Introdução
A psiquiatria forense é uma subespecialidade da psiquiatria, cujo foco de intervenção é a pessoa com doença mental que comete crime ou que apresenta risco de o fazer (Völlm et al., 2018).
O Código Penal Português concetualiza a inimputabilidade, ao consagrar no seu Artigo 20º que é “inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”. Neste sentido, a anomalia psíquica constitui fundamento para a não atribuição de responsabilidade jurídica pelo ilícito-típico cometido e, consequentemente, não devem ser implementadas medidas punitivas, se bem que possa existir fundamento, juntamente com a comprovação da perigosidade, para aplicação de uma medida de segurança (Ministério da Justiça, 1995). Uma medida de segurança consiste num internamento aplicável como consequência de um crime nas condições mencionadas (Martins, 2015; Ministério da Justiça, 1995). A atribuição da inimputabilidade a uma pessoa com doença mental foca-se no tratamento e apoio, tendo como principal objetivo a promoção do seu bem-estar através da dignificação e humanização (Martins, 2015; Sampson et al., 2016).
As perturbações psicóticas, sobretudo a esquizofrenia, são as condições clínicas mais frequentemente associadas a atos violentos e à decisão de inimputabilidade (Almeida et al., 2016), nomeadamente devido à presença de sintomas psicóticos positivos e impulsividade, sendo estes fatores agravados pelo uso de drogas e por circunstâncias sociais desfavoráveis (Esbec & Echeburúa, 2016). No entanto, a violência não é um sintoma da doença psicótica. A maior parte da literatura científica indica que há pouca relação entre doença mental e violência, sobretudo quando o uso de substâncias não está envolvido e quando a condição é adequadamente tratada.
As intervenções não farmacológicas de prevenção da violência têm sido pouco estudadas, quando comparadas com as intervenções farmacológicas, no entanto, têm sido identificadas intervenções promissoras, baseadas em programas de treino de competências sociais e habilidades cognitivas focados em raciocínio e reabilitação, e em terapias cognitivo-comportamentais, mas as evidências não são conclusivas (Rampling et al., 2016).
No tratamento das pessoas com esta condição, a cumprir medida de segurança, o enfermeiro especialista em saúde mental e psiquiátrica (EESMP) deve desenvolver e implementar intervenções no âmbito do treino de habilidades sociais e de autocontrolo, visando a promoção de comportamentos socialmente adequados (Gonçalves, 2018; Melo-Dias, 2015).
A partir do problema sumariamente enunciado, este estudo tem como objetivos: (1) Caracterizar a situação clínica dos participantes relativamente às variáveis: funcionamento social, atividades socialmente úteis, relações pessoais e sociais, comportamento perturbador e agressivo, assertividade e sinais precoces de agressão; (2) Avaliar a eficácia de um programa de intervenção para aprendizagem e treino de competências sociais e diminuição de preditores de violência.
Enquadramento
Os comportamentos violentos manifestados por pessoas com doença mental afetam tanto as vítimas como os agressores, na medida em que ampliam o estigma público e perpetuam o medo da pessoa com doença mental (Monahan et al., 2017).
Apesar dos comportamentos violentos não poderem ser considerados como um sintoma das perturbações mentais, nas psicoses (esquizofrenia e outras psicoses), devido à presença de delírios persecutórios, de ciúme e de referência, bem como de alucinações auditivas de comando, as pessoas tornam-se mais suscetíveis ao desenvolvimento de comportamentos violentos, quando comparadas com pessoas com outras patologias do foro psiquiátrico, onde este tipo de sintomatologia não se verifica (Korkmaz et al., 2017). Deste modo, a aplicação de medidas de segurança e tratamento em estabelecimentos adequados são recursos fundamentais para o tratamento, recuperação e reabilitação sociofamiliar dos doentes psicóticos, estando consagrada nos artigos 91º, 104º e 105º do Código Penal Português (Ministério da Justiça, 1995).
Os serviços de Psiquiatria Forense atendem às finalidades imediatas das medidas de segurança, constituindo o principal meio para a recuperação social do indivíduo inimputável. Deste modo, o internamento em serviços de psiquiatria forense, com acesso a cuidados especializados, traduz-se na diminuição de comportamentos violentos e em menores taxas de reincidência criminal (Völlm et al., 2018). É, pois, necessário desenvolver e implementar programas de aprendizagem e treino de habilidades sociais, entendidas como as aptidões que a pessoa apresenta no que concerne à vida em sociedade, nomeadamente a nível dos comportamentos que exibe, a fim de concretizar um determinado objetivo (Melo-Dias, 2015), bem como programas específicos, direcionados à prevenção de comportamentos violentos.
O EESMP deve desenvolver e implementar intervenções específicas e diferenciadas, capazes de incrementar uma melhoria efetiva dos cuidados prestados à pessoa, o que passa também pelo recurso a estratégias psicoeducativas e intervenções psicológicas simples (Ordem dos Enfermeiros, 2015; Völlm et al., 2018). No mesmo sentido, a World Health Organization (2010) sugere que, para além de um seguimento regular, a intervenção direcionada aos doentes psicóticos deve ter por base a psicoeducação e a facilitação da reabilitação na comunidade. Deste modo, as intervenções focadas na aprendizagem e treino de habilidades sociais e na prevenção de comportamentos violentos, são fundamentais para os doentes psicóticos, na medida em que impactam na capacidade de gestão do stress e na apreciação que a pessoa faz das suas próprias capacidades, traduzindo-se num funcionamento pessoal e social mais adequado (Melo-Dias, 2015; Olsson & Schön, 2016), diminuindo, por consequência, os preditores de violência associados aos eventos psicóticos.
Os preditores de violência estão diretamente relacionados com o risco de desenvolver comportamentos agressivos. A maioria dos estudos foca-se nos preditores e fatores de risco individuais, enquanto a agressão é contextual e relacional. Além disso, os fatores de risco mais importantes para a prática clínica, são os causais e modificáveis.
De um modo geral a literatura científica indica fatores socioeconómicos e demográficos (e.g. baixo nível socioeconómico); distúrbios comportamentais na infância; uso de substâncias; ausência ou baixo insight para a patologia; o tipo de patologia; baixo controlo da impulsividade; eventos de vida stressantes; história de violência na família e/ou abuso na infância; fatores pessoais (e.g. sexo masculino, solteiro, idade mais jovem, baixo coeficiente de inteligência, antecedente de traumatismo craniano ou défices neurocognitivos); sintomas positivos da psicose; e não adesão ao tratamento (Almeida et al., 2016; Girolamo et al., 2019; Korkmaz et al., 2017).
Hipóteses
H1: A participação no programa “A Falar é Que a Gente se Entende” melhora as competências interpessoais das pessoas com esquizofrenia ou outro tipo de perturbação psicótica, em contexto Forense; H2: A participação no programa “A Falar é Que a Gente se Entende” reduz os preditores de violência das pessoas com esquizofrenia ou outro tipo de perturbação psicótica, em contexto Forense.
Metodologia
Estudo de tipo prescritivo, pré-experimental, com desenho pré-teste/pós-teste, com grupo único (one-group pretest-posttest design).
A amostra utilizada é do tipo não probabilístico, sendo constituída por 15 indivíduos internados numa unidade de Psiquiatria Forense da zona Centro de Portugal. Definiram-se como critérios de inclusão: cumprir medida de segurança num dos serviços designados para a realização do estudo; saber ler e escrever português; diagnóstico de Esquizofrenia ou outro tipo de perturbação psicótica. Por critério, excluíram-se os doentes com evidência de sintomatologia positiva ou outro tipo de manifestações impeditivas da aquisição de aprendizagens ou de estratégias de funcionamento social adequado.
O estudo e os instrumentos de colheita de dados foram aprovados pelo Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e pela Comissão de Ética da Unidade de Inovação e Desenvolvimento da mesma instituição (Referência “CHUC-108-19”). Todos os participantes assinaram um termo de consentimento informado após apresentação do programa pela investigadora principal.
O tratamento estatístico foi realizado com recurso ao software IBM SPSS Statistics, versão 24.0. Calcularam-se as estatísticas resumo apropriadas e as frequências absolutas e percentuais para as diversas variáveis do estudo, antes e após a aplicação do programa de intervenção. Relativamente ao teste das hipóteses formuladas, para as variáveis quantitativas, foi utilizado o Teste t para Amostras Emparelhadas ou o Teste de Wilcoxon, em função da adesão das distribuições à normalidade, verificada através do Teste de Shapiro-Wilk; nas variáveis categoriais recorreu-se ao Teste de McNemar. Os resultados dos testes foram analisados considerando um erro tipo I de 5%.
Instrumento de colheita de dados e procedimento
O instrumento de colheita de dados é constituído por uma secção de caraterização sociodemográfica e clínica dos participantes (e.g. idade, sexo, estado civil, nacionalidade, escolaridade, tempo de diagnóstico, tempo de internamento) e por duas escalas e um inventário, destinados à avaliação das variáveis em estudo. Os momentos de avaliação foram realizados imediatamente antes da 1ª sessão (momento zero da avaliação) e após a última sessão. A implementação do programa integrou técnicas expositivas e técnicas interativas (e.g. técnicas de modelação e role-play).
A Escala de Funcionamento Pessoal e Social ([PSP]; Brissos et al., 2012) avalia a funcionalidade social, operacionalizando os vários itens de acordo com domínios específicos. Os resultados baseiam-se na avaliação de quatro indicadores objetivos de funcionamento social: atividades socialmente úteis (como trabalhar e estudar), relações pessoais e sociais, autocuidado e comportamento perturbador e agressivo. Cada domínio é avaliado consoante uma escala de gravidade de 6 pontos (1 - ausente; 6 - grave). Quanto menor o score obtido nas várias dimensões, maior será o score total, que é divido em quatro níveis: 91-100 pontos - sem dificuldades de funcionamento; 71-91 pontos - dificuldades de funcionamento leves; 31-70 pontos - diferentes graus de dificuldade de funcionamento; 0-30 pontos: funcionamento social tão pobre que o utente necessita de suporte e supervisão.
A Escala de Comportamento Interpessoal ([ECI]; Vagos & Pereira, 2010) é uma medida de assertividade composta por duas escalas que pretendem avaliar o desconforto emocional e a prática comportamental assertiva em vários tipos de situações sociais. Os 25 itens do instrumento agrupam-se em quatro dimensões ou subescalas: (1) Demonstração de sentimentos negativos; (2) Expressão e gestão de limites pessoais; (3) Assertividade de iniciativa; e (4) Assertividade positiva. A vertente “desconforto” usa uma escala de cinco pontos (1 - nada; 5 - extremamente) para medir o desconforto ou ansiedade que o desempenho de diferentes comportamentos assertivos pode trazer ao indivíduo. A vertente “frequência do comportamento” avalia a regularidade com que o indivíduo coloca em prática os comportamentos assertivos, numa escala que varia de nunca (1) a sempre (5). O score total é obtido separadamente para as duas escalas de resposta, resultando da soma dos scores de todos os domínios da assertividade. Na primeira vertente, quanto maior a pontuação, maior o nível de desconforto. Na segunda vertente, a uma maior pontuação corresponde maior frequência dos comportamentos.
O Inventário Forense de Sinais Precoces de Agressão ([FESAI]; Fluttert et al., 2011) inclui 45 sinais de alerta precoce de agressão divididos em 15 categorias e pode ser utilizada não apenas numa fase prévia aos episódios de violência, mas também numa fase posterior à sua ocorrência. Ainda assim, não se constitui como uma lista exaustiva, podendo não incluir todos os sinais para todas as pessoas, tendo, por isso, uma categoria aberta (item 45) intitulada de ‘outros sinais precoces de agressão’ para ser usada como um sinal de alerta diferente dos outros. Os 45 sinais são avaliados numa escala dicotómica (ausente; presente), sendo o preenchimento realizado em conjunto entre doente e enfermeiro (Fluttert et al., 2011).
Programa de Intervenção “A Falar é Que A Gente Se Entende”
O programa estruturado de sessões psicoeducativas de conversação e interação social, para aprendizagem e treino de habilidades sociais e diminuição de preditores de violência, “A Falar é Que a Gente se Entende”, é adaptado do programa de atividades de ocupação terapêutica “Vamos Conversar!” (Melo-Dias et al., s.d.). Integra seis sessões, sendo quatro direcionadas às habilidades de conversação e duas direcionadas à diminuição dos preditores de violência: (1) Observar, ouvir falar e comunicação não-verbal; (2) Escuta ativa e comentários de escuta; (3) Falar de um tema (iniciar e manter uma conversa); (4) Falar com um estranho (“não conhecido”); (5) Autocontrolo e gestão do stress; (6) Autocontrolo e gestão da raiva.
As sessões foram desenvolvidas pela investigadora principal, com periodicidade de duas sessões semanais, com duração média de 45 minutos. Os temas foram apresentados através de método expositivo, com recurso à projeção de imagens, desenvolvimento de técnicas e procedimentos indicados para o treino de habilidades sociais, tais como modelação através de role-play, reforço e feedback positivos e, no final de cada sessão, foram desenvolvidas atividades complementares, com o objetivo de treinar as habilidades sociais abordadas em cada sessão.
Resultados
Caraterização sociodemográfica e clínica
A idade dos participantes está compreendida entre os 31 e os 73 anos (média: 50,73±11,36), são maioritariamente indivíduo sexo masculino (66,7%), de nacionalidade portuguesa (86,7%), solteiros (60,0%), reformados (80,0%), vivem com os pais (46,7%) e têm escolaridade ao nível do ensino básico (66,6%). Em média iniciaram a doença há 204,80 ± 92,14 meses e têm internamentos com duração média de 67,53±76,03 meses. A maioria (80%) praticaram delitos direcionados a pessoas.
Funcionamento pessoal e social
Relativamente ao funcionamento pessoal e social, como se pode observar na Tabela 1, os resultados obtidos na dimensão Atividades socialmente úteis melhoraram após a intervenção, ainda que as diferenças observadas não tenhas significado estatístico (Z = -1.642; p = 0,051). Verificou-se que nenhum dos participantes considerou o respetivo grau de dificuldade como ‘Muito Grave’ após a intervenção, observando-se tendência semelhante nos restantes níveis, com as proporções a diminuírem no nível ‘Marcado’ e a aumentarem no nível ‘Ligeiro’ (40,0%). Na dimensão Relações pessoais e sociais as diferenças observadas são estatisticamente significativas (Z = -1.702; p = 0,045). A maioria dos participantes (66,7%) concentrou as respostas nos níveis ‘Ausente’ e ‘Manifesto’, em vez do nível ‘Marcado’, que na avaliação inicial foi indicado por (46,7%) dos participantes. Na dimensão Autocuidado, apesar dos resultados mostrarem um aumento significativo na proporção de participantes que assinalaram o nível ‘Ausente’, passando de 20,0% no pré para 53,3% no pós-intervenção, devendo-se esta diferença predominantemente à mudança nos níveis ‘Ligeiro’ e ‘Marcado’, estas diferenças não apresentam significado estatístico (Z = -1.153; p = 0,125). Finalmente, a dimensão Comportamento perturbador e agressivo foi aquela onde se observaram maiores mudanças e com significado estatístico (Z = -2.116; p = 0,017), verificando-se que aproximadamente 90,0% dos participantes deixaram de apresentar comportamentos perturbadores e agressivos. As diferenças no score total da PSP são também estatisticamente significativas (Z = -1.876; p = 0,031).
Comportamento interpessoal
Tal como se pode observar na Tabela 2, verificou-se um aumento na média do score do nível de desconforto ((- pré = 48,73; ± 21,62; (- pós = 50,53; ± 23,27), sendo que esta diferença não é estatisticamente significativa (t (14) = - 0,312; p = 0,380). Da mesma forma, foi observado um aumento na média do score do nível de frequência ((- pré = 85,40; ± 16,48; (- pós = 86,67; ± 29,15), sendo que esta diferença não é, igualmente, estatisticamente significativa (t (14) = - 0,191; p = 0,426). Apesar da ausência de significado estatístico, as mudanças demonstram eficácia do programa de intervenção, na medida em que há um aumento da média da frequência com que os participantes apresentam comportamentos assertivos, ainda que, paradoxalmente, o nível de desconforto tenha aumentado.
Sinais precoces de agressão
Para verificar a eficácia do programa na redução dos sinais precoces de agressão utilizou-se o Teste de McNemar. Foi realizada análise individual para os 45 itens da FESAI e verificada a diferença entre proporções (evolução dos resultados). Foram observadas mudanças com significado estatístico em dois itens: ‘capacidade de resolução de problemas diminuída’ e ‘aumento da quebra dos limites dos outros, humilhação e/ou cinismo/sarcasmo’. No primeiro caso, a proporção de participantes que apresentaram a capacidade de resolução de problemas diminuída decresceu de 73,2% para 40,0%, sendo esta diferença estatisticamente significativa (p = 0,032); no segundo caso, a proporção de participantes que apresentaram comportamentos de quebra dos limites dos outros, humilhação e/ou cinismo/sarcasmo diminuiu de 53,3% para 6,7%, sendo esta diferença também estatisticamente significativa (p = 0,008).
Discussão
O papel da doença mental no comportamento violento tem sido objeto de estudo nas últimas décadas. Revisões de literatura recentes (Oliveira & Valença, 2020) concluem que, para além das caraterísticas da perturbação mental e da gravidade dos sintomas, fatores relacionados com a institucionalização e a assistência com privação de liberdade influenciam de forma determinante a predição de violência. Este estudo surge, assim, da necessidade de desenvolver e validar intervenções de Enfermagem direcionadas à promoção das competências interpessoais e à prevenção de comportamentos violentos por parte de pessoas com Esquizofrenia ou outros tipos de perturbação psicótica, institucionalizadas em contexto Forense.
Os resultados obtidos com a aplicação do programa, de uma forma geral, corroboram os resultados de outros estudos que desenvolveram programas semelhantes (Gonçalves, 2018; Melo-Dias, 2015), sendo que, neste estudo, foi incluída uma abordagem aos preditores de violência.
Verificou-se o aumento do nível de funcionalidade social e a diminuição significativa da manifestação de comportamentos perturbadores e agressivos.
O funcionamento social é caraterizado pela presença de competências interpessoais e pela ausência de comportamentos violentos. Os resultados permitem concluir que o programa demonstrou ser eficaz na melhoria do funcionamento pessoal e social dos participantes, ainda que nenhum tenha atingido um funcionamento excelente. As mudanças observadas traduzem-se no aumento da cognição social e, consequentemente, ao nível da facilidade de integração na sociedade. Através do treino de habilidades sociais, a pessoa com doença mental grave vê aumentada a sua capacidade para avaliar as suas competências sociais e para realizar ajustes de comportamento de acordo com o que é considerado socialmente aceitável, na medida em que, quanto maior a cognição social, menor a probabilidade de atuar de forma violenta (Girolamo et al., 2019; Melo-Dias, 2015; Olsson & Schön, 2016).
No contexto de internamento, os utentes não estão envolvidos de forma regular em atividades socialmente úteis, (e.g. atividades ocupacionais terapêuticas ou participação nas tarefas do serviço), o que prejudica o desenvolvimento das suas capacidades relacionais/funcionais e diminui a satisfação e a motivação, levando-os a negligenciar a necessidade de tratamento (Almeida et al., 2016; Korkmaz et al., 2017).
Nos contextos onde se realiza assistência com privação de liberdade (e.g. psiquiatria forense) é crucial que as intervenções não sejam percecionadas como um castigo para o utente, mas como uma via para a recuperação e para a reintegração plena na sociedade (Almeida et al., 2016; Girolamo et al., 2019). Os resultados obtidos ao nível da diminuição da dificuldade no desempenho de atividades socialmente úteis poderão estar relacionados com o treino realizado ao longo da intervenção, assente em metodologias ativas como o role-play e objetivos concretizáveis, permitindo o desenvolvimento de sentimentos de autonomia, utilidade e satisfação pessoal.
As relações sociais de pessoas com doença mental graves estão frequentemente limitadas ao seio familiar, cenário que se altera num contexto de internamento hospitalar, onde ocorre o contacto com indivíduos com os mais variados tipos de personalidade (Girolamo et al., 2019; Korkmaz et al., 2017). A manutenção de relações saudáveis e de um ambiente emocional estável constitui-se como um desafio, sendo que o treino de habilidades sociais é crucial para o desenvolvimento de relações pessoais e sociais satisfatórias (Melo-Dias, 2015). A intervenção realizada permitiu a aquisição de competências sociais, a partir da reflexão sobre as relações. Contribuiu para a diminuição da privação psicossocial de pessoas consideradas inimputáveis, que muitas vezes são isoladas ou punidas com maiores restrições, por serem consideradas como “perigosas”, traduzindo-se na diminuição dos níveis de satisfação pessoal, aumentando a probabilidade de apresentarem comportamentos perturbadores e agressivos (Girolamo et al., 2019; Völlm et al., 2018).
Os comportamentos perturbadores e agressivos constituem a variável de maior relevância teórica para o estudo desenvolvido, uma vez que o principal objetivo é a diminuição dos preditores de violência. O programa revelou-se eficaz, verificando-se uma diminuição deste tipo de comportamentos. Os resultados vêm mostrar que os comportamentos violentos, mais do que sintomas ou consequência das doenças mentais graves, traduzem uma resposta desajustada a sentimentos de raiva, frustração ou stress, utilizada na ausência de capacidade para implementar outro tipo de respostas (Fluttert et al., 2011). Com o treino de habilidades sociais e de autocontrolo, é possível empoderar os utentes com estratégias adequadas às situações sociais em que se encontram (Gonçalves, 2018; Melo-Dias, 2015).
São vários os fatores de risco que se constituem como sinais precoces de agressão em pessoas com perturbação psicótica. Estes sinais, entendidos enquanto preditores, devem ser vigiados, pois permitem adequar os cuidados e as abordagens realizadas às diferentes pessoas, aumentando o seu insight sobre a própria doença. O programa de intervenção, ao diminuir 22 dos 45 sinais precoces de agressão (ainda que só dois de forma estatisticamente significativa), vem comprovar que o treino de habilidades sociais é de máxima importância, não só na melhoria das relações pessoais, como já verificado noutros estudos (Gonçalves, 2018; Melo-Dias, 2015), mas também na diminuição dos comportamentos violentos, físicos ou psicológicos.
Os resultados do estudo agora discutidos, de um modo geral, permitem considerar o programa eficaz e corroborar as hipóteses formuladas para o estudo, na medida em que se verificou uma melhoria no funcionamento social e nas competências interpessoais, bem como na redução de sinais precoces de agressão em doentes com esquizofrenia ou outro tipo de perturbação psicótica, em contexto forense.
A validade do estudo poderá ser considerada com a sua principal limitação, porque não foi utilizado grupo de controlo e a amostra é reduzida e não probabilística, exigindo alguma parcimónia na generalização dos resultados. Por outro lado, as restrições associadas ao contexto pandémico impediram a realização de uma avaliação de follow-up para verificação da estabilidade temporal dos outcomes.
Conclusão
Os resultados deste estudo revelam que o programa de intervenção “A Falar é Que a Gente se Entende” permite obter ganhos ao nível do funcionamento social e das competências interpessoais, promovendo mudanças significativas no sentido da diminuição dos comportamentos perturbadores e agressivos.
O estudo e os seus resultados contribuem para o conhecimento e para o desenvolvimento da enfermagem enquanto ciência, na medida em que constituem uma base de suporte que permite aos enfermeiros o reconhecimento de sinais precoces de agressão, proporcionando-lhes também um recurso que poderá ser utilizado na prática clínica, para o treino de habilidades sociais e gestão de autocontrolo.
É, pois, fundamental que se reconheça a importância dos cuidados desenvolvidos junto das pessoas com doença mental, nomeadamente em situação de inimputabilidade e se melhore o seu acesso a programas de intervenção de natureza Psicoterapêutica e psicoeducacional, tendo os enfermeiros especialista em enfermagem de saúde mental e psiquiátrica um papel determinante neste processo, quer seja pelo uso terapêutico de si, quer seja pelas competências acrescidas de que dispõem para contribuir para os ganhos em saúde e para a (re)integração social dos doentes na família e/ou na comunidade.
Para futuras investigações, propõe-se a realização de estudos com grupo de controlo e amostras de dimensão superior e a realização de avaliação de follow-up, para avaliar a estabilidade temporal dos outcomes.