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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.2 Coimbra dez. 2023  Epub 01-Ago-2023

https://doi.org/10.12707/rvi22033 

Artigo de Investigação (Original)

Trajetória e vínculo da equipa multiprofissional no cuidado de crianças/adolescentes com necessidades especiais de saúde

The multi-professional team delivering care to children and adolescents with special health needs: trajectory and bonding

Trayectoria y vinculación del equipo multiprofesional en el cuidado de niños/adolescentes con necesidades sanitarias especiales

Yan Vinícius de Souza Schenkel1 
http://orcid.org/0000-0002-5065-6820

Andressa da Silveira1 
http://orcid.org/0000-0002-4182-4714

Yasmin Sabrina Costa1 
http://orcid.org/0000-0002-5857-896X

Ivana Sulczewski1 
http://orcid.org/0000-0003-0484-5417

Juliana Traczinski1 
http://orcid.org/0000-0003-2920-2725

1 Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Palmeira das Missões, RS, Brasil


Resumo

Enquadramento:

A trajetória dos profissionais de saúde e da educação especial que prestam cuidados e atendimento a crianças e adolescentes com necessidades especiais de saúde (CRIANES) é desafiadora, exigindo formação específica e a construção de vínculos.

Objetivo:

Conhecer como é constituída a trajetória e o vínculo da equipa multiprofissional que atua com CRIANES numa associação de pais e amigos dos excepcionais (APAE).

Metodologia:

Estudo descritivo e qualitativo, com 19 profissionais que atuam na clínica e na escola de uma APAE, por meio de entrevista semiestruturada, submetida à análise temática de conteúdo.

Resultados:

Evidencia-se a importância do vínculo para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, que o cuidado compartilhado, as vivências, a busca pelo conhecimento e as trocas afetivas fortalecem a relação entre usuários e a equipa multiprofissional.

Conclusão:

A trajetória dos profissionais está alicerçada nos desafios de atuar com esta população. Ao longo do tempo formaram vínculo e sentiram afeto e sensibilidade para o desenvolvimento do seu trabalho. Sugere-se que o processo de formação contemple as singularidades de cuidados requeridos por CRIANES.

Palavras-chave: saúde da criança; saúde do adolescente; pessoas com deficiência; acesso aos serviços de saúde

Abstract

Background:

The trajectory of health and special education professionals delivering care and support to children with special health care needs (CSHCN) is challenging and requires specific training and bonding.

Objective:

To understand the trajectory and bonding of a multi-professional team with CSHCN in an Association of Parents and Friends of Exceptional Children (APAE).

Methodology:

This is a descriptive and qualitative study, with 19 professionals working in an APAE clinic and school, using semi-structured interviews submitted to thematic content analysis.

Results:

The evidence shows the relevance of the bond formed with the multi-professional team for the children’s and adolescents’ development and how the shared care, experiences, search for knowledge, and affection exchanges strengthen the relationship between professionals and CSHCN.

Conclusion:

The challenges of working with this population shape the professionals’ trajectories. Over time, they bond with CSHCN and become emotionally attached to them and their work. Including the specificities of special needs-related care in these professionals’ training is recommended.

Keywords: child health; adolescent health; disabled persons; health services accessibility

Resumen

Marco contextual:

La trayectoria de los profesionales sanitarios y de educación especial que prestan cuidados y asistencia a niños y adolescentes con necesidades sanitarias especiales (CRIANES) es un desafío, requiere una formación específica y la construcción de vínculos.

Objetivo:

Conocer cómo está constituida la trayectoria y el vínculo del equipo multiprofesional que trabaja con CRIANES en una asociación de padres y amigos de excepcionales (APAE).

Metodología:

Estudio descriptivo y cualitativo, con 19 profesionales que trabajan en la clínica y en la escuela de una APAE, mediante entrevistas semiestructuradas, sometidas a análisis temático de contenido.

Resultados:

Se observa la importancia del vínculo para el desarrollo de los niños y adolescentes, que el cuidado compartido, las experiencias, la búsqueda de conocimiento y los intercambios afectivos fortalecen la relación entre los usuarios y el equipo multiprofesional.

Conclusión:

La trayectoria de los profesionales se basa en los desafíos de trabajar con esta población. Con el tiempo, formaron vínculos y sintieron afecto y sensibilidad por el desarrollo de su trabajo. Se sugiere que el proceso formativo contemple las singularidades del cuidado requerido por los CRIANES.

Palabras clave: salud del niño; salud del adolescente; personas con discapacidad; accesibilidad a los servicios de salud

Introdução

Os avanços tecnológicos e científicos e a evolução dos saberes possibilitaram a sobrevida de crianças e adolescentes anteriormente considerados incompatíveis com a vida. Deste modo, a partir da sobrevida desta população, observa-se a necessidade de cuidados especiais de saúde realizados por equipas multiprofissionais, para além daqueles requeridos por outras crianças e adolescentes (Silveira & Neves, 2020). A literatura internacional evidencia o surgimento deste grupo em 1998 denominado de Children with Special Health Care Needs (CSHCN) (McPherson et al.,1998), traduzido para o português como crianças e adolescentes com necessidades especiais de saúde (CRIANES).

As CRIANES apresentam exigências de cuidados de natureza temporária ou permanente, associadas as condições limitantes, motoras, funcionais, comportamentais, emocionais e de desenvolvimento (Favaro et al., 2020). Com isso, carecem de cuidados especializados, envolvendo diferentes segmentos da saúde, assistência social e educação especial, o que envolve uma equipa multiprofissional envolvida no processo de atenção a essas crianças e adolescentes (Silveira et al., 2020). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura às crianças e adolescentes acesso universal e igualitário aos serviços de saúde para a promoção, proteção e recuperação (Brasil, 1990).

A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que existam aproximadamente 150 milhões de crianças no mundo com algum tipo de deficiência, sendo representada por perda ou anormalidade estrutural, funcional, psíquica, física ou anatómica (ONU, 2021). Assim, torna-se essencial compreender que o universo das CRIANES contempla àquelas que possuem condições crónicas de saúde, deficiências e necessidades especiais, justificadas pela exigência de cuidado específica da sua condição de saúde (Silveira & Neves, 2017).

Entre os serviços que constituem a rede de apoio e cuidado para o desenvolvimento das CRIANES, a literatura destaca os serviços hospitalares, a atenção primária de saúde, as clínicas especializadas e a associação de pais e amigos dos excepcionais (APAE; Silveira & Nicorena, 2020). Perante a diversidade de cuidados especializados fundamentais para a manutenção da vida, torna-se essencial um espaço de acolhimento, atenção, cuidado multiprofissional e especializado, além de atividades de educação especial (Precce & Moraes, 2020).

Neste sentido, a APAE constitui a rede de apoio e cuidado, e dentro dos serviços oferecidos contempla os usuários com a clínica especializada em serviços de saúde e a escola de educação especial. Os serviços oferecidos por esta equipa multiprofissional têm o intuito de promover a atenção integral à pessoa com deficiência, garantia de direitos, inclusão social e estabelecimento de vínculo entre os usuários (Silveira et al., 2020).

Seguido por profissionais de saúde e de educação que atuam, por meio de ações que favorecem o cuidado e as práticas de educação em saúde, as ações realizadas com as crianças e adolescentes possibilitam a aprendizagem e a socialização. Partindo da concepção de que a APAE é referência para a assistência e educação especializada de CRIANES, observa-se relações pautadas na confiança, empatia e afeto. A partir dessas premissas, constitui-se o vínculo entre profissionais e usuários, por meio de uma assistência integral (Vaz, 2018).

Frente a estas premissas, considerando a atenção especializada requerida por CRIANES, e que a APAE constitui-se como serviço de referência multiprofissional para esta população, este estudo objetiva conhecer a trajetória e o vínculo da equipa multiprofissional com as crianças e adolescentes que apresentam necessidades especiais de saúde.

Enquadramento

As CRIANES representam uma população dependente de cuidados de saúde e cuidá-las exige habilidades diferenciadas e diversas fontes de apoio, as quais constituem a rede de cuidados especializados em saúde. Neste sentido, a rede de cuidados desta população deve ser articulada entre os diferentes serviços e profissionais de saúde, visto que estas crianças e adolescentes requerem cuidados singulares para as suas necessidades de cuidados, assim como suporte para a educação especial (Silveira & Nicorena, 2020).

Assim, a APAE surge como um expoente em saúde, cuidado, educação e assistência social para as CRIANES e os seus familiares. É um espaço que desempenha um trabalho multiprofissional, com vista à integralidade do cuidado, acolhimento e estímulo para o desenvolvimento de crianças e adolescentes que apresentam necessidades especiais. As atividades promovidas pela APAE incorporam a possibilidade de participação coletiva, que contemple trabalhar em prol das habilidades de cada usuário. Assim, o processo de cuidado oferecido pela clínica e a educação especial proporcionam o suporte necessário para que as CRIANES possam progredir, desenvolver e socializar (Bueno et al., 2021).

O trabalho desenvolvido pela equipa multiprofissional da APAE reflete-se diretamente no desenvolvimento das CRIANES, visto que as atividades objetivam impactar o processo de crescimento e desenvolvimento saudáveis, além de promover a integração. Ainda, observa-se que a clínica e a escola têm o intuito de subsidiar o estímulo de cada criança e adolescente, a fim de potencializar as habilidades desta população em prol da sua autonomia. A fim de que o trabalho da equipa multiprofissional seja resolutivo, a formação de vínculo e a comunicação precisam tornar-se presentes. Inclusive, pelo facto de que a clínica, a escola e a família são alicerces essenciais que impactam diretamente nas condições de saúde e aprendizagem das CRIANES (Silveira & Neves, 2020).

Ao longo do tempo, os profissionais que atuam na APAE estabelecem laços afetivos, o que denota o comprometimento da equipa multiprofissional e a sua dedicação em prol do desenvolvimento das CRIANES (Silveira & Neves, 2020). Contudo, para além do vínculo e laços afetivos, observa-se que as atividades no contexto da saúde e da educação especial requerem atenção especializada, formação específica, resolutividade e estratégias que potencializem as habilidades dessas crianças e adolescentes. Portanto, a equipa multiprofissional que trabalha com CRIANES na APAE requer formação específica, para que possam desenvolver um trabalho contínuo, efetivo, comprometido e singular a cada realidade (Silveira et al., 2020).

Além disso, estes profissionais devem articular saberes, complementando as diferentes áreas do conhecimento, por meio de uma abordagem integral, que contemple a realidade da criança ou adolescente e da sua família, os saberes prévios, as necessidades de saúde e educação, o contexto social, aspectos culturais, valores e a conformação de uma rede de apoio para o cuidado, composta por serviços de saúde especializados e equipa multiprofissional (Silveira et al., 2020).

Questões de investigação

Como foi construída a trajetória da equipa multiprofissional que atua na APAE? Qual a compreensão dos profissionais sobre o vínculo com as CRIANES que são usuárias do serviço?

Metodologia

Trata-se de um estudo descritivo e qualitativo, desenvolvido com profissionais das áreas da saúde e da educação especial que atuam em uma APAE de referência na região noroeste no sul do Brasil, com mais de quatro décadas de trabalho, sendo referência para crianças, adolescentes e a sua família. No período da produção de dados estavam vinculados ao serviço 27 profissionais distribuídos nas áreas de assistência social, saúde, educação, administração e serviços gerais. Ademais, a APAE contava com o suporte de voluntários dos cursos de graduação em enfermagem, nutrição e ciências biológicas por meio de ações de ensino e extensão, sendo o cenário de atuação para essas atividades.

Para participar deste estudo, utilizaram-se como critérios de inclusão fazer parte da equipa multiprofissional da APAE, com uma experiência de atividades laborais mínima de 3 meses na instituição. Excluíram-se profissionais que estivessem afastados do trabalho e voluntários. Mediante a aplicação destes critérios, 24 profissionais foram selecionados como possíveis participantes da pesquisa.

Devido ao distanciamento social por COVID-19, a produção de dados foi mediada pelos recursos digitais, como a Plataforma Google Meet. Assim, o projeto foi apresentado à direção e à administração, seguido de uma reunião com os 24 colaboradores, a fim de elucidar os objetivos e a metodologia do estudo.

A partir da autorização institucional, um roteiro semiestruturado composto por 10 questões foi elaborado e testado previamente, por meio de um estudo piloto validado em grupo de pesquisa. As questões do roteiro tiveram dois eixos centrais: 1) trajetória profissional; e 2) formação de vínculo. O eixo um foi composto por cinco questões sobre a formação académica, formação contínua, especialidades, processo de trabalho, limites e possibilidades no trabalho com CRIANES. No eixo dois foram realizadas mais cinco perguntas relacionadas com estratégias para a aproximação com as CRIANES, relação do profissional com as CRIANES, existência ou não de relação com a família de CRIANES, o trabalho com CRIANES ao longo do tempo e presença ou ausência de laços afetivos.

A pesquisadora elaborou um convite virtual que foi disponibilizado aos profissionais da APAE, a partir da aceitação dos mesmos, foi construído um cronograma para a produção que ocorreu em 8 semanas, entre os meses de junho e julho de 2021.

As entrevistas foram desenvolvidas pela pesquisadora responsável pelo estudo, acompanhada por duas estudantes do curso de graduação em enfermagem, bolseiras de iniciação científica. Utilizou-se a saturação teórica dos dados (Minayo, 2014), sendo que quando não foram agregadas novas informações às entrevistas, o corpus do estudo ficou composto por 19 participantes.

As entrevistas via plataforma Google Meet® seguiram um pequeno roteiro composto pelo acolhimento dos participantes, resgate do objetivo do estudo e a leitura do termo de consentimento livre e esclarecido. A seguir, realizou-se a caracterização dos participantes, sendo que as entrevistas tiveram duração média de 40 minutos. Os áudios das gravações foram duplamente transcritos no programa Microsoft Word®, a fim de evitar possíveis incongruências. O material empírico foi submetido à análise temática de conteúdo, constituído pelas seguintes etapas: pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados; inferências e interpretação (Bardin, 2016).

Na etapa de pré-análise foi realizada a leitura flutuante de todas as entrevistas com o intuito de sistematizar as ideias iniciais. Já na exploração do material, realizou-se a descrição analítica, o processo de marcação dos discursos mais frequentes e categorização, onde as enunciações representativas foram destacadas. Para o tratamento dos resultados, inferências e interpretação, realizou-se a condensação e o destaque das informações para análise, resultando nas interpretações inferenciais e análise crítica da pesquisa (Bardin, 2016).

O estudo está em conformidade com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria por meio do parecer nº 2.632.767 e recebeu o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 86186518.5.0000.5346. Para manter a confidencialidade sobre a identidade dos participantes optou-se por identificá-los pela letra “P” referente a participante com um número ordinal na ordem em que as entrevistas foram realizadas (P1..., P2..., P3...).

Resultados

O estudo foi composto por 19 profissionais da equipa multiprofissional, que atuam na clínica e na escola de educação especial da APAE. Relativamente ao sexo dos participantes, houve o predomínio de mulheres (16) e apenas três homens. A respeito do tempo de trabalho na instituição, variou entre 3 meses a 31 anos de atividades laborais.

Em relação às categorias que emergiram do estudo, elencou-se: Trajetória de profissionais no cuidado de crianças e adolescentes com necessidades especiais, na qual a equipa multiprofissional apresentou as suas vivências com CRIANES e a inserção na APAE; e a categoria Vínculo para o cuidado de crianças e adolescentes com necessidades especiais, na qual os participantes relataram os sentimentos de afeto construídos ao longo do processo de trabalho com CRIANES. As enunciações que compuseram as categorias apresentam-se descritas a seguir.

Trajetória de profissionais no cuidado de crianças e adolescentes com necessidades especiais

Para os profissionais participantes desta pesquisa, a trajetória na APAE ocorreu como o primeiro contacto profissional, muitos colaboradores construíram uma trajetória na APAE por ser a sua primeira oportunidade de trabalho.

“Eu saí da universidade e foi o primeiro emprego que eu consegui, eu me formei e quando vi, já estava trabalhando aqui na APAE!” (P1)

“Eu dizia, quero trabalhar com o meu propósito e comecei a trabalhar! Na APAE, trabalhei com as turmas de ciclo, trabalhei com os adultos no EJA e eu estou aqui até hoje . . .” (P4)

“Foi bem desafiador porque é diferente dos casos que a gente encontra durante a faculdade, até hoje está sendo desafiador para mim. Eu estou gostando bastante de trabalhar aqui!” (P6)

“Tem sido uma aventura, estou conhecendo mais o pessoal da APAE, os alunos principalmente. Eu confesso que eu estava com um pouco de medo, até por que é novo, sempre gera um medo na gente!” (P12)

Uma das participantes do estudo, relatou que conheceu a APAE e iniciou a sua trajetória a partir do momento em que precisou de fazer o acompanhamento da filha que possui necessidade especial de saúde. O processo de inserção no cenário enquanto familiar da CRIANES subsidiou a sua aproximação.

“Conheci através da minha filha, eu comecei a trazer ela aqui para tratamento de saúde, daí eu vinha junto . . . Apareceu a vaga de trabalho, daí eu comecei a trabalhar aqui!” (P3)

Outros participantes, mesmo com vivências profissionais prévias em outros espaços, trouxeram nas suas enunciações o desejo de compor a equipa multiprofissional no espaço da APAE e que a mudança de local de trabalho fosse produtiva.

No primeiro momento foi um choque! Pensei ‘acho que não é pra mim’. Mas daí, comecei pensar . . . A gente tem uma nova experiência, eu vou gostar pelo fato de trabalhar com educação especial infantil! Eu gostei no primeiro momento, gostei e disse eu vou encarar! Acho que vou gostar e de fato, gostei! (P5)

A APAE foi o lugar mais feliz da minha vida! Eu me encontrei, eu adoro trabalhar aqui! Sempre eu digo isso, foi um período que eu estava passando por momentos delicados na vida pessoal, e aqui eu me encontrei, me acertei muito bem com os colegas e alunos, eu gosto muito! (P11)

Eu estava em outra escola, não queria sair de lá, mas também gostaria de atuar com crianças e adolescentes especiais. E foi assim, rápido! Aqui me senti bem, me senti em casa, é o que eu gosto! Eu quero continuar aqui, pois gosto do meu trabalho e me sinto bem! (P13)

Para alguns profissionais o processo de aprendizagem para atuar com crianças e adolescentes pode vir das vivências na própria instituição, de vivências em outros locais de trabalho ou até mesmo com as CRIANES da APAE.

“Eu trabalhei dois anos numa instituição de acolhimento infantil, havia muitas crianças especiais, quando eu cheguei aqui eu tinha um pouco de experiência . . .” (P16)

“No início é assim, bem diferente! A gente vai aprendendo . . . Todo o dia tem coisas novas, daí você vai pegando o jeito, vai conhecendo os alunos, conhecendo as famílias também, e eu estou até hoje!” (P17)

“Olha, no começo foi difícil. Mas a gente aprende com eles. As crianças ensinam muito, sabe? A gente aprende com eles aqui dentro!” (P19)

Embora o início da trajetória profissional possa ser marcado pelo desejo de trabalhar com CRIANES, foi no quotidiano de trabalho que a equipa multiprofissional conheceu diferentes realidades. Os depoentes enalteceram que passaram por uma nova experiência repleta de desafios, com diferentes sentimentos, que ao longo do tempo se transformaram em aprendizagens e confirmaram a importância de trabalhar na APAE.

Vínculo para o cuidado de crianças e adolescentes com necessidades especiais

As falas dos participantes do estudo revelaram que no decorrer do processo o seu trabalho com as CRIANES na APAE mudou. O tempo de convívio com as crianças e adolescentes gerou apreço, afeto e potencializou o vínculo entre a equipa multiprofissional e usuários.

“Era uma área que eu nem imaginava, eu nunca pensei em trabalhar, mas é uma coisa que você se apaixona, trabalhar em APAE é uma coisa que você se apaixona!” (P1)

“A gente vive a APAE, dorme a APAE, almoça a APAE . . . A APAE faz parte da nossa vida, então não tem como desligar os sentimentos da APAE, seria muito difícil.” (P2)

“Eu me sinto muito bem, graças a Deus! Eu gosto muito e a receptividade deles com a gente, é fantástico! Trabalhar aqui, é uma experiência assim que vai marcar toda a minha vida!” (P5)

“Eu amo mesmo! E é isso que eu gosto, adoro trabalhar na APAE!” (P7)

É muito bom trabalhar aqui . . . As pessoas são muito queridas, as crianças então, nem se fala! A gente sai da APAE e sente que saiu com o dever cumprido, aqui todo dia é um aprendizado diferente. A gente também desenvolve. (P8)

Um dos participantes do estudo relatou ainda sobre a dificuldade em desvincular-se das atividades laborais na APAE, visto ter desenvolvido um forte vínculo com as crianças e adolescentes usuárias.

Desde a década de 90. Aqui é um vínculo de amor com os alunos! Eu gosto muito de trabalhar aqui, eu vou sentir o dia que eu sair daqui, mas vai chegar um momento que eu vou ter que sair, quando me aposentar! (P10)

Observa-se ainda, que para os participantes deste estudo trabalhar na APAE é gratificante, o elo de confiança, afeto e a reciprocidade entre crianças, adolescentes e a equipa estão presentes nas enunciações.

“Mas é só o tempo de conhecer a APAE e tudo muda. Tem sido muito gratificante! Eu chego em casa e falo que todo dia é uma alegria diferente!” (P12)

“O trabalho da clínica, é diferente! Apesar de fazer clínica na APAE, é um trabalho que inclui a questão afetiva. E isso também desenvolve o profissional, além de ajudar eles.” (P13)

“Me disseram, ‘tu tens que ter paciência, amor e carinho pra trabalhar’. E é isso! Eu tenho feito muitos cursos para trabalhar com eles, mas os sentimentos a gente sente aqui.” (P15)

“Eu gosto! Com cumplicidade, com muito carinho você consegue! E eles são necessitados de amor . . . Aliás, todos nós!” (P18)

“A gente cresce, aqui a gente desenvolve muito. É um trabalho que envolve sentimentos, dedicação, conhecimento de saúde além de outros trabalhos. É muita coisa junto . . .” (P19)

Destaca-se a importância da construção do vínculo para acolher, cuidar e trabalhar com CRIANES. Deste modo, os profissionais enfatizam sobre a necessidade de trabalhar as questões emocionais que envolvem as atividades laborais com CRIANES, visto que atuar com esse público requer atenção, cuidados específicos, afeto e empatia.

Discussão

A trajetória de profissionais que atuam na APAE é marcada, inicialmente, pela quebra de paradigmas, visto que é desafiador trabalhar com CRIANES diante da singularidade de cada diagnóstico, contexto de vida, aspetos familiares e culturais. Ainda, a equipa multiprofissional depara-se com os desafios de procurar conhecimentos específicos que possam subsidiar a prática clínica e de educação especial desta população (Oliveira et al., 2021).

Para alguns participantes a experiência profissional está restrita ao espaço da APAE, outros revelaram a busca constante pelo aperfeiçoamento diante das necessidades dos usuários, desafios, limitações e possibilidades. A formação profissional é a base da sua preparação para as situações adversas do quotidiano de trabalho na APAE. Dito isto, é importante a existência de profissionais preparados para atuar com crianças e adolescentes, visto que as construções da trajetória profissional são construídas pela troca de afeto, sensibilidade, cumplicidade e integração (Silva & Haas, 2019).

Ressalta-se ainda, que os resultados do estudo revelam que para os participantes, além do conhecimento, existem outras habilidades que constituem a trajetória profissional e o vínculo, em que para além da formação e especialidades, é necessário a identificação com essa população. Estes achados vão ao encontro com o que é preconizado pela Federação Nacional das APAES, a fim de ampliar estratégias e práticas para a formação de profissionais especializados no campo da excepcionalidade (Bezerra & Furtado, 2020).

Além disso, os resultados revelam poucas vivências com CRIANES, para alguns participantes as vivências na APAE são o primeiro contacto com essa população, o que poderá gerar medo e insegurança no quotidiano profissional. Assim, torna-se fundamental trabalhar as habilidades e potencialidades dos professores ainda no processo de formação. Para Silveira et al. (2020) o contacto com a educação de alunos com necessidades especiais é essencial para refletir sobre a inclusão, a quebra de paradigmas e a socialização de escolares.

Considera-se ainda, que a trajetória dos profissionais é consolidada pelas vivências no quotidiano, em que a integração contribui para um melhor conhecimento sobre as necessidades das CRIANES. O vínculo entre os profissionais que compõe a APAE somados à comunicação, ao afeto, à sensibilidade, procura pelo conhecimento e convivência possibilita que os mesmos possam alcançar os objetivos propostos, repercutindo-se de forma satisfatória no quotidiano destes profissionais (Borbolla et al., 2018).

Trabalhar com CRIANES exige preparação, conhecimento e manejo. Observa-se a importância da formação específica para desenvolvê-lo. Nesse sentido, é indispensável a presença da educação permanente no quotidiano dos profissionais, fomentando o estudo, a troca de saberes e práticas, a fim de qualificar a assistência prestada. É necessário que os profissionais compreendam o seu papel no processo de trabalho e estejam capacitados para o desenvolvimento do cuidado e assistência (Oliveira et al., 2021).

As atividades laborais com CRIANES são desafiadoras, neste processo os profissionais devem mediar saberes, observar as particularidades e as habilidades de cada criança e adolescente. Além disso, é fundamental utilizar o planeamento para os cuidados no quotidiano e a comunicação interpessoal, de modo que o exercício do cuidado seja articulado e que vislumbre o desenvolvimento dessa população (Mattson & Kuo, 2019).

Diante disso, os profissionais que desejam atuar com CRIANES são sensibilizados pelas singularidades dessa população e comprometidos em atuar em prol de uma assistência qualificada. As CRIANES são uma população que desfrutam de uma peculiaridade muito complexa devido à sua dependência de múltiplos cuidados, todavia as trocas de afeto e atenção possibilitam a construção de vínculo. Os participantes desta pesquisa revelam sobre o contacto com as CRIANES, as possibilidades, desafios e limitações. Por outro lado, também trazem o quanto a APAE e o contacto com as crianças e adolescentes faz parte do seu quotidiano. Assim, o vínculo é constituído pela partilha, convivência e acolhimento na instituição (Borbolla et al., 2018).

Algumas enunciações remetem sobre o vínculo estabelecido no processo de cuidado entre os usuários e profissionais. Este estudo aponta que os usuários percebem de forma satisfatória e positiva o contacto com os profissionais, o que também facilita a adesão ao tratamento (Altman et al., 2018). Assim, evidencia-se a importância do vínculo para o desenvolvimento de crianças e adolescentes usuárias da APAE. Além disso, observa-se que o cuidado compartilhado, as vivências, a procura pelo conhecimento, as trocas afetivas, fortalecem a relação entre usuários e profissionais.

Conclusão

Este estudo revelou a constituição da trajetória e vínculo dos profissionais que atuam na APAE, com contribuições essenciais para aqueles que desejam trabalhar com crianças e adolescentes que apresentam necessidades especiais de saúde. Os resultados enfatizam sobre a importância da formação com ênfase nas necessidades especiais, a procura incessante por saberes que correspondam às exigências apresentadas por essa população em prol do seu cuidado, aprendizagem e desenvolvimento. Também o vínculo está relacionado com o afeto, sensibilidade, convívio e contacto entre profissionais e usuários.

Quanto às limitações do estudo, destaca-se que as entrevistas foram realizadas com profissionais de uma APAE, não sendo possível efetuar comparações com outras realidades. As implicações deste estudo para a área da enfermagem sinalizam sobre a necessidade de desenvolver ações de educação em saúde com a equipa multiprofissional, a fim de capacitar profissionais da saúde e da educação especial que atuam com CRIANES. Por fim, sugerem-se estudos voltados para os profissionais que atuam com CRIANES a fim de evidenciar o impacto do trabalho da APAE para o desenvolvimento e cuidado dos usuários.

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Como citar este artigo: Schenkel, Y. V., Silveira, A. S., Costa, Y. S., Sulczewski, I., & Traczinski, J. (2023). Trajetória e vínculo de equipe multiprofissional no cuidado de crianças/adolescentes com necessidades especiais de saúde. Revista de Enfermagem Referência, 6(2), e22033. https://doi.org/10.12707/RVI22033

Recebido: 17 de Março de 2022; Aceito: 01 de Fevereiro de 2023

Autor de correspondência Andressa da Silveira E-mail: andressa-da-silveira@ufsm.br

Conceptualização: Schenkel, Y. V., Silveira, A. S.

Tratamento de dados: Silveira, A. S.

Metodologia: Silveira, A. S.

Administração do projeto: Silveira, A. S.

Supervisão: Silveira, A. S.

Redação - rascunho original: Schenkel, Y. V., Costa, Y. S., Sulczewski, I., Traczinski, J.

Redação - revisão e edição: Schenkel, Y. V.

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