e todos os domínios do KHQ, exceto para o domínio ‘percepção geral de saúde’ (Tabela 2). Identificou-se também correlação positiva estatisticamente significativa de moderada magnitude entre pad used e o domínio medidas de gravidade do KHQ, indicando que quanto mais absorvente/forro/fralda o homem utiliza maior é o impacto da IU na QV para este domínio.
Ainda com relação à validade de construto convergente, a partir da diferença entre os domínios do KHQ e ter ou não IU de urgência e IU de esforço, constatou-se diferenças estatisticamente significativas apenas para os casos de IU de urgência. Homens com IU de urgência apresentava maior impacto da IU na QV para os domínios emoções (p = 0,020) e medidas de gravidade (p = 0,013; Tabela 3).
Nota. IUE = incontinência urinária de esforço; IUU = incontinência urinária de urgência; PGS = percepção geral de saúde; II = impacto da incontinência; LAD = limitações de atividades diárias; LF = limitações físicas; LS = limitações sociais; E = emoções; S/D = sono/disposição; MG = medidas de gravidade.
A confiabilidade do instrumento avaliada pelo coeficiente alfa de Cronbach foi de 0,88. Ao analisar a confiabilidade por domínios, os scores variaram entre 0,64 (sono/disposição) e 0,84 (emoções e limitações físicas e sociais), conforme Tabela 4.
Domínios e itens do KHQ | Número de itens | Alfa de Cronbach | Ômega de McDonald |
Percepção geral de saúde | 1 | - | |
Impacto da incontinência | 1 | - | |
Limitações de atividades diárias | 2 | 0,83 | |
Limitações físicas e sociais | 4 | 0,84 | |
Relações pessoais | 3 | - | |
Emoções | 3 | 0,84 | |
Sono/disposição | 2 | 0,64 | |
Todos os itens do instrumento* | - | 0,88 | 0,91 |
Nota. KHQ = King’s Health Questionnaire.
*excluído das análises os itens referente ao domínio Relações pessoais.
Discussão
O KHQ satisfez os critérios de avaliação das propriedades psicométricas demonstrando-se confiável e pertinente à cultura brasileira no contexto de homens prostatectomizados. A principal característica do instrumento baseia-se na capacidade de avaliar o impacto dos sintomas urinários em vários aspectos da QV como atividades da vida diária, limitações sociais, emoções e qualidade do sono.
É comum participantes apresentarem como efeito pós-cirurgia a disfunção erétil (Azevedo et al., 2018). O domínio 05 refere-se a relações pessoais e contempla itens que abordam o impacto da perda urinária na vida sexual (Tamanini et al., 2003). Nota-se que neste estudo a maioria dos respondentes optou pela opção de resposta “não aplicável” nos dois primeiros itens, o que inviabilizou a análise psicométrica deste domínio.
No que diz respeito à análise estrutural do instrumento, ressalta-se que o autor original (Kelleher et al., 1997) não apresentou em seu estudo tais resultados. Dois estudos (Huang et al., 2014; Okamura et al., 2009), conduzidos em mulheres e homens com sintomas urinários, constataram uma estrutura fatorial composta por três fatores. Apesar da divergência em relação aos dados apontados pela literatura, a estrutura bi fatorial aqui evidenciada apontou índices de ajuste satisfatórios (Damásio, 2012), o que sustentam a validade estrutural do instrumento na população estudada.
Quanto aos resultados das cargas fatoriais estas variaram entre 0,499 e 0,898 para o Fator 1 e de 0,339 a 0,937 para o Fator 2. Apesar da carga fatorial do item referente ao domínio Percepção geral de saúde ter apresentado valor inferior a 0,40, optou-se por mantê-lo, uma vez que, evidências da literatura também identificaram valores muito próximos ao encontrado (Huang et al., 2014; Okamura et al., 2009).
O KHQ demonstrou adequada validade de critério concorrente evidenciada por correlações estatisticamente significativas e positivas entre os domínios do KHQ e o ICIQ-SF. De forma geral, embora os sintomas de IU não impliquem em risco de morte, eles podem comprometer aspectos físicos e psicológicos, como redução da qualidade de sono, sensação de irritação constante e impotência, o que pode impactar nas atividades da vida diária e QV (Abrams et al., 2017). Observa-se que pacientes com sintomas mais graves de IU tendem a exibir maiores scores tanto do KHQ quanto do ICIQ-SF (Tamanini et al., 2004). Investigação acerca da validade do ICIQ-SF versão japonesa, em amostra de homens (16,4%) e mulheres (83,6%) com IU, identificou correlações entre todos os domínios do KHQ e o ICIQ-SF, variando de moderada a alta relação (Gotoh et al., 2009).
Quanto aos resultados de correlação entre os domínios do KHQ e os instrumentos de avaliação da gravidade da IU (pad test e pad used) que indicaram pior QV entre indivíduos com IU severa, estudo de confiabilidade e validade do KHQ em homens chineses constatou que os scores dos domínios do KHQ entre aqueles com sintomas urinários de níveis severo e moderado foram estatisticamente maiores se comparados ao grupo de nível leve (p < 0,05; Huang et al., 2014).
Com relação ao maior impacto da IU na QV para o domínio Medidas de gravidade entre os homens que utilizam maior número de absorventes, este facto pode ser justificado pelos itens deste domínio contemplarem questões bem direcionadas à frequência da troca de absorventes e ocorrência de vazamentos na roupa íntima. Sabe-se também que homens que utilizam absorventes podem restringir determinadas atividades, especialmente em situações de presença de odor ocasionando uma tensão indevida nos relacionamentos, o que é prejudicial à QV (Teixeira et al., 2020).
Quanto à ausência de correlação entre a gravidade da IU avaliada pelo pad test e o domínio percepção geral de saúde do KHQ, sabe-se que a percepção de saúde refere-se a uma avaliação que envolve aspectos físicos, cognitivos e emocionais de cada indivíduo (Tamanini et al., 2003). Dessa forma, homens que tiveram o diagnóstico de câncer e foram submetidos à PR podem experimentar algum nível de incerteza devido à possibilidade de recorrência do câncer ou necessidade de outros tratamentos complementares após o procedimento cirúrgico (Abrams et al., 2017). Tal facto pode explicar a ausência de relação entre a autopercepção de saúde e o nível de gravidade da IU.
Na amostra em estudo, indivíduos com IU de urgência apresentaram piores níveis de QV em relação aos indivíduos com IU de esforço, evidenciados pelos domínios emoções e medidas de gravidade do instrumento KHQ. Estudiosos justificam que o maior impacto da IU de urgência na QV pode estar associado à sensação desconfortável expressa pelo desejo repentino e intenso de urgência sem possibilidade de controlo pelo indivíduo antes que este consiga chegar à casa-de-banho (Abrams et al., 2017).
Em relação à análise da confiabilidade geral do KHQ em homens submetidos à PR, encontrou-se, no presente estudo, alta confiabilidade (coeficiente ( de Cronbach de 0,88). Isso implica que o instrumento se mostrou capaz de reproduzir um resultado consistente na população em estudo (Souza et al., 2017).
Quanto à análise da confiabilidade por domínios, constatou-se que para os domínios sono/disposição, medidas de gravidade e escala de sintomas urinários, o valor alfa de Cronbach esteve abaixo de 0,7 variando entre 0,64 e 0,67. Investigação internacional realizada com 393 homens que apresentaram diferentes sintomas do trato urinário inferior, a consistência interna do KHQ foi satisfatória com coeficientes variando entre 0,75 e 0,94 (Huang et al., 2014). Apesar da confiabilidade pelo alfa de Cronbach ter apresentado valores baixos para determinados domínios, optou-se por manter todos os itens visto que o valor de alfa considerando todos os domínios, exceto ‘relações pessoais’, bem como o omega de McDonald indicaram resultados satisfatórios. Ao contrário do coeficiente alfa, o coeficiente omega trabalha com as cargas fatoriais, o que torna os cálculos mais estáveis, com nível de confiabilidade maior e de forma independente do número de itens do instrumento (Viladrich et al., 2017). Ressalta-se que não foram identificados estudos de validação do KHQ utilizando esse estimador.
Quanto ao facto de que não foi possível calcular a confiabilidade do domínio relações pessoais do KHQ, sabe-se que apesar da presença de disfunção erétil em aproximadamente 79 a 88% dos casos (Abrams et al., 2017), a recuperação sexual deve pautar-se não apenas no estímulo erétil, mas também em outras formas de estímulos corporais capazes de proporcionar vida sexual satisfatória e saudável entre pacientes e suas companheiras (Clavell-Hernández et al., 2018). Dessa forma, sugere-se que a manutenção dos itens do KHQ referentes ao domínio relações pessoais é importante, visto que contemplam o impacto da IU na vida sexual de forma mais ampla e não apenas pautada na função erétil.
Como limitação deste estudo pode-se citar a não avaliação da confiabilidade do domínio relações pessoais do KHQ pelo facto que os participantes do estudo terem compreendido o termo disfunção sexual estritamente como disfunção erétil. Apesar de ser um paradigma cultural, acredita-se que futuras investigações sejam relevantes com vistas à validade de conteúdo deste domínio e avaliação de responsividade dos seus itens em homens com diferentes características sociodemográficas e culturais. Outra limitação refere-se ao perfil do pesquisador responsável pela condução da entrevista (sexo feminino, adulto-jovem), o que pode ter comprometido a franqueza das respostas, visto que a maioria dos participantes é idoso, o que pode dificultar o compartilhamento de informações relacionadas à saúde física e sexual.
Conclusão
O KHQ apresenta evidências de validade estrutural, de critério concorrente e de construto convergente em homens submetidos à PR, bem como adequada confiabilidade. A aplicação desta escala poderá auxiliar na avaliação do impacto dos sintomas urinários na QV em homens submetidos à PR e, consequentemente, fornecer dados que possibilitarão subsidiar a atuação dos profissionais de saúde frente às opções de tratamento e reabilitação. Além disso, a escala poderá ser uma ferramenta útil para o direcionamento de estratégias de intervenção que visem uma assistência à saúde do homem mais qualificada, com vista à melhoria da QV de pacientes submetidos à PR.