Introdução
Os sangradores são um dos ofícios que fez parte dos cuidados de saúde desde a Grécia Antiga, numa altura em que dominava a teoria dos humores baseada na medicina ancestral (Sousa, 2013). Constata-se a permanência e a forte presença de sangradores no contexto português, acompanhando o que acontecia por todo o mundo. A sangria era remédio para tudo, e das atitudes mais ou menos coerentes com as teorias médicas da época até ao exagero e à oportunidade de negócio, foi um passo curto. Na comunidade, e em muitos casos dentro das instituições assistenciais, os sangradores eram pagos pelo número de sangrias executadas (Sousa, 2013). A este propósito Rocha (2019) menciona “o caso do hospital fundado por Bartolomeu Joanes, em Lisboa, em 1324, onde eram atribuídos, a cada pobre, cinco soldos para sangrias. Mesmo que estas não fossem realizadas dentro do recinto hospitalar” (p. 70).
As funções dos sangradores, quem eram, o que faziam, como faziam, porque o faziam, qual a sua formação e a relação com as outras profissões de saúde, são aspetos pouco explorados a necessitar de clarificação. Interessa também conhecer como existiram ao longo dos séculos em Portugal, e as causas do ocaso progressivo a partir do final do séc. XVIII, até à sua extinção oficial em 1870 (Barradas, 1999).
Estabelecemos como objetivo desta investigação: compreender de que forma os sangradores estiveram presentes na sociedade e instituições assistenciais e como o seu lento desaparecimento foi acompanhado pelo desenvolvimento do processo de profissionalização dos enfermeiros. Formulámos a seguinte questão norteadora da investigação: há medida que se foram esvaziando as funções e campos de ação de profissões medievais como, entre outras, a dos sangradores, abriu-se espaço para outros se afirmarem, profissionalizando-se, como sejam os enfermeiros?
A relevância deste estudo situa-se na possibilidade de clarificação do papel dos sangradores, entre vários ofícios e profissões medievais, que ao longo do século XIX se vão reconfigurando ou desaparecendo. Ao mesmo tempo perceber como este processo histórico ajuda a clarificar o processo de profissionalização dos enfermeiros.
Metodologia
Pretende-se responder ao objetivo e à questão norteadora da investigação usando a metodologia histórica, com levantamento e análise interpretativa de fontes primárias e secundárias. Desde logo procedemos à análise de um Manual de Sangradores, publicado por Manuel Leitão, em 1849. Foram também analisadas, as Atas das Sessões das Câmaras dos Representantes da Monarquia Constitucional, Primeira República, Estado Novo e Terceira República, disponíveis no arquivo digital da Assembleia da República. A pesquisa através do motor de busca deste arquivo, utilizando o descritor sangrador(es), permitiu o acesso a 39 diários das sessões. Confrontámos as fontes primárias com a produção historiográfica existente, avaliada como oportuna segundo critério dos autores e em função do objetivo e da questão norteadora da investigação. A análise documental, das fontes, permitiu estabelecer linhas de continuidade e rutura, olhando para a diacronia e a sincronia, estabelecendo inferências históricas, traduzidas numa síntese narrativa.
Resultados e discussão
O sangrador ou cirurgião barbeiro ou mesmo cirurgião enfermeiro, foi um ofício no qual os seus praticantes, se dedicavam ao ato de sangrar, como forma de cura para os males que afetavam o equilíbrio do corpo, baseados na teoria dos humores hipocrático-galénicos. Estes utilizavam para a sua atividade sanguessugas, ventosas ou instrumentos de punção e corte, que permitiam que o sangue fosse retirado do seu paciente de acordo com a necessidade. Para além disso, faziam a barba e cortavam o cabelo, por isso muitas vezes designados por barbeiros-sangradores, sendo que alguns também eram açacaladores (polidor de armas brancas), saca-molas (arrancador de dentes) e algebristas (tratavam lesões articulares e ósseas).
O ofício de sangrador, embora já de existência anterior ao início de Portugal, permaneceu no nosso país oficialmente regulamentado durante mais de três séculos, até à sua extinção por decreto em 1870, como refere Barradas (1999). Em 1504, com a publicação do Regimento do Hospital Real de Todos os Santos, verificamos a existência do posto de barbeiro-sangrador dos hospitais, que se manteve durante 366 anos. No entanto, ainda se verificam alguns em atividade no início do século XX, principalmente nas pequenas localidades onde, a falta de assistência e de cuidados de saúde, faziam com que estes fossem o único recurso para essas populações.
No início do reino de Portugal, os cuidados de saúde eram prestados essencialmente pelas famílias dos enfermos e na falta deles ou na sua incapacidade, eram prestados por confrades e por monges, que assumiam um papel social relevante. A criação de pequenos hospitais na idade média e que apesar do esforço dos religiosos, das confrarias, das iniciativas régias e também privadas, eram considerados insuficientes, - quase sempre sobrelotados - para acudir a todos os que necessitavam desse apoio. Como é referido por Barradas (1999), “as poucas camas disponíveis nos pequenos hospitais destinavam-se, não tanto a tratar as doenças, mas a dar a guarida aos mendigos, peregrinos e também aos doentes . . . as igrejas surgiam sempre que despontava algum agregado populacional mais significativo” (p. 130).
A transmissão do conhecimento médico na idade média era feita, principalmente, pela palavra e pelos escritos dos textos antigos de medicina, muitos desses copiados e transcritos pelos monges copistas. Refere Barradas (1999), que os monges se dedicavam a traduzir e a copiar os manuscritos antigos que continham os mais importantes escritos do passado, onde se incluíam obras médicas de vulto.
Estes textos originários, do tempo da Grécia Antiga e do antigo Império Romano, como foram os deixados por Hipócrates (460-377 aC) e por Galeno (129-200 dC), chegam até aos religiosos, por vezes através do mundo árabe, com é o caso do persa Avicena (980-1037 dC). De Avicena chegou-nos o tratado de medicina “O Canon da Medicina”, conhecido e usado, não só em Portugal, mas também nas escolas e universidades europeias até ao final do século XVIII.
Durante o período que concerne à formação de Portugal no séc. XII, os monges, serão, pois, os detentores e principais responsáveis pelas práticas médicas, baseadas nos conhecimentos de então, suportadas pela teoria dos humores como motivo explicativo para os problemas de saúde das pessoas e da sangria como prática para restabelecer o seu equilíbrio. Diz-nos (Santos, 2015)
A Sangria (minuti sanguinem) ou flebotomia constitui-se em uma das práticas de saúde preventivas mais documentadas da medicina monástica, pois integrava a rotina de atividades de saúde anuais das comunidades e encontra-se seu registro em todos os costumeiros e livros de despesas das mais diferentes ordens religiosas medievais, tanto masculinas quanto femininas. (p. 82).
No entanto sobre as sangrias em contexto monástico e a participação dos monges, Silva (2015), refere parecer
improvável que tal tarefa tenha recaído sobre outro monge. É possível que houvesse um grupo de leigos que encaixasse no perfil estereotipado do barbeiro medieval - bastante distinto, contudo, do típico cirurgião medieval -, ligado ou não a cada mosteiro e que, periodicamente, realizasse no cenóbio a sangria dos monges que o pretendessem ou a tal fossem obrigados. (p. 43).
A teoria hipocrático-galénica, baseava-se essencialmente no equilíbrio entre a saúde e a doença, tendo em conta os elementos naturais existentes no nosso meio ambiente: A terra, o fogo, o ar, e a água. Fortemente marcada e impulsionada por Galeno no período romano e melhorada por Avicena num período tardio pós-romano através do aperfeiçoamento e estruturação dos seus conceitos, sendo considerados estes filósofos como os grandes responsáveis pela consolidação da teoria humoral.
Na teoria humoral considerava-se que todos os líquidos do corpo, chamados de humores, eram resultado dos quatro elementos naturais, referidos um pouco atrás, a terra, a água, o fogo e o ar, sendo que os humores seriam também em número de quatro: O sangue, a bílis amarela, a fleuma e a bílis negra ou atrabílis e que numa pessoa saudável se apresentariam em perfeito equilíbrio e bem-estar coexistindo nos meios seco, frio, húmido e quente. Destes todos o sangue era o que assumia maior importância (Barradas, 1999).
Dos quatro humores que se considerava existirem, o sangue, considerado o humor mais nobre, distinguia-se pela sua cor vermelha e era observado frequentemente nas feridas e nas doenças hemorrágicas. O fígado seria o órgão onde se formava o sangue e onde este se mantinha em estado puro, ainda não combinado com os outros humores. No entanto, segundo Sousa (2013), em outras interpretações, o sangue proviria do coração. A sangria assumia-se então, como o maior processo de cura para os males e desequilíbrios que afetavam as pessoas doentes. Praticado numa fase inicial pelos religiosos que exerciam medicina e o ato de sangrar (sangradores), recorriam aos préstimos de ofícios como o dos barbeiros (barbeiros-sangradores) para os auxiliar nesse processo (Barradas, 1999). Havia a convicção plena que a melhor forma de restabelecer o equilíbrio do corpo, seria pelo processo de flebotomia. Tinha-se a noção e seguindo os ensinamentos herdados pelos escritos preservados de Galeno, de que o sangue faria um movimento no sentido dos tecidos (Santos, 2005). Na aceção desse médico, o sangue não fazia um movimento circular e sim centrífugo, convergindo para os tecidos sem retornar ao ponto de origem, o que por si só daria a noção de que em quadro de doença só se estaria a retirar o sangue em excesso que estaria a provocar o desequilíbrio e o equilíbrio harmonioso dos humores, que se entendia ser o de uma pessoa saudável.
Regressando ao míster de sangrador, a determinada altura mais precisamente em 1169 d.C., os religiosos por suspeitas de práticas que se começavam a ver como um possível negócio pelo aumento das sangrias a surgir pela Europa, que ameaçavam corromper o espírito da igreja no propósito de servir o próximo. Mas também por imperativos teológicos - progressiva desvalorização do corpo, aumentando significativamente a valorização da alma. Os monges deixam de poder contactar diretamente com sangue ou de fazer cirurgias, por proibição do papa Alexandre III (Barradas, 1999). Com o fim de um certo monopólio exercido pelos monges na arte de curar, esta irá ser a oportunidade para que o ato de sangrar se transfira para o ofício de barbeiro para quem já tinha a prática no manejo da navalha o possa exercer (Barradas, 1999).
A regulação de quem cuidava era praticamente inexistente e as pessoas que a praticavam eram predominantemente leigos, curiosos, iletrados e analfabetos que baseavam o seu conhecimento na prática, por conhecimentos adquiridos através da transmissão de forma oral e informal e pela observação. Muitas pessoas começam a ver o ofício de sangrador como uma excelente oportunidade de conseguirem bons proveitos, proliferando no reino às centenas de cirurgiões barbeiros, muitos com escrúpulos duvidosos, sendo um período desregulado em que permite a coexistência dos verdadeiros barbeiros sagradores com curiosos, burlões e charlatães que tinham como objetivo principal o lucro fácil, entrando num processo de anarquismo completo em que se abusava da sangria, fazendo disso o seu ganha-pão (Sousa, 2013). Existem diversas tentativas para por cobro a este descontrolo que grassa na idade média.
Foi no Mosteiro de Santa Cruz, que ocorreu o princípio da formação em Portugal dos físicos do reino, a esforço de D. Sancho I. A partir de 1290, este ensino, passa a ser ensino universitário autorizado por bula papal (Vasconcelos, 2014). Mas tanto o tipo de estudantes (de estatuto elevado alguns nobres e ligados ao clero) bem como a formação que os físicos recebiam era baseada nos escritos hipocrático-galénicos e como defendia a escola grega, determinava o contacto físico mínimo com os doentes, o que aludia ao facto de que qualquer ofício ligado às práticas manuais era considerado menor e indigno, mantendo a assistência entregue a ofícios considerados menores, como sejam, os sangradores. Em relação ao Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra e ao seu Hospital de S. Nicolau, refira-se que a organização do espaço “compreendia a sala da sangria, a dos banhos e o horto ou jardim onde se plantavam as plantas medicinais” (Santos, 2015, p. 82). A sangria em contexto monástico assumia também uma função preventiva, a prescrição com a periodicidade anual de três a cinco vezes, foi um fenómeno do período medieval (Yearl, 2007).
Existem tentativas de controlar o evoluir desregrado do número de praticantes sem habilitação para poderem proceder ao ato de sangrar. A criação do cargo de físico-mor e posteriormente o cargo de cirurgião-mor, como uma tentativa de extensão do poder de controlo e regulação, já que seriam estes a passar as certidões (cartas de sangradores), a quem as requeresse. No entanto não parecia ser suficiente para que as práticas de sangria fossem somente exercidas por pessoas com a habilitação e conhecimentos para o efeito. Este ofício, mantendo o cariz humilde e proveniência de baixo estrato social, inicia uma fase de crescimento, proliferando no reino, pela facilidade de obter as cartas, abrindo-se tendas, em que o ofício de cortar cabelo e barba se misturava com a arte de sangrar e onde toda a população recorria. Todo aquele que fosse minimamente desenvolto no manejo das lâminas, com conhecimento ou sem ele (burlões, curandeiros), agia sangrando, aplicando ventosas e sanguessugas, sem qualquer noção do que fazia, somente como forma de ganhar dinheiro.
Com o surgimento do Hospital Real de Todos os Santos no ano de 1504, inaugurado pelo Rei D. Manuel I, é criado o ensino oficial e formal da arte de sangrar, pelo qual este hospital assume destaque e verdadeira importância na história de ensino dos sangradores (Barradas, 1999). De facto, nesta instituição, estão concentrados os práticos de medicina, facultando-lhes bons salários facilitando a fiscalização dos cuidados prestados (Ramos, 1993), e isso irá promover a criação de um regimento onde irão ser descritos e incluídos todos os ofícios, cargos, funções, obrigações, direitos e deveres e onde constarão os sangradores. Este regulamento como é referido por Ramos (1993), baseado no paradigma do Hospital de Santa Maria Nova de Florença, permite concentrar as rendas dos pequenos hospitais e passa a estar sob alçada e responsabilidade do Rei. Este por si, nomeava as mais altas figuras como o provedor e o físico-mor do reino e mais tarde o cirurgião-mor que tinham o papel de gerir e decidir quem tinha condições para trabalhar no hospital e desenvolver o seu ofício e onde iremos encontrar médicos, boticários e enfermeiros, como em outros hospitais europeus, mas que tem a particularidade de criar condições para a criação de escolas de formação para cirurgiões e barbeiros-sangradores (Barradas, 1999).
Os barbeiros-sangradores mantinham um baixo estatuto neste início do século XVI, inferior a todos os outros funcionários, excetuando os escravos (Barradas, 1999). Ou como refere Ramos (1993), estariam ao nível dos ajudantes de boticário, da enfermeira de mulheres ou do ajudante de cozinha. Teriam como obrigação a execução de todas as barbas e cabelo dos doentes e sangrar sob indicação do físico sempre que fosse solicitado. Tinham o seu próprio material numa maleta, onde transportavam lancetas, tesouras, navalhas e o mais necessário para o desenvolvimento da sua atividade (Barradas, 1999).
Neste aspeto é importante destacar Manuel Leitão, cirurgião do Hospital Real de Todos os Santos, autor da obra “Prática dos Barbeiros”, impressa pela primeira vez em 1604 e reeditada diversas vezes, considerada como uma bíblia para os homens do ofício (Santos, 2005). Este cirurgião será responsável pelos quatro tratados que constituem o manual, nos quais defende a teoria humoral e os benefícios da mesma, para quase todos os males de saúde. No entanto, a precisão com que a sangria devia ser feita é o foco e o objetivo desta obra de forma a evitar as complicações advindas de um corte mal feito (Leitão, 1849). Este manual considerava, de acordo com Santos (2005), 42 veias passíveis de serem sangradas com precisão. Para tal exigia-se que um bom barbeiro fosse mancebo para que não lhe tremessem as mãos e tivesse uma vista apurada. Considerava ainda que deveriam ter conhecimento efetivo sobre a diferença entre veias e artérias, e obviamente estivesse munido de boas lancetas. No manual eram ainda explicados os preliminares, considerados essenciais para executar uma boa lancetagem: Santos (2005), descreve que o barbeiro ataria uma atadura acima do local de sangria de forma a engorgitar a veia e picando-a com um movimento único, nunca muito profundamente para que não atingisse uma artéria, nervo ou tendão. Realizada a retirada do sangue recomendado, estancava-se a ferida com um chumaço de pano amarrando-o com uma atadura. Estes materiais eram providenciados pelo enfermeiro-mor (Brochado, 2019). A sangria deveria ser sempre realizada deitada, seguida de repouso e dieta leve.
Os mestres de sangria do Hospital Real de Todos os Santos, conhecedores do ofício segundo Barradas (1999), seriam acompanhados de aprendizes para os auxiliarem no desenvolvimento do seu míster, mas muitas vezes excediam o razoável, o que, por conseguinte, deixaria o ensino muito aquém do exigível. Desta anarquia reinante dentro da instituição, irá surgir já no séc. XVII o regimento de Barbeiro de 1620 como tentativa de regular e controlar sangrias mal executadas por praticantes resultando na perda de vidas (Barradas, 1999). Neste regimento, a atividade de sangrador, seria limitado a um número de seis praticantes e estes teriam de ser aprovados para o auxílio do mestre depois de serem observados e questionados pelos médicos sobre algumas coisas necessárias ao ato de sangrar e com aprovação final sempre do provedor. O ato de sangria, de acordo com os ensinamentos do cirurgião Manuel Leitão, exigia uma mão firme, uma lanceta muito bem afiada, um conhecimento exato sobre o local a lancetar e por isso algumas noções de anatomia. Para além disso os candidatos a serem cirurgiões-barbeiros teriam de ser cristãos velhos de boa fama e caridosos (Santos, 1921). O que sucedia era que o mestre de sangria seria insuficiente para o número de sangrias executadas diariamente, 40-50 sangrias por dia, para um número sobrelotado de doentes (Barradas, 1999), pelo que os praticantes eram utilizados como forma de colmatar esse défice e os acidentes eram frequentes e por vezes fatais. Em virtude disto, surge a necessidade de promulgar um novo regulamento de admissão dos aprendizes de cirurgia e de sangria (Santos, 1921). Note-se aqui a inclusão dos aprendizes de cirurgia e os de sangria. Na realidade pouco diferem nesta altura, talvez excetuando no número de aprendizes, que poderiam ser mais elevados, nos proponentes a mestres de sangria, sendo que terão regimes de admissão idênticos. Teriam de ser devidamente identificados com a sua filiação e terra de origem, bem como teriam de saber ler e escrever, como refere Santos (1921) ”não será admitido a barbeiro, nenhum sujeito que ao menos deixe de saber muito bem ler e escrever” (p. 41). A aprendizagem baseada nas artes manuais e ao longo de cinco anos era essencial, para obterem a certidão que os habilitaria a serem admitidos a exame pelo cirurgião-mor.
Chegados ao século XVIII, já após o terramoto de 1755, em pleno período pombalino, com o Hospital Real de Todos os Santos em ruínas, mas em funcionamento precário é publicado o regulamento de 1760, onde são impostas limitações à entrada dos praticantes de sangria e cirurgia nas enfermarias, passando a estar dependentes da presença do seu mestre, sendo que a maior inovação seria o pagamento de propinas ao porteiro da casa da fazenda (Santos, 1921).
Entramos no último quartel do século XVIII e início do século XIX os conhecimentos sobre anatomia e fisiologia ultrapassam os rudimentares conhecimentos da medicina praticada ao longo dos séculos anteriores. Os manuais utilizados na universidade e nas recentes escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e Porto (criadas em 1836) passam a integrar esses novos conhecimentos, como são exemplo a anatomia do corpo humano desenvolvido pela disseções feitas a cadáveres por Andreas Vesalio, ainda no séc. XVI, ou o sistema circulatório de William Harvey, (contrariando os escritos galénicos sobre o movimento centrífugo do sangue considerado uma farsa). Apesar desta descoberta na área da fisiologia ter sido realizada no século XVII, somente dois séculos mais tarde será valorizado e associado ao início do método experimental (Barradas, 1999), impulsionado por Claude Bernard, médico investigador que realizou inúmeras experiências com grande importância para o desenvolvimento das ciências médicas a par de Pasteur. Como refere Santos (1919) ”duas ou três experiências de Pasteur ou de Claude Bernard foram mais úteis para a ciência do que cinquenta anos de patologia celular” (p. 14). Os avanços na bacteriologia realizados pelo já referido Pasteur ou por Koch são outros exemplos que farão evoluir uma medicina outrora conservadora.
Toda esta ebulição de saberes, que emerge contrariando a teoria dos humores e põe em causa a sangria enquanto cura para todos os males, irá fazer com que esta sofra um retrocesso e que a sua prescrição se torne mais comedida (Barradas, 1999).
A sociedade portuguesa vive um período de acalmia pós invasões francesas e pós-guerra civil entre liberais e miguelistas que permite que se foque melhor na necessidade de melhorar os cuidados de saúde prestados à população e de quem os pratica. São criadas as escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e Porto, em 1836, criando estudos de medicina e cirurgia (Barradas, 1999). Os sangradores começam a ser ostracizados nas suas práticas e passam a ser alvo de crítica, até mesmo de chacota, pela classe política de então, gerando acesas discussões na primeira câmara de representantes eleita após a revolução liberal de 1820 e que se prolongarão ao longo de muitos anos em diversos debates parlamentares.
Uma pesquisa efetuada no site da Assembleia da República, com o descritor sangrador(es), permitiu identificar 48 páginas em 39 diários, num intervalo temporal de 1822 a 1962 (Figura 1).
As referências a sangradores nos diários das sessões das sucessivas câmaras desde a Monarquia Constitucional até aos dias de hoje e considerando quatro grandes períodos: monarquia constitucional; primeira república; estado novo; terceira república, permite verificar que o assunto “sangradores” está presente em trinta e cinco diários de sessões na Monarquia Constitucional. Não é assunto (zero diários) na primeira e na terceira república. Regista-se, ainda, quatro referências durante o Estado Novo. Estas últimas, são referências pregressas, uma de 1939, a propósito da lei para o exercício da medicina por médicos estrangeiros, que reproduzimos textualmente extraída da página web da Assembleia da República Portuguesa, e presente no Diário da Assembleia Nacional, nº 43, de 28 de fevereiro de 1939 (Sessão 43/1939 da Assembleia da República, 1939),
a invasão de médicos estrangeiros no nosso País que actualmente se verifica, invasão idêntica, tirando as proporções naturalmente da época e da categoria, frequentes vezes àquelas que em certos períodos vimos em Portugal: dentistas, mulheres de virtude, algebristas, sangradores, postemeiros, extractores de lobinhos e tantos outros de pouca saudosa memória. (p. 401).
Numa última referência, em 1962, lembra-se os compromissos marítimos das Casas dos Pescadores e refere-se a presença anterior do médico-cirurgião e do sangrador (Sessão nº 46/1962 da Secretaria da Assembleia Nacional, 1962).
São relevantes os dados referentes à monarquia constitucional. Logo no início em 1822, nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, advoga-se que para o futuro cessará a diferença entre sangrador, cirurgião das pequenas operações e o cirurgião operador, havendo apenas cartas de cirurgia (Sessão nº 56/1822, 1822). Mais para o final deste período, por 1861, o Conde de Samodães, par do reino, defende a existência de mais facultativos, como se verifica na citação do Diário da Câmara do Pares do Reino, nº 15, de 19 de fevereiro de 1861 (Sessão de 19 de Fevereiro da Câmara dos Dignos Pares, 1961), “ que possam fazer melhor serviço do que fazem esses barbeiros e sangradores das pequenas aldeias, que são a maior desgraça no paiz, pois quando são chamados à cabeceira de um enfermo, é quasi sempre para lhe darem a morte” (p. 501).
Em 1899, encontramos no Diário da Câmara dos Senhores Deputados da Nação nº 72 (Sessão nº 72/1899 da Presidência, 1899) a intervenção do par do reino, Sr. Conde do Restelo, apelando “que as auctoridades competentes acabem com essa grande quantidade de curandeiros, sangradores e até barbeiros que estragam mais a saúde publica do que as farmácias illegaes”. (p. 714).
O último dos sangradores, de nome Estevão Pedroso, irá exercer as suas funções até ser extinto o seu lugar de sangrador no Hospital de S. José, solicitando ele próprio que seja considerado cirurgião extraordinário, o que será concedida sob autorização real em 1851 (Barradas, 1999). As sangrias nesta altura embora ainda prescritas por alguns médicos saudosistas, são muito reduzidas e não passam de cerca de duas por dia. Número irrisório face aos números do passado e que irá precipitar a assinatura do decreto pela extinção do ofício de sangrador no ano de 1870 (Barradas, 1999).
Embora extintos oficialmente, na realidade, os sangradores permanecem de forma mais ou menos encoberta. Bem vistos aos olhos da população e com a complacência das autoridades, perduraram ainda por muitos anos, para além do séc. XIX, data da sua extinção, principalmente nos pequenos meios rurais, que mantêm elevado défice de cuidados assistenciais e de profissionais que lhes possam valer. Os barbeiros da terra, assumiam muitas vezes esse papel assistencial, disponíveis sempre que alguém era acometido de uma maleita e os procurava pelos seus préstimos de acesso fácil e imediato. Podemos encontrar numa monografia de Vilar de Amargo, pequena aldeia do interior Norte de Portugal, referências a habitantes locais como é referido o Sr. Dário Gouveia, filho e neto de barbeiros Vilarmarguenses, que tendo feito a guerra de 1914-18, herdando do pai um estojo com instrumentos, arrancava dentes e em tempos passados, fazia sangrias quando diagnosticava pneumonias (Eurico, 1988).
Nos tempos contemporâneos podemos ainda encontrar resquícios de uma prática passada, e antiquada, baseada nos dogmas da medicina antiga, mas que se mantém em determinadas situações específicas e que configuram nalgumas práticas executadas hoje em dia por outras profissões que entretanto surgiram e que mantêm um processo de evolução como é o caso da enfermagem, seja por exemplo das flebotomias realizadas nas colheitas de sangue aos seus doentes para análise, seja nos processos de sangria controlada e indicada pelo médico, para o tratamento de determinadas doenças como sejam a hemocromatose ou na policitemia vera.
Conclusão
O ofício de sangrador subsistiu ao longo de anos devido a diversos fatores, sendo que a principal causa que podemos atribuir terá sido o facto de se ter mantido alicerçado numa teoria humoral ancestral hipocrático-galénica recuperada e renovada por Avicena, que perdurou ao longo de séculos. Após um período sem contestação, protegidos pela igreja e pelos escritos antigos difundidos e ensinados pelos próprios religiosos, os sangradores e barbeiros-sangradores irão ter um certo sucesso e período de apogeu nas artes de cura, desenvolvendo a sua atividade não só nas instituições de assistência, mas também nas suas lojas e tendas de foro privado. A regulação imposta com o surgimento da escola prática de sangria no Hospital Real de Todos os Santos, manterá o ofício de cirurgião das pequenas cirurgias, pouco diferenciado do barbeiro-sangrador, baseado num ato mecanizado de processos simples de corte ou punção de veias apreendidos pela destreza e pela prática ao longo de gerações com mestres de sangrar e sob indicação estrita de físicos ou cirurgiões.
Por via do desenvolvimento da sociedade, da ciência, da medicina, de estudo anatómico e fisiológico do corpo humano mais próximo da realidade, ao surgimento de novos conhecimentos, métodos e teorias, começa a contestação à sangria, aos seus métodos e aplicabilidade prática, gerando períodos de grandes discussões políticas nas sessões parlamentares do reino ao longo de anos e que irão levar ao seu processo de extinção por decreto em 1870, isto é, quase quatro séculos depois do primeiro regimento de barbeiros. Com os limites formativos impostos, com a evolução da ciência médica e a progressiva redução da prescrição médica de sangrias, este míster será vítima da sua própria prática. No entanto o ocaso é lento, a sua prática irá persistir de forma quase clandestina até ao primeiro quartel do século XX, muito tempo depois da sua extinção, principalmente nas zonas rurais onde gozam de um certo estatuto e posição social (o povo mantém-se maioritariamente iletrado, analfabeto e extremamente devoto a Deus e às crenças, e as carências assistenciais são enormes). A manifesta falta de médicos para cobrir todo o território será decisivo para essa manutenção ao longo de várias dezenas de anos após a sua extinção oficial, no entanto o seu destino já estava definido desde a sua extinção. Nos finais do séc. XIX, novas necessidades e lacunas sentidas na assistência, farão evoluir o ofício dos enfermeiros, mais estruturado a caminhar para um processo de profissionalização do qual é simbólica a criação da primeira escola de enfermeiros em Coimbra, Portugal, no ano 1881. Ao longo de um processo evolutivo e de crescimento identitário os enfermeiros e após a transição do século XIX para o XX, a enfermagem, ocupará novos espaços e funções.
Nos alvores da medicina moderna, com novas teorias médicas, novas abordagens terapêuticas, com o inicio da transformação das instituições de assistência de locais de acolhimento para locais de tratamento, surge a necessidades de novos profissionais, preparados agora para as novas exigências. Neste enquadramento desaparecem ocupações, ofícios, profissões medievais, como sejam sangradores e barbeiros-sangradores, algebristas, cristaleiros, e outros, já em presença - enfermeiros e enfermeiras -, reconfigurando-se e desenvolvendo-se, ocupam o espaço social liberto e assumem funções emergentes, sobretudo em contextos institucionais. Julgamos ser este um forte motivo impulsionador da profissionalização dos enfermeiros, que existindo desde há muitos séculos, veem a possibilidade de acelerar a profissionalização com uma maior presença nas instituições, maior diferenciação de funções, alguma regulação, e não menos importante, o inicio do ensino formal quer em contexto de trabalho, quer em escolas, como a experiência da Escola dos Enfermeiros dos Hospitais de Coimbra, em 1881.