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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.2 Coimbra dez. 2023  Epub 08-Mar-2024

https://doi.org/10.12707/rvi23.57.31042 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)

Educação interprofissional e trabalho colaborativo em saúde: Compreensões e vivências de docentes e precetores

Interprofessional education and collaborative work in health: Perceptions and experiences of teachers and tutors

Educación interprofesional y trabajo colaborativo en salud: Comprensión y experiencias de profesores y preceptores

Bianca Ribeiro de Toledo1 
http://orcid.org/0000-0001-9761-8891

Natalí Vitória Pedroso Kerber1 
http://orcid.org/0000-0003-0384-6901

Fernanda Sarturi1 
http://orcid.org/0000-0002-3829-3932

Darielli Gindri Resta Fontana1 
http://orcid.org/0000-0002-3796-6947

Isabel Cristina dos Santos Colomé1 
http://orcid.org/0000-0001-7680-3289

1 Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Ciências da Saúde, Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul, Brasil


Resumo

Enquadramento:

A formação em saúde tem sido debate em diferentes cenários especialmente pelas mudanças nos modelos de atenção à saúde, sendo a Educação Interprofissional em Saúde uma estratégia afinada para este fim.

Objetivo:

Analisar as visões sobre educação interprofissional e os desafios na mudança do modelo de formação profissional, conforme percebido por docentes e precetores de cursos de saúde numa universidade pública do sul do Brasil, através da participação no Programa de Educação pelo Trabalho (PET) - Saúde Interprofissionalidade.

Metodologia:

Pesquisa qualitativa, do tipo descritiva-exploratória, utilizando entrevistas semiestruturadas e análise temática.

Resultados:

As experiências no programa provocaram novas perceções sobre o trabalho em equipa, colaborativo e uniprofissional destacando a Educação Interprofissional (EIP) como fundamental na formação e trabalho.

Conclusão:

Integrar a colaboração interprofissional na educação é crucial para mudanças curriculares significativas, como visto no Programa de Educação pelo Trabalho (PET). Isso impulsiona o trabalho colaborativo no Sistema Único de Saúde (SUS) através da Educação Interprofissional (EIP), impactando o perfil profissional na saúde.

Palavras-chave: educação interprofissional; formação profissional em saúde; equipa de trabalho

Abstract

Background:

Health training has been debated in different scenarios, especially due to changes in health care models, with Interprofessional Health Education being a strategy tailored for this purpose.

Objective:

To analyze the perception of health teachers and tutors of a public university in southern Brazil about interprofessional education and the challenges for changing the professional training model, based on their experience in the Education through Work Program (PET) - Interprofessional Healthcare.

Methodology:

Qualitative, descriptive-exploratory research, using semi-structured interviews and thematic analysis according to Minayo (2016).

Results:

The experiences in the PET generated new perceptions about teamwork, collaborative work, and uniprofessional work, highlighting Interprofessional Education (IPE) as fundamental in training and work.

Conclusion:

Inserting interprofessional and collaborative work into teaching is fundamental for changes in curricular guidelines, as evidenced by experiences with the PET. Therefore, promoting collaborative work within the Unified Health System (SUS) through IPE becomes a relevant strategy for changing the professional profile in health work.

Keywords: interprofessional education; professional training in health; work team

Resumen

Marco contextual:

La formación sanitaria ha sido objeto de debate en diferentes escenarios, especialmente debido a los cambios en los modelos de atención sanitaria. La Educación Sanitaria Interprofesional es una estrategia adecuada para este fin.

Objetivo:

Analizar las visiones sobre la educación interprofesional y los desafíos en el cambio del modelo de formación profesional, según lo percibido por los profesores y preceptores de cursos sobre salud en una universidad pública en el sur de Brasil, a través de la participación en el Programa de Educación por el Trabajo (PET) - Interprofesionalidad en la Salud.

Metodología:

Investigación cualitativa, descriptiva-exploratoria, mediante entrevistas semiestructuradas y análisis temático.

Resultados:

Las experiencias en el programa han llevado a nuevas percepciones de trabajo en equipo, colaborativo y uniprofesional, entre las que destaca la Educación Interprofesional (EIP) como fundamental en la formación y el trabajo.

Conclusión:

Integrar la colaboración interprofesional en la educación es fundamental para realizar cambios curriculares significativos, como se observa en el Programa de Educación por el Trabajo (PET). Este impulsa el trabajo colaborativo en el Sistema Único de Salud (SUS) a través de la Educación Interprofesional (EIP), lo que repercute en el perfil profesional de la atención sanitaria.

Palabras clave: educación interprofesional; formación profesional sanitaria; equipo de trabajo

Introdução

A Educação Interprofissional em Saúde (EIP) é amplamente reconhecida como elemento essencial para uma reforma abrangente do modelo de formação profissional e atenção à saúde. Esta abordagem representa uma iniciativa inovadora na transformação do perfil profissional no campo da saúde, priorizando o trabalho em equipa e a prática interprofissional (Peduzzi et al., 2016).

Nos últimos 15 anos, o Ministério da Saúde tem impulsionado a reformulação da formação em saúde, aproximando teoria e prática ao integrar os estudantes nos serviços de saúde. Isso é evidente nos Programas de Educação pelo Trabalho (PET) Saúde, criados para essa finalidade.

O objetivo deste artigo é analisar as visões de docentes e precetores de cursos na área da saúde em uma universidade pública do sul do Brasil sobre a educação interprofissional e os desafios para mudar o modelo de formação profissional. Isso é explorado a partir das experiências no PET - Saúde Interprofissionalidade.

Enquadramento

A EIP é fundamentada na formação de profissionais capacitados para trabalhar de forma colaborativa em equipas interprofissionais, com foco na integralidade do cuidado, dentro de uma visão ampliada de saúde. Baar et al. (2005) corroboram que EIP contribui para a formação de profissionais melhor preparados para o trabalho em equipa, enfraquecendo a competição e a fragmentação do trabalho. A formação centrada uni profissionalmente não favorece a interação entre os estudantes de outras profissões, incentivando o desconhecimento sobre as funções e responsabilidades dos demais profissionais da saúde que integrarão a equipa de saúde (Reeves et al., 2008).

A EIP envolve profissionais e/ou estudantes de duas ou mais áreas de atuação que aprendem juntos sobre os outros, com os outros e entre si, resultando numa melhor compreensão dos papéis específicos de cada profissional/estudante e no fortalecimento da colaboração interprofissional no trabalho em equipa (Chriguer et al., 2021).

Nos últimos anos, houve um aumento significativo na análise e reflexão sobre a formação de profissionais de saúde no Brasil. Isso deve-se, em grande parte, ao processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e à necessidade de atender às necessidades sociais de saúde da população de forma coerente com os princípios e diretrizes do sistema, que procuram reorientar o modelo de atenção à saúde (Souza et al., 2019).

No contexto da formação em saúde, o precetor é uma componente chave, sendo (co)responsável no acompanhamento e realização de interlocuções entre ensino e serviço. As suas atribuições relacionam-se com acompanhar, direcionar e apoiar a trajetória de formação profissional dos estudantes. Desta forma, a atuação de cada profissional está intrinsecamente ligada à formação e prática do outro, resultando num processo contínuo e dinâmico na cadeia de formação profissional e educação em saúde (Neves et al., 2020). Existiram superações e avanços observados no que se refere ao fomento da integração ensino-serviço com a implementação dos Programa de Educação pelo Trabalho (PET) revendo e desenvolvendo novas práticas pedagógicas junto ao SUS, repercutindo na imersão precoce dos estudantes nos serviços (Farias-Santos & Noro, 2017; Mira et al., 2016). Porém, ainda vivenciamos currículos não integrados na formação em saúde (França et al., 2018). Estes preceitos levam a imersão da EIP para fomentar o trabalho colaborativo e interprofissional em saúde, seja na formação em saúde, seja no trabalho em saúde.

Questão de investigação

Quais são as compreensões sobre educação interprofissional e os desafios para a mudança no modelo da formação profissional na perspetiva de docentes e precetores de cursos da área da saúde de uma universidade pública do sul do Brasil, a partir das vivências no PET - Saúde Interprofissionalidade?

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo, de natureza descritiva-exploratória. A pesquisa qualitativa tem como objetivo responder a questões específicas e concentra-se em compreender e interpretar o significado e o contexto dos fenómenos estudados. A pesquisa qualitativa preocupa-se com a compreensão dos significados, motivações, aspirações, crenças, valores e atitudes dos participantes, explorando o contexto e os processos envolvidos. (França et al., 2018).

Para a colheita das informações foram realizadas 21 entrevistas semiestruturadas com docentes (professores dos cursos) e precetores (profissionais de saúde que atuam nos serviços locais) que integraram o PET - Saúde/Interprofissionalidade (2019-2021) de um município do Norte do Estado do Rio Grande do Sul. Foram incluídos os docentes e precetores que integraram o PET-Saúde da referida edição e excluídos os que não integraram o programa. A colheita ocorreu nos meses de setembro e outubro do ano de 2021, de forma remota e presencial, respeitando a autorização dos sujeitos mediante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e as suas possibilidades, conforme a situação sanitária da pandemia de COVID-19. As entrevistas foram realizadas pela investigadora responsável, que também integrou o programa, sendo que cada entrevista não ultrapassou os 60 minutos. Estas foram gravadas, após a autorização dos entrevistados, e posteriormente transcritas para análise.

A colheita remota ocorreu via Google Meet com oito participantes, que aceitaram integrar o estudo. Já as entrevistas presenciais ocorreram nos locais de trabalho dos participantes, fossem docentes, fossem precetores, totalizando 13 entrevistas.

Integraram o estudo oito docentes divididos entre os cursos de Ciências Biológicas, Enfermagem e Nutrição. Os precetores dividiram-se entre assistente social, biólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicóloga, enfermeiro e nutricionista. As questões que integraram o roteiro de entrevista foram elaboradas a partir do objeto e questão de investigação - “Como os fundamentos teóricos e práticos da interprofissionalidade e do trabalho colaborativo em saúde podem fortalecer os propósitos da formação em saúde no SUS?”; “Após a sua participação no PET- Saúde o que você entende por interprofissionalidade e trabalho colaborativo em saúde?”; “Desde a sua formação até os dias de hoje você acredita que os novos profissionais que estão ingressando no serviço em saúde possuem um olhar mais voltado para o trabalho interprofissional e colaborativo em saúde: Por que?”; e “Como você vê a interprofissionalidade nos cursos de graduação em saúde do campus inseridos no Programa?”. Vale dizer que todos os preceitos éticos e legais foram respeitados, obtendo parecer favorável da Comissão de Ética sob o número 4.975.606. As falas foram codificadas utilizando a letra P de participante e numeradas sequencialmente, conforme a ordem de realização das entrevistas.

Todas as questões geraram material de análise, sendo tratado pela análise temática de Minayo (2016) respeitando as seguintes fases: pré-análise, exploração do material e, tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Na pré-análise foi realizada uma leitura flutuante do material, definição dos materiais a ser analisados e a constituição de um corpus com base na representatividade e exaustividade. Na fase de exploração do material foi feita a codificação e categorização do material. O tratamento dos resultados e interpretação foi o momento em que se realizaram as inferências, ou seja, a construção controlada da interpretação por meio das mensagens que foram registadas, articulando-as com o referencial teórico.

Com isso, foram estabelecidas três categorias temáticas.

Resultados

Fundamentos teóricos da educação interprofissional e do trabalho colaborativo na perspetiva dos docentes

Os pressupostos teóricos da EIP apontam que o trabalho em equipa, com integração nas diferentes profissões, favorece a partilha de saberes e fortalece a tomada de decisão nas condutas profissionais e, por sua vez, o trabalho colaborativo.

A utilização destas práticas na formação, fomentadas pelas prerrogativas do PET-Saúde, instrumentalizam docentes para a inserção dos estudantes nos serviços com grande potencial de interpretação da realidade precocemente junto aos precetores (trabalhadores dos serviços). Alguns extratos de fala identificam estas questões:

Essa prática de trabalhar junto para o usuário do SUS então conhecer que nenhuma profissão é detentora de saberes, mas que compartilham saberes e que quando a gente compartilha a gente fortalece nosso saber com outras informações e esse saber então engrandece. (P6)

Fortalecer a formação em saúde no SUS na medida em que nós proporcionarmos aos nossos estudantes a vivência do agir interprofissional . . . Proporcionar para o aluno a visão teórica e a visão prática de um agir interprofissional é fundamental para atuar no SUS, sendo que um dos seus princípios é a integralidade do atendimento. (P7)

Enquanto participantes do PET a gente tem essa leitura mais aprofundada sobre a interprofissionalidade que são como ferramentas . . . nos instrumentalizam para que a gente mude a prática dos estudantes na medida que trabalhamos com outros profissionais a gente consegue também criar uma realidade diferente na formação dos estudantes . . . uma experiência prática e não somente teórica . . . conseguem perceber a realidade. (P2)

As experiências no PET-Saúde Interprofissionalidade proporcionaram muitos avanços e interações entre os docentes e os cursos de graduação do campus. Os participantes tiveram boas oportunidades de pensar criticamente e procurar qualificar as suas ações, construindo novas identidades profissionais, além de desenvolver ferramentas que podem ser consolidadas nas suas futuras trajetórias profissionais, como as consultas integradas e análises de casos. Estes exercícios têm tido continuidade na Disciplina Complementar de Graduação (DCG) Trabalho Interprofissional e Práticas Colaborativas em Saúde produto originado do PET - Saúde/Interprofissionalidade. As falas apresentadas na sequência confirmam.

Houve um avanço muito grande porque nós começamos a pensar juntos, fora das caixas específicas das nossas profissões, pensando o que pode nos identificar, o que nós podemos fazer juntos . . . Eu o vejo como um grande agente de mudança na nossa universidade de existência do PET, ele foi abertura de olhares profissionais para outras profissões. Teve consultas integradas com nutricionistas, enfermeiros e biólogos. (P7)

A gente estudou junto, aprendeu junto, fez várias atividades juntos, concretizado no currículo foi a DCG . . . As pessoas que não são abertas ao tema acham que dá mais trabalho e só veem desafios (P1). Apesar dos avanços, alguns desafios surgiram diante dos pressupostos teóricos e práticos da EIP e do trabalho colaborativo, como as questões relativas à formação dos professores caracterizarem-se, na sua maioria, como fragmentadas e focadas no fazer/ensinar uniprofissional. As questões institucionais, do processo de trabalho dos cursos e pessoais dos próprios professores também foram apontadas como desafios no decorrer do projeto.

Nós viemos de uma formação em que professores, os cursos, eram muito fragmentados e nós trazemos isso para o dia a dia de atuação, nós aprendemos de maneira fragmentada e tendemos a ensinar de maneira fragmentada. (P4)

Essa interprofissionalidade iniciou com o PET, mas eu não sei se ela tem o potencial de continuar porque ela foi atingida pelos professores que trabalharam no PET e mesmo assim daqueles que estavam, nem todos seguem a interprofissionalidade. (P3)

A EIP e o trabalho colaborativo são vistos como alternativas aos modelos de ensino e de produção em saúde e podem ser instrumentos de mudanças, tanto entre os docentes, como entre os profissionais de saúde. As mudanças dependem de aspetos relacionados com o indivíduo, das instituições e das políticas. Estas mudanças são consideradas desafios, na medida em que exigem dos envolvidos, sensibilidade para resistir às práticas fragmentadas dos modelos hegemónicos.

Compreensões sobre EIP e trabalho colaborativo na perspetiva de precetores do PET- Saúde Interprofissionalidade

Os precetores entendem que a EIP é uma alternativa de análise para as necessidades de saúde, trazendo interação, trocas, espaços para trabalhar juntos e ampliar as possibilidades de intervenção. Destacam que o trabalho colaborativo vai além do fluxo habitual de utilizar o conhecimento profissional, forma um novo saber, mediado pelas trocas, na medida em que um aprende com o outro, constroem e aperfeiçoam um objetivo comum. Nesta direção, torna-se necessário alinhar várias perspetivas teóricas, os modos de ver e de ser profissional, pautados, principalmente, no diálogo, na discussão e tomada de decisão compartilhada.

É uma troca de experiências, profissionais de diferentes áreas unidos para trabalhar em função de um objetivo comum . . . Aprendendo um com o outro . . . colaboração mútua. (P3)

Conseguir achar uma linha em comum, um objetivo final que no nosso caso da saúde é o bem-estar, a saúde do paciente, a promoção de saúde, então pra gente conseguir alinhar diferentes teorias, a gente aprende a conviver com diferentes personalidades e não perder a essência daquilo que a gente tem a oferecer tecnicamente também. (P4)

É um trabalho construído de forma compartilhada, a partir do diálogo, da discussão, da decisão compartilhada . . . quando a gente consegue de fato integrar os diferentes núcleos de conhecimento para o atendimento dos pacientes. (P9)

Trabalho colaborativo pra mim é o elemento principal da interprofissionalidade . . . a colaboração entre essas profissões e às vezes até no mesmo momento, por exemplo através de uma interconsulta ou da elaboração de um plano terapêutico para aquele usuário especificamente. (P7)

É você aprender a reconhecer o saber do outro para que dessa forma você consiga junto com o outro planejar, discutir, tomar decisões a respeito de uma situação em comum. (P8)

Os precetores compreendem que o trabalho colaborativo e a EIP são construções teóricas que auxiliam a viver novas experiências na prática e ampliam a visão dos profissionais. Consideram uma chave importante para avançar nos modelos de saúde e educação, saindo da tradicional perspetiva centrada no profissional e passando a pensar no encontro das equipas de saúde voltadas para o usuário, qualificando a atenção à saúde.

Desafios na mudança de modelo de formação em saúde com foco na EIP e trabalho colaborativo

A mudança no modelo de atenção encontra desafios atuais como a formação centrada na identidade uniprofissional, com disciplinas desintegradas que não proporcionam um olhar ampliado nos discentes. Aqueles que se integram em projetos que tenham abordagem contra-hegemônica conseguem ser sensibilizados e passam a vislumbrar outros horizontes para suas práticas profissionais. Além das questões curriculares, outro desafio que integra as fragilidades de romper paradigmas são as instituições de ensino.

Os cursos não oferecem essa possibilidade de olhar diferenciado que é o olhar de cuidado interprofissional, o trabalho em equipa. Eles saem com a formação antiga acadêmica que era trabalhar dentro da sua especialidade . . . Eu acredito que enquanto não houver uma mudança dentro dos currículos da academia, com esse enfoque a esse trabalho realmente interprofissional, não vai acontecer a mudança. (P11)

Acredito que hoje a metodologia de ensino, da faculdade, das universidades é muito focada em conceitos . . . Mas muitas vezes não forma um profissional capaz de trabalhar em grupo, de trabalhar com outras áreas, acredito que o sistema educacional hoje que é vigente no Brasil como um todo, ele demanda algumas mudanças, que mudanças por exemplo? Integrar turmas de diferentes cursos . . . Eu acredito que hoje as faculdades formam profissionais que não saem da faculdade pra trabalhar fora do quadrado profissional e muitas vezes nem pra se integrar com outros profissionais. (P10)

Algumas experiências identificam avanços e mudanças nos docentes e estudantes desenvolvendo trabalhos coletivos, com metodologias de ensino comprometidas em sensibilizar e criar um ambiente crítico e reflexivo.

Sim, porque a própria academia está mudando, a própria faculdade, os professores eles estão buscando também trabalhar, estão buscando um olhar mais coletivo, menos fragmentado. (P12)

Os acadêmicos vêm com uma nova visão . . . Então está sendo uma formação diferenciada do que foi a minha há 10 anos. (P5)

Através de novas disciplinas que integrem os currículos, que reformem os currículos, eles vão formar profissionais que tenham muita mais capacidade de trabalhar de maneira colaborativa . . . Agora com essas mudanças introduzidas pelo Ministério da Saúde como o PET, esses profissionais já saiam com uma facilidade para o trabalho colaborativo. (P7)

Os serviços e os profissionais que recebem os estudantes merecem atenção e apoio para incluir, nas suas práticas, espaços coletivos e coerentes com o novo perfil de profissionais.

Como é um campo muito novo, eu não sei se eles já estão suficientemente treinados para esse trabalho . . . Eu por exemplo não tive essa experiência na minha faculdade . . . O lugar que recebe eles ainda também não está muito preparado, então eles tem que ficar o tempo todo insistindo nesse pensamento integrado, nesse pensamento interprofissional . . . então eu acho que sim, estão entrando melhor preparados. (P4)

Os desafios para a formação são as instituições de ensino e os currículos desarticulados dos serviços, comunidades e das necessidades do SUS. No entanto, quando metodologias criativas e problematizadoras são inseridas nas discussões e espaços de formação, vislumbram-se possibilidades de avanços na mudança de modelos de formação em saúde.

Discussão

O PET-Saúde Interprofissionalidade lançado em 2018, destaca-se como primeira iniciativa macropolítica de indução da EIP, e tem promovido a reorientação dos processos formativos das graduações em saúde, permitindo a inserção de estudantes na realidade dos serviços do SUS e do processo ensino-aprendizagem viabilizado por grupos tutoriais interprofissionais (França et al., 2018). As vivências no programa implicaram repercussões importantes na prática de docentes e precetores, os quais são agentes fundamentais no processo formativo.

Tradicionalmente, a formação em saúde tem sido organizada de forma fragmentada, com disciplinas separadas e focadas em conhecimentos específicos de cada profissão. Isto cria barreiras e dificulta a integração entre as diferentes áreas de saúde, dificultando o desenvolvimento de habilidades de trabalho em equipa (Moreira et al., 2022). Na maioria das vezes, a formação para o ensino em saúde é restrita às atividades realizadas em disciplinas de didática, ou outras lecionadas na pós-graduação.

Assim, a prática educativa dos docentes é pautada nas vivências da sua trajetória de formação, as quais, frequentemente, não são adequadas à realidade atual, sendo oferecidas aos estudantes e reproduzidas nas suas vidas profissionais (França et al., 2018).

Como reflexo disto, a abordagem fragmentada da precetoria também limita a compreensão dos estudantes sobre o papel e as contribuições de outras profissões de saúde, impedindo a formação de habilidades essenciais para a prática interprofissional, como a comunicação eficaz, a compreensão mútua e o trabalho em equipa (Moreira et al., 2022).

As barreiras ou desafios para a efetividade da EIP estão no modelo fragmentado dos currículos da saúde e, por sua vez, na falta de diálogo e interação entre as diferentes categorias profissionais, com relações de aprendizagem que pouco contribuem para a efetivação da colaboração e interação entre os profissionais de saúde (Costa et al., 2019).

Para a superação desta problemática, o currículo interprofissional exige que os docentes adotem uma abordagem de ensino que valorize os processos interativos e promova a colaboração entre as diferentes áreas de saúde, sendo capazes de: conciliar as expectativas dos estudantes; proporcionar um ambiente de aprendizagem interativo, estimular reflexões críticas; utilizar tecnologia com base na prática e facilitar a retroalimentação na prestação de cuidados e na resolução de problemas centrados no usuário do SUS (Silva et al., 2021).

A capacitação de professores para o ensino interprofissional desempenha um papel crucial na mudança curricular no campo da educação em saúde, ao estimular reflexões sobre métodos de ensino-aprendizagem e promover inovações educacionais. Neste sentido, é essencial desenvolver programas de qualificação docente e incentivar espaços de diálogo entre docentes e profissionais de saúde, pois isso pode ter um impacto significativo na promoção de mudanças no ensino em saúde. (Silva et al., 2021).

Neste sentido, os Núcleos Docentes Estruturantes (NDEs) dos cursos de saúde tem um importante papel, sendo que cabe a este grupo de docentes fomentar as discussões do disposto nas legislações que versam sobre a formação em saúde ao experienciado pelo corpo docente e discente na práxis. Este movimento dialético entre o posto legalmente e a realidade do serviço, bem como do contexto epidemiológico do território, devem balizar os projetos pedagógicos dos cursos.

Na formação em saúde, o papel do precetor é fundamental na integração dos conceitos e valores da instituição de ensino e do ambiente de trabalho, por meio do ensino, aconselhamento e inspiração. Os precetores atuam como exemplos e referências para a futura vida profissional e contribuem para a formação ética dos estudantes. Assumem um papel fundamental, junto dos estudantes, na problematização da realidade, refletindo sobre possíveis soluções no quotidiano do ensino/serviço/comunidade no âmbito do SUS.

A precetoria é um processo complexo que requer expertise e habilidades específicas. O precetor desempenha um papel estratégico ao possibilitar a aprendizagem prática no contexto do serviço. Frequentemente, são confrontados com o desafio de criar ambientes de aprendizagem clínica, atuando como modelos, estabelecendo uma relação de confiança com o estudante e promovendo a integração entre ensino e serviço. Adaptam as diferentes técnicas de ensino, alinhadas às competências e habilidades profissionais, facilitando a socialização e o desenvolvimento de habilidades pessoais, interprofissionais e de comunicação, que são essenciais para a formação e o cuidado em saúde (Vuckovic et al., 2019).

Torna-se necessário ampliar os espaços de diálogo antes, durante e ao final dos campos de prática e/ou estágio, especialmente por considerar que o processo de ensino aprendizagem possui diferentes atores. Cada lição deve ser alinhada com prerrogativas de cada curso, mas acima de tudo, diante das potencialidades e fragilidades de cada indivíduo e espaço.

Para facilitar o ensino dos docentes dentro das instituições, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos da área de saúde desempenham um papel fundamental na orientação do planeamento curricular. Têm como objetivo promover uma formação diferenciada, que integra teoria e prática, incentiva o trabalho interprofissional em equipa, prioriza a integralidade da atenção à saúde com corresponsabilização, determina o estabelecimento de vínculo e destaca a parceria indissociável entre os mundos do trabalho e da formação profissional (Conasems, 2008). Contudo, ainda existem problemas na implementação de novas diretrizes curriculares, especialmente relacionadas com o distanciamento da formação com o mundo do trabalho.

É neste nicho que as ações do PET-Saúde têm sido desafiadoras e inovadoras.

Para tanto, como forma de amenizar a fragmentação do cuidado e o trabalho uniprofissional, torna-se fundamental modificar e implementar novas diretrizes curriculares nos cursos da área da saúde com foco nos princípios de capacitação em precetoria em saúde, trabalho colaborativo e interprofissional. Adotar metodologias ativas de ensino que estimulem os estudantes a refletir a partir da realidade na qual estarão inseridos. Isto permite que os estudantes se tornem sujeitos críticos e transformadores da realidade, capazes de integrar teoria e prática de forma significativa (Souza et al., 2019).

Vale dizer que nas mudanças da formação em saúde constam de três grandes iniciativas - o Ministério da Saúde/Educação - as escolas/Universidades - Serviços de Saúde - estas são responsáveis por organizar e direcionar as práticas em saúde e, por sua vez, a formação. Juntas constituem ações grandiosas sobre como consumir e produzir saúde.

Apontam-se como limitações do estudo, a realização das entrevistas durante período pandémico, o que dificulto que todas ocorressem presencialmente, o que pode ter impactado a interação entre os participantes e investigador.

Conclusão

Os resultados apontam que docentes e precetores que integraram o PET - Saúde Interprofissionalidade, tiveram a oportunidade de expandir o método de ensino através do olhar colaborativo e interprofissional. No entanto, a quebra de paradigmas quanto a EIP e trabalho colaborativo ainda é um desafio que se inicia dentro das instituições de ensino e que perdura nos serviços de saúde. Assim, direcionar recursos para a EIP e integrar disciplinas na grade curricular da graduação que enfatizem o trabalho colaborativo e interprofissional são formas de progredir e proporcionar aos estudantes a compreensão da essencial interação entre os profissionais de saúde para uma prática efetiva e de qualidade no SUS desde a fase de formação.

Docentes e precetores corroboram que as ações do programa tornaram possível ampliar as suas condutas diante das suas práticas profissionais. Compreendem a importância da interprofissionalidade e que esta tem início dentro da instituição de ensino e, que por sua vez influencia o perfil dos alunos, na formação de novos profissionais e no trabalho quotidiano dos serviços. Identifica-se também, a realidade complexa de tornar o elo da interprofissionalidade vivo pelos docentes, visto que o ensino dentro da universidade ainda é fragmentado, o que mostra a necessidade de fomentar programas e ações que versem sobre esta dialogicidade, seja na esfera ministerial, seja na esfera dos cursos e serviços de saúde.

Este estudo contribui para a teoria e a prática da interprofissionalidade e do trabalho colaborativo em saúde, na medida em que reúne e evidencia vivências e reflexões compartilhadas por sujeitos diferentes - docentes e precetores - que compartilham as suas experiências, similaridades e particularidades. Pode ainda subsidiar novas investigações que venham aprofundar o conhecimento na área.

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11Como citar este artigo:Toledo, B. R., Kerber, N. V., Sarturi, F., Fontana, D., & Colomé, I. (2023). Educação interprofissional e trabalho colaborativo em saúde: Compreensões e vivências de docentes e precetores. Revista de Enfermagem Referência, 6(2), e31042. https://doi.org/10.12707/RVI23.57.31042

Recebido: 30 de Junho de 2023; Aceito: 15 de Novembro de 2023

Autor de correspondência Bianca Ribeiro de Toledo E-mail: bianca.ribeiro154@gmail.com

Conceptualização:Toledo, B. R., Kerber, N. V., Sarturi, F., Fontana, D.

Tratamento de dados: Sarturi, F., Fontana, D.

Análise formal: Sarturi, F., Fontana, D.

Investigação: Toledo, B. R., Sarturi, F., Fontana, D.

Metodologia: Toledo, B. R., Sarturi, F., Fontana, D.

Supervisão: Fontana, D.

Validação: Sarturi, F., Fontana, D.

Visualização: Sarturi, F., Fontana, D.

Redação - rascunho original: Toledo, B. R., Sarturi, F.

Redação - análise e edição: Toledo, B. R., Colomé, I.

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