Introdução
A severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (Sars-CoV-2), coronavirus disease 2019, conhecida como COVID-19, mostrou-se como um evento epidemiológico de impacto mundial que mobilizou a comunicação social e as conversações quotidianas de diferentes grupos. Este evento desencadeou modificações sobre o estilo de vida das pessoas, e gerou problemas em relação às interações sociais, mediante as recomendações de distanciamento físico, visando a prevenção e o controlo da disseminação do vírus (Brooks et al., 2020; Do Bú et al., 2020). Contudo, Adhikari et al. (2020) ressaltam que aspetos relacionados com as medidas profiláticas para a prevenção e o controlo da velocidade de contágio das infeções justificam-se mediante as recomendações de distanciamento físico, confinamento domiciliar, prática de higiene das mãos, uso de máscaras e deteção precoce dos infetados e dos seus contactos de risco.
O contexto social atual é de discussões (inter)nacionais sobre como conciliar o enfrentamento da COVID-19 baseado em medidas que promovam segurança ao nível da saúde pública com a qualidade de vida individual e coletiva. Segundo o Ministério da Saúde, é necessário tanto responsabilidade individual como coletiva da população, tendo em vista a forma de transmissão respiratória da doença. Assim, é importante evitar aglomerações, por forma a reduzir o processo de transmissão e proteger grupos populacionais que se mostram vulneráveis (Adhikari et al., 2020).
Assim, o objeto de investigação foram as representações sociais (RS) de idosos sobre o isolamento social durante a pandemia da COVID-19. Objetivou-se discutir as RS de pessoas idosas sobre o isolamento social durante a pandemia da COVID-19.
Enquadramento
O isolamento social tem sido adotado por vários países durante as diferentes fases da pandemia na tentativa de achatar a curva de transmissão da doença. A população idosa, os portadores de doenças crónicas e os imunodeprimidos quando contaminados mostram-se mais suscetíveis à infeção e ao desenvolvimento das formas mais graves da doença (World Health Organization [WHO ], 2021).
No que respeita aos idosos, as formas de enfrentamento social da COVID-19 remetem a uma dicotomia quando analisadas à luz das orientações dos cuidados de saúde a idosos, que preconizam a interação social intensificada e a convivência intergeracional como forma de favorecer a sua interação social e assegurar um envelhecimento saudável e bem-sucedido (Lim et al., 2020; Melo, Arreguy-Sena, Pinto, et al., 2020). Considerando o contexto descrito e o facto de a pandemia ser um evento epidemiológico contemporâneo duradouro, declarado oficialmente em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde, verificou-se que há uma lacuna na literatura acerca da perceção de idosos sobre o isolamento social como uma forma de prevenção do contágio da COVID-19 e as estratégias de prevenção adotadas.
Os sentimentos, comportamentos, conhecimentos, valores e crenças sobre a condição atual de isolamento social justificada pela COVID-19 a que estão expostos os idosos carreiam diferentes RS em processo de construção e transformação. O conhecimento destas pode auxiliar na compreensão das respostas humanas e de como elas impactam o processo do envelhecimento saudável e o enfrentamento da pandemia de modo a prevenir o contágio do coronavírus entre idosos (Do Bú et al., 2020).
Justifica-se a escolha da teoria das representações sociais (TRS) como arcabouço teórico-metodológico diante do entendimento de que as RS são consideradas como os princípios que organizam as práticas sociais e as relações simbólicas estabelecidas entre as pessoas em relação a objetos sociais a que são expostas (Moscovici, 2017). Optou-se pelo uso da teoria do núcleo central segundo proposta de Abric com a análise da estrutura e componentes das RS, bem como a compreensão das suas funções e aplicabilidades representacionais (Abric, 2013).
A realização desta investigação alicerça-se nas seguintes argumentações: i) o processo de envelhecimento é acompanhado por múltiplas comorbidades e polimedicação, que justificam o facto dos idosos pertencerem a grupos vulneráveis para infeção ou complicações decorrentes da COVID-19; ii) o isolamento social recomendado como estratégia preventiva configura-se como um paradigma contrário à convivência social/intergeracional preconizada para o envelhecimento bem-sucedido; iii) as RS de idosos sobre o isolamento social retratam as respostas humanas desse grupo social e devem ser consideradas no planeamento das abordagens educativas de idosos.
Questão de Investigação
Quais são as RS elaboradas por pessoas idosas a respeito do isolamento social de idosos durante a pandemia da COVID-19?
Metodologia
Estudo qualitativo alicerçado na teoria geral das RS (Moscovici, 2017) segundo a abordagem estrutural da TRS (Abric, 2013) e discutida à luz de evidências científicas (inter)nacionais sobre a temática. Para a revisão do manuscrito aplicou-se a lista de verificação consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ). A génese de uma RS ocorre por meio de dois processos formadores de natureza social e cognitiva, a saber: 1) Ancoragem: o indivíduo, em face de um objeto desconhecido, busca na sua memória conteúdos que conhece e transforma-os enquanto protótipos, comparando-os com o novo que se interpela. Assim, na ancoragem, assimila-se o novo ao que já existe; 2) Objetivação: reproduz-se um conceito desconhecido/abstrato da realidade, transferindo-o para um patamar concreto, visível, tangível e palpável. Esses dois processos, então, transformam o não familiar em familiar (Moscovici, 2017).
O cenário da investigação foi uma unidade básica de saúde (UBS) de modelo de assistência tradicional, localizada numa cidade de Minas Gerais, com aproximadamente 15% de idosos na sua população. O perfil de vinculação das pessoas idosas com a UBS ocorre maioritariamente para consultas clínicas, realização de pensos, vacinação, renovação de receitas e busca de medicamentos disponíveis na rede. A elegibilidade do cenário decorreu do fato de os autores desenvolverem atividades de ensino e pesquisa neste local no período de colheita de dados, correspondendo ao primeiro semestre de 2020.
A amostra deu-se por tipicidade composta por idosos e o cálculo amostral atendeu às recomendações para a realização de estudos de abordagem estrutural da TRS, ou seja, superior a 100 (Wolter, 2018). O recrutamento foi individual e ocorreu na entrada da UBS, por procura ativa quando os potenciais participantes compareceram no serviço para vacinação contra a influenza. Foram convidados a participar no estudo por pessoas que atuavam no cenário com atividades de ensino, facto que favoreceu o estabelecimento de confiança/empatia.
Foram critérios de elegibilidade: pessoas com idade igual ou superior a 60 anos que procuraram a UBS para fins de imunização contra a influenza durante a primeira fase da pandemia da COVID-19 (março-junho de 2020), das 8h às 11h; pessoas em condição de verbalização, capacidade mental e cognitiva compatível com a realização da técnica de evocação, com score de Mini-Mental igual ou superior a 21pontos (Melo, Arreguy-Sena, Gomes, et al., 2020). Foram excluídos os idosos que, no período de colheita de dados, procuraram a UBS para outras finalidades que não fossem a imunização contra influenza. Não houve perdas, perfazendo 117 participantes.
O instrumento de colheita de dados foi assim estruturado: caracterização dos participantes (variáveis: género, idade, cor de pele autodeclarada, religião ou prática religiosa; aposentadoria, benefícios e afastamento por saúde, estado civil, anos de escolaridade, presença de filhos, ocupação) e técnica de associação livre de palavras (TALP) não hierarquizada. Esta técnica projetiva organiza-se sobre a evocação das respostas dos participantes, a partir de estímulos indutores previamente definidos pelo pesquisador, possibilitando identificar universos semânticos relacionados a um objeto representacional e/ou fenómeno social (Abric, 2013).
Para a realização da TALP, foi solicitado aos participantes que mencionassem as três primeiras palavras que lhes viessem à mente quando o estímulo indutor isolamento social do idoso na pandemia da COVID-19 fosse mencionado verbalmente. A escolha do termo indutor baseou-se na utilização de expressões acessíveis ao entendimento dos sujeitos sociais. As informações sobre caracterização e cognemas evocados e a ordem em que foram mencionados na TALP foram registados cursivamente pelos entrevistadores. A opção por solicitar aos participantes que mencionassem três cognemas deveu-se ao facto de se reduzir o tempo de permanência da pessoa idosa na UBS em atendimento às recomendações (inter)nacionais em época de pandemia.
Os dados de caracterização sociodemográfica foram consolidados no software Statistical Package for Social Sciences, versão 26.0, e tratados por estatística descritiva (medidas de tendência central e dispersão). Os cognemas evocados, após passarem pela técnica do dicionário, quando foi realizada aproximação segundo critérios semânticos e lexicográficos, passaram pela análise prototípica por meio de Ensemble de Programmes Permettant l’analyse des Evocations (Evoc).
Os parâmetros adotados na análise prototípica foram: 351 palavras-expressões evocadas, sendo 16 delas distintas, utilização de 88,3% do corpus segundo lei de Zipf, frequência mínima 12, frequência intermediária 59 e rang 1,8. Essa técnica possibilitou a obtenção do quadro de quatro casas cujos cognemas foram alocados em quatro quadrantes: quadrante superior esquerdo (QSE), quadrante inferior esquerdo (QIE), quadrante superior direito (QSD) e quadrante inferior direto (QID).
Visando-se a uma confirmação da centralidade dos cognemas evocados, estes passaram pela análise de similitude, realizada no software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (Iramuteq), versão 0.7 alfa 2, o que permitiu identificar coocorrências de cognemas mencionados simultaneamente por um mesmo sujeito social. Foram parâmetros utilizados: construção da árvore em comunidade e foco que retrata as ligações em apresentação dinâmica segundo layout de Fruchterman-Reinglod expresso por um grafo, que incluiu todos os conteúdos do corpus advindos da técnica de dicionário de palavras (Wolter, 2018).
Foram atendidos todos os aspetos ético-legais de pesquisas em seres humanos, sendo o estudo matriz intitulado Representações sociais dos idosos sobre a pandemia da COVID-19 aprovado em Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), em 12/06/2020, sob o Parecer Consubstanciado n.º 4.084.204, CAAE n.º 30572220.3.0000.0008. A aquiescência dos participantes foi confirmada mediante a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, após serem assegurados o anonimato e o sigilo mediante a adoção de códigos alfanuméricos contendo uma letra e dois dígitos (exemplo: P40).
Resultados
Participaram 117 pessoas assim caracterizadas: 59% mulheres; 65% com idade igual ou superior a 65 anos (60-87 anos; Mdn = 67; DP = 6,818); 72,6% com 8 ou menos anos de estudo (0-16 anos; Mdn = 4 anos; DP = 4,984); com média de 2,86 filhos (0-15 filhos; DP = 2,303); 61,2% com menos de 1,4 salários mínimos (0-8,3 salários mínimos; Mdn = 1,3 salários mínimos; DP = 1,477); 90,5% eram católicos ou evangélicos; 56,4% autodeclararam pele parda ou negra; 51,7% com filhos; 51,3% tinham companheiro(a) e 55,6% eram aposentados, pensionistas ou encontravam-se afastados por licença das atividades laborais, sendo que 45,2% dos aposentados tinham tempo médio de 11,69 anos do benefício, havendo pessoas aposentadas inseridas em atividades informais, destacando-se aquelas desenvolvidas no lar (18,8%), do lar e em construção civil (4,5% respetivamente) e, de acordo com registo de diário de campo, parte das pessoas utilizavam a sua aposentação para contribuir para o orçamento familiar.
A abordagem estrutural permitiu obter o quadro de quatro casas e o grafo de árvore de similitude, com a coocorrência de cognemas evocados a partir do termo indutor “isolamento social do idoso na pandemia da COVID-19, os quais constam na Figura 1.
Nota. EVOC (2003) e IRAMUTEC.
Discussão
O facto de os participantes terem baixa escolaridade e baixos rendimentos, usuários do Sistema Único de Saúde, cor de pele autodeclarada preta ou parda, e aposentados ou inseridos informalmente no mercado de trabalho, retrata discriminação racial estrutural na medida em que esse segmento social se encontra distanciado dos centros urbanos, acessa a rede de cuidados básicos de saúde como sistema de saúde predominante e está sujeito ao controlo social pelas práticas religiosas maioritárias (Melo, Arreguy-Sena, Pinto, et al., 2020). De acordo com o diário de campo, foi possível refletir que, a depender do status socioeconómico ocupado pelos participantes, eles mostraram-se preocupados em conciliar a prevenção da COVID-19 com os fluxos de atividades socioeconómicas quotidianas que lhes asseguravam a complementaridade do rendimento mensal, colocando-se, por vezes, em desacordo com as recomendações oficiais de isolamento social.
Nesse sentido, cabe às autoridades conciliar as restrições necessárias ao controlo local da doença com as necessidades, perceções, experiências e vivências que as pessoas incorporam no seu comportamento e conhecimento sobre o quotidiano. Isto, porque o enfrentamento das incertezas quotidianas, associadas às condições de vida precárias, ao isolamento, ao medo de ser infetado, ao tédio e às informações insuficientes e às frustrações quanto ao facto de não se ter conhecimento sobre quando a situação será realmente controlada, afeta o processo de saúde-doença e o instinto de sobrevivência (Brooks, 2020; Do Bú et al., 2020).
No entanto, em linhas gerais, cabe mencionar que o discurso atual da maioria dos governantes dos partidos de direita brasileira parece justificar e/ou estimular uma não quarentena, por questões económicas alicerçadas no paradigma capitalista, sendo esta uma atitude contrária às recomendações. O Presidente da República e apoiantes pronunciaram que um número aceitável de vidas podem ser perdidas, desde que a economia não pare. Desta forma, os idosos, na condição de vulneráveis, parecem estar sendo também desconsiderados por não serem considerados produtivos (Do Bú et al., 2020).
Para discussão das RS pela abordagem estrutural, faz-se necessária a compreensão de que as RS possuem quatro funções e aplicabilidades para o grupo social, a saber: 1) Do saber/cognitiva, que permite ao grupo compreender e explicar a realidade que o cerca, sendo possível reconfigurar um determinado fenómeno social para o senso comum, tornando-o uma realidade compreensível para o grupo; 2) Identitária, que situa o grupo social dentro de sua cultura mediante as suas características específicas, além de proteger os seus valores e significados identitários; 3) Orientadora, que norteia as práticas, comportamentos e condutas sociais do grupo; e 4) Justificadora, que permite que os atores expliquem e respaldem as condutas adotadas nos diversos espaços sociais (Abric, 2013).
Na teoria do núcleo central, os elementos representacionais organizam-se em torno do possível núcleo central, e os elementos evocados são alocados de forma hierarquizada e retratam os conteúdos contextualizados socialmente, e representados segundo frequência de emissão e posição em que foram mencionados-rang-e o cálculo é expresso pela ordem média de evocações (OME). Desta forma, o possível núcleo central configura-se como o elemento fundamental da RS, ao determinar os processos de significação e da organização das RS (Abric, 2013; Wolter, 2018).
O núcleo central foi objetivado pelo cognema isolamento-distanciamento, que remete o pensamento social em construção relacionado com o distanciamento social recomendado (inter)nacionalmente pela comunidade científica e de saúde para quaisquer ambientes físicos em que haja contatos interpessoais (WHO, 2021), expressando a função orientadora da RS. Cabe mencionar que esse cognema foi confirmado pela árvore de similitude e reafirmado pela função normativa. Isto, porque ele vincula a exigência do isolamento social a uma conduta rígida, quando se pretende a interrupção ou redução do contágio interpessoal (WHO, 2021), numa dimensão objetival das RS.
Desta forma, o distanciamento social é concebido como uma estratégia para se evitar o contato interpessoal, mantendo-se espaço físico de, no mínimo, um metro e meio entre os indivíduos, e é recomendado quando o número de contágios de uma patologia ultrapassa os valores previstos para um determinado local e tempo, impondo regras rígidas para a interrupção do contágio, a exemplo do lockdown. Isto justifica-se porque, durante o período de quarentena prolongada, a população é orientada a evitar sair de casa e os casos suspeitos devem ser monitorizados e orientados a manter o isolamento físico/domiciliar durante todo o período de incubação da doença, ou seja, no mínimo 14 dias, quando se considera a COVID-19 (Xavier et al., 2020; WHO, 2021).
O isolamento-distanciamento, como objetivação das RS, serve o propósito de transformar uma realidade abstrata, isolamento social de idosos durante a pandemia da COVID-19, em algo cognoscível (Moscovici, 2017), baseado na existência de esperanças para a manutenção da qualidade de vida e saúde da pessoa idosa. Exige-se paciência de todas as pessoas que se encontrem nessa situação de restrição ao ambiente domiciliário, o que se pode mostrar incómodo e justificar o surgimento de quadros de ansiedade, stresse e angústia. No entanto, isso pode ser minimizado com atividades alternativas de recreação e/ou que estimulem as interações sociais não presenciais, como o uso das redes sociais, que favorecem as ligações e as chamadas de vídeo (Brooks et al., 2020).
Deve-se vislumbrar a velhice como uma etapa do ciclo vital marcada por vários estereótipos, como: passividade; improdutividade; degeneração psíquica e orgânica; assexualidade; alienação e desvinculação intergeracional; e de expectativa dos dias vindouros. Tal imagem social, quando se trata de idoso, corrobora o isolamento social, que é um dos problemas que mais afetam a pessoa idosa, sinalizando a necessidade iminente de intervenções que favoreçam a socialização e a convivência intergeracional e com contemporâneos. Nessa perspetiva, é preciso pensar na qualidade das relações estabelecidas com os idosos, além de assegurar que a rede social seja atuante e avaliada pelo idoso como satisfatória (Melo, Arreguy-Sena, Gomes, et al., 2020).
Na zona de contraste, QIE, estão alocados os cognemas considerados importantes para um subgrupo representacional e estes retratam possíveis movimentos sociais, com potencialidade de migrar para o núcleo central, desde que o grupo seja ampliado. Isto, porque eles possuem menor frequência e OME e maior rang (Wolter, 2018). A expressão necessário-seguro foi o cognema com menor OME (1,571), baixo rang e frequência de evocação intermediária (42). Ele está vinculado ao núcleo central e ancora-o, isso porque, para os participantes, o constructo representacional do isolamento social de idosos durante a pandemia da COVID-19 foi objetivado no distanciamento social e ancorado na perceção de que essa é uma atitude necessária e segura à sua saúde como medida preventiva da infeção pela COVID-19.
A ancoragem foi expressa pela necessidade de se atender regras sanitárias, como uma normativa, visando à segurança de grupos vulneráveis como os idosos (Do Bú et al., 2020). Cabe mencionar que as dimensões comportamental/atitudinal e valorativa das RS são refletidas pelo cognema, uma vez que a compreensão de que é seguro e necessário manter o isolamento social justifica o seu engajamento na realidade vivenciada, ao retratar as funções representacionais justificadora e identitária.
É necessário e seguro manter o isolamento social, pois essa atitude envolve um cuidado profilático, uma ação realizada para si (autocuidado) e para a proteção da coletividade (cuidado coletivo), que retrata uma variável afetiva preditora de comportamentos a favor do contexto social (Do Bú et al., 2020). O cognema necessário-seguro remete a um comportamento de adesão que contribui para o enfrentamento da pandemia e retrata a aceitação das recomendações preventivas. Com base no número de casos diagnosticados, pessoas doentes, taxas de ocupação de camas, mortalidade e média dos casos e óbitos nos últimos anos, cabe às autoridades e aos profissionais de saúde definir os riscos em curso, informar a população sobre eles e conscientizá-la quanto à razão para o reajustamento de diferentes abordagens preventivas e recomendações sociais (WHO, 2021).
Ainda na área de contraste, encontra-se o cognema fazer-possível, que demonstra uma atitude de passividade e submissão de idosos (dimensão comportamental) perante as regras de isolamento social impostas como norma de segurança para grupos vulneráveis. Esse cognema corrobora e expressa as conceções das funções representacionais normativa e identitária (Moscovici, 2017). A compreensão identitária pode ser compreendida de forma dicotómica. Por um lado, há idosos que já preferem reduzir os seus contatos sociais, mesmo que isso implique minimizar a convivência com familiares, contemporâneos e/ou intergeracional, e não consideram impactante para a sua vida adotar as medidas de isolamento social (Melo, Arreguy-Sena, Gomes, et al., 2020). Por outro lado, existem as recomendações das políticas (inter)nacionais que estimulam o engajamento, a inserção social, visando a participação em diferentes grupos e contextos e reforçando a importância da convivência intergeracional e com contemporâneos (Melo, Arreguy-Sena, Pinto, et al., 2020). Desse modo, o isolamento imposto é passível de impactar negativamente a qualidade de vida, a autopercepção de saúde e o processo de envelhecimento bem-sucedido desses idosos. Cabe considerar ainda o quantitativo de idosos que se apresentam resistentes à adoção das medidas de segurança a exemplo do isolamento.
No QSD, primeira periferia, o cognema ficar-casa surgiu em resposta ao movimento social viralizado nas redes sociais (#fiqueemcasa), que recomendava o comportamento cujo impacto foi imediato nas relações sociais do grupo investigado a ponto de ser mencionado neste quadrante, sendo por isso o elemento de maior frequência e rang (igual ou superior a 1,8), porém baixa OME (2,133; Abric, 2013; Wolter, 2018). Por isso, ele surge como elemento periférico sobreativado, apesar de ser o termo evocado com a segunda maior frequência (60), com forte potencial de centralidade. Ele representa a dimensão atitudinal em relação ao condicionamento imposto da conduta de ficar em casa, sendo o ambiente domiciliar uma expressão da dimensão objetival.
São reveladas, ainda nesse quadrante, as funções do saber, orientadora e justificadora. Isso porque os participantes reconhecem os motivos que os levam a permanecerem reclusos no seu ambiente domiciliar e norteiam os seus comportamentos, justificando o seu isolamento e reclusão domiciliar, mesmo que isso represente a redução das oportunidades de interações sociais e saídas do seu domicílio.
O ficar em casa retrata recomendações de que idosos adotem um isolamento rigoroso, alicerçado na prevenção de exposição, contágio e transmissão da COVID-19. O distanciamento social, representado pelo comportamento de ficar em casa, é tolerado de forma peculiar por cada idoso, dependendo de ele ter ou não companhia, de esta ser ou não significativa, e da forma como lidam com as consequências de um possível isolamento, quando sozinhos e/ou privados de contatos sociais com pessoas significativas, familiares, cônjuges, amigos ou cuidadores (Melo, Arreguy-Sena, Gomes, et al., 2020).
Na segunda periferia, QID, encontram-se os legítimos elementos periféricos por possuírem baixa frequência e menor rang e OME. Eles retratam pouca adesão para o grupo, ao exprimirem condições específicas e vivências individualizadas (Abric, 2013; Wolter, 2018). Entre esses cognemas estão: preso-sufocado e ruim-não-gosto, retratando sentimentos e sensações experimentados pelos idosos quando reduzem o contato interpessoal, expressando a dimensão valorativa/afetiva das RS com função justificadora diante de um novo normal estabelecido. Ocorre um processo de ancoragem de expressões dos sentimentos negativos relacionados com o isolamento. Porém, cabe refletir que os idosos já fazem parte de um grupo de pessoas que geralmente já se sentiam isoladas de familiares e amigos, quer seja na decorrência da perda de cônjuge, contemporâneos, quer seja por conflitos familiares e surgimento de dependência, decorrente da síndrome geriátrica, de serviços sociais, de saúde e procura de consultas não programadas, o que justifica o sentimento de abandono e desmotivação experimentado por muitos idosos (Lim et al., 2020).
Merece reflexão o impacto que o isolamento social pode gerar quando analisado à luz das recomendações das políticas do envelhecimento saudável e bem-sucedido (Melo, Arreguy-Sena, Pinto, et al., 2020), remetendo à ocorrência de zona muda das RS numa perspetiva negativista, que expressa a não aceitação da situação e a falta de reconhecimento e adesão às recomendações (Moscovici, 2017) ao isolamento social de idosos durante a pandemia da COVID-19. Numa perspetiva positiva, retrata a conceção de vulnerabilidade própria em decorrência da autoidentificação de estar no processo de envelhecimento, que lhes acarreta alterações decorrentes da senilidade e da senescência (Melo, Arreguy-Sena, Gomes, et al., 2020).
O limitar-saída remete à compreensão de que o isolamento social requer que eles saiam de casa apenas em caso de estrita necessidade, sendo um comportamento essencial e vinculado à manutenção da vida e saúde em época de pandemia (dimensão representacional comportamental/atitudinal), reforçando assim o possível núcleo central, ancorando-o. Desta forma, é possível vislumbrar a presença das quatro funções representacionais entre os cognemas alocados no quadro de quatro casas, a saber: do saber; orientadora; identitária; e justificadora.
O limitar-saída pode ser analisado como uma estratégia de enfrentamento, seja dos casos suspeitos, seja daqueles confirmados da infeção pela doença ou por representarem riscos de infeção ou contágio entre as pessoas idosas. Desta forma, é crucial a adesão ao distanciamento social, cuja prática envolve o afastamento social também entre pessoas aparentemente sadias, para se garantir a saúde da população e minimizar/impedir o colapso do sistema de saúde decorrente do aumento abrupto de internamentos e de casos que requeiram cuidados intensivos, tendo em vista a indisponibilidade de camas para novos casos e da redução ou esgotamento de recursos humanos e materiais para o atendimento dos casos internados (Xavier et al., 2020).
Os cognemas perigo-doença e prevenção, apesar de atuarem como elementos capazes de reforçar o possível núcleo central, ao exprimirem as funções do saber e justificadora das RS, retratam a dimensão informativa/cognitiva. Tais expressões foram evocadas por participantes que mencionaram esses cognemas com menor frequência, retratando o pensamento social de um subgrupo representacional irrisório, ao compreender o isolamento social como um ato de prevenção da saúde e o adoecimento pela COVID-19 como um facto ao qual se encontra vulnerável.
Nesse sentido, estudos apontam que, no que se refere à suscetibilidade de ocorrência da doença, homens idosos e imunodeprimidos são mais vulneráveis, evoluem para as formas mais graves da doença e são passíveis de maior mortalidade, devido à presença de comorbidades a exemplo de hipertensão, diabetes, problemas cardiovasculares, respiratórios e renais. O índice de mortalidade mais incidente pela COVID-19 é composto por idosos com idade igual ou superior a 60 anos (8,8%) e igual ou superior a 80 anos (14,8%) (Do Bu et al., 2020).
Desse modo, ressalta-se que o grupo de idosos requer cuidado adicional e uma vigilância contínua da sua adesão às medidas de prevenção, conforme ressaltam Adhikari et al. (2020) e Velavan & Mayer (2020). Contudo, compreende-se que o grupo investigado representa o isolamento social de idosos durante a pandemia da COVID-19 como um ato maioritariamente imposto pelos sistemas de saúde, redes sociais e sociedade em geral. Isso retrata um ato normalizador gerador de sofrimento, alteração dos costumes sociais, originando um comportamento de incompreensão e autoperceção limitada quanto à sua vulnerabilidade e ao risco geral para a doença.
Ao refletir sobre as RS apresentadas, há que se considerar as influências, a saturação desses conteúdos e a toxicidade que canais de comunicação podem desencadear para a população idosa, principalmente quando se considera que a maioria desses indivíduos passa grande parte do quotidiano em frente à televisão (meio de comunicação mais acessado por esse segmento populacional), ou utilizam rádios, computadores ou telemóveis, que veiculam o assunto da COVID-19 de forma repetida e em pequenos intervalos. Esse acesso excessivo à informação acaba por desgastar emocionalmente os idosos com conteúdos, muitas vezes, dúbios ou contraditórios ao longo do dia, dependendo da fonte que utilizam para estruturarem o seu saber (Brooks et al., 2020).
Evidências apontam um crescimento na taxa de suicídio entre idosos americanos durante o isolamento, o que desperta a relevância da temática (Vahia et al., 2020). Entre indianos, houve evidências de pânico e insónia após estarem expostos a notícias da pandemia de forma reiterada via noticiários ou por outros canais de comunicação, gerando uma autoavaliação de 75% para a necessidade de cuidados de saúde mental, quando mais de 80% dos idosos reconheceram que necessitam dessa intervenção (Roy et al., 2020). Desse modo, a preservação de comunicações saudáveis e frequentes com familiares/amigos, quer com recurso a telefonemas, quer seja por redes sociais, constitui estratégia de apoio capaz de reduzir o sentimento de solidão desses idosos, minimizando a sensação de restrição social (Brooks et al., 2020).
Reconhece-se como limites desta investigação o facto de o período de colheita de dados ter se iniciado ainda na fase de surgimento da pandemia, o que retratou uma RS ainda em processo de construção para o grupo investigado e requer maior aprofundamento científico. Em linhas gerais, os autores acreditam que os sujeitos investigados compartilham e nomeiam seus comportamentos/atitudes, conhecimentos/informações, valores/afetos, imagens/objetos forjados num meio social de enfrentamento da pandemia da COVID-19, retratando questões individuais e coletivas diante das diferentes medidas de prevenção recomendadas (inter)nacionalmente. Nesse sentido, destaca-se o potencial do uso da TRS como ferramenta capaz de responder às questões de pesquisa, permitindo capturar os elementos representacionais relacionados ao coronavírus, ainda que estes estejam em fase embrionária.
Espera-se que os resultados desta investigação possam ser úteis para fundamentar estratégias de intervenções pelos profissionais de saúde para o enfrentamento da COVID-19. É necessário conhecer as especificidades dos grupos sociais, a exemplo os idosos, a fim de realizar intervenções assertivas, porque a leitura de determinado objeto social por um grupo social é baseada nos elementos disponíveis em sua realidade e em sua experiência social. Acredita-se que considerar tais constructos simbólicos sobre o objeto investigado alerta para a necessidade de se estabelecer uma comunicação cognoscível efetiva, capaz de instrumentalizar a construção/disseminação de práticas sociais que confluam para a adoção de medidas de prevenção e contenção da infeção pela COVID-19 mediante as novas evidências científicas aqui apresentadas como algo inédito, sendo estas o contributo da presente investigação, uma vez que até o presente momento não foram encontrados estudos indexados a respeito das RS do isolamento social de idosos durante a pandemia da COVID-19.
Conclusão
Evidenciou-se que as RS de idosos sobre o isolamento social durante a pandemia da COVID-19 foram objetivadas pelo distanciamento e ancoradas nas justificativas expressas necessário-seguro, fazer-possível, ficar-casa, limitar-saída, perigo-doença e prevenção, que refletiram o processo de construção das RS numa perspetiva cognoscível.
As RS abarcaram dois tipos de posicionamentos sociais extremos: i) refletem uma adesão ao compreenderem o momento de enfrentamento da pandemia, por vezes de forma restritiva, com a adoção de medidas de prevenção, externando-se uma preocupação, uma consciência de que pertencem ao grupo de risco e uma passividade quanto à imposição do isolamento expresso pelos cognemas isolamento-distanciamento, necessário-seguro, fazer-possível, ficar-casa, limitar-saída, perigo-doença e prevenção; e ii) evidenciam incredulidade na doença, incompreensão e ou relutância em aceitar o distanciamento social profilático como uma conduta de prevenção, subestimando assim as suas consequências, podendo esses indivíduos exporem-se de forma imprudente, não cumprindo o distanciamento social, o que é representado pelos cognemas preso-sufocado e ruim-não-gosto.
A abordagem da saúde do idoso deve primar pela integralidade do cuidado, numa perspetiva que inclua o ambiente domiciliar, familiar, os seus contactos e cuidadores. Ressalta-se assim a necessidade de que sejam elaboradas estratégias de inclusão desses idosos no ambiente social em que vivem.
Visando-se à ampliação do espectro de compreensão dos constructos representacionais apresentados sobre a temática, sugere-se a replicação desta investigação em outras fases da pandemia, tendo em vista a identificação de RS periféricas ou de contraste podem modificar-se com o transcorrer da pandemia por se tratar de um evento contemporâneo redefinidas como consequência da consolidação da RS.